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 · ".:,' - '"" ~ INTRO UÇÃO Significado e objecto da eografia Humana I Exame crítico da concepção de Geografia Humana D o velho tronco da Geografia brotaram recentemente alguns ramos; um desses oi a Geografia humana. Quanto a esta se não passara de mais um título nada seria menos novo pois o elemento humano é essencial em toda a Geografia. De facto o homem interessa· se principalmente pelo seu semelhante e desde que se abriu a era das peregrinações e das viagens o espectáculo das diferenças de organização social associado à diversidade dos lugares nunca de deixou de despertar a atenção. ° que Ulisses reteve das suas viagens oi cO conhecimento das cidades e dos costumes de muitos homens»; e para a maioria dos autores antigos aos quais a Geografia deve os primeiros pergaminhos a ideia de região é inseparável da ideia dos seus habitantes; o exotismo tanto se traduz pelos meios de nutrição e aspecto f ísi co dos indígenas como pelos montes desertos ou rios que formam o cenário. A Geografia human a nã o se opõe portanto a uma Geografia que não se preocupe com o ele mento humano; aliás tal ideia só poderá ter germinado no espírito de alguns especialistas intolerantes. Traz porém uma nova concepção das relações entre a Terra e o Homem concepção suger ida por um conheciment o mais sintético das leis fisic as que regem a nossa esf era e das relações entre os seres vivos que a povoam. E a expressão de um desenvolvimento de ideias e não o resul- tado directo e por assim dizer material da extensão dos descobri - mentos e dos conhecimentos geográficos.

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INTRODUÇÃO

Significado e objecto da Geografia Humana

I Exame crítico da concepção

de Geografia Humana

Do velho tronco da Geografia brotaram recentemente algunsramos; um desses foi a Geografia humana. Quanto a esta,se não passara de mais um título, nada seria menos novo,

pois o elemento humano é essencial em toda a Geografia. De facto, ohomem interessa· se principalmente pelo seu semelhan te, e, desde que seabriu a era das peregrinações e das viagens, o espectáculo dasdiferenças de organização social, associado à diversidade dos lugares,nunca de deixou de despertar a atenção. °que Ulisses reteve das suasviagens foi cO conhecimento das cidades e dos costumes de muitoshomens»; e para a maioria dos autores antigos, aos quais a Geografiadeve os primeiros pergaminhos, a ideia de região é inseparável daideia dos seus habitantes; o exotismo tanto se traduz pelos meiosde nutrição e aspecto físico dos indígenas, como pelos montes,desertos ou rios que formam o cenário.

A Geografia humana não se opõe, portanto, auma

Geografiaque não se preocupe com o elemento humano; aliás, tal ideia só poderáter germinado no espírito de alguns especialistas intolerantes. Traz

porém, uma nova concepção das relações entre a Terra e o Homem,concepção sugerida por um conhecimento mais sintético das leisfisicas que regem a nossa esf era e das relações entre os seres vivosque a povoam.

E' a expressão de um desenvolvimento de ideias e não o resul-tado directo, e por assim dizer material, da extensão dos descobri-mentos e dos conhecimentos geográficos.

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28 MARCHA DA HUMAN IDADE

Não teria sido surpreendente que a grande luz projectada noséculo XVI sobre a terra desse lugar a uma verdadeira Geografia humana. E, todavia, não aconteceu assim. Sem dúvida, os costumes doshabitantes mereceram especial relevo nas narrativas e compilações legadas pelos quinhentistas; porém, quando não é o maravilhoso, é oaned6tico que nelas predomina (I) - e por isso, e apesar dos diversostipos de sociedades que nos apresentam, não se vislumbra qualquerprincípio de classificação geográfica. E aqueles que, senhores destesdados, tentam traçar de novo quadros ou espelhos do mundo, não semostram de modo nenhum superiores a Estrabão. Daí, Bernardo Varenius, quando em 1650 escreve a Geografia geral (2), a obra maisnotável que apareceu antes de Ritter, (3) utifizar com uma condescendência quase desdenhosa os factos humanos que devem figurar nadescrição das regiões. Quer dizer: dois séculos de descobrimentosacumularam noções sobre os povos mais diversos, sem que surgissenada de satisfat6rio e preciso para um espírito preocupado com aclassificação científica!

Não obstante, havia muito tempo já que o pensamento científico se preocupava com as influências do meio flsico e respectivaacção sobre as sociedades humanas. Na verdade, menosprezaraímostoda uma linhagem de pensadores - que vai desde os primeirosfil6sofos gregos a Tucídides, Arist6teles, Hipócrates e Erat6stenes

se não tivéssemos em conta os pontos de vista engenhosos, e algumasvezes profundos, que estão disseminados pelas suas obras(4). Nem pode

(1) Esta afirmação não é aliás válida em relação às sumas geográficasportuguesas de Quinhentos, tão ricas de dados não fantasistas sobre os aspectosessenciais das sociedades exóticas. Recor,de-se, quanto ao Oriente, Tomé Pirese Duarte Barbosa, e quanto ao Sáara e à Arriea Negra, o emanuscrito ValentimFernandeslt, o aEsmeraldo», André Álvares de Almada, e tantos mais. (N. T.)

(2) Graças a esta obra, Varenius é justamente .,considerado como ofundador da Geografia moderna. (N. T) " ' r> .

(3) Karl Ritter (1779-1859) escreveu a obra Die Erdkunde im Verhaltnis'fur Natur und Geschichtll des Menschen oder allgemeine uná vergleichende J::rd-

kunde ais sichere G rundlag e des Studiums und Unterrichts in physikalischen undhistorichen Wissenschaften, cujo primeiro volume apareceu em 1817. E' um trabalho extenso (19 tomos) no qual embora sem abandonar os problemas daGeografia física, antes pelo contrário o autor mostra contudo mais pendor,

natural consequência da sua formação histórica e filosófica, para o estudo dasrelações entre a Terra e o Homem e da actuação das sociedades humanas noespaço e no tempo, isto é, neste ou naquele lugar e no curso da História. Em bora tenha exagerado, forçando conclusões, e haja insinuado o determinismogeográfico, nem por isso devemos deixar de saudar Ritter como um daquelesque, no dizer de Brunhes, ajudaram a definir o método da investigação geográfica. (N. T) .

(4) Hipócrates no tratado Dos Ares, Aguas e Lugares abordou o problema das conexões entre o clima e as características somáticas e psíquicas dosindígenas. E também Aristóteles, na Política, livros IV e VII - como já o fizeraPlatão no livro V das Leis-alude às relações entre a Terra e Homem, melhorainda, «às influências do meio físico sobre a vida política dos homens> (Lucien

29RINC íP IOS DE GEOGRAFIA H U M A N A

ríamos, aliás, compreender que, nessas escolas filosóficas nascidasnas costas da Jónia, o espectáculo variado e grandioso do mundoexterior não tivesse despertado um éco consequente duma justa visãoda marcha das sociedades humanas. Nessas escolas havia pensadores que, tais como H eraclito - verdadeiro precursor de Bacon -,julgaram ser preferível que o homem, em vez de buscar a verdadena contemplação do seu microcosmos, alargue os seus horizontes eprocure luzes no mundo maior de que faz parte (1).

Primeiro, tentaram encontrar no meio físico a explicação doque mais os impressionava no temperamento dos habitantes. Depois,á medida que as observações sobre a marcha dos acontecimentos edas sociedades se acumularam no tempo e no espaço, compreendeu-semelhor qual a parte que devia atribuir·se às causas geográficas.As considerações de Tucídides sobre a Grécia arcaica, as de Estrabãoacerca da posição da Itália, são consequência das mesmas exigências de espírito que ditaram certos capítulos do Espírito das Leis(2) ouda História da Civí/i'{ação em Inglaterra, de Thomas Buckle.

Ritter inspira-se também nestas ideias no seu Erdkund, masfá-lo mais como ge6grafo. Se, por uns restos de prevenção hist6rica,atribui uma acção especial a cada grande individualidade <continental,a interpretação da natureza continua a ser para Ritter o temaprimordial. Pelo contrário, à maioria dos historiadores e dos soció

logos a Geografia não interessa senão a título consultivo. Parte-se dohomem para chegar ao homem; representa-se a Terra como «o palcoonde se desenrola a actividade do homem», sem reflectir que omesmo palco tem vida. O problema consiste em dose ar as influênciassofridas pelo homem, em aceitar que uma certa espécie de determinismoactUQU no decurso dos acontecimentos da História. Assuntos semdúvida sérios e interessantes, mas qúe para serem resolvidos exigemum conhecimento simultâneamente geral e profundo do mundo terrestre, c o n h e c i m ~ n t o que não foi possível obter senão recentemente.

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F ebvr e) - e tanto, importa dizer, já não é propriamente do domínio da Geografia, pois esta é, e só, oa ciência dos luga.res e;· não dos homens» (V. de LaBlache). Contudo, e isso devemos sublinhâ.lo, o problema estava, realmente,posto pelos Gregos: apenas o ponto de vista não era exactamenle o geográfico. (N. T. )

(1) Bacon, De augmentis scientiarum, t. I, § 43.(2) A obra famosa de Montesquieu - na qual um determinismo rigo

roso é solução do problema das influêncías do meio físico. (N. T.)

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" 30 MA RCH A DA H U M A N I D A D E

II - O prinCIpIO da unidade terrestre

e a noção de meio

A ideia que domina todo o progresso da Geografia é a daunidade terrestre. A concepção da Terra como um todo, cujas partes

estão coordenadas e no qual os fenômenos se encadeiam e obedecemàs leis gerais de que derivam os casos particulares, desde a antiguidade que entrara na ciência, por intermédio da Astronomia. Conforme a expressão de Ptolomeu, a Geografia é «a ciência. sublime quelê no céu a imagem da Terra». Todavia, a concepção da unidadeterrestre ficou por longo tempo confinada no domínio da Matemática,e sô em nossos dias ganharia importância nos outros capítulos daGeografia, graças, sobretudo, ao conhecimento da circulação atmosférica que rege as leis do clima. Cada vez mais se reforçou a noçãode factos gerais ligados ao organismo terrestre e, com justificadarazão, F. Ratzel insiste nesta concepção, que lhe serviu de pedraangular na sua Antropogeografla (1). Os factos de Geografia humanaligam-se a um conjunto terrestre e apenas por este são explicáveis;relacionam-se COm o meio que, em cada lugar da Terra, resulta dacombinação das condições físicas.

Foi sobretudo a Geografia botânica que contribuiu para que anoção de meio fosse posta em foco, e esta luz projectou-se sobre todaa. Geografia dos seres vivos. Alexandre de Humboldt(2) assinalar a, coma sua perspicácia habitual, a importância da fisionomia da vegetaçãonas características de uma paisagem; e quando, em 1836, H. Berghaus,inspirado por aquele, publicou a primeira edição do seu Atlas Fislco(ã),o clima e a vegetação lá apareciam nitidamente relacionados. Estavisão fecunda des bravava o ·cami nho a uma nova série de investigações. Com efeito, não se tratava duma classificação segundo asespécies, mas sim já da vista de conjunto de todo o povoamento vegetal de uma região, de maneira a vincar as características pelasquais se exprime a influência das condições ambientes: solo, temperatura, humidade.

A fisionomia da vegetação é tanto a marca mais expressiva

de uma região, como a sua ausência é um dos factos que mais nosimpressiona. Quando tentamos evocar uma paisagem, já esfumada nas

(1) Friedrich Ratzel, Antropogéographie, 2.' parte, Introdução, Die H o l o ~ gCiische Erdansicht Stuttgart, 1891.

(2) Alexandre de Humboldt (17C9-1859), famoso naturalista e viajantealemão, autor do Cosmos e um dos fundadores, a par com Ritter, da Geografiamoderna. (N.

(3) 3.a corrigida e modificada, em 1892.

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PR INCÍ P IOS

prias funções das plantas e pelas necessidades fisiológicas

32 MARC 'HA D A HUMAN IDADE<.,

nossas recordações, não é a imagem de uma planta em particular, deuma palmeira ou de uma oliveira, que se nos representa na memória;é antes o conjunto dos diversos vegetais que revestem o solo, que lhesublinham as ondulações e os contornos, imprimindo lhe pelo desenhodas formas, cores, espaçamentos ou massas, um carácter comum de

F.l1,

Fig. 2 As condiçõe s do meio. 11 - Tipos de clima.

(Segundo de Martonne, modificado e simplificado.)

l -Clima equatorial ( temp. mid. suplriotl' em cada mê s a 2JO C. ; p l u v , ' o S J ~ t l a d l l anuRl: um regra,mais 200 c m ~ " distr;"buida por todas os mtf6ss). !' l-Clima sub-equatorial (Iemp. mitl. attual: cercado ~ , t > C, ; ttlm!. m/ti. do mê$ mais frosco: 20 ° C,) ou ligeiramente ,'nferior. Pluv;os,"dtt.tl "anual: TOa Oi ~ o o C'In.; sm r«gora, dois o .... tr;5s m"SUS sem chuvas). i -Clima tropical (tomp. m/ti.

affual: mais d8 200 C. Pluviosidatl, ant",z: t."t,/crior a IJ O cm.; duas estações: ti das chuvas,co'lncidindo (;01n Os mll,'1i1S mais q"lIntlls, ti a f r 8 s c a ~ ou s9ca). 4-Clhua desértico (caraderis/'icQess(;tndal: preciPilaylio anual ,:nl0,.;or a 3J em" havendo períodos) mtlt"s ou mettOS longos, d# aKOSdurante os qua,'$ não chove. Jemp. midia: conforme SI Irale de ,.egimes df;tserticos qu#ntes ouIrfos. é mais 0'1. menos alto: 20°,6, no Sdarà, argdliH01 com }: l

0 ,3 fiO mt7s mais quent# I 9°t3 no

mais Ir6s,0; 1:1 0 ,J "0 Turquesli'ío, eom 28°,2 no mês mafs qU8nle e - 2° , no mil;' frio).s,-CJillla mediterrâneo (temp. méd. anual: de 1:1 18° C. ; tempo do mês matOs /r,'o, Ia a I;<>:1

do mês mcu's queut6, 20 2Jo. Prdcipita y1ío antlal: JO a 100 enl • J" veriío seco), t i-Clima t e m p e ~I

rado (/6mp. m/do anual ~ certa de 10 0 C. ; 4 a 6 meses lle te'Jnperatura inff;trior à méd. anual.

Prec"pitaf(io JO a 100 cm.; ch'4vas todos os meses). 7-Climas frio. (lemp., 1Ju!d. auunl iuleriM'a J O C.; 4 m4StlS lem/grados, 4 n 6 meses de tlmp. mid, negativa. Pluvlosidadc: de 2J a IOO em.;chuvas em lodos os mOS4S. a-Cl ima polar (temp. méd. anual iuferior a 0° C.: .2 a J meses cotn

temperntltra positú.ln. Pluviosidade ;-,,/erior a 2J C11',)

individualidade. A estepe, a savana, a selva, a paisagem de parque,a floresta-clareira, a floresta-galeria - são expressões colectivas queresumem para nós este conjunto. Não se trata de uma simplesimpressão pitoresca, mas de uma fisionomia determinada pelas pró-

DE GEOGRAFIA H U M A N A

existência.Isso é o que as observações e ensaios experimentais d

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grafia botânica demonstraram pela análise e pela comparaçãomente desde que essas investigações puderam estender-se àstropicais e temperadas e a todas as altitudes. A concorrênciplantas entre si é tão activa que só as melhores adaptadas ao~ m b i e n t e conse.guem m a n t e r - ~ e - e, ainda assim, só em

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Fig. 3 - As condições do meio. III Pluviosidade anual.

(Segundo S. Gunther.)

Notar cowo as regiões fito-geogràficas (Fig, 1) se adaptam às diferentes condições da pluvJosidade.

instável. A adaptação exprime-se de diversas maneiras: pelo porte,pelas dimensões e posição das folhas, pelo revestimento piloso,

libras dos tecidos e desenvolvimento das raízes, etc. Não apenas cadaplanta provê, pelos seus próprios meios, à satisfação das suas funçõesvitais, como entre vegetais diferentes se formam associações tais quecada um deles tira proveito dos outros. Quaisquer que sejam as

variedades de espécies que coabitem, quaisquer que sejam mesmoas diferenças exteriores dos processos de adaptação de que se servem,há todavia em toda esta população vegetal um distintivo comum que

não engana um olhar exercitado.Tal é a lição da ecologia, que devemos às investigações da

G.o. Hum, - FoI. 3

 

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34 MARCHA DA HUMAN IDADE

Geografia botâni ca: Ecologia, quer dizer, segundo as próprias palavras 40 criador deste nome (I), a ciência que estuda «as relações ~ . 'mútuas de todos os organismos que vivem num único e mesmo lugar,e a sua adaptação ao meio que os rodeia». Ora, é evidente que estasrelações não abrangem somente as plantas. Sem dúvida, os animais 1Idotados de locomoção e o homem com a sua inteligência estão melhor Iapetrechados para reagir contra os meios ambientes. Mas se reflec !tirmos em tudo aquilo que implica esta palavra meio ou environment,.

segundo a expressão inglesa; se cogitarmos nos fios ignorados de qúeé tecjda a teia que nos envolve, qual o organismo vivo capaz desubtrair-se· lhe ?

Em suma, o que ressalta nitidamente destas investigações éuma ideia essencialmente geográfica: a de um meio compósito, dotadode uma potência tal que pode agrupar, e man ter juntamente, seres heterogéneos em coabitação e correlação recíproca. Esta noção pareceser a própria lei que rege a geogràfia dos seres vivos. Cada regiãorepresenta um domínio, onde se reuniram artificialmente seres díspares, que aí se adaptaram a uma vida em comum. Se consideramosos elementos zoológicos que entram na composição de uma faunaregional, verifica-se que ela é das mais heterogéneas; compõe-se derepresentantes das mais diversas espécies, que circunstâncias, sempredifíceis de precisar, mas ligadas à concorrência vital, trouxeram paraessa região. Todavia, acomodaram-se aí ; e se as relações que mantêm

entre si são mais ou menos hostis, são também tais que as suas existências, no entanto, parecem solidárias. As próprias ilhas, desde quetenham certa extensão, não fazem excepção àquela diversidade. Nóscolhemos nos naturalistas zoo·geógrafos expressões tais como «comunidade de vida», ou ainda «associação faunística», fórmulas significativas.pois mostram que, tanto no povoamento animal como no povoamentovegetal, toda a extensão de s u p e r f i ~ i e , em análogas condições derelevo, de posição e de clima, é um meio compósito, concentrandoassociações formadas por elementos diversos, indígenas, trânsfugas,invasorés, sobreviventes de períodos anteriores, mas unidos peloslaços duma adaptação comum., Qual a utilidade destes dados para a Geografia humana?

E isso que vamos ver.

IH - O Homem e o melO

Antes de ir mais longe, surge uma pergunta a que é preciso;

responder c,pm brevidade. A Geografia botânica apoia·se já sobre um ígrande núIt'l;ero de observaçóes e pesquisas; a Geografia zoológica, se I- - - _ . , ~ , i1) H.:eckel, Histoire de la création des êtres organisés, tradução francesa,Paris, Reinwa ld, 1884, pãg. 551. ' i

PR INC ÍP1 0S DE GEOGRAFIA H U M A N A 35

bem que muito menos adiantada, conta já frutuosas explorações no seuactivo: mas, quais são os dados de que dispõe a Geografia humana?

E donde lhe vêm eles ( Serão assim tão numerosos para autorizar asconclusões que já deilámos entrever?

No estudo das relações da Terra e do homem a perspectivamudou; rasgaram-se mais largos horizontes.

Dantes não se atentava senão no período histórico, isto é, noúltimo acto do drama humano,lapso de tempo muito Curto emrelação à presença e à acção dohomem sobre a Terra. A investigação pré-histórica veio mostrar-nos o homem espalhado, desdetempos imemoriais, pelas maisdiversas panes do mundo, munido do fogo e fazendo instrumentos; e por mais rudimentaresque nos pareçam as suas indústrias, não podemos considerarde somenos as modificações que,por via delas, sofreu a fisionomiada Terra. Quer o caçador paleo

lítiCO, quer os primeiros cultivadores neolíticos abriram brechase criaram também associações nomundo dos animais e das plantas.

Actuavam em pontos diversos, in-d d dpen ente mente uns Os outros.como o provam os diferentes pro. ,

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- d d Pintura rupestrc do barranco de VaUtortacessoS aln a em uso na pro uçao (Espanha), reduzida a r 'ro do tamanho natural.do fogo(I). Em suma, mais remotae universalmente do que se supu

nha, o homem teve influência sobre o mundo vivo.

Dado que desde tão cedo a espécie humana se expandiupelas regiões mais diversas, teve necessàriamente de submeter-se acasos de adaptações múltiplas. Cada grupo encontrou, no meio

especial onde deveria assegurar a Sua vida, tanto auxiliares comoobstáculos: os processos a que recorreu por via de uns e outros re

(1) Por mais pflmJtIVO que seía, não há povo no mundo que não saibaproduzir o fogo, Os processos mais em uso são: a) o atrito de dOIS pedaços demadeira de dureza diferente (há diversas maneiras de proceder); li) a percussãode duas pedras de pirire, ou de uma de pirite com uma lasca de silex; c) a C Q m ~ pressão de ar. Ver: Deniker, Les Pel/ples et les Races de la Terre, Paris, 1926,pág. ]73 e segrs. e Haberlandr, Etnografia Estudio General de las Raras,Colecção Labor, 23/24, pág. 102 e segrs. (N. T.)

 

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36

r'

MARCHA DA HUMAN IDADB

presentam outras tantas soluções locais do problema da existência.Or a _ até ao momento em que, devassado o interior dos continentes, foi possível às explorações científicas observar sistemàticamente as populações - , uma espessa cortina ocultava-nos os desen:

volvimentos variados da humanidade .As influências do meio unicamentese nos denunciavam através de, um

amontoado de contingências históricas que as velava.A visão directa de modos de

existência estreitamente relacionadoscom o meio, eis a novidade que de

Fig. 5_Lavrador do bronze antigo vemos à observaç'io sistemática das (Segundo A. Montellius.) famílias mais isoladas, mais atra

Junta de bois iungida ao arado primitivo. sadas da espécie humana. Os serGravula rupestre de l:3ohuslãu, Suécia. viços que há pouco assinalámos

terem sido presta dos à Geograf ia botânica pela análise de floras extra-europeias, são precisamente os mesmos que a Geografia humana deve ao conhecimento de povos que ficaram próximos da nature za, os Naturllolker . Ainda que se observem mudança s, é impossível não reconhecer neles um carácter vincado de autonomia, de ende- mismo e só por este podemos compreender como certoS homens, colocados em certas e determinadas condições de meio e agindo conforme a própria inspiração , procederam para organizar a sua existência. E, afinal, não foi sobre estas bases que se ergueram as civilizações, que não passam de acumulações de experiências? Crescendo, e complicando. se por isso mesmo, nem assim puderam des

ligar-se completamente dessas origens.Algumas des tas formas primitivas de existência são perecíveis;

várias extinguiram-se já ou estão prestes a acabar, reconheçamo-lo.Mas deixam-nos, como testemunhos ou como relíquias, os produtosda sua indústria local- armas, instrumentos, vestuário, etc. - , todosesses objectos nos quais se materializa, por assim dizer, a sua afinidade com o meio ambiente. Razão teve, pois, que m. os recolheu,quem formou os museus especiais onde estãO agrupados e geogràficamente coordenados. Um objecto isolado pouco nos diz; mas já

colecções da mesma proveniência nos permitem discernir uma siglacomum, e dão, viva e directa, a sensação do meio. Do mesmo modo,os museus etnográficos, como aquele que foi fundado em Berlim pelainfatigável actividade de Bastian, ou como o de Leipzig e, os de outrascidades, são verdadeiros arquivos onde o homem pode estudar-se asi próprio, não in abstracto, mas sobre realidades.

Outro progresso: nós estamos melhor informados sobre adistribuição da nossa espécie, sabemos melhor em que proporção·numérica o homem ocupa as diversas partes da Terra. Não afirmareique tenhamos um inventário exacto da humanidade, nem que o número

P R 1 N C1P lO S D B G E O G R A F 1 A HU M A N A

de 1.700 milhões representa exactamente o dos nossoslhantes (I); todavia, nem por isso deixa de se r certo que, graças a

37

seme

a

essedas

essas

o

sondagens feitas um pouco por toda a parte no mar humano,recenseamentos repetidos, a cálculos plausíveis, dispomos de númerosjá bastante precisos para nos permitirmos estabelecer relações.. Na mobilidade que preside às relações de todos os seres vivos,o estado numérico e territorial de cada espécie é uma noção científica de alto valor. Ela projecta luz sobre a evolução do fenómeno.

Ora, a população humana é um fenómeno em marcha; efacto fica inteiramente em evidência logo que, para alémestatísticas particulares dos Estados, consideramos o conjunto da distribuição no globo. Há regiões que a população ocupa poderosamentee onde parece ter utilizado, mesmo com excesso, todas as possibilidades de espaço. E outras há onde é diminuta e disseminada, semque, aliás, razões de solo ou de clima justifiquem tal anomalia.Como explicar estas desigualdades senão por correntes de imigração,originadas em tempos anteriores à História e cujos rastos só a Geografia pode ajudar-nos a encontrar? E hoje, naturalmente,regiões abandonadas transformam-se em centros de atracção para osmovimentos que agitam a humanidade actual.

Uma das relações mais sugestivas é a que existe entrenúmero de habitantes e uma certa, porção de superfície, ou seja, a

densidade de população. Se pusermos a par de estatísticas pormenorizadas da população mapas igualmente pormenorizados, como ospossuem hoje quase todos os principais países do mundo, é possível,por um trabalho de análise, discernir correspondências entre asaglomerações humanas e as condições físicas. Tocamos assim numdos problemas essenciais que levanta a ocupação da terra - porquanto a existência de um denso agrupamento de população, de umacoabitação numerosa de seres humanos num mínimo de espaço, masque todavia garante à colectividade meios seguros para viver, é, sebem reflectirmos, uma conquista que só pôde realizar-se graças araras ,e preciosas circunstâncias.

(1) Cálculos de 1938 e 1948, relativos ao total da população do globoe sua distribuição por continentes (em milhões):

'008 1948

África. 141 192,1América. 259 322,4Ásia.• 1.113 1.317,8Europa . 515 541,0Oceânia • 10 12,6

Total :U.I41 2.385,9(N. T)

 

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MARCHA DA HUMAN IDADE38

Hoje, as facilidades do comércio mascaram-nos as dificuldadesque encontraram os homens de antanho para estabelecer gruposcompactos. En tretanto, a maior parte dos agrupamentos actuais sãoformações que remontam longe no passado; o seu estudo analíticopermite compreender-lhes a génese. Na realidade, a população deum país decompõe-se, como muito bem o mostrou Levasseur (1), numcerto número de núcleos, cercados de auréolas de intensidade decrescente. Ela agrupa-se segundo pontos ou linhas de atracção-pois que

os homens não alastraram à maneira de uma nódoa de azeite, masreuniram-se, primitivamente, à maneira dos corais. Uma espécie decristalização aglomerou, em certos pontos, bancos de populaçõeshumanas; aí, estas aumentaram, pela sua inteligência, os recursosnaturais e o valor dos lugares, de tal sorte que outras vieram para,·abem ou a mal, participar nos beneficios deste património - e, destejeito, camadas sucessivas se acumularam nesses terrenos de eleição.

Possuímos hoje. dados antropológicos sobre algumas destasregiões onde se sobrepuseram aS$,im aluviões humanas. A EuropaCentral, a bacia mediterrânea, a India Inglesa (2) apresentam-nos, atítulos diversos, exemplares segundo os quais é possível certificarmo-nos da composição dos povoamentos humanos. A complexidadedestes povoamentos é, duma maneira geral, o que nos impressiona.Quando tentamos distinguir, segundo os índices antropológicos repu

tados como os mais persistentes, os elementos que entramna

população não só duma grande região, mas até de uma circunscriçãoregional menos extensa, verificamos que, com poucas excepções, afalta de homogeneidade é a regra. Em França - tantas vezes namesma região ou até no mesmo distrito - a antropologia distingueelementos muito antigos, que remontam aos tempos pré-históricos, aolado de elementos vindos ulteriormente.' Nesta diversidade há grausque explicam suficientemente a natureza e a posição das regiões; mas,no estado actual da evolução do povoamento humano, bem raras sãoas zonas que parecem ter escapado inteiramente às vagas das invasõesque rolaram à superficie da Terra: alguns arquipélagos longínquos,alguns recantos montanhosos, quando muito. Mesmo na região dasselvas africanas, os Pretos de grande estatura e os Pigmeus de cormais clara coexistem, mantendo relações recíprocas. Podemos, desdejá, considerar como adquirida a distinção fundamental entre povo

e raça, contráriamente aos hábitos da linguagem corrente que os

(1) E. Levasseur-La répartition de la race humaine (Bulletin interno de

statistique. XVIII, 2" Iiv., pág. 56).(I) Le peuple de l' Inde d' apres la série des recellsemellts (Annales de

Géographie, XV, 1906, págs 353-375 e 419-442).

39R INC ÍP IOS DE GEOGRAF IA H U M A N A

confunde sem cessar (1). Sob as anaiogias de língua, de religião e denacionalidade persistem, e não deixaram de actuar as diferenças específicas implantadas em nós por um longo atavismo.

Entretanto, estes grupos heterogéneos combinam-se numaorganização social que da população de um país, considerada no seuconjunto, faz um corpo. Acontece, por vezes, que cada um dos elementos que entra nesta composição adoptou um modo de vida (2)particular: uns, caçadores; outros, agricultores; e ainda outros, pas

tores. Vêm o-los, neste caso, coopera r, unidos uns aos outros, pela " . ~ f solidariedade de necessidades. A maior parte das vezes excepçãofeita a algumas moléculas obstinadamente refractárias, tais comoboémios e ciganos, etc. - a intluência soberana do meio, nas sociedades da Europa, tudo ligou a ocupações e costumes análogos; e marcasmateriais assinalam essas analogias. Tal é a força meldadoraque prevaleceu sobre as diferenças originais e as combina numaadaptação comum. As associações humanas, .do mesmo modo queas associações vegetais e animais, compõem-se de elementosdiversos submetidos à influência do meio: não se sabe que ventosos trouxeram, nem donde, nem em que época; mas coexistemnuma e mesma região que, pouco a pouco, os marcou com seucunho. Há sociedades incorporadas ao meio desde recuados tempos, mas há outras ainda em formação, aumentando e modificando·se dia a dia. Sobre estas, apesar de tudo, as condiçõesambien

tes exercem pressão e, por isso, na Austrália, no Cabo ou na América,

(1) La Blache não deixa explícita a distinçáo fundamental entre povo oraça. Mas, tendo sido abordado o assunto, parece-me conveniente deixá-lo esclarecido, tanto quanto é possível numa curta nota. Raça é um grupo de homens(0 0 caso particular que focamos) com idênticas características somáticas e cujaevolução está sujeita às leis da biologia; povo é um conjunto de individuos, deuma ou mais raças, falando a mesma lingua, ocupando um mesmo território,tendo os mesmos usos e costumes e, frequentemente, a mesma religião. Podeum a destas características falhar: os ciganos andam espalhados pelos territórios.de outros povos e não têm um que seja seu; nem sempre o mesmo credo reh

gioso é seguido pela totalidade dos indivíduos. Entretanto. aqueles caracteres,no todo ou em parte, podem servir de base a um determinado povo, mas, comodi,.; HaberJandt, só a própria consciência disso converte num povo os individuosde um grupo humano. Acrescente-se que as leis que regem a evolução dos povosnão sáo biológicas mas sociais. (N. T.). .

O autor diz exactamente - «genre de vie», Demangeon, porém,escreve - «modes de vie . (Problêmes de Géographie Humaíne, Paris. 1942). A tradução modos de vida parece-me mais conforme com o genio da llngua e, porisso, optei por ela. Com efeito, ao indagarmos de alguém qual a sua actividadeobreira, não lhe per,:;untamos: - Que genero de vida é o seu ~ - mas sim: - Qualo seu modo de vida 1 (N. T.)

 

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MARCHA D A HUMAN IDADE

vêmo-las impregnarem-se dos lugares onde se desenrolam os seusdestinos. Não serão os Bóers exemplo de um dos mais notáveis tipos

de adaptação?

IV - O homem, factor geográfico

Acima do localismo em que se inspiravam as concepçõesanteriores, esclarecem-se as relações entre a terra e o homem. A distribuição dos homens foi guiada na sua marcha pela aproximação econvergência das unidades continentais; a solidão das bacias oceânicas separou ecúmenas longo tempo ignoradas umas das outras.Os grupos que, na vastidão dos continentes, se fixaram aqui e ali,quantas vezes não ficaram separados uns dos outros por obstáculosfísicos que não vieram a transpor senão com o decorrer dos séculos:montanhas, florestas, pântanos, regiões sem água, etc. A civilizaçãoresume-se na luta contra estes obstáculos. Os povos que dela saíramvencedores puderam aproveitar em comum os resultados duma experiência colectiva, adquirida em diversos meios. Outras comunidades,como consequência de prolongado isolamento, perderam a faculdadede iniciativá à qual deviam os seus primeiros progressos; e sendo

incapazes de, pelas pr óprias forças, irem além de um certo estádio,lembram-nos aquelas sociedades animais que parecem ter esgotado asoma de progresso de que eram susceptíveis. Hoje, todas as partes

(1) La Blache, escrevendo que os Bóers são exemplo de uma notável

adaptação, exprime a realidade com maior vigor do que os autores que falam

de regressão.Na verdade, em 1651, o governador Van Riebeck iniciou a colonização

agrlcola do Cabo; muitos Holandeses de ambos os sexos - circunstãnci a a assinalar _ vieram estabelecer-se no território, recebendo cada colono um lote deterra, sementes, alfaias aflricolas e gado. O caudal dos que chegavam aumentOuquando _ em consequência do fanatismo dos calvinistas que assolava as Provín

cias Unidas - muitos luteranos procuraram refúgio na nova colónia.Oriundos de um pais de marinheiros e mercadores, os colonos não o

foram, mas sim agricultores e pastores. Logo, regressão Mas, tal não será concluir um tanto precepitadamente? Pois não tinham as Províncias Unidas nesseséculo XVII uma larga tradição pastoril e agrícola? Disso são os polders umeloquente testemunho! Até ao comércio metropolitano conviria que na colóniaa actividade económica fosse de molde a servi-Io-e os que partiram e lá se dedicaram à agricultura ou à pastorícia estavam à altura da tarefa: nno Cabo deBoa Esperança demonstraram os Holandeses dotes completos de c o l o n i z a d o r e s ~ , diz Gonzalo de Reparaz (Historia de la Coloniración, Vol. I, Colecção Labor,

pág. 407), E haveria sido assim se tivessem retrogradado?Não mantiveram a língua, ainda que enriquecida por termos dos povos

! '

P R I N C Í P lO S D E G E O G R A F I Ac HU M A N A 41

da terra estão em comunicação; o isolamento é uma anomalia quelembra um desafio, e não apenas entre as regiões contíguas e vizinhas,mas também entre as longínquas, se estabeleceu contacto.

Em todo o caso, as causas físicas, cuja importância os geógrafos se tinham anteriormente esforçado por sublinhar, não devempor isso ser desprezadas; importa sempre assinalar a influência dorelevo, do clima, da posição continental ou insu lar sobr e as sociedades humanas; mas devemos encarar os seus efeitos no homem e

no conj9nto dos seres. vivos, simultâneamen te.E assim que melhor poderemos apreciar a parte que convématribuir ao homem como factor geográfico. Ele é, ao mesmo tempo, · ; : ~ .

activo e passivo pois, segundo a sentença bem conhecida, «naturanon vincitur nisi parendo» (I).

I

Um eminente geógrafo russo, M. Woeíkof, fez notar que osobjectos submetidos à força do homem são sobretudo os que ele apelidou de «corpos móveis» (2). Há, com efeito, na parte da superfícieterrestre que está directamente submetida à acção mecânica daságuas correntes, dos gelos, dos ventos, das raízes das plantas eamda dos animais - estes, pelo transporte de moléculas e pelo espesinhar - um resíduo de desagregação renovado continuamente, disponível e susceptível de se modificar e de adoptar formas diversas.Nas zonas mais ingratas do Sáara, as dunas são o último reduto davegetação e da vida. E' mais fácil ao homem exercer a sua actividadenas regiões onde os materiais móveis estão distribuídos com abundãncia do que naqueles onde uma carapaça calcária ou uma crosta

car totalmente o facto, antes haveriam de buscar-se as causas essenciais n!> tipoi de comércio imposto, logo no início da colonização, pela Companhia das rndiasl Orientais e na atitude política (?) adoptada pela Metrópole. Essas causas huma-nas contribuíram mais do que as influências do meio físico para a lentidão doprogresso da comunidade bóer. '

Particularistas - <1(0 Bóer não gosta de ver o fumo do seu vizinho»-; tradicionalistas, agricultores e pastores, os Bõers mantiveram noutro meio as características peculiares do Holandês, esse também particularista, tradicionalista e. a pa r de marinheiro e comerciante, agricultor e pastor (algumas págiginas de Ramalho Ortigão. n'A Holanda, dizem-no exuberantemente).

Quando uma potência (a Inglaterra) se lhes opôs, esses agricultores e pastores robustos, valentes e laboriosos - agiram da forma valorosa que o século XIX testemunhou Amante da liberdade, o Holandês bate-se desesperadamente, rebenta o dique, alaga na inundação armas e bagagens inimigas; os

Bóers, lembrando ainda as tradições da pátria-mãe lutaram valorosamente- im potentes, recusaram, não obstante, render.se: iniciaram o treek, o êxodo em massa e foram fundar as Repúblicas de Orange e do Transval. Após vicissitudes várias, vieram a ser incorporados na União Sul· Africana, mas não perderam nada das suas características, nem desataram os laços com a pátria de origem. . Regressão ou exemplo notável de adaptação? A resposta parece· me Inequívoca. (N. T.)

(I} «Não se vence a natureza senão obedecendo-lhe". (N. T.)vizinhos? Não guardaram os preceitos do seu credo religioso, instituições e

(2) De l'injluencc de l'homme sur la terre, (Annales de Géographie,hábitOs morais? Não mantiveram até os seus prejulzos de raça?

t. X, 1908, pág. 98).E se acaso tivesse havido regressão" não seria o .neio que poderia expli

 

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42 M A R C H A DA H U M A N I D A D E

laterítica, por exemplo, endureceram e esterilizaram a superfície.Mas é preciso acrescentar que a própria Terra, segundo a

expressão de Berthelot, é algo de vivo. Sob a influência da luz e deenergias cujo mecanismo nos escapa , as plantas absorvem e decompõem os corpos químicos; as bactérias fixam, em certos vegetais, oazote da atmosfera. A vida, transformada n ~ passagem de organismoem organismo, circula através de uma multidão de seres: uns elaborama substância de que se alimentam os outros; alguns transportam germes

de doenças que podem destruir outras espécies. Não é exclusivamentegraças ae auxílio dos agentes inorgânicos que se verifica a acção

A

Fig. 6. O homem, factor geográfico: o domínio das dunas e das aluviól!s.A -Zelândia nos fins do século XIV (A) e na acrualídade (8), segundo elementos

recolhidos em Blink.(Cartograma do tradutor.)

.Deus fez os mares, o H o l a ~ d ê s (neste caso, o Z e l a n d ~ s ) fez as terras_. diz o provérbio. Po ro mar abre brecha. tende a submergir as terras - há exelllplos históricos disso j mas o

/ •• al.a,es--Ludor d omergo, diz a su a div isa-opõe- lhe tenazmente o dique) perde uns palmosaqui, vai ganhar unS metros mais além: repare-se Das duas configurações de Zvid(6); O" conquista deliberadamente: veja-se o caso de Goedereede-Overllakkee (1) . ilha

que pertence já à Holanda meridional.

transformadora do homem; este não se contenta em tirar pro

veito, com o arado, dos materiais em decomposição do subsolo, emutilizar as quedas de água, devidas à força da gravidade em funçãodas desigualdades do relevo. Ele colabora com todas estas energiasagrupadas e associadas segundo as condições do meio. O homementra no jogo da natureza.

E a partida não é isenta de peripécias ! Importa notar queem muitas partes da Terra, senão na sua totalidade, as condições domeio determinadas pelo clima não têm a rigidez que costumam atribuir-lhes as médias registadas pelos nossos mapas. O clima é mais

43R I N C Í P I O S UE G E O G R A F I A H U M A N A

uma resultante oscilando à volta de uma média, do que a própr iamédia. Os dados que possuimos, embora demasiado imperfeitos ainda,permitem contudo notar que essas oscilações parecem ter um carácterperiódico; por outras palavras, persistem durante vários anos, ora

num sentido, ora noutro. Séries pluviosas alternam com séries secas;e se estas variações não acarretam grandes perturbações nas regiõesque têm chuvas abundantes, outro tanto não acontece naquelas quesó recebem o mínimo necessário. Compr eende-se bem o alcance

~ 1 1 1 1 E 3 1 234 5 6 '7

o 5F....

Fig. 7-Luta com o mar: fases da conquista da ilha de Goedereede-Overflakkee.

(Segundo Blink, modificado.)

I - Antes de 1065 (fase marcada com I no cartão A da figo 6) t 2- terrenos conquistados durante o sécúlo xv ; 3-acréscimo DO sécúlo XVI ; 4 - n o sécúlo x v u ; 5 - n o século XV1 J l ;

6 - DO século X I X ; 7 - indeterminado.

desta observação, porque a intervenção do homem pode consolidaro momento positivo, firmar sobre um estado temporário um estadofixo, isto pelo menos até nova orde,m.

Por exemplo: do Norte de Africa ao Centro da Asia, os observadores sentem-se impressionados com os espectáculos de desolação quecontras tam com os vestígios de cultura e as ruínas, testemunhos, deuma antiga prosperidade (1).

(1) ElIsworth Huntington foi um desses observadores e no livro The Pulseof Asia - A Journey in Central Asia illustratin g the Geographi Basis of His- .ory, Bostou-New-York, 1907, defendeu a tese da relac.ionação das oscilações

climáticas com as migrações históricas dos povos da Asia Cental, explicandoestas por aquelas. Em 1914, o principe Kropotkin, no artigo The Dissecation Df

 

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44 MARCHA D A HUMAN IDADE

Esta assentava sobre o frágil alicerce de trabalhos de irrigação,mercê dos quais o homem conseguia estender aos período secos obenefício dos períodos húmidos. Mas. '. que se interrompa a funçãobenfazeja durante algum tempo, e logo todos os inimigos, quea irrigação combatia, levantarão cabeça. E sobretudo, o que é maisgrave, a adaptação terá tomado outro rumo. Outros hábitos terãoprevalecido nos homens; a sua existência ligar-se-á a outros meios, aoutros s eres, exigindo outras disponibilidades de espaço. A floresta nãotem maior inimigo do que o pastor; os diques e os çanais t ~ m e ~ G 3 , r -niçado adversário no Beduíno, a quem perturbam nas peregrinações.

A acção do homem tira o seu principal poderio dos auxiliaresque mobiliza no mundo vivo: plantas de cultura e animais domésticos, porque dá assim impulso a forças em potência que, graças aele, encontram o campo livre e agem. A maior parte das associaçõesvegetais formadas pela cultura compõe-se de elementos primitiva-

Eurasia. in Geograpldcal Journal, XXIII, buscando as causas geográficas dessasmigrações, conclui não pelas oscilações climáticas, mas por uma progressivaaridez. Jean Brunhes e Camille Vallaux(La Géographiede l' Histoire, Paris,1921,pág. 227 e segs.) põem em dúvida a legitimidade das hipóteses de Huntington e deKropotkin, não quanto à maior ou menor humidade que no decorrer dos temposhaja

tid.o a~ s i a

C-:ntral, mas arespeito

dasconsequências históricas

as referidas mlgraçoes: «Enquanto os modos de Vida podem ser os mesmos, não há nenhuma razão natural para o êxodo erq massa. E parece certo que, apesardas oscilações de medíocre amplitude, a Asia Central permaneceu, no decurso dostempos históricos, idêntica a si própria: não deixou de ser uma imensa estepede ~ r a m i n e a s , atravessada por grandes formações de areias. com alguns OáSIS,aquI e além, e cujos avanços ou recuos se explicam suficÍentemente por pe

riodos de paz ou de guerra:. (pág. 228).Quanto ao .Norte de Africa, as estações paleolíticas do Sáara, bem

como as neollticas, e até o facto de «muitas ruinas das florescentes colóniasromanas da Argélia se encontrarem actualmente já dentro da zona s u b d e s é r t i c a ~ _ tudo isso parece testumunhar, senão oscilações climáticas, ao menos variaçãode um clima mais húmido para condições progressivamente mais áridas. Claroque estou a referir-me aos tempos históricos e pré-históricos, porque relativamente aos tempos geológicos é verdade incontrovertida que se verificaramoscilações do clit:na.

Hoje, a Africa do Norte, excluído pela força das circunstâncias o Sáara,é, no ponto de vista agricola, país das vacas gordas e das vacas magras. «Como

está na zona limite das chuvas sufiCientes para a agricultura. alguns centímetrosa mais ou a menos na quantidade de chuva podem ter cons equências económicasmuito graves; uma série de anos secos conduz geralmente à fome:.

(Ver: H. Obermaier e A. Garcia y Bellido, EI Hombre Prehistórico y lasOrigenes de la Humanidad, Madrid, 1941, págs. 111-120 e 205-206; AugustinBernard. Afrique Septentrionale e Occidentale, in Géopraphie Universelle,tomo Xl, capo 11, especialmente o § IV - Les changements de climat.)

Ainda sobre o assunto, quando encarado duma maneira gerapretenda dizer com isto que a obra trate de generalidades), é útil aoutro .livro de Huntington, Cívílifa(ion and Climate. New.Heven, 1915, de cuja2. ' edição há tradução espanhola: Civiliracióny Clyma, Madrid, 1942. (N. 1'.)

PR INC íP IOS DE GEOGRAFIA H U M A N A 45

mente dispersos. Eram plantas anichadas nas encostas expostas aosolou nas margens dos rios, relegadas para certos pontos pelaconcorrência de espécies agrupadas em grandes massas e constituídasem maiores batalhões. Do alOjamento propício onde se tinham entrincheirado, essas plantas, que a gratidão dos homens devia um diaabençoar, espreitavam o momento em que circunstâncias novas lhesfacultariam mais espaço. O homem, adoptando-as na sua clientela,prestou-lhe este serviço: libertou-as. Ao mesmo tempo, franqueou ocaminho a todo um cortejo de vegetais ou de animais não desejados;substituiu por associações novas as que, antes dele, se tinham assenhoreado do espaço.

Sem o homem, nunca as plantas de cultura, que cobrem hojeuma parte da terra, teriam conquistado às associações rivais oespaço que ocupam. Mas, porque assim é, pode julgar-se que, se ohomem deixasse de intervir, as associações por elas espoliadas reto·mariam os seus direitos? Nada menos certo. Uma nova economianatural pode já ter tido tempo de substituir a antiga. A florestatropical, desaparecendo, deu lugar à savanaC); e esta troca, modificando as condições de luz, eliminou em parte os seres que essa flo-resta abrigava, nomeadadamente as terríveis glossinas que afastavamoutras espécies. Algures foi o sub-bosque, sob a forma de maquisou de garrigue (2), que sucedeu à floresta; e outros e n c a d e a m ~ n t o s severificaram, tra nsforman do tant o o meio ambien te, quanto a s c<Jºdições

económicas (11) Um campo novo, quase ilimitado, abre-se às/observações e, talvez, até à experimentação. Estudando a acç.ão dohomem sobre a terra e os estigmas impressos na superfície destapor uma ocupação tantas vezes secular, a Geografia human a temum duplo objecto: não lhe compete apenas fazer o balanço dasdestruições que, sem ou com a participação do homem, tão singularmente reduziram, desde os tempos pliocénicos, o número dasgrandes espécies animais; encontra também, no conhecimento mais ín- \timo das relações que unem o conjunto dos seres vivos, o meio deperscrutar as transformações actualmente em curso e que é permitidoprever. A este respeito, a acção presente e futura do homem, senho r das

(1) La Blache diz textualmente ((brousselt, ou seja o nome dado à savanana região do Senegal. (N. T.)(2) Maquis é a floresta degradada dos solos siliciosos, cujas árvores carac

terísticas foram substi tuídas por espécies arbustivas, formando brenhas por vezesimpenetráveis. Garrigue é uma associação vegetal constituída por mato rasteiro,disperso em pequenos tufos e também por manchas herbáceas, pobre revestimentodos terrenos áridos, de subsolo calcáreo, na. região mediterrânea. (N. T.)

(8) Sobre este assunto poderá consultar-se o capo V-Actíon de I'lzommesur la vegétation et associatioJls végétales dues a son intervention, do tomO IIIda obra de I:m. de Martonne, Traité de Géographie Physique, 5.- ed. , Paris,1932. (N. T,)

 

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distâncias, armado de tudo o que aciência põe ao seu serviço, ultrapassamuito a acção que os nossos longínquos antepassados podiam exercer.Felicitemo-nos por isso, porque aempresa da colonização, à qual anossa época ligou a sua glória, seriaum engano se a natureza impusesse

quadros rígidos, em vez de dar margem às obras de transformação oude restauração que estão no poderdo ;lomem.

Fig. 8 A variaçã o da altura anualdas chuvas em Argel, de 1838 a 1932.

(Segundo Petítjean.)

A altura média (T'28 mm.) está marcada pela l inhat r a c e j a d a ~ Há desvios positivos e negativos bemacentuados, c como a Argélia e:está. na 7 . 0 n a ~ H U 1 i t e das chuvas suficientes para a agricultura», os

últimos podem determinar épocas criticas.

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Primeira parte

A DISTRIBUIÇÃO DOS HOMENS1860 NO GLOBO

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