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Vidas separadas pelo mar

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Revisão: Rubia Cristina dos SantosCapa e diagramação: José Isaías Venera

Colaboração: André Pinheiro

Volnei José MorastoniPrefeito de Itajaí

Eliane Neves Rebello AdrianoVice-Prefeita

José Roberto SeverinoSuperintendente da

Fundação Genésio Miranda Lins

José Isaías VeneraCoordenador da Editora Maria do Cais

C15v Calgaro, Sheila Ana Vidas separadas pelo mar / Sheila Ana Calgaro. - - Itajaí : Ed. Maria do Cais , 2008. 247p. : il.

1. Itajaí (SC) – História - memória da pesca 2. Itajaí (SC) - Pesca - Livro-reportagem I. Título

CDD: SC I981.642 CDU: 94(816.4)

Todas as fotos referentes aos capítulos sobre histórias de vidas são deautoria do jornalista Elton de Souza. As fotografias em alto-mar foram

tiradas pela autora do livro.

Ficha catalográfica: Vera Lúcia de Nóbrega Pecego Estork - CRB-14/321Bibliotecária da Fundação Genésio Miranda Lins

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Vidas separadas pelo mar

Sheila Ana Calgaro

1a ediçãoItajaí

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PATROCÍNIO

APOIO

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AGRADECIMENTOS

A toda minha família, pelo apoio e amor.

Ao jornalista Sandro Galarça, professor-orientador doTrabalho de Conclusão de Curso em ComunicaçãoSocial – Habilitação em Jornalismo, que deu origem aeste livro, por ter sido grande amigo e conselheiro durantetoda a faculdade e principalmente na reta final.

A todos os personagens desta obra, que confiaram emmim e revelaram suas memórias, para que eu pudessetransformá-las em palavras.

Agradecimentos especiais: José Bento Rosa da Sil-va; Lina Léa; Luciene Cruz; Maria Lúcia Teixeira (Kika);Roberto Wahrlich; Rubia Cristina dos Santos; Elton deSouza, pela amizade e por seu talento em fotografar; Eu-nice Maito e o incentivo para tornar-me jornalista; Rogé-rio Christofoletti e aos professores do curso de Jornalismoda Univali; Tenente José Marcos Kascharowski e Capita-nia dos Portos de Itajaí; Rosângela Maria Rabito e RádioCosteira de Navegantes; Aluísio Vieira, Jairo da Veiga e atodos os que trabalham no Sindicato dos Trabalhadoresnas Empresas de Pesca de Santa Catarina; Indústria eComércio de Pescados Kowalsky Ltda e aos pescadoresdo barco Monkfish; André Pinheiro, José Isaías Venera,José Roberto Severino e aos amigos da Editora Maria doCais e do Centro de Documentação e Memória Históricade Itajaí; aos meus amigos dos tempos de escola e univer-sidade, que sempre estiveram presentes em momentosimportantes da minha vida.

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SUMÁRIOPrefácio

Apresentação

1. Àqueles que foram2. Virgínia

3. Zilda4. Diga adeus!5. Dona Lica

6. Últimos sinais de terra7. Curió

8. Maria do Cais9. À espera

10. Luiz Carlos11. Déjà Vu

12. Pinta Preta13. Tique-taque

14. Dona Abércia15. Negrume

16. Salma Benta17. Ricardo (Parte I)

18. Só19. Ricardo (Parte II)

20. Bernardete21. Cativo

22. Toureiro23. Cedo demais

24. Bom25. Saudades

Fontes

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PREFÁCIO

Sempre acreditei que a tarefa do jornalista era mui-to mais do que simplesmente registrar a história quepassa. Fazer jornalismo, numa perspectiva mais ampla,pode ser comparado ao trabalho de um tecelão artesa-nal: na medida em que tece os fios já vislumbra o tape-te finalizado, o acabamento, as cores, a ornamentaçãoe o arremate. Uma vez entrelaçados, não são mais fios,são arte. O som da velha roca se faz música, movimen-to ordenado e obediente, ritmado, contínuo, completo eúnico.

É o ritmo do movimento da sociedade que inspira ojornalista a correr atrás de boas histórias. Uma vez en-contradas, o desafio é moldá-las, recriá-las e ressignifi-cá-las. Mas, como aproximar o leitor de histórias tãocomuns, tão difíceis de contar em algumas poucas li-nhas?

A alternativa encontrada pelos jornalistas contem-porâneos tem sido, com efeito, a profundidade do livro-reportagem. Nele, as palavras se fazem fios, os textos sefazem tecido. No silêncio de cada voz, na agitação decada onda, na constância das marolas é que Vidasseparadas pelo mar ganha, literalmente, movimen-to. Se o leitor estiver atento pode ouvir, no folhear daspáginas, a cantoria solitária das mães, a respiração ofe-gante das esposas, o lamento de quem perdeu um ami-go, o sorriso descompassado de um filho que vê o paidescer em terra.

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Para isso, as histórias que encontramos aqui – e quebelas histórias! – abrem mão de toda objetividade jor-nalística para encontrar, na narrativa literária, um jeitomais carinhoso de falar, uma maneira mais macia dedizer as mesmas palavras. Descrição, narração, inter-pretação, análise e informação misturam-se a cadamomento, mesclam rotinas e poesia e imprimem compersonalidade a marca de um jornalismo em transfor-mação. Mais do que registrar a realidade, é preciso vivê-la, senti-la e modificá-la. Aqui, jornalismo não é regis-tro, é reconstrução. No poder da nova fiação, surge umalinhagem original, uma tecelagem responsável, ética ecomprometida com os personagens que dão vida aolivro.

De que servem nossos textos se não nos emociona-mos mais com eles? Pra quem escrevemos se não con-seguimos nos identificar com cada nova história? O quefazemos com tudo o que produzimos na Academia, ber-ço secular do aprendizado, que hoje chamamos deUniversidade? Que tipo de cultura produzimos, se so-mos incapazes de socializar o conhecimento, se damosprivilégios a uma elite despreocupada com as causassociais? Que tipo de contribuição verdadeira deixamospara quem nos oferece suas histórias?

Assim, Vidas separadas pelo mar representamuito mais do que o resultado de uma ampla pesquisa,de horas de entrevistas, acrescidas de uma inigualávelexperiência de cinco dias no mar. O livro busca aproxi-mar os lados envolvidos no processo, tal como um certoBento Santiago, que escreve para atar as duas pontasda vida. Na medida em que escreve, a autora se fazsujeito, modifica sua realidade e interfere verticalmenteno meio que narra. Uma vez envolvida no projeto, não

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há como voltar atrás; tal como o tecelão que entrelaçaos fios e não pode mais desfazer o que foi feito, a únicasaída parece ser viver intensamente todas as vidas queforam modificadas com sua escrita.

Mesmo no texto mais denso, vemos poesia. Nas en-trelinhas, lemos espaços sinestésicos; nas frases justa-postas, encadeamos rimas que não existem. E como noritmo eterno da velha roca, sempre se pode ouvir umacanção a embalar os filhos que se perdem no mar, en-quanto, em terra, outras vidas teimam serenamente emduvidar do seu destino.

Sandro GalarçaJornalista e professor da

Universidade do Vale do Itajaí

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Apresentação

História e memória compõem um binômio nemsempre conciliável. A história, com seus métodos esua força de disciplina, nem sempre leva em contaos detalhes das vidas e dos aspectos minuciosos docotidiano. Escrever uma história que valorize o coti-diano passa por ouvir e lidar com a memória de cadaum, entrecruzada com os lugares de memória e ex-periências partilhadas no tecido social.

Histórias de vidas são o que há de mais impor-tante, tanto para quem as vive quanto para a cidadeque não existiria sem as experiências que delineiama cultura. E este livro apresenta histórias marcadas,inscritas, afetadas e separadas por experiências li-gadas ao mar.

Quem ler o livro perceberá que a autora Sheila sedeixa ouvir. Ela construiu um livro-reportagemouvindo pescadores e familiares. Ela se permitiu ou-vir o canto do mar, o barulho no lançar das redes, ogrito dos pescadores e o som triste de entes queridosseparados pelo oceano. E saber ouvir não é simples-mente interpretar o que o outro tem a dizer. É muitomais. É deixar o outro contar sua história sem ante-cipar uma interpretação e fazer julgamentos. É, ain-da, colocar-se no lugar do outro para que o própriotexto a ser construído tenha pedacinhos de cada umdos entrevistados.

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A autora, com seu semblante suave e brilho noolhar - comum a quem está sempre ávida para apren-der e ajudar -, foi para o alto-mar numa embarca-ção observar o trabalho de dez pescadores. Lá, Sheilapode sentir como é sair da caverna onde se mora.Como é importante vivenciar um pouco da experiên-cia do outro para poder falar desse outro. E, ao dizerque fugiu das luzes cegas, das notícias e da televi-são, ela se lançou para a luz da vida, que proporcio-na um saber a partir da própria experiência. Estarlonge de notícias e do mundo espetacularizado pelatelevisão e, também, da grande maioria de pessoasque pautam seus diálogos pela "luz cega", é se per-mitir sentir solidão, como escreve a própria autora.Solidão, hoje, tem um sentido negativo. Parece queas pessoas têm medo de sair dos holofotes; medo deficar a sós consigo mesmas. A impressão é que otempo fora do consumo é triste porque nos leva, semque tenhamos controle, a pensar em nós mesmos.

Na carta que escreveu aos Gálatas, Paulo diz quea fé "é o firme fundamento das coisas que se espe-ram e a prova das coisas que não se vêem". É assimque a personagem Virgínia consegue suportar a dorde passar dias e mais dias separada de seu marido,pelo mar. Assim como Virgínia, que encontrou nacrença o significante para suportar a ausência de seumarido, muitas outras histórias são contadas. Nes-sas, uma grande literatura se delineia, dando-nos aimpressão de que as narrativas de Homero - como ade Ulysses, que passou 20 anos em perigosas via-gens pelos mares da antiguidade e sua amada, Pe-

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nélope, a despeito de muitos, manteve firme sua es-perança (fé) de voltar a encontrá-lo - são históriasvividas ainda hoje.

Os depoimentos são histórias de Itajaí. Dessa for-ma, este livro dá voz às memórias da trama social deuma cidade que tem fortes laços com o mar e com apesca. É mais uma obra que a Editora Maria do Caispublica e que amplia o leque de narrativas sobre opassado de pessoas que vivem ou viveram na cida-de. Neste município onde boa parte das experiênci-as foi construída a partir do mar e do rio, desde suaorigem, quando foi canal aberto para os imigranteseuropeus.

De alguma forma, fica o sentimento de que essashistórias são, também, metáforas para entender umpouco do drama humano vivido com a enchente nestefinal de 2008. Uma catástrofe conhecida na longa du-ração do território, bem antes de sua ocupação. Mas écomo um eterno retorno com novas personagens, quetempos em tempos ela reaparece. Como um antigo ro-teiro à espera, sempre, de uma nova produção.

Duas décadas depois da emancipação de Itajaí,que foi em 1860, há registros de enchentes. Agora,mais de um século se passou e novamente o municí-pio se transforma num grande rio, a exemplo das en-chentes de 1983 e 1984, além de outra no início doséculo 20. Assim, a edição deste livro é finalizadaneste momento dramático, mas também de recons-trução da cidade. Novamente somos lembrados daforça das águas e dos ventos, da ação implacável dasmarés, da finitude das coisas humanas. É, talvez, o

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preço de se viver tão perto e tão dentro do rio e domar. Daí, também, surge a nossa capacidade de re-construir e a potência da solidariedade.

Nas histórias de diversas personagens, a culturada solidão, da tristeza e da esperança que dá sentidoa vidas separadas pelo mar. Separadas por águas.Personagens solitárias. Esperançosas. Portadoras defé.

José Roberto SeverinoDoutor em História e

Superintendente da Fundação

Genésio Miranda Lins

José Isaías VeneraJornalista

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A todos com histórias para contar

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1. ÀQUELESQUE FORAM

"Nas ondas verdes do mar,meu bem

Ele se foi afogarFez sua cama de noivo

No colo de Iemanjá."(Doce morrer no mar -

Dorival Caymmi)

Batuque, pés, palmas, passos, batuque. E batucam,e dançam, e giram, e cantam, e gritam. Som seco doatabaque. Vozes graves e agudas, desafinadas. Areianos pés. Velas acendem o ritmo. Flores ao redor. Ves-tem branco, todos eles. Quem revelam? São muitos, nosmesmos. Negros, pardos, brancos, mulatos, velhos, cri-anças, jovens. Que pulam, gritam, clamam, rezam.

Pára, silêncio. Lá vem ela. Ela que dança, que can-ta, que sofre. Lágrimas. Derretem-se no rio. Caminhamàs águas salgadas. Ô, Iemanjá!, cantam eles. Filha deOlukum, rainha do mar. E as saias ventam e rodam.Das mulheres que esperam, que choram, que amam.São Marias, Claras, Anas: Iemanjá. Sentem a tristezados filhos que foram. O caminho salgado da lágrima norosto. Gosto de maresia.

Atira-se ao chão. De joelhos. Olha ao alto, piedade!As pupilas refletem o brilho. Da luz da lua cheia, solitá-ria. Luz que alumia o mar. Cercada de fogo. Flamejacom as velas. Revela estrelas tímidas. Envivece o

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reflexo na água. Ali, rosas navegam. Flores brancas eamarelas. A dançar com as ondas, em harmonia. É seudia, Rainha!

Guie meu caminho, Protetora dos Navegantes! Poisseguirei suas ondas incertas. Sem saber quando voltar.Irei invadir sua moradia. Sem a segurança que a sus-tenta. Com pessoas que desconheço. Homens ainda semrostos, nem cheiros. Com vozes mudas. Mas com histó-rias ocultas. Eles que sentem o sol quente. Dormem semsuas mulheres. Onde ficaram os filhos? Ah, ficaram porlá. Eles que trazem a riqueza do oceano. Trabalhadoresdo Mar.

Vou com eles. Para onde? Lá para o sul do nossolitoral. Quando volta? Sei não. Para que fazer isso, me-nina? És louca? Quem sabe, uma curiosidade inconti-da. Vai não, quer marear com aquelas ondas? Seráapenas você, única mulher. Dez pescadores. Não temmedo? Vixe, Maria! Pois irei rezar por ti! E que Iemanjáguie esse caminho! Sentirá como é viver lá fora. Comoé ver apenas céu e mar. Como são as saudades. Comosentir a solidão. Da sua moradia, Rainha.

Fujo da terra firme, do som da cidade. Fujo das luzescegas. Das notícias, da televisão, do computador. Ren-do-me ao solitário. Àquele mundo pequeno, restrito degente. Pouco em espaço. Só ouvirei ruído de vento, somde mar. Vou para sentir meus pés sem chão. Para viveroutra vida. Aquela dos grandes navegadores. De tesou-ros e piratas. De sereias e lendas. Das extraordináriashistórias de pescadores.

Atrás de mim, eles ainda estão. Areia sai dos pés.Daqueles que ali batucam, que dançam, que cantam,que giram. No mesmo ritmo. Na dança, todos são Ogum,são Yansã, são Xangô. É hora de partir, Senhora dos

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Mares. Volte às ondas. Alimente o mar com suas lágri-mas. E proteja aqueles que aí também se vão.

Que amanhã seguirei este caminho, Iemanjá.

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2. VIRGÍNIA“Quando ele tá no portão, eu falo: vá

com Deus, com Nossa Senhora!E acabo chorando. Sempre é triste.

E quando toca o telefone, que eu achoque é ele, o coração já acelera.

Aquela alegria de pensar que ele podevoltar pra casa.”

(Virgínia Lane da Cruz Silva Cardoso)

O peso da bota submersa puxa-o ainda mais para ofundo do oceano. Apenas a cabeça se mantém fora domar, com o pouco ar que o conserva vivo. O sal queimaos lábios cerrados, evitando engolir mais água. O botehavia virado; e ele, agarrado ao fundo da pequena em-barcação, tornava aquele espaço ainda mais claus-trofóbico. Está no meio do oceano, mas as condiçõesde liberdade são mínimas. Iria morrer, sabia muito bem.Sente apenas as ondas baterem com força na madeirae levá-lo para mais longe do barco. Deveria ter pulado,quando a primeira marola atingiu o bote: se tivesse se-guido o caiqueiro, que comandava a pequena embar-cação, não estaria naquelas condições.

Ventava forte e a segurança para quem encarava abateira, como ele, reduzia-se a zero em relação aos tri-pulantes que permaneciam no Mitanos VI. Mas a sardi-nha estava ali, na safra boa, e era preciso produzir. Fá-bio e Lindomar conduziam o bote e, junto à embarca-ção principal, cercavam o cardume. A primeira ondaapenas ameaçou a bateira, mas foi o suficiente para

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Lindomar pular por cima da rede. A cena foi até engraça-da: o companheiro de barco misturou-se à sardinha quecontinuava a saltitar. Mas não houve tanto tempo pararisos. Uma segunda marola veio mais forte, insistindo emcondenar a vida daqueles pescadores ao oceano.

A exaustão ameaçava ainda mais a sobrevivência.Era muito novo para morrer. Havia se casado há pou-co mais de dois meses, não poderia deixar sua esposaviúva, aos 19 anos. Precisava honrar a tradição da fa-mília: todos os homens eram pescadores, mas ninguémdeixara ao mar a opção da morte.

Virgínia acorda ofegante à noite. Impossível dormir:vira para um lado, tenta outra posição, mas o sono nãotoma seu corpo, cansado pelo dia inteiro de espera.Estranho. Um aperto no peito sufoca as idéias — algu-ma coisa com Fábio, só podia ser. Mantém os olhosabertos, tentando procurar algum feixe de luz no quartoescuro. Olha para a janela: nenhum sinal de chuva, nemvento. Como estaria seu marido, em alto-mar? Não ti-nha notícias há dias, e aquela primeira viagem pareciainterminável.

A dor no peito insiste em sufocá-la. Minha NossaSenhora, como está o meu Fábio?, Ave Maria, cheia degraça, o senhor é convosco...

— ... bendito sois vós entre as mulheres, e bendito éo fruto do vosso ventre, Jesus! Minha Nossa Senhora,me dá coragem pra sair daqui! — reza o pescador, queainda desafia os ventos fortes do Sul e a persistênciadas ondas a chamá-lo.

A água invadindo sua garganta não deixa a voz gri-tar; os braços perdem a força que o sustenta embaixo

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da bateira. Nossa Senhora dos Navegantes, me salva!,sussurra, em pensamento. O pé esquerdo pressiona ocalcanhar direito, na tentativa de retirar a bota de bor-racha, antes essencial para assegurar firmeza e segu-rança no barco, mas que agora poderia levá-lo ao fun-do.

Enquanto Lindomar é puxado junto com a rede paradentro da embarcação; os outros tripulantes continu-am a dar passos nervosos pelo convés, olhar para to-dos os lados à procura de algum movimento em meioàquelas ondas, ou gritar o nome de Fábio, repetidasvezes, na esperança de ouvir uma resposta.

— Tais vendo alguma coisa? — pergunta Jorge, noconvés do Mitanos VI.

Mário ouve o questionamento em silêncio, cabisbai-xo, já dizendo adeus ao amigo. O mestre de barco sa-bia que o mar garantia sustento a todos aqueles traba-lhadores; mas ali também poderiam deixar suas vidas.

No meio do oceano, Fábio revolta-se com a despe-dida prematura. Uma revolta que gradativamente lhetoma conta e faz surgir uma força milagrosa durante asrezas, os ventos e as marolas. Com um único impulso,consegue desemborcar a bateira, e seus braços ganhamnovamente o desejo de sair daquela correnteza que odistanciava da embarcação. Misturado ao uivo do ven-to e ao som do motor, sente a vibração dos tripulantesdo barco que, por alguns minutos, já haviam enterradoas expectativas de encontrá-lo vivo.

Virgínia mal dormiu naquela noite. Do quarto, ouve asogra arrumando o café da manhã. O jeito era levantar-se e tentar um diálogo com a família de seu marido. Aindase sentia uma estranha na casa: o namoro havia durado

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Vidas separadas pelo mar26

apenas três meses, mas já estava casada e morando comdesconhecidos. Que loucura havia feito, meu Deus!, elaque jurava nunca se casar com um pescador!

Pescador tem mulher em cada porto. Eu é que nãoquero ficar trancada em casa esperando por ele, não!,dizia, com veemência, quando era adolescente. Comoo destino fora irônico: agora, estava ali, casada comum pescador, sofrendo as saudades e distante do acon-chego da família.

***A casa apresenta apenas uma janela e uma porta. A

chaminé solta uma fumaça marrom, alcançando asnuvens com formato de algodão. Da árvore, repleta demaçãs maduras, desprende-se uma folha que se une aovento. O sol, orgulhoso e exibido, mostra um sorrisovermelho, abaixo dos olhos arregalados. E ela, corpoformado por cinco linhas retas e uma circunferência,está de mãos dadas com seu pai, de mesmo formato,apenas um pouco mais alto e usando um chapéu deriscos irregulares. Só falta o coração que os envolveriae... Pronto! Terminara o desenho.

— Mãe, acabei primeiro que o Marcos! — diz amenina de apenas oito anos, enquanto observa o olharenciumado do irmão.

— Que lindo, Virgínia! O papai vai adorar a pintu-ra! — responde, guardando-a na gaveta da cozinha commais outros papéis coloridos.

Enquanto isso, o irmão e a caçula Maria Zilda apres-sam-se para acabar seus desenhos e guardar os lápisde cor espalhados pela mesa. O pai já estava fora háquase um mês e as casas, bonecos, flores e sóis seacumulavam a cada dia. Cada vez que ele retornava

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era aquela festa: todos agarrados ao seu pescoço, dan-do pulos de alegria, berrando e berrando, enquanto amãe disputava lugar com os filhos para rever o marido.

— Eles têm alguns presentinhos para você, Aluísio!— dizia Solange, enquanto organizava as crianças emfila na hora de entregar os desenhos.

***Abre a porta do quarto, de onde consegue sentir o

cheiro de café coado. A toalha bordada com flores estáposta; a geléia, o queijo e a margarina já foram coloca-dos cuidadosamente ao redor das fatias de pão.

Enquanto toma café com a sogra e a cunhada, lem-bra-se da noite anterior. Não teve nenhum pesadelo,mas um pressentimento estranho, que parecia tomar-lhe todo o corpo, prendê-la a uma preocupação semsentido. Ao mastigar o segundo pedaço de pão, pensaem contar para dona Zenita sobre a angústia daquelamadrugada. Ah, ela é mãe, pode ficar preocupada. Ouaté achar que estou reclamando demais.

Permanece calada, tentando afastar-se daqueles pen-samentos. Mas entre os ruídos da colher que mexe ocafé quente e o movimento da mastigação serena desua cunhada, o telefone ansioso interrompe a aparentetranqüilidade.

— Quase ficaste viúva ontem, meu amor! — diz avoz, do outro lado da linha.

— Como? — pergunta Virgínia, enquanto tenta seapoiar na mesa para não deixar que uma breve tonturaatrapalhe a conversa.

— Caí do bote com uma marola forte... Mas, não seicomo, de repente, pensei em Nossa Senhora e ela deuforças para me salvar.

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— Meu Deus! Tá ferido? Machucou alguma coisa?Não adiantava o marido detalhar o acidente e afir-

mar que nada grave havia acontecido. Era preciso vê-lo, senti-lo. No entanto, a espera seria, mais uma vez,sua inimiga; e a volta ostentaria a incerteza.

***Minha Nossa Senhora não deixou que eu morresse

no mar. Nossa Senhora dos Navegantes salvou meu fi-lho de um naufrágio. A santa mãe trouxe meu maridono dia em que nossa primeira filha nasceu. Ela aben-çoou a viagem, levamos um montão de peixe pra casa!

Muitas e muitas histórias pronunciadas durante as pre-ces de agradecimento àquela Iemanjá católica se mistu-ravam no dia da festa. Algumas pessoas choravam, ou-tras se sustentavam de joelhos no asfalto quente e haviaaquelas que vibravam na orla do rio Itajaí-Açu, ao assis-tirem ao passeio de barcos, bateiras e baleeiras.

Virgínia tornou-se devota de Nossa Senhora dosNavegantes após o casamento, quando deixou Itajaípara morar “do outro lado do rio”, lá na cidade queganhou o mesmo nome da santa dos pescadores. Acom-panha toda a celebração: desde os encontros para ora-ções, que acontecem pouco mais de uma semana an-tes da festa, até o dia 2 de fevereiro, na grande cerimô-nia e procissão dos barcos.

Veste sua roupa mais discreta e vai até a igreja paracomeçar a novena. A cada pedrinha que compõe o ter-ço, pede proteção àqueles trabalhadores do mar e, prin-cipalmente, reza pela segurança do seu Fábio. Quasetodos que estão ali pertencem a famílias de pescadores:mães, filhos e esposas se aglomeram para orar à prote-tora dos navegantes.

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Mas o que mais emociona é o dia da procissão. Osfogos de artifício, o colorido das bandeiras que enfei-tam os barcos, aqueles homens vestidos de marinhei-ros, crianças com asas e auréolas se misturam à multi-dão, a esperar Nossa Senhora. A crença na Mãe daÁgua reúne centenas de fiéis que oferecem seus ex-vo-tos, compostos por remos, fitas ou velas de embarca-ções, para receber uma graça ou agradecer por tê-laalcançado.

Os barcos terminam a travessia pelo rio Itajaí-Açuao chegar à Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes.Mesmo com o sol forte e o calor abafado, ninguém sepermite abandonar aquele ritual, provavelmente trazi-do por portugueses e espanhóis e que, desde 1896, in-tegra oficialmente o calendário da cidade.

Mas, esta devoção à Santa é bem mais antiga: di-zem que veio lá da Idade Média, nos tempos das Cruza-das, quando os navegadores utilizavam o Mar Mediter-râneo para chegar à Palestina. A invocação de Maria,a “Estrela do Mar”, era uma forma de se protegeremdos ventos e das ondas fortes. Agora, como tantas ou-tras pessoas que agradeciam os milagres alcançados,Virgínia repete esse mesmo gesto de evocação, paragarantir a volta do marido.

***A casa ainda está vazia: apenas o jogo de quarto

compõe aquele local que se tornara seu lar. Os outrosmóveis viriam aos poucos, com a ajuda da família. Ocenário parece abandonado e deixa a solidão ainda maispalpável. O som de cada passo multiplica-se entre asparedes. Virgínia já havia se acostumado a morar duran-te dois anos com a família de Fábio, mas precisava ter

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um espaço só para eles. Ou melhor, para ela. Desdeque o conhecera, sua vida fora dividida entre partidase reencontros.

Se contasse todos os dias que ficaram juntos, emum ano, não conseguiria fechar um mês inteiro. Na épo-ca de Natal, Fábio permanecia em terra durante seis,sete dias. Mas não agüentava por muito tempo: comoum feitiço, as ondas lhe puxavam à outra jornada e elevoltava, já com saudades, para a paisagem solitária decéu e mar.

O portão é o último ponto para a despedida. Já fo-ram tantos os adeuses, mas Virgínia nunca consegueesconder a tristeza. Vá com Nossa Senhora!, repete ela,entre lágrimas e soluços. Billie e Nino acompanham oritual, parados, ao lado de seus donos, esperando queabram aquela grade para, mais uma vez, tentarem fu-gir.

O vira-lata e o pinscher, que ganhara há pouco maisde sete anos, eram fiéis companheiros. Passava o tem-po brincando com os cães, ouvindo seus latidos, lim-pando a casa, pintando panos de prato ou confeccio-nando alguma bijuteria. Tudo sem tirar a atenção dotelefone: cada toque poderia ser uma notícia de seumarido.

Quando os barulhos do dia silenciam completamen-te, a solidão volta a se transformar em única compa-nhia. As noites, logo após a despedida, parecem nãoter fim: assiste ao noticiário, distraída, enquanto lem-bra os últimos momentos que passaram juntos, os olhosverdes a lhe fitarem, o até mais! no portão de casa.

Desde que se casara, havia trancado a faculdadede Ciências Sociais e abandonado o emprego comotelefonista em uma empresa de pesca. Imagina? Mulher

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de pescador trabalhando em um lugar cheio de homens?Ou chegar a casa às 11 da noite, depois da faculdade.Isso tudo era impensável: o que os vizinhos iriam falar?Que se tornara mulher da vida, com certeza!

Pior se a vissem conversando com algum estranho.— Virgínia, quem era aquele desconhecido que te

parou ontem? — pergunta a vizinha.— Não sei. Só me pediu informação...— Pois saiba que mulher casada, que respeita o

marido, não deve dar ouvidos a outros homens.E assim estava pronta a fofoca! O controle era tão

intenso, que Virgínia naturalmente absorvera algumasregras morais impostas por aqueles moradores. Nãosegue à risca todos os “mandamentos da boa condu-ta”, mas pretende evitar comentários e não prejudicaro seu casamento.

***— ... a crise imobiliária nos Estados Unidos con-

sumiu o equivalente a quase dois terços da econo-mia brasileira, revelou o Fundo Monetário Internaci-onal, o FMI. As perdas somam 945 bilhões de dóla-res. Na avaliação do Fundo, a crise nos Estados Uni-dos é a maior desde a quebra no sistema bancáriodo Japão que, em 1991, consumiu 250 bilhões. Res-ta agora saber como esta crise vai atingir ainda maiso mercado brasileiro e mundial...

Virgínia assiste, desatenta, às notícias da televisão.Ah, já tô cansada disso: crise não-sei-onde, grampostelefônicos, mensalão que não acaba mais, OperaçãoMoeda Verde e outros blablablás! Enquanto as infor-mações desconexas invadem seus ouvidos, conseguefinalizar a corrente de miçangas que havia inventado

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durante o telejornal. A tarde seria longa, mas não tinhavontade de continuar suas bijuterias.

Ficar em casa que não fico!, pensa, enquanto abre oguarda-roupa. Entre as poucas camisas e bermudas queo marido deixara em terra, procura uma blusa bem dis-creta e uma calça jeans, escondendo o corpo morenode apenas 26 anos. Amarra o cabelo de fios negros,revelando ainda mais a pele lisa, sem manchas nemmarcas. Os olhos escuros ganham um discreto contor-no com lápis preto. A boca de lábios bem delineadosexibe apenas um tom levemente rosado. Nada de ba-tom muito forte, decote ou perna de fora que possamchamar a atenção. Não queria caminhar no bairro SãoJoão Batista e ser observada pelos olhares minuciososdas vizinhas.

Prefere mesmo olhar para baixo e ver o pó, que sedesprende da rua, movimentar-se com seu caminhar len-to. Pressa? Ela mal conhece esta palavra: cada minuto dolongo dia parece maior, quando a espera se torna o únicosentido de sua rotina. Aquele bairro também deixa a ex-pectativa ainda mais angustiante: a maioria das casas éhabitada por famílias de pescadores, por mulheres quepreferem se esconder, fingindo estar totalmente ocupadascom os afazeres domésticos, ou que escolhem a varandapara observar a pouca movimentação do local.

Raros são os pedestres e carros que procuram o lo-cal como trajetória. O silêncio do lugar acompanha asolidão daquelas casas e aumenta ainda mais a tristezaque consome Virgínia. Precisa encontrar alguém paraconversar, visitar as amigas, a família, sair de Nave-gantes.

O ferry-boat é o caminho que a afasta daquele esta-do de abandono. Movimentada por trabalhadores com

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suas bicicletas, pedestres, automóveis e barulho demotor, a máquina que flutua de um lado a outro, conse-gue aproximá-la cada vez mais de Itajaí. Lá onde épossível sentir o cheiro da infância, as saudades dauniversidade, o conforto da família. É na casa da vóZilda que ainda reanima seus desejos com os dizeresdaquela experiente conselheira.

— Minha filha, isso tá errado! Você deve ter asua liberdade, assim como ele tem. Ele vai pra fora, elechega a outros portos. Você não pode ficar trancada!— recomenda Zilda que, há mais de 50 anos, tambémenfrentou a mesma condição de mulher de embarcado.

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3. ZILDA

“Mulher de pescador é viúva de maridovivo. É uma heroína. Porque não é fácil

ser mãe e pai ao mesmo tempo.”(Zilda Francisca da Cruz)

— Cinco horas da manhã, molecada! Acordem pramais um dia! — grita seu Francisco, batendo na portados três quartos que abrigam seus dez filhos. Lá dentroé possível ouvir alguns resmungos e o trec-trec da ma-deira das camas a soltarem ruídos, conforme as crian-ças se remexiam, na tentativa de trazer o sono de volta.

A lenha já fora colocada dentro do fogão, para aque-cer o leite. Dona Maria estende a toalha enfeitada comos crivos que aprendera a fazer durante a infância. Sãoflores, xícaras, chaleiras e o que mais a imaginação e atécnica permitirem: formas cuidadosamente costuradascom uma linha fina, que se espalham na borda do pano.As canecas de café já estão devidamente separadas paracada filho. Enquanto o leite borbulha, ela ainda cozi-nha a batata-doce, põe pedaços de aipim em cima damesa, a manteiga e também o queijo. Tudo compradocom o dinheiro que o marido conseguira com a vendade peixe em Itajaí.

Apesar da insistência do sono em prendê-los à cama,aqueles meninos e meninas levantam-se sem precisarchamar duas vezes. Vestem as roupas mais simples paraoutro dia de trabalho. Geralmente, uma sandália decouro, bermuda e aquela camisa surrada de sempre.

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Vidas separadas pelo mar36

Os garotos nem calçado colocam: seus pés já estãoacostumados a correr pela areia da praia ou nas plan-tações de milho, feijão e mandioca. Ninguém reclamade capinar a roça, cultivar a lavoura e ainda pescar,quando o vento mostrava calmaria. Conseguem fazertodas estas obrigações e participar das brincadeiras deroda com as outras crianças de Canto Grande.

No final de tarde, elas reuniam-se no meio da únicaestrada que dividia a vila, a correr de um lado a outro,rir e gritar, esconderem-se atrás das árvores, cantarola-rem versos infantis.

— Quarenta e oito, quarenta e nove, cinqüenta... Lávou eu! — grita um, apoiado no tronco da árvore comos olhos fechados e a cabeça pressionada contra o bra-ço.

— Tá pego! — berra o outro, enquanto corre para ofinal da rua, a fugir do novo “pegador”.

— Enganei o bobo na casca do ovo! — ri Zilda, olhosazuis arregalados, língua para fora e os polegares en-costados na bochecha.

Das janelas das casas, os pais também conseguiamouvir as cantigas chamando para que “venham todoscirandar” junto com essas crianças incansáveis, quenão pareciam ter enfrentado um dia inteiro de trabalho.

Lá nos anos de 1930, Canto Grande pertencia à ci-dade de Porto Belo — hoje, o bairro faz parte do muni-cípio de Bombinhas, a 70 quilômetros de Florianópolis—, com apenas uma rua principal, rodeada pelas prai-as “de fora”, chamada também pelo nome de Mar Gros-so, e a “de dentro”, a Praia Mansa. A vila era habitadapor imigrantes italianos, alemães e açorianos que sededicavam à agricultura e também à pesca como ativi-dade sazonal e de subsistência.

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Na lavoura, não havia divisão de trabalho: homense mulheres seguiam em fila, enxada na mão e balaiosem cima da cabeça rumo à colheita. Outros saíam coma pequena baleeira, ainda movida à vela, para pescartainha, cação, corvina e o que mais desse naquele mar.Ô, bons tempos aqueles... Peixe era o que não faltava!

Zilda sempre esperava ansiosa pela safra da tainha:Era tão contagiante ver os barcos arrastando as redespela beira da praia. Nem mesmo o vento gélido dosmeses de junho e julho espantava o pessoal, melhorépoca para a puxada: vestidas com os mais grossoscasacos de lã feitos à mão, crianças e muitas mulheresse aglomeravam desde cedo para acompanhar o ritual.

Antes de qualquer bateira sair ao mar, elegiam apessoa mais cuidadosa para vigiar o cardume. Seu Ola-vo já se acostumara a ser o escolhido: subia o morrocom segurança e, lá de cima, desafiava os olhos com omáximo que podiam avistar.

— Ó, o peixe! — gritava entusiasmado, com todaaquela tainha que se movimentava para lá e para cá,prestes a ter o caminho interrompido pelas embarca-ções que a esperava.

O aviso deixava as canoas em alerta para cercar ocardume e capturá-lo na direção que a peixarada vi-nha. Suas cabeças encontravam-se com a rede e de lánão fugiriam com tanta facilidade. Da areia, o pessoalvibrava com a pescaria e ansiava a puxada na praia.Zilda tentava esquivar-se da multidão, desviar das per-nas daqueles homens e mulheres e soltar um aplausoalegre com a chegada das lanchas, enquanto a crian-çada corria em direção à rede.

Logo que puxavam todo o peixe, a menina de dezanos e suas cinco irmãs rodeavam o barco, para aju-

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dar a “escalar” o pescado. Como não havia isopor,muito menos refrigeração para guardar as carnes, la-vavam a tainha no mar e salgavam para conservá-la.Uma parte ficava para a família e a outra era vendidanas cidades vizinhas.

Quando Zilda ainda era bebê, seu Francisco já saíade Canto Grande e, com a pequena lancha, navegavapelo rio Itajaí-Açu, vendendo peixe: passava por Blu-menau, Brusque, Gaspar e também atracava em Itajaí.Solitário que só, ele até gostava de fazer o trajeto. Oque não conseguia vender trocava por charque, queijo,salame e aqueles produtos não cultivados na lavoura.Foi assim até os anos 50 e 60, quando os moradoresdas pequenas cidades litorâneas começaram a aban-donar a agricultura e a pesca artesanal, à procura demelhores condições financeiras nas embarcações emalto-mar.

Apesar de seu Francisco nunca ter entrado naquelesgrandes barcos que surgiam repentinamente nos marescatarinenses — até porque, no seu tempo de moleque,isso sequer existia — os quatro filhos, depois de com-pletarem 16 anos, fizeram a carteira de tripulante nacolônia de pescadores de Canto Grande.

Era uma atividade nova e promissora: os “andori-nhas”, como eram chamados os catarinas que deixa-vam o Estado para trabalhar em portos pesqueiros deoutras regiões, acreditavam que o emprego nas cida-des de Rio Grande e Santos garantiria a poupança aque tanto aspiravam. Mas poucos conseguiam boascondições de trabalho: saíam marginalizados com obaixo salário, conviviam em péssimas condições de hi-giene, além de suportarem a falta de notícias da famíliadurante meses.

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Se o destino dos irmãos seria a pesca industrial, ode Zilda e de suas irmãs não se distanciava desta reali-dade: iriam casar com pescadores, não restava outraopção. Aos 25 anos, Zilda decide pertencer àquela ca-tegoria isolada de esposas: mulheres que se aprisiona-vam em casa, à espera incerta pelos maridos. Deveri-am cumprir os afazeres domésticos, cuidar das crian-ças e se acostumarem com tal condição. Quando des-conhecidos perguntavam “quem você é?”, e a re-posta fosse “mulher de pescador”, já sabiam que a vidadaquelas jovens seria sufocada pelas saudades.

Zilda não fugia da classificação de ser “viúva demarido vivo”, “pai e mãe ao mesmo tempo”. Contudo,ela era a Zilda, e não deixaria que controlassem suasvontades. Precisava levar os filhos ao médico e à esco-la, ir ao mercado, visitar uma vizinha, mas que nenhumcomentário ou fofoca a acompanhassem. Se Zezinhoandava pelo mar e em terra sem notícias de onde pode-ria estar, por que ele não haveria de confiar nela?

— Vais desrespeitar teu marido, Zilda? O que vãodizer por aí? — questiona a irmã mais velha, Sebastia-na.

— Quando existe confiança, não há por que se pre-ocupar! — responde, segura em relação ao casamento.

Muitas mulheres tinham ciúmes da situação privile-giada de Zilda. Não, aquilo estava errado, não é com-portamento de mulher direita! Como José Mariahavia aceitado tal proposta? Mas, se ela conseguiu, asoutras esposas também poderiam conversar com seusmaridos.

— Onde você tava, mulher? Cheguei agora de ma-nhã e não te encontrei em casa! — pergunta aquelepescador mais irritado com o sumiço da companheira.

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— Pois eu tinha que levar as crianças à escola epassar no armazém... — diz, com a voz nervosa porenfrentar, pela primeira vez, o esposo que sempre a quisem casa.

— Queres ser mulher comentada na vila?— Não, mas não vou ficar trancada aqui. Tenho

minha vida também.— Que isso, mulher? Nunca falaste assim comigo!— Pois é assim que eu e mais um bando de mulhe-

res aí vamos nos comportar. Se eu confio em você, quepassa em outros portos, por que não confiar em mim,que fico aqui te esperando? — agora, com uma inda-gação imposta pela voz segura e levemente grave.

Não havia argumentos que fizessem aquela mulherdesistir de sua decisão. Aos poucos, outras esposas in-fluenciadas pela conduta de Zilda começaram a garan-tir sua liberdade de ir e vir pela vila. As “viúvas” deCanto Grande se livrariam do controle social que impe-rava entre as famílias dos pescadores. Todas poderiamfazer suas obrigações fora de casa e eles deveriam con-fiar na honestidade de suas mulheres.

Elas até sabiam daquela velha história de que “pes-cador tem mulher em cada porto, se cuidem!”. O pró-prio Zezinho não deixava de freqüentar uma farra: logoque ele e a tripulação atracavam em alguma cidade,fritavam quilos de peixe, fechavam um bar e faziamaquela festa! Mulheres? Bem, até dançava com esta ouaquela, mas Zilda o proibira de deitar-se com qualqueruma.

— Se é para trazer doença para casa, nem volte! —dizia, enérgica.

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***Na primeira viagem após o casamento, Zezinho car-

rega mais malas que de costume. Aproxima-se do caissob os olhares curiosos dos companheiros de trabalho.Atrás, passos seguros e apressados o acompanham atéo Xavanti Aquirino. Mantêm silêncio ao entrarem nacasaria. Zé ganhara licença para atuar como mestre debarco, no lugar do dono da embarcação: João Leopol-dino, aquele mestre que se enriquecia gradativamentecom a profissão em alto-mar e dava início à classe dosarmadores, comprando alguns barcos e criando as pri-meiras empresas de pesca.

No camarote, as roupas começam a ser separadascom um cuidado inexistente até então. Calças de umlado, camisas de outro. Saias? Bem, essas deixara emcasa. Ainda desceu até a cozinha, deu uma olhada nadespensa, analisou o convés. Durante alguns dias, Zil-da seria a mais nova tripulante do Xavanti Aquirino.

A idéia de que haveria uma mulher na embarcaçãonão agradou seu Leopoldino: “Mulher no barco dá azar,cuidado!”, dizia ele. O velho mestre havia herdado umpensamento medieval: o corpo feminino estava associ-ado ao pecado e também à sujeira, por passar pelo ci-clo menstrual. Aquilo tudo já bastava para levar mausagouros à produção.

Zilda nem se importou com as crendices do velho.Ela estava ali para trabalhar: não era nenhuma bonecade porcelana que precisava de cuidados especiais. Pou-co se incomodou em estar no meio de outros homens:na época, os tripulantes dos barcos eram sempre fami-liares ou conhecidos. Quem conduzia o motor da em-barcação era seu primo, o cargo de gelador ficava parao primo de seu marido e, na cozinha, estava o irmão.

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— Vais enjoar, tô falando... — resmunga Zé, senta-do no convés.

— Mulher no barco não dá certo, Zilda, não deviaster vindo... — comenta o irmão, enquanto preparavauma carne de panela para o almoço.

Ela apenas sorri entre um arroz que cozinhava e outrabatata descascada, naquele calor sufocante da cozinha.Às vezes, saía para o convés e ainda ajudava a limparo peixe que as redes traziam. E assim foi, até passarum dia, dois e nada daquela mulher enjoar.

— Teu santo é forte! — grita Zezinho, ao perceberque a esposa seguia a mesma rotina de qualquer pes-cador do Xavanti. Acordava cedo, trabalhava o dia in-teiro e, após uma noite de descanso, estava pronta paramais trabalho.

Quando Zilda e os outros quatro trabalhadores co-locaram os pés em Santos, os pescadores de outrasembarcações vieram certificar-se de que a fofoca queouviram era realmente verdadeira.

— Tem mulher aí dentro? — pergunta um, ao verZezinho pular para o cais.

— Tem mulher e muito peixe! — responde ela, des-carregando as caixas com pescado. A baixeza de suaestatura estava escondida sob calças e camisas mascu-linizadas, o cabelo castanho-escuro de fios finos, co-bertos pelo chapéu de palha do marido, a revelar seuolhar seguro aos curiosos.

***— Sobrou algum pé de alface aí? — pergunta aque-

la mulher, já com seus 40 anos, no depósito do super-mercado.

— Ô, Dona Zilda! Tem sim... Deixa que a gente já

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Vidas separadas pelo mar 43

vai procurar as verduras e as frutas que tiramos da pra-teleira! — responde o menino magrelo, um dos funcio-nários que sempre a ajudavam em troca de peixe.

Naquele mês, a pescaria não conseguiu cobrir asdespesas da casa: o jeito era comprar fiado ou, atémesmo, pedir nos armazéns de Itajaí — cidade ondevivia há mais de dez anos. Os seis filhos precisavam dealimentação e estudo e, quanto menos peixe aparecianas redes do barco de Zezinho, mais os preços aumen-tavam. Mas Zilda sempre conseguira administrar asdespesas, a escola das crianças e a criação daquelesquatro garotos e duas meninas, praticamente sozinha.

Os filhos eram as principais companhias: todos aajudavam nos afazeres domésticos e raramente davamalgum tipo de preocupação. Quando se sentia sozinha,olhava para aquelas crianças e suas forças se renova-vam. Nunca deixara de falar do pai Zezinho.

— Mãe, quando ele volta? — indaga Solange, amenina mais velha, preocupada com a saudade cons-tante que sua mãe enfrentava.

— Logo, minha filha, logo... — dizia, sem saber serealmente ele iria retornar.

Acostumara-se a não receber notícias do maridodurante meses: comunicar-se por telefone era dispendi-oso e raro. Além disso, não havia nenhum sistema decomunicação em rádio que alcançasse as famílias emterra.

Quando Zezinho chegava, havia disputa de quemiria sentar-se em seu colo. Luiz Carlos ficava na pernaesquerda, Euclides procurava a direita e Kátia, com seuscinco anos, abrigava-se na grande barriga do pai, ape-lidada de “melancia”.

— Aqui é o meu lugar! — afirmava, enciumada, sem

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deixar que alguém se aproximasse daquele espaço ma-cio e aconchegante.

Mas, nem sempre as chegadas significaram felicida-de para aquelas crianças. Nas primeiras vezes que oprimogênito José Roberto via seu pai retornar a casa,não conseguia reconhecê-lo e assustava-se com aquelehomem. Ele atravessava o portão com a barba longa,as roupas encardidas, as mãos ásperas, um cheiro in-suportável de suor. José Roberto chorava, berrava eagarrava-se à saia da mãe com força, como se o peda-ço de tecido pudesse se transformar em um escudo queo protegeria.

Anos mais tarde, ele e seus irmãos Luiz Carlos e Cláu-dio se lançariam ao mar para também virarem homensdesconhecidos aos próprios filhos.

***O cabelo branco, de fios macios e ainda mais finos,

que se estendem até o começo da nuca, comprova aexperiência de seus 73 anos. A serenidade no rostoacompanha a delicadeza dos movimentos: as mãos tra-çam cada ponto nos crivos que aprendera a costurarcom sua mãe, quando ainda tinha 10 anos de idade.

Senhor, pai, proteja todos estes pescadores, estesmarinheiros, estes trabalhadores do mar. Abençoe ostripulantes do Araçá, o Estrela-mar, o Baía Dourada, oZé Trovão, o Adriano dos Santos. A cada ponto costu-rado, Zilda recita a mesma oração. Acostumara-se apedir a proteção aos pescadores, durante os 38 anosde profissão do marido. Seus olhos de um azul sempreclaro, escondidos sob lentes discretas, contraem-se acada recordação perdida na memória: enquanto semistura às linhas e panos, lembra-se dos momentos que

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vivera ao lado de seu José Maria.Zezinho morreu em 1997, após sete anos vivendo

em terra. Mesmo com os poucos dias de convivência,durante aquelas quatro décadas que esteve embarca-do, ela não se considerava infeliz: a confiança sempremarcou o casamento. Toda vez que se reencontravam,parecia ser a primeira: as saudades tornavam aquelapaixão cada vez mais intensa.

A agulha finaliza mais uma flor no tecido. Seus de-dos seguram firme aquele frágil metal, que realça maisum ponto. Dá gargalhadas, ao recordar-se de João Le-opoldino, apavorado com uma mulher no barco e o pre-juízo que ela lhe traria. Afasta os pedaços finos de ma-deira que esticam a toalha, para ver como ficara seutrabalho: bem feito, mas inacabado. Lembra-se dasmulheres de Canto Grande. Havia realizado uma gran-de mudança por lá. Só que, por aqui, as “viúvas” ain-da viviam a angústia por uma espera solitária.

Solta a agulha em cima da toalha. Levanta-se dosofá da sala e caminha com dificuldade e a passos va-garosos em direção ao quarto. Decide deitar-se. Deixa-ria o crivo para terminar amanhã.

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4. DIGA ADEUS!

“Bem que os conheço a todos eles,esses homens encardidos de babugem,

de mãos duras e dedos picadospelos espinhéis, cheirando

a lodo e a alcatrão.”(Homens e Algas – Othon D’Eça)

Caminho até o cais. Na mão, uma mala, pesada. Oque levar? Leve remédio, para não marear. Conselhode quem já esteve lá. Tudo bem, guardei aqui. Vergo-nha. Um senhor traz apenas uma mala pequena. Entrana casaria do barco. Será que é ele? Do convés, saiuma fumaça. Cheiro quente de churrasco. Uns aindaarrumam a rede, desorganizada entre nós. O outro? Estáali, a fumar um cigarro. Levanta os olhos, quem é estamoça? Desconfiança.

Sai da casaria, desce a escada em minha direção.Regata vermelha, bermuda até o joelho; cabelos lisos,quase na altura do ombro, fios inteiramente negros acom-panham a barba que lhe cobre a face, rodeia a boca.Essa barba e esse cabelo? Nossa, tenho desde quandoainda era moço. A mulher me conheceu assim. E teunome? Paulinho. Então, és o mestre-do-barco? Sim,moça, sou eu, sim. Vinte e sete anos aqui no mar. Estáspronta? Se preocupa não, vai dar tudo certo. Aqui todomundo é amigo.

Nem enjoar tu vais! E se enjoar, a gente faz um pi-rãozinho com peixe. Vai ser uma beleza, dona! Grita, ládo convés, o rapaz magro, alto e moreno; cabeça

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raspada. Capixaba de Vitória. Falador. Sou o cozinheiro,viu? Marrom é como me chamam. Antônio? Ninguém meconhece assim, não. Agora eu ganhei uma ajudante! Querover se vai agüentar o calor da cozinha. Mas não se preo-cupa, moça. Aqui tem comida a toda hora.

Deixa de explorar a menina, rapaz! Liga, não. Pra-zer, eu sou o Zé. Irmão do Paulinho. Vai comer um chur-rasquinho com a gente? Uma delícia. Vamos partir agoraà tarde, aí pelas duas. Hoje é primeiro dia. Só navega-ção. Aproveita para ver terra. Porque amanhã, só verámar e céu, céu e mar. Imensidão que se perde de vista.

Vem, moça. Vem conhecer o barco. Sobe nesta es-cada estreita. Cuidado para não cair. Agora você estána casaria, onde eu comando toda a embarcação. GPS,leme, navegador, bússola. É bonito ver o mar daqui dafrente. Enfrentá-lo. Meu quarto é este aqui atrás. Camaestreita e pequena, mas dá pra dormir bem. Ali ó, tem orádio: toda manhã é um bom-dia, como foi a pescaria?Estão onde? Rádio Costeira, câmbio! Lá atrás, assumoo cargo de proeiro. Quando é hora de pesca, comandoo barco dessa janelinha, vejo os homens lá embaixo,no convés, puxando a rede.

E eu, onde fico? Aqui na casaria, ao lado do meuquarto, moça. Beliche, armário, banheiro e tudo. Pe-queno, uns dois metros por um e meio. Simples. Mastem espaço para guardar suas coisas. Banheiro indivi-dual. Fique à vontade. Não é o quarto do motorista? É,mas o Boca se importa, não. Boca? Sim, o nome dele éJailson. Aqui, é só apelido: nome de guerra! E ondeficam os outros homens com seus apelidos? Lá embai-xo, pode descer.

Quinze beliches conjugados. Escondidos atrás decortinas. Nove tripulantes, íntima privacidade.

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Televisão: só quando pega. Notícias da terra? Que nada,nosso negócio é lá longe. Somos só nós. O mar. E essecéu azulão aí! Na parede, fotos de família, fotos de re-vista, desenhos, um papel com o nome dos tripulantes.Ou seus apelidos. Zé, Paulinho, Marrom, Tetu, Zé Ma-ria, Boca, Eca, Bruno, Gê, Xamixunga. Xamixunga?

Cheiro de panela no fogão. Oi, minha ajudante, vemcá conhecer a cozinha. À noite, vai sair aquele peixi-nho. Já comeu peixe-sapo? Balanço a cabeça de umlado a outro. É o que vocês pescam? Sim, peixe caro,vai lá para os estrangeiros. Ele é gordo, com a cabeçaachatada, duas nadadeiras na barriga. Fica lá no fun-dão, deitado, como ele gosta. Preguiçoso. É quase umsapo. Feio que só, mas é bom, o danado! E aproveitaaqui, porque peixe-sapo é coisa de rico. Fica bem nofundo do oceano. Jogamos a rede de malha. E lá vem opeixe. Vem muito, não. Mas, quando chega, é aquelabarulheira. Isso aqui é assim! Ah, mulher no barco?, seilá. Hora e outra soltamos algum palavrão. Fico até atra-palhado aqui. Vou cuidar com o que falar. Vai colocarno livro, não, viu? Isso aqui é uma bagunça.

Bagunça ali também, aponta à claridade que semostra ao lado. Espaço simples, sem vida. Uma pia,quatro chuveiros. Luxo dos tempos de hoje, com dozemil litros de água doce. Banho merecido. Canseira quedesce ao ralo.

No convés, máquinas paradas. Grandes roldanasde aço, companheiras na puxada. Que agora dormem.Acompanhadas por 45 mil metros de rede. Uma parteestá lá no mar. Esperam a próxima viagem para voltarao seu abrigo.

E onde fica o peixe? Aí embaixo, onde seus pés pi-sam. Câmara frigorífica, com 40 toneladas de gelo.

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Eu que cuido. Sou o Geraldo. Mas me chama de Gê! Opescador mais antigo desse barco. Já sou velho nisso,menina! Quase quarenta anos nessa lida. Olha só oscabelos brancos. Trabalho puxando rede, gelando opeixe. Sou magro, mas forte. Anos de pescaria. Nem láem terra, eu paro. Tenho meu rancho, minha bateira.Minha mulher pergunta. És louco? Não, só não vivo semeste mar. Vai lá em cima e olhe a boniteza!

Subo ao toldo. Ao meu refúgio. Vejo o oceano, doalto. Como seu pudesse domá-lo. Ledo engano. Difícilcaminhar. Bancos, metros de redes, cordas espalhadaspelo chão, costelas de gado salgadas, para secar. Nomastro, uma mandíbula de peixe amarrada. Dali, saemo varal, duas toalhas, uma bermuda. Resquícios de vida.

Sentado, imóvel, um homem. Cabelos grisalhos, es-tranhos à pele ainda sem marcas. O rádio funciona bem,ainda estamos no cais. Quem é você? Ah, sou o ZéMaria. Gosto de ficar aqui, com meu radinho. Olho parao mar, penso na minha mulher. A Gennifer, meu “chei-ro”. Lembro as minhas crianças. A menina tem cinco,Kimberlly. O Kevin tem quase três. Danado esse mole-que! Quando não estou, ele briga, grita. O médico dis-se até para dar Gardenal. Coisa de louco. Para o meuKevin? Não pode. Tem que ter controle. Eles têm quesaber respeitar. Eu fui criado assim, no laço. Se nãotrabalhava na roça, lá vinha chinelo. Pois eu fico aqui,a pensar naquele meu outro universo. Dá saudade, masé bom esse mar. Respiramos ar puro, sem fumaça dacidade. Sente o cheiro, sente! Gosto salgado. Odor demaresia integra-se à pele. Um dia, me disseram que omar tem som. Mas não o escuto, acredita? Para mim,tudo se une. Barulho de motor, ruído de vento, melodiadas ondas.

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Ô, visão apaixonada! Mas se passasse um coletivopor aqui, saía todo mundo! Só ficava você, Zé. Esse ZéMaria! Eu ia me mandar. Oi, meu nome é Jailson ou oBoca, apelido do pessoal. Dizem que é porque sou oúltimo a sair da mesa. Magro de ruim. Sorriso calmo,que se alterna a um descansar sutil de lábios. Penduraa bermuda no varal. Estica a cicatriz no abdômen.Marcas de uma briga, com facão e tudo, lá em terra.Sou o motorista. Sente o movimento? Ouve este baru-lho? Lá no motor, é muito pior: ensurdece, cheira a óleo.Suor que escorre pela testa. Dizem que o inferno é em-baixo da terra, é fervor, é sufocante. Então, trabalho aí.Justamente onde tudo isso ganha força. Onde existe omovimento. Se falhar, foi-se tudo. Dizem que o mar érico, misterioso, intrigante. Que isso? Aqui não tem maisnada. Pesca descontrolada. Dinheiro? Só se a gente trazpeixe. Se não traz, ficamos aí, com baixo salário. Nãodou 20 anos para matança acabar com a vida do oce-ano. E nós, vendo tudo isso findar.

Todo mundo que aqui está não teve opção. Entra-mos nessa, porque não tem trabalho. Lá em terra, osalário é baixo. Pouco estudo, a senhora já viu, né? Pes-cador tem valor, não. Você é quem? Eu sou o Valdir, otal do Xamixunga. Sei lá por quê. Eu, baixinho que sou,barrigudo: Xamixunga. Palavras ríspidas, rancor porestar ali. Mal-humorado? Não, desgosto por este traba-lho. Estava parado há mais de dez anos. Em terra. Cons-truindo casa, carpindo um mato que fosse. Voltei praver como vai ser. Mas sei lá se agüento. Aposentadoria?Era para se aposentar com 25 anos de trabalho. Aí, em2002, veio aquela história de reforma na previdência efoi. Aumentou o tempo de serviço para 35 anos. Pior éo pessoal da traineira, que tem que parar seis meses no

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defeso da sardinha. Só ficam no seguro-desemprego.Sem contribuir para o Governo. Vai se aposentar quan-do? E estamos aí. Puxa rede, come, dorme, puxa rede.Acabou. Esta é a sua única realidade.

Sinto meus pés tremerem. O som do mar tornar-sefraco. O motor impõe-se. Sente o andar? Então, olhalá! O cais vai ficando longe. Diga adeus.

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5. DONA LICA

“Já benzi mais de um milhão de pesso-as, porque eu benzo toda a vida! Vemmuita gente aqui se benzer: uma coisi-

nha qualquer, já vem aqui! Tem dia quenem posso fazer almoço, porque vem

um, vem outro...”.(Maria Felício Silva)

Três pedacinhos de alho eram esmagados entre osdedos. O cheiro ardente permanecia impregnado nasunhas e naquelas mãos que muitos ainda dizem sermilagrosas. O caminhar calmo disputava espaço no lugarrestrito, sufocante, invadido pelo odor de sal, maresia,peixe fresco. Da boca, saíam sílabas carregadas com osotaque característico, onde os “esses” dão lugar paraos “xis”, e os “erres” ganham uma leveza que torna suapronúncia imperceptível. As palavras embaralhavam-se em sentidos diversos e eram declamadas em um rit-mo acelerado, como se não houvesse pontos nem vír-gulas, uniformizando ainda mais aquele monólogo for-mado por frases imperativas. “Mau-olho mau-olhadotudo vai ser terminado com a graça de Deus e de NossaSenhora da Aparecida e isso tudo vai sair do barcoSanta Luzia”.

As mãos daquela senhora faziam o sinal da cruz,enquanto caminhava por entre os beliches apertadosda embarcação e desviava seu corpo, com mais de 70anos, dos poucos móveis que compunham o cenário— a maioria concentrados na cozinha. Completava a

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bênção repetindo aquelas palavras e rezando mais pais-nossos e ave-marias.

Ronildo acompanhava todo aquele processo comatenção e muita fé. A pesca estava fraca e a pressão daempresa para a qual trabalhava tornava-se cada vezmais intensa. Era preciso produzir, mas como ele iriamandar no mar, no tempo e no peixe que teimava emse esconder de suas redes? Restou-lhe acreditar que oalho, as orações e as rezas milagrosas daquela velhabenzedeira iriam trazer sorte ao Sta. Luzia. Lembravaos conselhos de alguns moradores do bairro da Murta,em Itajaí: “Não tais pegando peixe? Então fale com aDona Lica!”.

E ali estava ela, concentrada em suas rezas, masexibindo uma serenidade constante no rosto. Estranhover que aquela senhora não revelava qualquer vestígiode cabelo branco. Fios negros e finos se harmonizavamcom os olhos de um castanho muito escuro. Um con-traste para a pele clara, composta por algumas man-chas levemente marrons que, essas sim, conseguiamdenunciar a idade avançada, unindo-se às definidasmarcas de expressão na testa, ao redor da boca, aolado dos olhos.

Foram apenas quinze minutos de reza, que prometi-am garantir boa safra para a próxima viagem. Nuncahavia benzido um barco, apenas carros, carroças e ou-tros meios de transporte. Mas sua experiência dizia queo alho iria espantar os maus agouros e a falta de sortedaqueles pescadores.

— Pagamento? Que isso... Não aceito esse tipo decoisa, não. Benzimento não se cobra! — responde, apósouvir a insistência do mestre de barco.

Se ela não queria dinheiro, o agradecimento seria

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da maneira que mais lhe convinha: peixe. Seu Ronildojá levava pescado de tudo quanto é tipo para aquelasenhora, rigidamente católica, que sempre o recebia comum cafezinho e algum biscoito. Se a pesca realmenteobedecesse às rezas de Dona Lica e à crença daquelepescador, a recompensa seria ainda maior.

Enquanto o Sta. Luzia se afastava do cais, deixan-do para trás, mais uma vez, a família e os amigos, DonaLica voltava aos afazeres domésticos. Já tinha quase75 anos, mas se acostumou a trabalhar. Quando crian-ça, ajudava a família na roça, lá no Cantão, localidadedo antigo bairro Machado — hoje, Salseiros. Viu tudoaquilo ali crescer, moradores chegarem, grandes bar-cos ocuparem o rio Itajaí-Açu e a fábrica de cimentotrazer mais famílias para a localidade. A nova indústriaatraía tantos trabalhadores que, aos poucos, uma pe-quena vila surgiu em meio ao Salseiros, no início dosanos 60. Casas, escola, igreja, time próprio de futebol eaté um coreto — onde, aos finais de semana, as famíli-as se reuniam para conversar, assistir a apresentaçõesculturais e brincar de boi-de-mamão — compunham ocenário do que viria a se transformar na Murta. Aquelagente agora fazia companhia para a moradora maisantiga do bairro.

Foi ali que ela criou seus nove filhos, todos nascidosem casa: não pelas mãos de homens diplomados, masde parteiras que guardavam a experiência como prin-cipal ferramenta de trabalho. Perdera duas meninas,quando ainda eram bebês, e ficou viúva aos 29 anos— sina que se repetiu por mais duas vezes em sua vida— e teve que abandonar o trabalho na roça, para con-seguir emprego em casas de patroas e em horas

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passando roupas como forma de garantir um trocadoextra.

Mas reservava alguns momentos de lazer. Além decolocar seus pés para dançar no Clube dos Idosos, DonaLica apreciava a pescaria. Ela e o terceiro marido —com quem fora casada por 32 anos — construíram umtrapiche improvisado, no quintal de casa, que beira oItajaí-Açu. Dali, o casal e muitos outros vizinhos pesca-vam guaivira, tainha e, principalmente, bagre. Ao lon-go daquele rio que, na margem oposta, revela a cidadede Navegantes, os adultos também tinham que dividirespaço com as crianças.

Lá iam elas até a ponta dos trapiches, a desafiar ameninada “do outro lado” para ver quem pescava maisbagre. Quando aqueles garotos queriam xingar os me-ninos de Itajaí, era só chamá-los de “papa-siri”. Issoporque era tanto siri, mas tanto siri do lado de cá, quequalquer moleque levava seu puçá até a beira do riopara pescá-lo. Chegavam em casa carregados, já pe-dindo para que as mães os cozinhassem, até ficarembem vermelhos, ou fritassem aquela casquinha rechea-da da qual tanto gostavam.

Naqueles tempos, era bom sentir o cheiro fresco daágua que ainda não mostrava vestígios da contamina-ção pelos óleos das embarcações e pelos esgotos resi-denciais que estariam por vir. Mas, pescar no Itajaí-Açu deixou de ser um prazer para Dona Lica, após amorte do companheiro.

A vida não foi fácil, só que a fé em alguém superior,as muitas imagens de santos espalhadas pela casa e asorações diárias nunca deixaram esta benzedeira se aba-ter. A religião a acompanha desde o berço e, ainda

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criança, conheceu os segredos do benzimento. Uma tra-dição religiosa que mistura catolicismo, espiritismo eantigas tradições de negros e índios, herdadas posteri-ormente por caboclos e imigrantes.

Foi lá quando tinha seus 10 anos, ela lembra bem. Opiruá deixou os olhos de sua prima inchados e toma-dos por uma coceira insuportável. Só as mãos de umavirgem poderiam curá-la.

— Tu serve! — disse a prima Benta, olhando direta-mente para a pequena Maria, nome verdadeiro de DonaLica.

— Faço o quê? — perguntou, desconfiada.— Só coloca suas mãos sobre meus olhos...Em poucos dias, a doença se foi. E Dona Lica con-

tinuou a benzer mais e mais gente: vizinhos, amigos eos próprios filhos — já sem as mãos milagrosas da vir-gem, mas com a mesma fé presente em todas as suasorações. Até os anos 50, não era tão fácil achar médicono interior do Brasil. O jeito mesmo era recorrer aos“doutores” mais próximos, aqueles que, com chás, er-vas e orações, tinham o poder de levar a cura para mau-olhado, febre no estômago, maleita, nervo rendido e tudoquanto era doença.

Mas foi há pouco mais de 20 anos, que Dona Licaconheceu outros tipos de benzimentos, através de umcaderninho de anotações da tia carioca, seguidora dareligião espírita. Nas frases escritas à caneta, com algu-mas palavras mal-delineadas por causa da caligrafiadesorientada, a benzedeira encontrou tratamento paraaquilo que mais atacava as pessoas daquelas bandas.

A sensação de amolecimento na barriga e ânsia sópode ser febre no estômago. Amarra uma linha no ovoe queima: se o ovo quebrar, aí tem doença. Quando

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uma ardência começa a atacar algum músculo, entãoestá com “carne rasgada”. A benzedeira examina a dor,pega um pedaço de pano e começa a fazer alguns pon-tos naquele tecido com uma fina agulha, enquanto pro-nuncia suas rezas. Mau-olhado? Ah, só com alho mes-mo! Foi assim que benzeu o Sta. Luzia, agora com umadupla proteção contra o mau-olho: além das rezas deDona Lica, o barco fora batizado com o nome da “Santados Olhos”.

Quase dois meses se passaram até a benzedeira ouviro agradecimento emocionado de seu Ronildo. Não tra-zia apenas pescado como forma de graças, mas umaprofunda alegria com a pesca farta.

— Veio tanto peixe, mas tanto peixe, que não tinhamais espaço no barco! A senhora tem mãos santas...— dizia, misturando sorrisos e emoção.

Com a mesma serenidade, Dona Lica entrou no barcolevando seus três pedaços de alho, suas orações e suafé para abençoar, mais uma vez, o Sta. Luzia.

Mas houve um dia que aqueles benzimentos e curaslevaram à desconfiança alguns moradores do bairro:ela poderia estar cometendo um pecado grave, diziameles.

— É isso mesmo, padre? É pecado benzer? — ques-tiona, ajoelhada em frente ao confessionário.

— Imagina, dona Maria! Eu também benzo e nãoestou cometendo nenhum erro. Pode ir em paz e conti-nuar seus benzimentos, sem se importar com que osoutros irão dizer.

Lá foi ela, de volta às suas rezas, suas crenças, seussantos que circundam a Bíblia sempre aberta em al-gum salmo. Ali mesmo, na cozinha, recepciona gente

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dos bairros, do centro e até de fora da cidade. Muitasvezes, o almoço fica pronto pela metade, por causa daquantidade de pessoas que se aglomera na entrada dacasa.

E junto com aqueles moradores, chegava o seu Ro-nildo, com mais peixe para agradecer a boa pescaria.Só podia ser milagre: só podia ser o dom de Dona Lica.Sorte assim, novamente, era de surpreender. E nem pre-cisava mais pedir para repetir o mesmo ritual. A benze-deira sabia que, mais uma vez, entraria no Sta. Luzia,para sempre vencer o mau-olhado.

***Passaram-se algumas semanas, mas apenas o bar-

co voltou a aparecer para a benzedeira. Sem pesca,nem pescadores. Após sete anos sem ir para alto-mar,o Sta. Luzia permanece assombrando o rio Itajaí-Açu,a estragar-se com a água salgada, o sol, a chuva e amaresia. O guindaste, que antes puxara tanta rede, nãoproduz qualquer movimento, um ruído sequer. Está to-mado por um cinza pálido, sem vida. Na proa, a ferru-gem de um ocre intenso se destaca na cor branca daembarcação. A âncora ocupa o pouco espaço daqueleantigo trapiche.

Do quintal da casa de Dona Lica, entre as goiabei-ras, as criações de marrecos e as plantações de ervas, épossível enxergar com visibilidade o Sta. Luzia, acom-panhado por mais três embarcações. Todas estáticas.Até hoje a benzedeira olha para aqueles barcos e sepergunta: para onde foram os tripulantes? O que acon-teceu com seu Ronildo? Algumas respostas vagas, devizinhos, explicam o ocorrido: a empresa faliu, o donofoi embora e os pescadores precisaram encontrar

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novos lugares para trabalhar. Outros dizem que o pro-prietário da empresa ainda está ali, tentando tirar al-gum dinheiro com apenas dois barcos.

Sem novidades. Falência é o que muito aconteciacom as empresas de pesca. Barco tem de sobra, peixe éo que anda faltando, como os pescadores dizem por aí.Mesmo com as orações e a crença daqueles homens domar, o pescado capturado não era suficiente para co-brir os gastos das embarcações e dos armadores.

De vez em quando, um ou outro morador tira a águada chuva que entra no convés e ameaça levá-los aofundo. Aos poucos, o metal que reveste os barcos sedesintegra e acumula resíduos no rio. Por trás do capimque invade o terreno da antiga empresa, Dona Licacontinua a observá-los: sem pescado, nem tripulantes,aquelas embarcações transformaram-se em estátuas daságuas.

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6. ÚLTIMOS SINAISDE TERRA

“‘Stamos em pleno mar... Dois infinitosAli se estreitam num abraço insano,

Azuis, dourados, plácidos, sublimes...Qual dos dous é o céu?

qual o oceano?..”.(O Navio Negreiro – Castro Alves)

O Monkfish nos leva pelo Itajaí-Açu, passa as casasdo bairro da Murta, olha lá o Sta. Luzia da Dona Lica!,seus muitos barcos-fantasmas, a ferrugem daqueles queali foram abandonados há anos, a imagem da má ad-ministração, da pesca sem controle, da falta de incenti-vo financeiro. Do outro lado do rio, o contraste. Estalei-ros, muitos. Barcos em nascimento não faltam, cascosainda incompletos, a madeira exposta, o aço cobrindoparte de seu contorno. Exibem-se, imponentes, àquelesque estão à sua frente, esquecidos. Olhem bem paranós, dizem eles, somos o futuro da pesca, o progresso!Pois estás errado, meu filho, nós aqui, ferrugem no cor-po, parados, sem riquezas, com água no convés — res-pondem —, somos o espelho de vocês: sem peixes, nemtrabalhadores.

Navega Monkfish e passa por Navegantes, Igreja deNossa Senhora, poucos prédios, vila pequena. Olhampara o outro lado, tímidos, frente ao Porto de Itajaí.

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Contêineres, navios, guindastes, gigantes nos mares —sombra aos pequenos barcos. Amedrontam, causamespanto. Fascinam com sua imponência, a imagem con-creta da riqueza. Pois, do nosso lado navegantino, tensum companheiro semelhante. Outro porto, meus ami-gos. Progresso? Emprego? Diga adeus à cidade comtraços antigos, ambas. Os pequenos casarões do cen-tro, a igreja, a praça, as calçadas. Sinais do passado. Eas memórias? Estão ali, nos poucos que ainda as guar-dam.

Digo até logo, Itajaí! Parte da costa, ilhas perdidas.E o continente fica para trás. Aproveita, menina. Apro-veita que ainda tem a luz da tarde. Daqui a pouco, sen-tirá apenas a lua. As constelações. Nada de edifícioscom suas janelas acesas, luzes em movimento. Verá océu encontrar-se com o mar, negridão infinita, onde estáo horizonte?

Escondeu-se. Continuo ali, sentada, perco-me emmeio à imensidão negra. Olho com atenção, mais a fun-do. Lá vem ela: majestosa, instigante. Impõe austerida-de. Sua luz dispara o foco. Clareia o barco. Apenas re-conheço as ondas fracas que pouco balançam a em-barcação.

Ilumina os rostos de Zé Maria, Jailson, Valdir. Algu-mas conversas, pensamentos que se perdem. Estamosaqui para te fazer companhia, moça. Senão, cada umno seu canto. Mas, não há conversa? Alguma coisa eoutra, a pescaria como foi? Todo mundo tem seus pro-blemas, guardamos para a gente. Somos distantes as-sim mesmo. Calados. Eu gosto de ouvir meu radinho,aqui. Ler a Bíblia. Só acredito Nele para agüentar avida no barco. Para não ter medo do mar. Suportar assaudades.

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Ouço o que me dizem. Tento compreender o porquêda tristeza, do vício, da revolta e da paixão. Olho paraaqueles pescadores, com poucas conversas para divi-dir. Família, mar, pesca, retorno. E suas histórias fan-tásticas? Ondas gigantes, naufrágios? Medo do mar?Brigas nos barcos?

Vixi, isto é mais lenda. Tem história assim, não! Pei-xão na rede? Faz tempo que não vejo aquele sapo seprender na malha. Sereias, monstros, segredos mari-nhos? Coisa de filme. Você quer história? Então, só en-xergue pelos olhos do concreto.

Continuo observando a negridão. Maresia grudan-do na pele. Lua aclarando o barco. Nunca havia pres-tado tanta atenção naquele satélite cinza, suas crate-ras. O lado negro, reservado ao mistério. Dali, ondenenhuma outra luz poderia ofuscar seu brilho, impõe-se como o sol.

Paz. Como é bom estar no mar, sentir o cheiro frescoque Zé Maria dizia, ouvir o som que ele mal distinguia.Estar onde Camões se inspirou com seus Lusíadas, ondeos navegadores encorajavam-se a desbravar, o além dohorizonte, das canções de Lenine. Sem a segurança daterra, o conforto do quarto, os deveres do dia-a-dia. Sema rotina descontinuada. Vai dormir, não? Vou depois.Riso irônico. Essa aí vai enjoar da paisagem. Agora,tudo é novidade. Quero ver você não conseguir cair nosono, com as marolas insistentes. Não conseguir co-mer, pelo enjôo permanente. Acordar, dormir, olhandopara o mar. Sem terra alguma. Sem referência de ou-tras vidas. Aproveita, então, menina! Contemple issotudo. Veja o que a cidade oculta. O que o horizonte nãopermite. Lá no fundo, ainda vê terra. Amanhã, já nãoexistirá mais.

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Aproveite, menina, que eu faço a vigia. Vigia, Zé?Sim, a cada duas horas, outro homem com nova aten-ção. O barco pode ficar sozinho, não! Tem navio quemal enxerga as nossas luzes. Levam o que estiver nafrente. Medo das lendas? O problema aqui são os mons-tros reais. Esses gigantes, a ventania, as ondas fortes, apesca fraca, a solidão.

Eu aprecio esta quietude solitária, a paisagem sono-lenta. Boa noite. Amanhã acompanharei o novo dia.

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7. CURIÓ

“Um bom mestre de barcoé aquele que bota a produção

na mesa do patrão. Esse é o bom mestre,porque daí a fama dele corre, não falta

emprego pra ele. Mas, agora, se ele nãopesca direito, aí é um ‘madeira’.

Porque o patrão já não quer, o outro jápescou um melhor, entende? E assim, vai.”

(Aldo José da Cunha)

— Esse Curió... Foi um dos melhores mestres-de-barco que Itajaí já teve! Ele, o Pão-de-Milho, o Cíce-ro, o João Teimoso... Tudo gente boa! Mas o Curiómesmo... Esse dava peixe pro patrão, pros tripulan-tes e ainda sobrava pro pessoal! Faziam fila no caisquando o barco dele atracava. — conta o pescador,enquanto toma mais uma dose de cachaça, sentadono balcão do Bar da Vó, em frente ao Mercado Pú-blico de Itajaí, um dos muitos bares da cidade fre-qüentados por pescadores, mas que hoje não reser-va aquela barulheira e a movimentação de antiga-mente.

O que o pescador contava era uma grande verdade.Quando Curió chegava ao cais, lá estavam alguns mo-radores, mendigos e tudo quanto é pessoa para ganharuma fritada de camarão.

— Não vai fazer falta, tem muito mais ali dentro! —dizia ele, se alguém olhasse torto. Sabia bem que o pa-trão reclamava, mas alguns quilos de peixe seriam

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insignificantes para quem se enriquecia com as toneladasque Curió trazia do mar.

Entre o aglomerado de gente, uma mulher chega fa-lando alto, chamando a atenção de todos, xingandoquem se atrevesse a questioná-la. Curió não precisavanem adivinhar o que era aquele turbilhão de movimen-tos bruscos e a voz grave. Lá estava a Maria do Caispara buscar a sua parte.

— E aí, canalha! Trouxe algum pra mim? — gritava,misturando a voz imperativa com a oscilação da per-gunta.

— Está aí, Maria! A gente não falha! Cuida do barcodireitinho esta noite e amanhã vais receber o pagamen-to! — dizia o mestre que, como muitos outros, confia-vam à Maria a segurança da embarcação durante asmadrugadas.

Enquanto ela analisava a sacolinha de camarão e jáseparava uma parte para dar às crianças que a rodea-vam, Curió começou a descarregar todo o pescado. Obarco veio cheio, dava até pra jogar peixe fora!, diziaum dos tripulantes; era peixe que não acabava mais,tudo com 20, 30 quilos!, completava outro. Curió nãogostava muito de inventar história: pensava mesmo noorgulho que o armador teria dele e da tripulação. Ah,mestre bom é mestre que leva a produção pra mesa dopatrão!, afirmava com segurança. Sempre seguiu essemandamento à risca, apesar de, naquela época, meta-de de todo o pescado ficar para o dono do barco e aoutra metade ser dividida entre os pescadores. Ele fica-va com mais partes dessa divisão, mas sua renda eramínima perto daquela que garantia ao chefe. No entan-to, sempre foi conhecido pelo bom trabalho e nunca lhefaltou emprego por causa dessa qualidade. E, como todo

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Vidas separadas pelo mar 71

bom mestre deveria ser, não abandonava o barco nemnos momentos mais críticos.

— Curió, sai daí, os barcos já foram pro porto!— Curió, és maluco? Tu vais morrê!— Curió, não sejas teimoso e deixa a rede aí!— Cada um tem a sua hora, seja no mar ou em

terra... — respondia ele aos tripulantes que insistiamem amedrontá-lo. O vento podia ser sudoeste, ondasde cinco metros de altura, barco balançando sem pa-rar, que ele não desistia de puxar toda a rede. O corpojá se acostumara a equilibrar-se conforme o movimen-to do mar e as mãos eram tão calejadas, que mal senti-am a textura do cabo que sustentava a malha.

Todos os barcos haviam saído de vista, aquele ban-do de medrosos! Pois ele conseguiu terminar o trabalhoe ainda fugir da tempestade que deixara o Porto deSantos lotado pelas embarcações assustadas. E lá vi-nha o barco do Curió, a navegar tranqüilamente emdireção ao cais, nem se importando com a negridão docéu que o perseguia desde lá do mar. Parecia até que otemporal estava esperando aquele experiente pescadoratracar com segurança para, aí sim, revelar a forte chu-va guardada naquelas nuvens e liberar todos os seusventos. Eu disse que nossa hora ainda não chegou, re-petia ele, enquanto olhava para os tripulantes choca-dos com a confiança do mestre.

Em seus 29 anos como mestre de barco, nunca per-deu um companheiro para o oceano. Apesar de priori-zar a produção, sabia exatamente a hora de parar.Quando algum pescador sentia uma fisgada no pé, po-dia esperar que ali vinha temporal! Se o céu exibia suasnuvens com formato rabo-de-galo, era para ter certeza:vai dar sudoeste, rapaz, vamos embora! Segurava o leme

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Vidas separadas pelo mar72

com segurança, engatava marcha lenta e levava a em-barcação conforme o movimento das ondas, sem queambas se enfrentassem. Era preciso calma nessa horae uma ilha próxima para baixar a âncora. Mas se játivessem passado o Cabo de Santa Marta, no Litoral-Sul de Santa Catarina, o jeito mesmo era enfrentar asventanias e deixar o barco em capa — conduzindo-olentamente, no sentindo das ondas e sem muita força.

Um pouco de toda aquela experiência brotava desua intuição e outro tanto cresceu no aprendizado du-rante os anos como pescador artesanal. Os primeirosembarcados que abandonaram a pesca costeira e deprodução restrita para se lançarem às longas viagensem alto-mar eram, justamente, aqueles que começaramem uma bateira familiar, com a qual garantiam pesca-do para subsistência e à venda em pequena escala.

Lá pelos anos de 1930, quando Curió ainda nemhavia nascido, começaram a aparecer as primeiras trai-neiras na Região Sudeste e, conseqüentemente, o iní-cio da atividade pesqueira industrial no Brasil e grada-tivo rompimento com a pequena pesca. Em 1934, criou-se o Entreposto da Pesca em Santos e a abertura deindústrias de enlatamento de sardinha, garantindo ummaior impulso à captura em larga escala. Apesar daexperiência cotidiana, foi difícil para esses novos em-barcados aprenderem os segredos de toda a paraferná-lia de máquinas e botões que compunham os grandesbarcos. Até porque poucos ali tinham estudo.

O pequeno Aldo — seu nome ocultado pelo apelidoque herdara do pai, o Zezinho Curió — abandonou oscadernos, o ditar dos professores e as poucas cadeirasda escola, quando tinha apenas 11 anos. Preferia mes-mo acompanhar o pai na pescaria e nem se importava

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em acordar às cinco horas da manhã. Enquanto Zezi-nho já estava lá fora arrumando a rede do barco, Aldopreparava uma marmita com arroz, batata-doce e tai-nha frita que haviam sobrado do dia anterior. A pescase estenderia até a tarde, quando retornavam a casa, jápreparados para salgar o peixe, junto com os irmãos ea sua mãe. O sal era a única forma de conservar o pes-cado, naqueles tempos em que nem se pensava em re-frigerador. Até mesmo o gelo passou a ser fabricado emItajaí só no começo dos anos 50. O jeito era escalartodo o peixe e sair vendendo por aí.

Curió gostava de trabalhar e pouco se importou emdeixar de lado seus estudos, mesmo porque não via nin-guém que passasse da quarta série. Hoje até mudouum pouco. O pescador procura se especializar, estudar:precisa disso tudo para tirar uma simples licença comotripulante. Mas 65% dos embarcados da cidade, dos1.524 cadastrados na Secretaria da Pesca de Itajaí, emsetembro de 2008, ainda não conseguiram atingir a oi-tava série. Aldo não precisava ser exceção: eram oitoirmãos e a sobrevivência sempre fora mais importanteque o estudo. “Mas pescador tem vida sacrificada, nãoquero esta sina para meus filhos, não!”

E o Curió-filho copiou a tradição do Curió-pai: emcinqüenta anos de casamento, a esposa engravidou oitovezes. No começo, dava até para passar bastante tem-po com a meninada: Aldo, como muitos outros itajai-enses, encontrou trabalho nas madeireiras que invadi-am a cidade.

Se hoje só se vê contêiner espalhado por Itajaí, na-quela época, tinha madeira a se perder de vista. Eratanta madeira, mas tanta madeira, que assustava quemobservasse a cidade lá do Morro da Cruz. As casas dos

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53 mil habitantes, que residiam na cidade nos anos 50,precisavam disputar espaço com aqueles milhares detábuas empilhadas. Além da produção extraída dasmatas de araucária, o município ainda ficava lotadocom os troncos de pinho vindos de outras localidades,mas que eram beneficiados aqui.

Quando parecia não haver mais lugar para tantasmadeireiras, lá vinha a Maria Fumaça a levar aquelaspilhas de tábuas para as pequenas cidades de ItoupavaSeca, Trombudo Central e onde mais a Estrada de Fer-ro Santa Catarina passasse. Enquanto o trem mostravasua presença musicando nos trilhos, no mar era possí-vel ouvir o apito dos navios a saírem carregados comfécula, tapioca, fumo, café, tecidos, papelão e, princi-palmente, com a riqueza que brotava das florestas dearaucária. Em 1951, no auge da indústria madeireira,o porto exportava mais de 118 mil toneladas para ou-tros países, além das 133 mil toneladas a diversos esta-dos brasileiros. Até parecia que aquela fartura nuncairia acabar.

Mas no final da década de 1960, as indústrias ma-deireiras começaram a demonstrar sua fraqueza: árvo-re já não existia em grande quantidade e os plásticostornaram a concorrência desleal. Se a riqueza da terrafora explorada ao máximo, o jeito mesmo era buscar,com maior intensidade, o que o litoral oferecia em abun-dância: os recursos marítimos. O porto concentrou-seentão na descarga de pescados, junto com os trapichesdas empresas armadoras. Enquanto em 1958 Itajaí ex-portava mais de 2 mil toneladas de peixe, seis anos maistarde, já com 32 barcos tipo traineira destinados à pes-ca da sardinha, a produção havia dobrado.

Disputando espaço com as embarcações, estavam

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aqueles pescadores artesanais que também insistiamem vender pescado. Eles vinham com suas baleeiras,de municípios próximos como Porto Belo, Penha e Ita-pema, sem se intimidarem frente aos grandes barcos.Uns até enriqueceram o suficiente para também acom-panharem a classe de armadores. Mas nem todos ti-nham a mesma sorte: se quisessem melhores condiçõesfinanceiras, teriam que abandonar seus botes para setornarem empregados das empresas de pesca.

Foi assim que começou a profissão de embarca-do de seu Aldo. No convés, ele experimentou as pio-res condições de vida e higiene que poderia vivenci-ar. A rotina começava às cinco da manhã e só ter-minava ao anoitecer. Para piorar, não existiam asmáquinas que hoje facilitam o trabalho do pesca-dor: toda a força ficava concentrada no braço. Aspernas também brigavam contra o desequilíbrio e sa-íam doloridas no fim do dia.

E lá vai o novo tripulante, a puxar rede; congelar opescado; puxar rede; um copo de água, pode?; puxarrede; parada para comer um pirão!; puxar rede; enxu-ga o suor no braço; puxar rede; olha o peixe!; puxarrede; corpo cansado do dia inteiro de trabalho.

Descanso, finalmente.Curió mistura cansaço e ansiedade ao caminhar até

o porão do convés, onde poderia deitar-se no colchãoumedecido pela maresia, desejando dominar o sono quenão vinha, tentando esquecer o barulho teimoso da-quele motor. Como era bom ouvir apenas o som do mar,nos antigos barcos à vela onde passara sua infância.

— Acorda, Curió! Mais um dia! — grita o cozinhei-ro, enquanto prepara o café e já tempera o peixe para oalmoço.

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Sente os músculos enrijecidos da noite mal dormi-da, o cabelo ressecado pelo vento, o corpo invadidopor um amargo cheiro de suor. Se conseguia tomarbanho? Nem pensar: eram dois por mês e olhe lá... Águadoce é um luxo dos barcos de hoje! Naqueles anos, aágua do mar acompanhava a higiene pessoal. No finalde cada viagem, lá chegava o Curió: barbudo, cansa-do, exalando um odor forte misturado ao aroma natu-ral da pele. Mas, em compensação, com o barco cheiode peixe.

Entre os tripulantes que deixaram a pesca artesa-nal, como seu Aldo, também chegavam aqueles ma-rinheiros de primeira viagem: gente sem tradição pes-queira, de cidades do interior catarinense, e até al-guns agricultores do litoral. As pestes que atacavamas plantações, a concorrência agrícola com outrosmunicípios e o surgimento das rodovias — facilitan-do a circulação dos produtos — enfraqueceram aagricultura da região. Se não encontravam trabalhoem terra, naquele imenso mar haveria de ter!, pen-savam eles. E, aos poucos, uma nova classe de tra-balhadores surgia, despertando os olhares de outrosestados brasileiros.

Aldo sabia que em Santos conseguiria mais oportu-nidades de trabalho: passaria meses longe de casa, masera preciso levar dinheiro para a família. Guardou omandamento que aprendera desde pequeno: sobrevi-vência em primeiro lugar. Junto com centenas de ou-tros pescadores catarinenses começou a trabalhar nasempresas daquela grande cidade portuária, em 1967.Os catarinas concentravam-se no litoral paulista e ocu-pavam mais de 70% das vagas nos barcos-traineira deSantos.

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Foi justamente nesse ano que o Governo Federaldecidiu finalmente organizar a pesca empresarial-capi-talista no Brasil. Muitos empresários saíram de outrosramos para tornarem-se donos de barcos e de empre-sas. O incentivo fiscal à produção pesqueira iluminavaos olhos dos novos patrões da pesca, mas iludia os tra-balhadores, prejudicados pela falta de leis trabalhistas.

Aldo não sentiu o dinheiro encher seu bolso, comoimaginara. Via o contra-mestre ganhar duas vezes maisque os outros tripulantes e o mestre de barco receberaté sete partes de toda a produção. Ah, era bem dissoque precisava: tirar a carteira para mestre, mesmo sa-bendo que naqueles três meses de 1974, quando deve-ria permanecer desembarcado para conseguir a licen-ça, baixaria a zero a renda familiar.

Mas a oportunidade era única: pela primeira vez, aCapitania dos Portos de Itajaí oferecia um curso paramestre de barco costeiro. Ainda mais em uma épocaque pouco se investia na qualificação destes trabalha-dores: nos anos 70, as principais escolas brasileiras es-pecializadas em ensino profissional de pescadores in-dustriais, localizadas no Rio de Janeiro e Pernambuco,foram desativadas. Curió precisava garantir o espaçoaqui mesmo. Claro que seria difícil acostumar-se comos cadernos novamente: depois de tanto tempo longeda sala de aula, esqueceu até como deveria estudar.

Enquanto o marido passa horas em cima dos livros— pra que tudo aquilo? Lá no mar é diferente! —, Ma-ria arruma a casa e cuida dos filhos, com a pouca ren-da que lhe restava. A colher de arroz e feijão no pratodas crianças era controlada. Do portão de casa, escutaDioclécio voltando de mais uma manhã de trabalho,embaixo de sol quente.

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— Olha o picolé! Olha o torradinho! — grita, lá defora, o filho mais velho, tentando vender os últimos pro-dutos que ainda ocupavam espaço no seu carrinho.Cada venda transformava-se em uma vitória para omenino: mesmo com 7 anos de idade, aprendera comseu pai que o sustento da família era prioridade.

Quando faltava dinheiro em casa, eles se viravamde algum jeito. Maria que o diga: muitas vezes, teve quecontrolar os gastos mensais, enquanto o marido nãovoltava para a terra.

Como mestre de barco, a renda de Curió aumentougradativamente. Não era muito, mas havia meses queconseguia tirar até 250 mil cruzeiros – em torno de seismil reais. Mesmo após a aposentadoria, com 32 anos eseis meses de trabalho, permaneceu na pesca. Mas, em2003, época em que a região Sul estava em segundolugar na pesca marítima e estuarina, com 32% da pro-dução nacional, havia chegado a hora de abandonaras redes e se acostumar novamente à estabilidade daterra.

***Pedaços pequenos de madeira se espalham pelo

quintal da casa. Aquele senhor baixo, com os fios decabelo lisos e brancos que revelam a idade avançada— mas com braços ainda delineados pelos anos de tra-balho —, está sentado à sombra, uma lata de vernizaberta próxima aos seus pés e alguns arames cortados.As lascas caem aos poucos daquelas mãos que tantousara para consertar tarrafas. Os braços, expostos pelacamisa sem mangas, ainda mostram os sinais de quemfez muita força para puxar quilômetros de rede. Suapele exibe um moreno não de uma cor natural, mas da

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pigmentação bronzeada que o mormaço e o sol lhesdeixaram como marcas. Os movimentos são tranqüilose precisos, de alguém que não tem mais pressa paraviver, mas que já viu muita coisa passar. Decidira tro-car o som constante do mar pelos cantos vibrantes dospássaros que se aglomeram em sua casa.

Os curiós misturam cantorias, enquanto Curió cal-mamente finaliza outra gaiola. Herdara a paixão do pai:tanto aquela que vinha do mar para sustentá-los; comoesta, que lhe trazia uma sensação de lazer e, ao mesmotempo, de utilidade.

Estava aposentado, mas aposentadoria nunca sig-nificou doença. Mesmo agora, quando já havia desisti-do definitivamente da pesca, vieram convidá-lo paravoltar ao barco.

— Já tô com 71 anos, diz ele, dê emprego para umjovem que tem saúde ou outro pobre coitado que preci-sa mais...

— Só que está difícil achar tripulante bom pra pes-ca! — insiste o dono da empresa para a qual trabalha-ra quase toda a sua vida.

É, naquela época, nós íamos para o mar em família.Bons tempos aqueles... Agora, vem gente de fora: temmuita droga, muita bebida, muita briga. E ninguém quervida dura, não!, pensa, enquanto coloca mais um ca-nário no pequeno lar.

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8. MARIA DO CAIS

“Vim com 20 anos pra cá.Aí, fui pro porto trabalhar.Eu morava na Alfândega.

Ganhava camarão, ganhava coisa.Aí eles falavam pra mim:

‘vem aqui de noite pra conversar’.Aí eu vendia o peixe e mandava

eles pra puta- que- pariu.”(Olga da Silva Leutério)

Entre as fendas das tábuas empilhadas no porto,aqueles muitos olhos enxergam um pedaço da proa dobarco. Movimentando o olhar um pouco mais, é possívelver o farol, os metros de redes jogados no convés e algunstripulantes a contemplar o esperado retorno. Ali embaixo,no porão do barco, deve ter muita sardinha!, pensam osdonos daqueles olhos. Mal a embarcação atraca no cais elá vai todo aquele pessoal à procura de peixe.

Vestem roupas pouco apresentáveis, encardidas,rasgadas. Carregam, em sacos plásticos ou embaixo dobraço, alguns pedaços de jornais que improvisam comocama. São homens novos e velhos, barbados, com orosto sujo da poeira das ruas, as mãos ressecadas pelocalor, os cabelos enrijecidos por causa da maresia. Osmeninos largam o pião ou a funda, para correr até otrapiche, com os pés descalços e ásperos, já acostuma-dos à rispidez do chão.

A cena se repetia cada vez que algum barco ou na-vio atracavam em Itajaí. Pessoas que fizeram das ruas

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Vidas separadas pelo mar82

seu lar encontravam no cais um local de trabalho, ondepodiam ganhar alimentos e muito peixe. Nos jornais daépoca, as cenas destes homens, mulheres e crianças àprocura da sobrevivência recebiam uma descriçãomanchada pelo preconceito:

Mal o navio atraca, a garotada vadia invade o navio, aosbandos para, aproveitando-se da distração do pessoal debordo, descer aos camarotes, à sala de jantar, à cozinha, àcopa, em toda a parte (...).

Enquanto isso, a mesma garotada descrita no jornalO Commercio, em 1921, corria ao trapiche para amar-rar as cordas, ajudar a levar madeira até o porão, pro-curar uma vaga para cuidar do barco, em troca de al-guns quilos de peixe. Uns até gostavam de explorar oque aquelas embarcações guardavam no convés e noscamarotes, mas trabalhar ali era o principal ganha-pãodaquela gente toda. A maioria nem queria arrumar bri-ga: só precisava de uma chance para mostrar seu tra-balho.

Algumas mulheres se misturavam entre aqueles ho-mens: mantinham conversas e risos, trocavam carinhose olhares insinuantes e, depois de alguns minutos, oscasais sumiam para dentro dos navios. Naqueles anosde 1960 e 1970, era raro encontrar vestidos e cabeloslongos caminhando em frente ao porto. As moças “defamília”, como diziam, aprendiam desde pequenas:mulher direita não deve passear por lá. Apesar de serum local de trabalho, o porto era associado às drogas,à malandragem e à prostituição.

Entre aqueles homens, crianças e mulheres, passosapressados chamam a atenção dos pescadores emarinheiros. Ela chega demonstrando presença: ai se

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Vidas separadas pelo mar 83

alguém olhasse torto ou a fitasse por muito tempo...— Que é! Sou algum bicho, por acaso? Olha pra

frente, seu filha-da-puta!Desbocada que só! Chegava gritando para todo

mundo saber mesmo: estava ali a Maria do Cais! Aque-la mulher alta, magra, com longos cabelos negros e apele bronzeada, chamava a atenção pelo jeito malcria-do, pela sua voz imponente e também pela solidarieda-de. Maria era uma amiga para aquela gente que viviado trabalho nas ruas: quando conseguia alguns quilosde peixe dos pescadores — ai, quem não cedesse! —,dividia com todos que a cercavam.

— E aí, veio peixe pra mim? — berrava, mesmo es-tando a dois palmos de distância do mestre de barco.

— E a senhora acha que saio pro mar pra trazerpeixe pra vagabunda? — respondiam aqueles mais ir-ritados.

Se a resposta ganhava esse tom, podia esperar quelá vinha confusão. Todo mundo parava o que estavafazendo para presenciar o tumulto. Ela não tinha medodos braços musculosos dos pescadores: até encaravabriga corporal! Mesmo que algum policial interviesse,não desistia de demonstrar coragem perante aqueleshomens que pouco a intimidavam. Gritava, batia, es-perneava; eles tentavam contê-la ou fugiam de suassurras. E os pescadores podiam esperar que a irritaçãodaquela mulher alcançaria também o oceano: não bas-tassem as discussões, os barcos seriam enfeitiçados pela“praga da Maria do Cais”.

No dia seguinte, era certo: a embarcação não saíado porto por causa de algum problema técnico. Ou eramotor, ou leme ou algum defeito na rede: qualquercoisa que impedisse a viagem. E se conseguissem

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vencer o “feitiço” ali no cais, a frase pronunciada porMaria, antes da partida, conduziria toda a pescaria.

— Pois vocês não vão pescar nada, desta vez!Podiam correr atrás do cardume, permanecer mais

dias no mar, jogar a rede nos lugares conhecidos pelafartura de pescado. Era possível cumprir isso tudo, masa maldição atravessava o oceano e mandava na sorte,no vento, nas ondas e nos peixes. Já se ela dissesse queviriam com o barco carregado, a pesca certamente se-ria abençoada.

Apesar das brigas, Maria tinha muita amizade comaqueles pescadores. Toda vez que um barco atraca-va, cuidava das embarcações em troca de dinheiroou peixe, assim como faziam os meninos. Quandoganhava os tão desejados quilos de camarão e tai-nha, saía pelas ruas vendendo o pescado para ga-rantir mais algum lucro e ainda conseguia dividir arenda com sua família das ruas.

Se a esposa de algum pescador aparecesse no cais edesconfiasse de suas intenções, Maria já justificava:

— Não quero nada com seu homem, não! Tô aquipra vender peixe... — dizia, com o olhar baixo, massem perder a austeridade.

Por trás daquele apelido e o jeito malcriado e autên-tico, existe a Olga: natural de Blumenau, com três ir-mãs, adotada quando criança por causa da falta decondições financeiras da mãe verdadeira. Aos 10 anos,foi violentada sexualmente e, um ano mais tarde, leva-da a um colégio interno. Nunca aprendera a ler e nem aescrever. Também não quis se casar e, muito menos, terfilhos. Veio para Itajaí aos 20 anos, ela não lembra bem.E ali, na beira do cais, ganhou o nome pelo qual seriaconhecida para sempre.

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Mas ela não foi a primeira Maria do Cais de Itajaí.Estivadores e pescadores, que trabalhavam no porto nosanos 50 e 60, contam a história de três Marias. A outraMaria que ganhou fama no porto, lá nos anos de 1920,era uma mulher bonita, pele clara, com o corpo cheiode curvas. Chamava a atenção de qualquer homem,marinheiro ou pescador. Permaneceu durante anos nasruas e fazia das noites o melhor horário para o seu tra-balho. Um dia, ela desapareceu: uns dizem que aban-donou a vida no cais, outros falam que se apaixonou porum marinheiro e embarcou com ele em um navio. Umaoutra Maria, que nem lembram como era, foi morar emoutra cidade ou já morreu, ninguém sabe ao certo.

Dizem ainda que a Maria do Cais é uma entidadeespiritual da Umbanda. Para alguns, ela se apresentacomo Pomba-Gira. Para outros seguidores da religião,é uma cigana andarilha. Sua lenda começa em temposremotos, lá na civilização egípcia, quando uma meninavirgem, consagrada ao Templo de Ísis, foi perseguidapor sua beleza, juventude e alegria que irradiava emtodos os lugares pelos quais passava. Na história, elafugiu por uma passagem que levava ao mar, atraves-sando a porta dos fundos do Templo. No oceano de milperigos, foi recolhida por homens desconhecidos. Apartir daí, destinou sua vida à dança, como forma desobrevivência, mas também à posterior degradação.

Para os umbandistas, as consultas com a Maria doCais sempre se referem à regeneração: clarear a mentedas pessoas, alertar as mulheres por homens que nãolhe convêm, abrir caminhos. Aparece sempre alegre,dançante, risonha. Quando algum médium a incorpo-ra, usa seus lábios para alertar que toda mulher precisaestar arrumada, bonita, cheia de brincos, pulseiras,

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anéis. Não precisam ser jóias de ouro, mas deve estarlinda e pronta para dar bom-dia à vida.

A entidade espiritual da Maria está ligada à Linhados Marinheiros, junto aos chamados “malandros”. Deacordo com a Umbanda, estes últimos são grandes ami-gos de quem lhes é leal. Não gostam de levar vantagemsobre as pessoas humildes. Exceto daqueles que seacham espertos — nesse caso, são capazes de tirar-lhes tudo. Estão sempre dispostos a ajudar, mas nuncaos engane: sua vida pode tornar-se um caos, dizem osumbandistas. São associados ao Rei da Noite: à vibra-ção espiritual de cabarés, cassinos, música, bebidas,carteado e belas mulheres. Entre as entidades desta Li-nha, estão muitos Zés e Marias: o Zé Malandro, o Zé doCoco, o Zé da Luz, o Zé Moreno, o Malandrinho, o Ca-misa Listrada, o Sete Navalhadas, a Maria da Luz, aMaria Navalha e a Maria do Cais. Esta que está ligadaà imagem do pescador, da vida, da Iemanjá, do porto.Sempre aparece em cidades pesqueiras como Recife,Rio de Janeiro, Santos e Itajaí. Se as nossas Mariastambém incorporavam entidades espirituais, não sepode afirmar.

O que se sabe é que Olga da Silva também passou aser chamada de Maria do Cais, por sempre estar ali emvolta e desconhecer um lar. Quando não vigiava algu-ma embarcação, gastava seu tempo lavando roupas oucosturando as lonas rasgadas dos barcos. Também cui-dava das crianças daquelas calçadas empoeiradas ou dealguma amiga que precisasse de ajuda. Até no hospital,se não a atendessem com prontidão, levantava a voz maisdo que o seu natural e xingava quem fosse preciso.

Lembra o dia em que a amiga Juraci ficou doente,sem ninguém para ajudá-la. A respiração começou a

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acelerar, o suor escorria-lhe pela testa. Olga estava con-sertando as lonas, quando observou a palidez da ami-ga das ruas.

— Mulher, que há contigo?— Sei não, Maria, tô passando bem, não!Olga olha para os lados, ninguém para socorrê-las.

Com a força de seu corpo magro e frágil, levanta Jura-ci, segura-lhe pela cintura, apoiando o braço da amigaem cima de seu ombro e, em passos lentos, mas desespe-rados, atravessam todo o centro de Itajaí até o hospital.

Meia hora de caminhada, para serem barradas pe-los enfermeiros.

— A senhora vai ter que esperar! Tem mais gente nafila... — fala aquele homem vestido de branco, a em-purrá-las para a sala de espera.

— Tais maluco? A Juraci tá passando mal, tá vendo,não?

— Vai ter que esperar, senhora...E lá ficaram as duas, abandonadas, mais uma vez, na

espera da ajuda médica que não vinha. Juraci mostrava-se cada vez mais pálida, a testa quente, suor frio, o olharvidrado, perdendo o brilho. O vai e vem de gente, o baru-lho de ambulância e aquela atendente exibindo sua cal-ma — sentada confortavelmente na cadeira de ruídos irri-tantes — tornavam o ambiente ainda mais hostil. Apoian-do a cabeça de Juraci em seu ombro e segurando-lhe asmãos, cada vez mais gélidas, os gritos de Olga começama assustar os médicos fechados em suas salas.

— Pois a mulher tá aqui morrendo, cês não vão fa-zer nada não? Seus malditos! Que uma praga caia nes-se lugar! Nem aqui somos gente, é?

Em meio às lágrimas de raiva, começa a perce-ber o amolecimento no corpo da colega. Seus olhos

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lentamente se fecham. A mão perde a força, os dedosse abrem. O suor frio do rosto começa a secar. Aindainsiste em dar-lhe palmadas leves no peito e na face.Vamos, Juraci, fica viva, vamos, mulher, tens famíliapra cuidar! Nada. Permanece imóvel.

Olga arruma aquele corpo nas cadeiras, colocandoas mãos negras da colega em cima do tórax, na mesmaposição que os mortos ficam nos funerais. Olha paraos lados: todos a observam, sem soltar uma palavrasequer. Ela enxuga as lágrimas e, ao enxergar um da-queles homens de branco se aproximando, seu rostoganha marcas de fúria e desgosto.

— Olha aqui! O que tua mulher tem que é melhorque uma preta? — grita ao médico, irritada com o pre-conceito de raça e classe social, segurando-lhe pelo bra-ço e fixando seu olhar raivoso no semblante cínico da-quele homem que deveria salvar vidas.

Nesta época em que a amiga Juraci deixou cinconetos aos cuidados de Maria, ela e mais noventa pesso-as moravam no velho prédio da prefeitura — localiza-do no centro, próximo ao rio Itajaí-Açu, em uma dasregiões mais antigas da cidade —, que foi demolido em2003, junto com outros casarões da cidade. Crianças,mulheres, jovens e velhos começaram a abrigar-se nachamada “Casa da Maria”, por ser uma das primeiraspessoas a ocupar o local, em 1960. O prédio estavadestinado à construção da Alfândega, com investimen-to federal. Mas as obras haviam parado por falta derecursos.

Naquele casarão inacabado, sem pintura nem jane-las, com goteiras que caíam do telhado mal feito, aspessoas ganhavam calorosas boas-vindas de Maria.Podia vir quem quisesse, que espaço ali haveriam de

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encontrar. Pelo menos, a chuva, o frio e o medo nãoseriam mais inimigos dos companheiros das ruas e dascalçadas.

Maria era como uma líder para aquela gente: nadade briga ou confusão, senão os hôme vão descobrir!,sempre alertava. Toda a vez que policiais se aproxima-vam do prédio para averiguar o que acontecia ali, osmoradores apagavam as luzes da Alfândega, com medode serem ameaçados. Mesmo que homens fardados ain-da quisessem tirar satisfação, Olga dava um jeito:

— Vai uma cachacinha aí? Um camarãozinho...E assim, os policiais e os moradores do prédio aban-

donado compartilhavam o mesmo espaço. Ali dentro,faziam festas, dançavam, preparavam pratos com pei-xes. Se não houvesse comida, fritavam até pele de ratopara sustentar a fome. Maria nem conseguia pensarnaquilo como fonte de alimento. A cena era tão descon-certante, que ela preferia ficar sem comer a experimen-tar aquele bicho de esgoto. Quantas e quantas pessoasmorreram ali dentro, sob os seus cuidados, sem que elaconseguisse evitar a infecção ocasionada pelo animal.

No prédio abandonado, assim como pessoas mor-reram, crianças nasceram, casais se separaram, outrosse conheceram e muitas mulheres recebiam seus mari-nheiros nos quartos para ganhar algum trocado. Massem desorganização: as famílias ficavam em um lado,os solteiros dispunham de outro canto.

Maria não morava ali, mas em uma casinha demadeira, construída na parte de trás do prédio, ondecontinuava a costurar lonas de barco para ganharalgum dinheiro. Quem visitasse sua casa já via a or-ganização daquela mulher: uns até se espantavamcom a higiene do local, o lençol cuidadosamente

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estendido sobre a cama e as poucas roupas limpas edobradas.

Até hoje, Olga gosta de tudo bem organizado: podeaté não viver em boas condições financeiras, mas man-tém a casa sempre arrumada, com algumas flores emcima da mesa e um lanche para oferecer a quem vierlhe visitar.

A pele lisa deu lugar a marcas profundas, já revelan-do os seus 75 anos. Os cabelos negros continuam lon-gos, mas agora se misturaram a um grisalho sem vida.O olhar revela a tristeza e o rancor do passado. As per-nas? Estas não a ajudam muito, por causa do reuma-tismo. Mesmo nessas condições, não reclama. Até por-que, como ela diz: “Deus sempre esteve do meu lado”.Convertida à religião evangélica, orgulha-se em rezarao acordar, na hora das refeições e principalmente ànoite, quando agradece mais um dia. Mas ainda guar-da algumas características que a deixaram conhecidana cidade, como os palavrões perdidos entre as frases,o falar alto e a sinceridade em dizer o que pensa.

Não se importa com o que os outros andam falandopor aí. Ela é Olga da Silva Leutério, muito mais que aMaria do Cais. Nem gosta de lembrar aquela época: fazesforço para esquecer o que aconteceu, embaralha lem-branças, nega que participara de qualquer forma deprostituição. Afirma que estava no cais para cuidar dosbarcos, vender peixe, costurar lona, nada mais.

Hoje, vive na periferia de Itajaí, em uma casa pe-quena e simples, mas com a grama do quintal sempreaparada e as palmeiras enfeitando o jardim. Já moroutambém no Nossa Senhora das Graças, um dos bair-ros mais pobres da cidade, localizado no morro quebeira a universidade e revela a cidade de contrastes.

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Ali, foi sua primeira casa própria, após tantos anosdormindo embaixo das marquises, passando por hu-milhações, arrumando brigas, aprendendo com a vidanas ruas.

Seu último ano no prédio abandonado, antes de con-seguir a casa, foi em 1971. O presidente Emílio Gar-rastazu Médici, após muita intervenção das autorida-des da cidade, fez a doação do edifício para a constru-ção da prefeitura. Seria uma maneira de “limpar Ita-jaí”, como diziam. Quem abrisse o Jornal do Povo, na-quela época, leria a seguinte informação:

Dentro de pouco tempo estará tudo desocupado e as obrasde conclusão do prédio serão iniciadas. Um saneamentopara a cidade. Aquilo estava envergonhado a todos nós.

Pessoas haviam se tornado sinônimo de imundíciepara aquelas autoridades, vestidas em seu terno feitopor alfaiates; ou para as mulheres, embelezadas compérolas e gargantilhas douradas. Que tipo de sujeirasignificavam aquelas crianças brincado com bolas defutebol feitas de meias, mulheres lavando alguma rou-pa, homens a consertar sapatos ou relógios quebradosdescartados por outros? Suas peles até poderiam estarencardidas pelo pó que se desprendia das madeirasempilhadas no cais; os cabelos certamente eram malcheirosos pela falta de oportunidade em garantir ba-nhos diários; sob as unhas havia a sujeira das ruas.Mas eram pessoas e não um lixo que poderia ser retira-do dali e jogado em qualquer lugar, longe do centro dacidade.

No entanto, foram tratadas como tal. Crianças, mu-lheres, jovens e velhos tiveram que reunir os objetospessoais, os jornais que serviam como colchões, as

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poucas peças de roupas que lhes garantiam abrigo.Maria deixara as lonas dos barcos para trás, assim comoas lembranças dos 11 anos vividos ali. Se houve brigacom os policiais na hora da saída? Ela mesma não lem-bra. Só queria que toda aquela gente fosse levada paraum lugar decente, uma casinha para morar.

Olga ganhou sua casa, mas não sabe onde foramparar os outros 90 membros da família que conquista-ra nas ruas. Hoje, nem gosta de passar pelo porto, mui-to menos comentar seu passado para os muitos curio-sos que vêm procurá-la.

— Por mim, quero que queime tudo! Aquilo foi coi-sa do diabo! — diz, revelando, com mágoas, a raivadaqueles tempos e das lembranças do cais.

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9. À ESPERA

“Nenhuma rede é maior do que o marNem quando ultrapassa o tamanho da Terra

Nem quando ela acerta, nem quando ela erraNem quando ela envolve todo o planeta.”

(A Rede – Lenine)

Cheiro de café. Seis horas da manhã. Ruídos devozes, acordadas. Barulho de motor. Onde se escon-deu o som do mar? Não há, disse Zé Maria. E o soprodo vento? Fugiu. Subo para o toldo. “Lá no fundo, ain-da vê terra. Amanhã, já não existirá mais”. Apenas oazul claro do céu, e o royal do mar. Para que lado ficouItajaí?

No convés, lá trabalham, usando luvas, botas deborracha. Zé Maria junta-se às máquinas, puxa a rede.De 15 quilômetros de comprimento. Deixada a quase500 metros de profundidade. Trabalho de um dia intei-ro. Força nos braços, para cumprir a tarefa; nas pernas,para equilibrar-se. Ondas nervosas. Gê desata os nósdos fios rompidos. Mãos que exibem uma prática des-comunal. Mistura-se àquele emaranhado de malha.Aprisiona-se à profissão.

A máquina suga a rede vazia para cima do convés.São mil redes em cada viagem, 50 metros cada uma.Eca e Tetu puxam-na, músculos acompanham o movi-mento. No antebraço direito, Tetu revela a tatuagem quefizera ainda quando pequeno. O nome de sua mãe, es-crita com lâmina quente. Letras inocentes de criança.

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De alguém que mal saiu da juventude. Vinte e poucosanos, chapéu de palha, cigarro na boca. Valdeci, seuverdadeiro nome. Puxa a rede, rasgada, vazia. Eca malme olha. Nem bom dia. Baixa os olhos, envergonha-se.De quê? Cabelos compridos, pouco acima do ombro,mechas claras e ressecadas. Marcas de expressão pro-fundas ao redor da boca, dos olhos. Envelhecem suaidade, traços do sol. Por que ele se chama Eca? Seidireito, não, tenta explicar Zé Maria. Dizem que ele en-xerga uma agulha a mil metros de distância, esse JoãoCarlos!

Vai, Eca, fala com a menina! Ri, ri, ri. Esse gosta defalar, não! Mas é assim ó... Por festa e mulher! É comele mesmo! Ô, Xamixunga, vamos rapaz, rá-rá-rá! Ba-rulho de motor, de máquina, das ondas? Não, agora é avez das vozes do Zé. Responsável por muitos apelidos.Pelas brincadeiras. Risadas alegres, espontâneas.Agüentem, sou assim mesmo! Este Zé, falador. Gostodo que faço, viu moça? É daqui que tiro meu sustento.Fico parado, não. Quando estou em terra, coitada damulher! Viro pedreiro, carpinteiro, pintor. Mas o que eugosto mesmo é de ver o gado. Lá na fazenda de umamigo. Aqueles bois todos correndo de um canto a ou-tro. Ô, beleza! Lembra a infância: na roça, nas pasta-gens. Mas lavoura não dava dinheiro. Pestes, pragas,preços baixos dos produtos. Fui para a pesca. Eu e Pau-linho. Sou a cara dele, sem a barba e o cabelo compri-do, mas com o meu bigode, pouco grisalho. Tenho aminha carteira de mestre. Sem saber escrever direito,veja só. Como fez a prova? Um amigo lia as questões.Mas, pode? Pode?, sei lá se pode! Mas estou aí. Aqui nomar tem regra, não. O negócio é experiência. E alegria!Comigo tripulante cai na gargalhada! Meu irmão? Esse

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não. Ele é quieto, calado. Sua cabeça é como aquelescomputadores, sabe? Toda hora em alerta. Preocupa-ção com a pescaria, com a produção que vai levar paraa terra, a cobrança do patrão, o mau tempo. Com nós.

São dez vidas que tenho aí. Dez famílias. Se não hápeixe, como sustentar? Quase 20 anos com essa res-ponsabilidade. Aprendi com os outros mestres, curiosomesmo. Estudei, tirei carteira. Como eu sei onde tempeixe? Intuição. A gente joga a rede e testa. A localiza-ção exata, anoto aqui. Um caderno repleto de linhas enúmeros — só ele entende. Em outra viagem, cá esta-mos nós, a procurar a bóia da malha. A puxar a rede ever no que vai dar. Dormir? Umas quatro, cinco horas.Problema é quando vem gente com droga. E como tem...Não quero tripulante assim, não. Tenho dez vidas aqui,menina! Olha lá, chegou um peixe!

Finalmente, após quase duas horas de puxada. Oúnico peixe que veio. Veja só, época de desova. Bocacorta a barriga, revela os ovos. Defeso para esse aqui,tem não! Aquele sorriso sereno, olhar preocupado. É anatureza pedindo socorro! Muito barco, pouco peixe.Lucro baixo. Cada pedacinho de mar tem dono. Olha oazul aí, imenso. Está privatizado. Tudo! O que tem nomar deveria ser de cada cidadão. Não dou 30 anos paraa pesca acabar. Tem que respeitar as leis ambientais.Virou anarquia. Minha mulher, grávida, que linda!, éagrônoma. Também luta pelo meio ambiente, lá emImbituba. Tem que preservar. Nem tudo é para sempre.

E os que acreditam na pesca? Está lá, o Bruno. Tí-mido, quieto. Abandonou o estudo aos 18. Gosto disso,não. Meu negócio é pescar. Se o pai estivesse vivo, nun-ca iria deixá-lo sair desse jeito. Mãe, vou embarcar como tio Paulo! Não, meu filho, vai estudar. Mãe, eu quero é

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pescar! Lá se foi. Saudades daquela mulher, sua maiorcompanheira. Primeira viagem. Encosta-se na borda,olha para o mar. Movimento que lhe perturba os pensa-mentos. Garganta sufocada. Cheiro de café, de óleo,do peixe. Puxa a rede, pára, retoma os sentidos. Pálido,boquiaberto. Aquele vai-e-vem, ondas constantes. In-siste, braços ainda magros. Os olhos azuis se embara-lham. Mal sente o corpo. Queria estar deitado, deixar oenjôo ir embora, tirar as botas do pé, o macacão a pren-dê-lo. Mas, vai passar, tem que passar.

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10. LUIZ CARLOS

“Tenho vontade de ir pra lá. Sempre dáaquela vontade de voltar.”

(Luiz Carlos da Cruz)

A caneta passeia nervosa entre os dedos calejadosda última viagem. Coça a testa, fita aquele pedaço depapel que o desafia, olha para o relógio. O som dosponteiros atravessando as horas parece ensurdecedor:preferia o barulho do motor do barco à quietude des-concertante de sua casa. Joga a caneta em cima damesa, interrompendo o ruído contínuo das horas. Suasmãos arrastam-se pela face e gradativamente descemao pescoço até alcançarem a nuca; a cabeça é pressio-nada para baixo e os olhos encontram, mais uma vez,aquele papel ornamentado por poucas palavras. Osminutos parecem atropelar o tempo, enquanto as re-cordações tentam resgatar alguma experiência profissi-onal em terra: como acrescentar outros trabalhos, setoda a sua vida fora dedicada à pesca?

Nem a escola havia freqüentado direito: quando es-tava com 16 anos, misturava-se àquela meninada dasegunda série, com pouco mais de dez. Nunca conse-guia acompanhar as matérias: não por má vontade, maspelas constantes crises de epilepsia — seqüelas da me-ningite que adquiriu aos 4 anos de idade. Os ataquesepiléticos deixavam os músculos contraídos, a respira-ção ofegante e o seu corpo rendia-se ao chão. Quantase quantas vezes sua mãe teve que levá-lo para casa e

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acalmar o menino, que chegava a assustar os colegas edeixava professores receosos em mantê-lo em sala.

Dona Zilda dedicou-se ao garoto com cuidados es-peciais, assim como criara os outros cinco filhos, en-quanto o marido “se sacrificava nas ondas do mar paratrazer o sustento para casa”, como ela mesma dizia.No entanto, Luiz precisava de remédios e consultasmédicas freqüentes: tudo custava caro, mas aquelamulher sempre dava um jeito no orçamento da família.E assim foi, até os 15 anos, quando a cura finalmenteveio para derrotar a doença.

Luiz tenta novamente entrar na escola, sem aquelesataques epiléticos que tanto o atrapalharam. Mas ascarteiras, os livros, o quadro-negro e as crianças sufo-cam. Sente-se incomodado: mexe-se na cadeira, des-concentra-se com o ruído do giz que não pára de es-crever e sente repúdio aos mandamentos da lousa. Aque-las regras de divisão silábica, mapas cheios de curvase palavras, números e símbolos não ganham sentidoalgum para ele. Por um instante, perde seu olhar emdireção à única janela entreaberta, de onde é possívelenxergar o pátio da escola que pouco aproveitara quan-do criança. Não seria a hora de reviver a infância: pre-cisava de um emprego, bem mais do que se trancafiarnaquela sala e afogar-se nos cadernos.

Dias depois, dona Zilda está lá, apoiada no portão decasa, a ver Luiz Carlos acompanhar o pai Zé e o irmãomais velho nos convés das embarcações de parelha.

***Luiz gostava mesmo era da cozinha do barco. Não se

incomodava com algumas exigências dos companheirosde trabalho: muitos queriam mordomia, receitas

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diferentes e frescuras. Mas ele gostava de inventar bolos,tortas, almoços e jantares que lembravam a comida desua mãe. Entre um tempero e outro, o cheiro de pirãoimpregnado na cozinha e uma tampa de panela que caíaentre as suas pernas com o movimento do barco, conse-guia dedicar-se ao fogão e também à pesca. De meia emmeia hora, ia dar uma olhada no almoço, mas já voltavapara a pescaria.

— Ó o peixão, ó o peixão, ó o peixão! — grita Luiz,emocionado ao ver a rede puxar uma garoupa de qua-se 20 quilos.

Os outros tripulantes correm à borda do barco paraacompanhar a cena, já rotineira, mas que agora traziaalguma surpresa. Como era bonito ver aquele peixe jo-gado no convés, a se debater incansavelmente em umainútil tentativa de fuga. Os olhares hipnotizados dos tri-pulantes transformavam aquela imagem em um espe-táculo ainda maior — talvez um exagero para aquelesque não entendessem o quanto a pescaria significavapara esses homens.

— Ô, desse aí, todo mundo vai duvidá lá em terra!Êta, peixão forte! — dizia o irmão Cláudio, que tentavadominar a garoupa, enquanto os outros tripulantes apro-ximavam-se daquele que seria o melhor presente da via-gem.

— Ah, mas não vou passá por mentiroso nessa, não!— responde Luiz, que já se dirigia ao quarto à procurada velha câmera fotográfica.

E lá iam eles, fazendo pose, alegres com a pescaria,entre os vários clicks e o ruído da câmera a puxar ofilme. Havia as duplas que seguravam a garoupa pelacauda e pela cabeça, criando a composição perfeitapara as tradicionais fotografias de pescador. Outros,

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mais egoístas, desafiavam o comprimento do peixe si-milar à própria altura para se exibirem aos flashes con-trolados pela empolgação.

Mal sabia Luiz que, em terra, aquela seria mais umadas velhas histórias que nunca poderiam ser provadas:em todas as poses, nos sorrisos daqueles exímios pes-cadores e na garoupa de 20 quilos apareceria uma mis-teriosa mancha negra, resultado do filme que fora vela-do, sabe-se lá como.

***Com o currículo incompleto em mãos, batia na por-

ta de cada empresa, à procura de algum trabalho quelhe garantisse um bom salário: não precisava ser muito,só o suficiente para viver. Mas a resposta à sua insistên-cia vinha com um incômodo eco.

— Ah, você é embarcado? Esquece! Pescador co-meça a trabalhar aqui e, depois de dois meses, aban-dona tudo e volta pro barco...

Segunda série incompleta e trabalhador da pescaindustrial: que empresa haveria de valorizar um currí-culo daqueles? Ele mesmo nem questionava os empre-gadores: também não tinha certeza se iria suportar arotina em terra.

Os classificados até ofereciam vagas para trabalho,mas a maioria reivindicava ensino fundamental com-pleto. E lá ia ele atrás de uma chance como pedreiro,marceneiro, carpinteiro e onde mais pudesse trabalhar,para aumentar a renda. Mas eram apenas trabalhos tem-porários: nada que fosse tão gratificante quanto ver arede cheia de peixes.

Na última empresa que deixara currículo, disputava40 vagas com mais de 1.800 pessoas para ajudante de

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carga. Impossível ser escolhido. — Ou não... O chefe escolhe mais por foto e não

por experiência — disse a secretária, enquanto guar-dava a fotografia três por quatro daquele rapaz more-no, cabelo curto, olhos delgados e levemente esverde-ados, os lábios finos e retos, de quem prefere poucofalar. Uma pequena esperança a ele que procuravaaquela vaga: não era necessário pensar muito, ape-nas ter a força para agüentar um dia inteiro de tra-balho pesado.

Em casa, era raro ouvir o imprevisível barulho dotelefone. Ficava mesmo à mercê do ruído do relógio eseu lento movimento de ponteiros. Mas, justamente nodia em que poderia sair a resposta da tal empresa, oabandonado instrumento em cima do balcão da saladecide exibir o som estridente. Luiz levanta-se do sofá,assustado, após a interrupção daquele cochilo. Esperao telefone tocar mais uma vez, para garantir que nãoera sua imaginação ou simples sonho. Graças a Deus,ele insiste em uma nova tentativa. As mãos trêmulaspela ansiedade tentam mantê-lo firme à orelha, enquan-to, do outro lado da linha, a inesperada proposta vinhade um trabalho onde a experiência e a responsabilida-de eram as principais exigências.

— Pronto para mais uma pescaria? — disse Graci-ano, mestre de barco com o qual trabalhara durantedois anos.

— Quando?— Hoje à tarde.Hoje à tarde, hoje à tarde... A precisão na resposta

o incomodava. Teria apenas algumas horas paraarrumar suas coisas, despedir-se da família e, nova-mente, abrir sua carteira de trabalho e a licença como

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tripulante. Não iriam chamá-lo para ajudante de car-ga, não teria essa sorte. Precisava retornar àquele em-prego que lhe garantia maior segurança e valorizaçãopessoal e profissional.

Dois dias depois daquela partida, dona Zilda atendeao telefone: Luiz Carlos estava entre as vinte últimasvagas oferecidas pela empresa.

***Vento calmo, pescaria boa. Enquanto puxa a rede

junto a Márcio, pensa em como estaria sua esposaMárcia e o filho Luiz Henrique, que nasceria em pou-cos dias. Como queria estar perto dela, quando omenino soltasse o primeiro choro e abrisse lentamen-te aqueles olhos miúdos que insistiam em desafiar aclaridade.

— Recebeste a mensagem? — a pergunta surge re-pentinamente, em meio ao som constante do mar e aospensamentos de Luiz.

Olha para o companheiro, ainda tentando entendero que havia questionado.

— Não recebeste a mensagem? — insiste Márcio —O teu filho nasceu!

Os movimentos de Luiz Carlos tornam-se dispersose, por alguns segundos, esquece a rede que estava pu-xando há horas.

— Ele nasceu, ficou dez dias no hospital em estadograve, mas agora tá melhor. — completa, com palavrassecas e frases diretas.

Luiz não conseguia mais se concentrar no trabalho.Aquelas notícias, fragmentos do que havia acontecidoem terra, pareciam pesar sobre seu corpo. Márcio tenta

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desenrolar os nós surgidos na rede, no momento que ocompanheiro parou de puxá-la.

— Não me falaram nada... — é só o que conseguedizer, enquanto seus pensamentos idealizados sobre onascimento do bebê se misturavam às imagens do ga-roto internado, de sua mulher chorando, da família àespera.

— Pois é... O mestre de barco soube da notícia, masnão quiseram te avisar. Só que já tá tudo bem, não tepreocupes...

A raiva momentânea se intensifica conforme puxa-va a rede. Como o mestre pôde esconder essa notícia?É obrigação avisar quando existe algum familiar preci-sando de cuidados urgentes em terra. Ah, com certeza,a produção falou mais alto: imagina quanto gastariamde óleo para levá-lo até o continente? E quantos dias depescaria perderiam?

Mas, naquele barco, estava uma equipe, não ape-nas trabalhadores individualizados: todos ali têm fa-mília e sabem o quanto é desgastante a rotina denão tê-la por perto. Agora, conseguia compreendermuito bem as saudades dos pescadores, quando pre-cisavam afastar os filhos de seu colo nas horas dasdespedidas. E, mais tarde, entenderia o que é en-frentar a desconfiança daquelas crianças, ao teme-rem o próprio pai.

Quando chegava a terra, Luiz Henrique, já com seusdois anos, não vinha lhe cobrir de abraços, como deve-ria fazer todo o filho. Preferia esconder-se em algum can-to e observar, com desconfiança, aquele homem estranhoque, mais uma vez, voltava para casa. Sabia apenas quedeveria chamá-lo de pai. E seu pai ia, ficava um mês fora.

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E seu pai retornava, para permanecer dois dias em terra.E seu pai lhe dava um abraço e um “até mais!”.

***— Rádio Costeira de Itajaí, câmbio! Vento nordeste,

força 5, câmbio!Do outro lado do aparelho, Luiz ouve a voz do mes-

tre do Baía Dourada I — embarcação para qual traba-lhara durante dois anos. Engraçado estar ali, finalmen-te empregado em terra, mas servindo àqueles homensque eram companheiros de trabalho. Trabalhadores comquem dividira as redes de pesca, algumas conversas noconvés e os triliches apertados dos barcos. Havia saídodo mar, sem abandoná-lo completamente.

Passa suas madrugadas na rádio desde junho de2006, após cinco meses vivendo apenas com o seguro-desemprego. À noite, raríssimas pessoas o chamam:todos dormem para, às cinco horas da manhã, come-çarem mais uma rotina no barco. Às vezes, recebe al-guma notícia de embarcação atracando ou saindo doporto. Senão, o mesmo silêncio que invadia as noitesem alto-mar o acompanha agora em seu trabalho naestação.

Ao chegar a casa, sua mulher está saindo para ou-tro dia movimentado na lanchonete mais antiga da uni-versidade da cidade: x-salada, pães-de-queijo, umrefrigerante, por favor! E ela, a repetir: número dez,número vinte e sete, pedido pronto!, do outro lado dobalcão.

Luiz fica em casa, lava uma roupa, faz o almoço,cuida dos dois filhos e ainda consegue encontrar tempopara dedicar-se novamente à escola e a um curso paratrabalhar como rebocador. Dias bem diferentes do tra-

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balho repetitivo no barco. No entanto, o casal perma-nece separado: não pela distância física, mas peloshorários dispersos.

— Antes aqui do que lá longe, sem saber como eletá! — comenta Márcia, ao perceber o desejo do maridoem voltar ao mar.

Mas Luiz Carlos não sabe até quando sua rotina serápresa ao cotidiano da cidade. O cheiro do sal mistura-do ao das panelas de sua cozinha, o puxar da rede,aquele peixão bonito se debatendo no convés. Até omovimento do barco lhe faz falta, a maresia grudandona pele e as marolas que vez ou outra atrapalhavamseu sono.

É muito bom estar lá fora...

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11. DÉJÀ VU

“Ontem plena liberdade,A vontade por poder...

Hoje... cúm’lo de maldade,Nem são livres p’ra morrer. .Prende-os à mesma corrente

— Férrea, lúgubre serpente —Nas roscas da escravidão.

E assim zombando da morte,Dança a lúgubre corte

Ao som do açoute... Irrisão!...”(O Navio Negreiro – Castro Alves)

Cheiro de café. Seis horas da manhã. Ruídos devozes, acordadas. Barulho de motor. Na mesma ordem.Segue a rotina. Puxa rede, suor na testa, desata nós,vem o peixe, mãos calejadas, mata o peixe, calor dosol, balança barco, vem mais rede, enjôo, olha o sapo!,dor nos braços, gela o peixe, cigarro aceso, não pare! Acena cansa. Entedia. Irrita. Meus olhos exaustos acom-panham o trabalho. Mesmas vozes. Iguais movimentos.Barulho constante. Lá vem o peixe! Ontem, 150 quilos.Apenas. E hoje? Há de ser melhor. Fé é o que não falta.Então, puxa a rede, vem o peixe, mata o peixe, nãopare!

Zunido do motor. Som do mar. Ficou lá na costa.Barulho das máquinas. Música de filme. Chiado dosanos 30. Tapo os ouvidos. Fecho os olhos. Que é isso.Onde está o barco? Para onde foi o peixe? Azul, mar ecéu. Viram preto e branco. Engrenagens. Correm

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contra o tempo. E ele vai, aperta parafuso, não pára,aperta parafuso, um ficou lá atrás, aperta parafuso, nãorespira. Produza, homem, produza! É o dinheiro baten-do na porta. Produza, homem, produza! Vê lá fora? Éprivilegiado. Tem emprego. Ganha salário. Mas, e meusdireitos? Deixemos para depois. Trabalhe, homem, tra-balhe! Tempo é dinheiro.

Lá vai ele. Macacão preso ao ombro. Sapatos pre-tos, maiores que os pés. Andar rápido. Movimentos brus-cos. Aquele chacoalhar nervoso de cabeça. Olhar fixo,não pisque! Trabalhe, homem! Corra contra o tempo.Hora marcada. Aperta parafuso, agilidade nos braços,aperta mais um. Vamos, vamos, vamos! No ritmo dasengrenagens. Pela melodia das máquinas. Seja partedelas. Que o sugam. Enlouquecem-no. Sem descan-so. Sua função é produzir. Experiência braçal. Semintelecto. Pensar? Para quê? Apenas, continue, va-mos, aperte os parafusos, trabalhe, produza. Auto-matize. Estresse.

Que vê lá fora? Segunda Revolução Industrial.Máquinas a todo o vapor. Empresas, tecnologia. Tra-balho, Produção, Capitalismo. Obedeça-o, meu operá-rio. E olhe lá! O Grande Irmão. A observá-lo, vigiá-lo.Bigode comprido, cabelo liso para trás, olhar austero.Parece Stalin, não? Pois sim, o Estado Máximo impera.Oprime direitos, controla ações. Tens vontades? Poisas esqueça. Sua tarefa é produzir.

E lá vai o homem, de movimentos apressados. Apri-sionado pelo relógio. Usado pelas máquinas. Sem pa-rar. Esqueça feriados, fins-de-semana. Poucos direitos.Sua companhia? O trabalho. E em sonhos e pesade-los? Permanecem seus barulhos: engrenagem, motor,engrenagem, cobrança. Trabalhe, sem conversas. Quem

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é seu colega aí do lado? Desconheço. Não é único. Éapenas mais um. Igual a mim.

Pisco os olhos. Volto a enxergar o azul que se perdeao horizonte. A sentir o calor ardente do sol. A ouvirbarulho de rede. Um minuto de pensamento. Perdidoem meio às cenas de “Tempos Modernos”. Às engrena-gens de Charles Chaplin. Preso entre as linhas e pági-nas de “1984”. Do Grande Irmão de Geroge Orwell.Retorno dos fotogramas em movimento para a imagemà minha frente. Volto das palavras escritas às poucasconversas ali ditas. Esquecido na cena incansavelmen-te repetitiva. Puxa a rede, olha o sapo!, mata o peixe,dor nos braços.

Para eles, apenas aquele cotidiano. Trabalhar, co-mer, dormir, trabalhar, comer, trabalhar, dormir. Vigia-dos pelo mestre de barco. Mas controlados pelo patrão.A produção que lá fora espera. A família nesta depen-dência. Isso não é vida, não!, dizia o Valdir. Entendosua rispidez. Sinto-me extasiada.

Zé Maria puxa a rede, Tetu separa a malha, Gê de-sata nós, Boca corta mais um peixe e “olha só, a natu-reza pede ajuda”, Marrom pica batatas, equilíbrio naspernas, Bruno tenta mover-se, sal na pele, Zé rindo, Ecacalado, Xamixunga sério. Paulinho, atento, observa to-dos, da janela atrás do quarto, a engatar e desengatar amarcha, a procurar a rede que deixara na última via-gem, a esperar que o peixe venha. Vamos, minha rede!Traga o sustento para estas famílias! A mesma cena,puxa rede, olha o peixe, panela no fogão, tontura domar, desata nós, equilíbrio nas pernas, sal na pele.

Olho para o mar. Ondas a chocar-se. O horizonte esua linha. Um azul que dói os olhos. Divina paisagem.Por quanto tempo? Observo aqueles homens. Que a

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contemplam durante dias. Que cheiram à maresia. Queesqueceram o gosto da terra. Aproveita, menina, queagora tudo é novidade! Diziam eles. Estes já acostuma-dos à beleza daquele infinito. Ao balanço do barco. Àcompanhia do desequilíbrio. Os enjôos de hora e ou-tra. Acostumaram-se às saudades? Ah, isso sim! Não,moça, isso é impossível. Fazer o quê? Tem que traba-lhar. Saudades? Sinto falta é disso aqui, quando estoulá em terra.

Uns apaixonados. Outros, revoltados. E aqueles quese aprisionaram. Limitaram-se àquela rotina. À faltade oportunidades em outro trabalho. À justificativa desó isso saberem fazer. Estão ali: semelhantes no traba-lho. Mas únicos em personalidade. Em vontades e ações.A maioria se conhece. Outros poucos se fazem conhe-cer. Mantenha a boa convivência. A paciência contro-lada. Brigar aqui dentro. Para quê? Não tem para ondeir. Só este mar aí. Vinte e cinco metros de comprimen-to. Para dividir conversas, espaço, intimidade. Solidão.

Fuja da correria da cidade, imprevistos, gente, luz,carros. Obrigações, tarefas, bom-dias, notícias. Aqui,estamos sós. Sem saber o que acontece lá do outro lado.Pesca, mar, céu, pesca. Puxa rede, descansa, come,dorme, puxa rede. Canso meus olhos. A acompanhar otrabalho que ali se repete. Agonia-me. Deixa-me fraca.

Volto para o quarto. Fujo daquela cena. Nove horasda manhã. Apenas.

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12. PINTA PRETA

“A pesca do atum dávinte anos e vai acabar.

Só sai barco, pescaindiscriminada, sem qualidade.E o pior: quando se pesca tudo

que vem do mar é bom.Mas, aqui, se joga fora, porque

(a qualidade do pescado) é ruim.O Ministro da Pesca tinha que ir pra

Portugal pra ver como trabalhar econservar os cardumes.”

(Manoel da Costa Santos)

Como lhe arde aquela ferida exposta no braço direi-to, onde ali permaneceria para sempre, sem que pudes-se se esconder da cicatriz. O corte apresenta um brilhoformado pelo suor e pela carne rasgada. Nem mesmoos pêlos que cobriam os braços se mostram confortá-veis em nascerem próximos à pele agredida. O sol aju-da a cicatrizar o machucado, junto ao sal que, vez ououtra, desprende-se da água. Como arde. Ainda lem-bra quando ouviu aquele som se aproximando vagaro-samente a chicotear o chão de madeira e a borda dobarco. Consegue enxergar, de relance, o vulto de umhomem que caminha em sua direção, junto à sombrada cauda de arraia a balançar desordenadamente. Elepára ao seu lado. Chicoteia o ar, assustando-o aindamais com o ruído que se dispersa ao vento. Consegueapenas retrair seus movimentos e abraçar as próprias

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pernas, encolhidas junto ao abdômen. Sente a primei-ra ardência tomar-lhe o braço. Pisca os olhos. Senteoutra dor mais intensa, no mesmo local. Não tem for-ças para gritar. Mais uma vez, o chicote encontra seucorpo. O rosto todo se contrai, tentando sufocar aindamais os gritos. Esse castigo se estende por poucos se-gundos, suficientes para deixá-lo tomado de uma ago-nia que faz todos os músculos latejarem. Suas pernas ebraços tremem, sem controle sobre os movimentos.

Quando falaram que o tratamento ali seria à basede severas regras chegou a rir dos companheiros. Medo?Não conhecia essa palavra: até então, ninguém haviaconseguido mostrar-lhe seu significado. Ainda mais ele,que tinha dois assassinatos nas costas. O sangue es-corre pelo antebraço, desce à canela e se perde em meioaos pêlos da perna. São apenas algumas gotas que caemda ferida, talvez para provar que ali permaneceriam asmarcas da desobediência. Nem mesmo nos anos decadeia havia sido tão humilhado fisicamente: abando-nara a prisão em terra, mas teria de se acostumar aocárcere em alto-mar. Observa, com mais atenção, aquelecorte, rigorosamente delineado pelo chicote de caudade arraia, que revela as camadas de sua pele.

Já conhecia a história do temível mestre de barco,que andava sempre armado: seja com um facão presoà cintura, um revólver e, principalmente, aquele chicotede arraia, que o tornou conhecido nos mares do Atlân-tico Sul. A baixa estatura não se mostrava como mar-cas de fragilidade: ao contrário, o porte físico exibiamúsculos delineados nos braços — resquícios dos anosna puxada de redes ou nos remos dos barcos à vela —, impondo respeito e temor. Ele iria lançar vários ca-íques na água, à procura de cherne, namorado e bata-

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ta. Quando chegassem aos violentos mares do sul, cadapescador entraria em um daqueles botes para perma-necer ali, durante todo o dia, pescando os peixes maisnobres com frágeis linhas de nylon. Não, ele não podiasuportar o mar, sem segurança alguma, enfrentando asmarolas que vez ou outra tentavam emborcar os caí-ques, enquanto o mestre permanecia na embarcaçãoprincipal, passando lá de vez em quando para entregaralguma comida ou averiguar o trabalho.

— Não vou! — disse, ameaçando-o com uma faca.— Pois, tu vais! — revida o mestre de barco, já chi-

coteando o ar.Não havia escolhas. Se fosse para outra embarca-

ção, poderia encontrar o mesmo tratamento.Como lhe arde aquela ferida exposta no braço direi-

to: a cada puxada de linha, com o próximo peixe queenchia o bote, ele sente a água penetrar em seu machu-cado, cicatrizando-o com uma incômoda dor. Olha,mais uma vez, o corte que suga a pele. Para sempre, acicatriz permaneceria ali, fazendo-o recordar os anoscomo prisioneiro do mar.

***Caminha vagarosamente, e um tanto desajeitado, em

direção ao quarto. Os joelhos, levemente curvados parafora, hoje sofrem dores constantes por causa dos anostrabalhando em pé, quase 20 horas por dia. Vez ou outrafaz um pouco de musculação para exercitar as pernas,atingidas pela artrose. Ou pega a sua bicicleta e se mis-tura aos mais de 50 mil moradores de Itajaí, que tam-bém usam a “zica” para ir ao banco, ao trabalho, àescola, ao mercado. Às vezes, pedala durante uma ma-nhã inteira, atrás de exame médico para a esposa,

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alguma compra na padaria, uma visita rápida aos ami-gos do Sindicato dos Pescadores. Mas quando o meio-dia se aproxima, lá passa ele ao lado da janela de seuapartamento térreo, em direção à garagem, para guar-dar a bicicleta já enferrujada pelos anos de uso. A ca-delinha Tuxa, que veio de Portugal, assim como odono, acompanha a chegada pela sombra projetada nafresta da porta, enquanto Marília, sua esposa há quase50 anos, prepara carne assada de panela — a comidapreferida do marido.

Quando volta do quarto, traz uma caixa de madeiraempoeirada e com teias de aranha ao redor, revelandoque, há muito tempo, não encosta no objeto guardadocom o mesmo mistério de um tesouro de grande valor.Tira um pouco o pó com uma passada rápida da pal-ma da mão sobre a madeira, assopra a sujeira maisgrossa e desengata o frágil gancho que tranca aquelecaixote. Ao abrir a tampa do pequeno baú, um objetoestranho, feito em metal com formato de semicírculo,onde estão fixadas lentes com diâmetros variados, ain-da revela um certo mistério. Aquela geringonça, esqui-sita para quem hoje conhece apenas o GPS e a bússo-la, apresenta quase o mesmo comprimento do rostoarredondado de Pinta Preta. Com um carinho incondi-cional ao instrumento que, durante anos, acompanhou-o no mar, ele tenta ensinar como funciona o chamadosextante. Isso aqui é lá dos tempos de Cabral, diz orgu-lhoso, com ênfase à letra “l” do nome do navegadorconhecido nos livros de História, denunciando o sota-que ainda vivo de Portugal. Você escolhe as lentes quequiser, olha por este orifício e tenta alinhar o sol ao ho-rizonte. Aí, você pára o cronômetro e já pode começaros cálculos e ter a posição exata, com latitude e longitu-

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de; continua, como se o tal sextante fosse assim tãofácil de entender.

Manoel, típico nome português atrás do apelido quelhe garantiu fama, conheceu o aparelho através de ummestre de barco, em 1967. Dois anos depois, com apenas29 anos, ele ganhou a confiança para comandar umaembarcação com mais de 30 tripulantes. Apenas se gui-ando pelos astros e, principalmente, pelo sextante. Aper-tava o cronômetro e abria seu caderno, cheio de cálculosindecifráveis, para fazer as quatro operações matemáti-cas em menos de dois minutos. E olha que só estudei atéa terceira série primária, justifica, orgulhoso de sua habi-lidade com números. Durante 20 anos, o instrumento foiutilizado pelo pescador português, até as novas embarca-ções conhecerem o tal GPS — ou Sistema de PosiçãoGlobal, como dita a sigla americanizada — que, vez ououtra, apresentava algum problema técnico. Mas, PintaPreta nunca deixara o sextante falhar: ele foi sua compa-nhia mais confiável durante uma das viagens que o con-sagraram como exímio mestre de barco, em 1973, quan-do expandiu a pesca no litoral brasileiro.

— O quê?! Cê vai sair daqui do Rio de Janeiro praparar lá no Chuí? — diziam os colegas de trabalho, ta-xando-o de louco e aventureiro demais.

— Se lá tem água salgada, então tem peixe! E essepeixe ninguém conhece... Pois sou eu que vou mostrar!— dizia, com uma segurança que causava um certoespanto à tripulação ansiosa.

Lá foi ele, a bordo do Santa Rosa, rumo ao extremo-sul brasileiro, na fronteira entre Brasil e Uruguai. Levava31 homens que, em solitários caíques, pescariam cherne,batata e namorado, apenas acompanhados por um anzolprofundo. Pinta Preta ficava atento às necessidades dos

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tripulantes, sempre navegando próximo aos pequenosbarcos espalhados nos mares do sul, entregando comi-da ou garantindo a segurança dos pescadores. Ao anoi-tecer, eles retornavam às embarcações, trazendo quilose quilos de peixes: cinco dias de trabalho garantiam 45toneladas de pescado.

Esse tipo de pescaria ficou conhecido como pescado Mar Novo, uma tradição trazida pelos poveiros, por-tugueses de Póvoa de Varzim, vila de pescadores loca-lizada ao norte da cidade do Porto. Hoje ninguém maisquer ouvir falar dessa pesca, já substituída pelo espi-nhel, na qual vários anzóis são presos a uma longa li-nha. Aquilo lá não tinha segurança alguma, comentamuns, ficávamos à mercê da sorte!, dizem outros. Quenada! Aqueles caíques eram também garantia de botessalva-vidas!, afirma seu Manoel. Pois hoje tem patrãoque nem compra balsa para colocar no barco. E, quan-do há, ninguém consegue entender como funciona, por-que o manual vem tudo em chinês! Pinta Preta se orgu-lha em ter comandado as embarcações que apresenta-vam os caíques. Aquilo era pouco, perto do que já ha-via sofrido em barcos pesqueiros, lá na vila de Póvoa.

Ah, como foi bom passar a infância morando a pou-cos metros do mar, onde podia nadar todos os dias. Acidade sempre fora vista como a “Princesa de Portu-gal”, por suas belas praias que atraíam turistas de todaa Europa e também do Brasil. No país de pessoas compele clara, aqueles que chegavam com um bronzeadoou uma pigmentação mais escura chamavam a aten-ção dos jovens poveiros.

— Olha lá, pai, ele é bem preto! — apontava o garo-to à porta do hotel, observando a chegada daqueleestrangeiro tão diferente.

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— Que estranho, né? — comentava outro, a espan-tar-se com a pele morena que nunca havia visto.

As exclamações das crianças, ainda surpreendidaspelas diferenças étnicas, não soavam de forma precon-ceituosa: para elas, tudo era novidade.

Póvoa de Varzim tornou-se realmente conhecida apartir do século 19, quando se transformou na maiorpraça de pescado do norte do país. Os seus pescadoreseram vistos, em toda a costa, como os mais laboriosos,experientes e sabedores dos mares, criando a figura len-dária do “poveiro”.

O pequeno Manoel precisava manter a tradição dapesca na vila. Com 8 anos, lá estava ele, incansável, aremar nas pequenas embarcações que saíam em umdia e voltavam no outro. Muita força nos braços e nascostas para puxar os remos; quando, nas ventanias maisfortes das madrugadas, tinham que manobrar as altasondas da costa. Cuidado também no controle da dire-ção da vela, para não se perder em meio aos ventos. Ehaja vontade para começar a pescaria lá longe, a 50quilômetros do continente, depois de uma noite inteiraremando. Fazia horas que não sentia o gosto da comi-da na boca: o dinheiro era pouco para tanta fartura.Contentava-se em comer um pedaço de pão com sardi-nha frita, acompanhado de um copo de vinho, aindaquando o barco estava saindo da costa. Mas nada erapior que aquelas embarcações, com mais de trinta me-tros, movidas a carvão.

Os tripulantes ficavam no convés, à espera do guin-daste que lançaria as toneladas de pedras negras. Ne-nhum deles vestia roupas adequadas ou máscaras, paraevitar que a fuligem penetrasse em sua pele e cobrissetodo o copo, deixando apenas os olhos à mostra. O pó

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levantava-se ainda mais, quando todos os pescadoresempurravam o carvão para o agulheiro — uma tampade cobre que dividia o convés do tanque. Lá embaixo,enfrentando o calor aquecido pelas fornalhas sempreacesas, com faíscas que queimavam a pele, os caldei-reiros trabalhavam dia e noite para manter o barco emconstante navegação. As cinzas e a fuligem só sairiamde seus corpos quando chegassem a terra, já que ba-nho apenas era permitido umas duas vezes por mês eainda com a água salgada do mar. Seu Manoel só co-nheceu o barco a motor em 1959, quando ganhou famapelo apelido de Pinta Preta.

A mancha escura que cobre parte da bochecha es-querda, logo abaixo dos olhos e próximo ao nariz, pou-co incomodava e até o salvou de ser chamado ao exér-cito. Foi lá em 1961, quando Portugal entrou em com-bate contra as forças organizadas pelos movimentos delibertação das antigas províncias ultramarinas de An-gola, Guiné e Moçambique. Estava ele, encostado emuma parede, junto com mais uma porção de pessoas:todas sérias e ansiosas, à espera do comandante paraa incômoda inspeção. A cada passo que saía dos pésdaquele homem com expressão severa, Manoel pisca-va os olhos, movido pelo som de suas botas.

— Esse aqui não serve! — diz o comandante, emmeio a uma gargalhada que tomou intensidade maiornaquele galpão com poucos móveis. Com essa manchaescura aí na cara, ele vai ser reconhecido facilmentepelo inimigo.

Pinta Preta tenta conter o suspiro de alívio. Nãoprecisaria mais fazer como os outros amigos, quefugiam em um navio ou jogavam-se embaixo detrens, preferindo o suicídio a juntarem-se às Forças

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Armadas Portuguesas. Eles sabiam que havia poucaschances de Portugal vencer a reivindicação de indepen-dência das colônias, já que estas eram apoiadas inter-nacionalmente a lutar pela autodeterminação.

— Mas foge, rapaz! Ainda serás chamado pra guer-ra! — aconselha o tio, já lhe entregando o endereço deparentes que moravam no Brasil. Não vais querer serum homem morto, agora que já estás com três filhos.

O problema é que a tão-promissora-terra-brasileiratambém se apresentava em “guerra”, naquele mesmoano. Mas por aqui, o conflito fora preparado por civis.Na época, o então governador do Rio Grande do Sul,Leonel Brizola, formou uma rede de rádios gaúchas, achamada “Rede da Legalidade”, a qual incentivava opovo para ir às ruas a fim de apoiar a normalidadeconstitucional contra o golpe militar de Brasília. Mas oclima de guerra civil armou-se mesmo, quando as tro-pas da Brigada Militar ficaram em estado de alerta, paradefender o Palácio. Durante doze dias, a capital brasi-leira tornou-se uma praça-de-guerra: de um lado esta-vam os legalistas, liderados por Brizola e com apoioconsiderável da sociedade civil que clamava pela cons-tituição; de outro, preparavam-se os golpistas da juntade Brasília, mobilizados principalmente por Carlos La-cerda, líder da União Democrática Nacional (UDN) einimigo dos getulistas. Ambos dispostos a promoverguerra armada, se fosse preciso.

Mas, através da emenda constitucional nº 4, apro-vada em 2 de setembro de 1961, substituiu-se o presi-dencialismo pelo parlamentarismo. Foi então que o vice-presidente, João Goulart, apoiado pela esquerda, in-clusive pela União Nacional dos Estudantes (UNE),aceitou assumir o poder executivo com o primeiro-

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ministro indicado pelo Governo. A solução parlamenta-rista conseguiu, por algum tempo, pacificar a agressivida-de dos partidos de direita e de esquerda, já que não humi-lhava os chefes militares envolvidos no movimento de im-pedir a posse, limitando os poderes de Goulart.

No entanto, os protestos em praça pública, as suces-sivas greves de operários e agricultores e os conflitosentre esquerdistas e militares iriam se estender até oGolpe em 31 de março de 1964. Ao contrário do queprometeram os sindicalistas, nenhum protesto duroumais de 24 horas. O Brasil, com mais de oito milhões emeio de quilômetros, baixou os olhos e silenciou.

Agora sim, com aquela falsa calmaria imposta pelosprimeiros dias de Regime Militar, era hora de Pinta Pre-ta desembarcar no país-continente.

Desembarcar em um país onde as regras não eramlevadas tão a sério, quanto lá em sua pequena Póvoade Varzim, soava estranho para Pinta Preta. Afinal, ochamado “jeitinho brasileiro” sempre arrumava umaforma de burlar leis e, pior, tornar-se um orgulho para opovo que aqui mora. Um Brasil que parece pouco seimportar com as riquezas que tem, desprotegido por umafrágil legislação somada à fiscalização deficiente, asquais permitem qualquer tipo de exploração. Pois tudopor aqui ainda se parecia à antiga colônia dos temposde Cabral, coisa que Manoel, recém-chegado das ter-ras antes exploradoras dos recursos naturais brasilei-ros, não conseguia entender.

***Havia voltado do Chuí, exibindo as toneladas de

peixe pescadas nos mares do sul. Mas, no início,ninguém deu muita atenção àquele pescador, que in-

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sistia em comercializar os chernes na Praça XV, no Riode Janeiro. Numa pequena banca, Manoel tentava ven-der o pescado, nunca antes visto, por um preço irrisó-rio. As pessoas olhavam desconfiadas, analisavam opeixe, uma e outra compravam algum quilo. O que nãoconseguia vender deixava ali empilhado, para ser dis-tribuído em troca de algumas poucas moedas. Bem di-ferente de hoje, quando o quilo do cherne vale quase25 reais no Mercado de Peixe de Itajaí.

Após a descoberta de novos pescados na costa bra-sileira, Pinta Preta acreditou que o país poderia enri-quecer com a venda de peixes, existentes em abundân-cia apenas no nosso litoral. Mas a tal “abertura comer-cial” permitiu uma exploração predatória em respostaàs demandas empresariais — na época, 75% das em-presas de pesca situavam-se nos estados de Rio de Ja-neiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul,beneficiadas pelos incentivos fiscais do Governo Fede-ral, a partir do Decreto-lei de 1967. Sem perceber, ostrabalhadores, obedecendo às ordens que vinham deseus patrões, destruíram os próprios meios de subsis-tência. As estatísticas realizadas pelos pesquisadores daépoca do Regime Militar superestimaram o potencialpesqueiro brasileiro, beneficiando a implantação deempresas de pesca e a liberação de barcos em maiorquantidade que as espécies poderiam suportar. Sentiri-am as conseqüências da matança desordenada anosmais tarde, quando os pescadores empobreceram gra-dativamente, ao mesmo tempo em que muitas empre-sas fecharam as suas portas.

Se peixe no Brasil está escasso, imagine lá fora. Aorganização das Nações Unidas para a Agricultura eAlimentação estima que 69% das espécies marinhas

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mais conhecidas foram exploradas indevidamente e emexcesso, desrespeitando as leis ambientais e o períodoque estas espécies teriam, para se desenvolver ou serecuperar. Entre 1970 e 1990, a exploração da pescano mundo cresceu entre 200% e 300%. Mas a produ-ção aumentou pouco mais de 30%, levando as frotaspesqueiras a sofrerem perdas econômicas significati-vas principalmente em 1989, quando a produção marí-tima atingiu seu mais alto nível.

Pior ainda quando toneladas de peixe são jogadasfora, por falta de qualidade. Se fosse lá no além-mar dePinta Preta, o Governo não admitiria isso. Pois escute,diz ele com o olhar repulsivo, na minha Portugal, osbarcos-traineiras só podem pegar sardinha após a meia-noite, para trazer o pescado ainda fresco ao consumi-dor! Os preços também são tabelados no início do ano,para evitar qualquer abuso dos vendedores.

Já aqui no Brasil, quantas e quantas vezes seu Ma-noel viu quase metade da produção ser descartada.Somam-se a isso, os problemas estruturais dos barcose a cultura de pesca existente entre os pescadores. Mui-tas embarcações usam gelo para acondicionar o pes-cado, quando o melhor seriam as câmaras frigoríficas.Para piorar, muitos pescadores estendem a viagem emalto-mar com o objetivo de trazer mais produção a ter-ra. O problema é que o pescado não agüenta tanto tem-po apenas refrigerado em quilos e quilos de gelo. Oresultado: estima-se que cerca de 20 a 30% da produ-ção total da sardinha, a espécie mais explorada no lito-ral sul brasileiro, é descartada anualmente; segundo oDiagnóstico da Pesca Marítima Brasileira.

— Os governantes daqui deveriam ir pro meu paísaprender o que é investir na pesca sustentável! Lá,

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barco de arrasto que pega tudo quanto é tipo de espé-cie só pode pescar a 13 milhas da costa e em local au-torizado. Por isso o peixe não acaba por aqueles mares!

E em mares brasileiros? Barcos de arrasto até apre-sentam leis ambientais estipuladas para cada estado.O problema é cumprir estas leis. Seu Manoel lembrabem: a gente sabia que não podia pescar em excesso, praque pescado sempre existisse nos mares. Mas aqui, a abun-dância era tanta que o peixe parecia nunca acabar.

Em 1974, por exemplo, Santa Catarina viveu o ápi-ce da produção das traineiras: mais de 92 mil tonela-das de sardinha foram capturadas no Estado. No en-tanto, a fartura de peixes mudou, dois anos mais tarde,quando a produção catarinense não passou de 26 miltoneladas. O que havia acontecido com o peixe? Asespécies marinhas não encontram tempo para a deso-va. É preciso paralisar a pesca nessa época, urgente,porque a sardinha pode acabar — diziam os pesquisa-dores.

Foi aí que se instituiu o defeso, proibindo a pescadesta espécie durante os três meses de verão, época dedesova. E, quase 30 anos mais tarde, o Ministério doMeio Ambiente criou o defeso de três meses de inverno,para proteger os juvenis. A regra era proteger e preser-var. A contribuição do defeso para a recuperação dasespécies foi tanta que, em 2007, a captura de sardinhaem Santa Catarina chegou a 24 mil toneladas.

— Pois lá em Portugal, a gente sabe que tem querespeitar e desembarcamos no defeso de todas as espé-cies. Só que também ganhamos enquanto estamos pa-rados. Aqui no Brasil, as coisas são diferentes. A fisca-lização pouco faz seu trabalho e algumas empresasacabam diminuindo o defeso conforme querem!

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Ao pescador, resta obedecer, já desmotivado peloseguro-desemprego em épocas de defeso, período emque o trabalhador não contribui com a previdência eadia ainda mais a aposentadoria. Nem mesmo commanifestações dos trabalhadores e dos sindicatos, tornou-se possível instituir um seguro-defeso, que garantiria aotrabalhador poder aposentar-se no tempo previsto.

Além do período de paralisação da pesca e o cum-primento de leis trabalhistas, em Portugal, todas as em-barcações saem com uma cota para pescar: não pode-riam exceder aquela quantidade, senão a licença res-tringiria ainda mais as toneladas pescadas para cadabarco. Quando uma rede puxava mais peixe que o pre-visto pela cota, o mestre de barco deveria distribuir oexcedente entre as outras embarcações, como sinal decoleguismo e respeito ao meio ambiente e às reservasmarinhas. Tudo sob rígida fiscalização: um navio daMarinha sempre navega próximo às áreas pesqueirasaveriguando qualquer “jeitinho” de burlar a lei.

— Pois aqui, eu nunca vi um navio desses controlar asembarcações! Tem um monte de barco por aí, que saisem despacho algum pela Marinha, pescando espéciesque não deveriam!, critica Pinta Preta que, mesmo apósquase 40 anos trabalhando em mares brasileiros, não baixaos olhos frente à falta de organização da pesca industrial.

No Brasil, geralmente a inspeção para analisar asegurança e a licença dos barcos é realizada na costa— no retorno de uma viagem ou saída para nova pes-caria — pela Capitania dos Portos, sem aviso prévio.Em média, 60 barcos são averiguados por mês, das 650embarcações cadastradas em Itajaí e Navegantes.No entanto, a fiscalização concentra-se mais nosaparelhos de segurança e licenças para tripulantes e

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mestres. Tem tudo isso aqui em terra — continuaPinta Preta — mas ninguém vai lá para o mar ver sehá gente pescando em local não autorizado e aca-bando com o nosso peixe!

A justificativa: fiscalizar os mares brasileiros comembarcações particulares sairia caro para o Gover-no, principalmente por causa da extensão do nossolitoral. Uma das propostas, regulamentada em 2008,foi regularizar a implantação do Programa Nacionalde Rastreamento de Embarcações Pesqueiras. Maso problema, como sempre, é o “custar caro”. Afinal,todas as embarcações com mais de 15 metros decomprimento destinadas à pesca industrial devem sercatalogadas e equipadas para possibilitar o rastrea-mento da Marinha do Brasil, com o objetivo de fis-calizar irregularidades ou invasão de áreas pesquei-ras não permitidas àquela embarcação. Esse rastre-amento já existe em barcos estrangeiros arrendadospor empresas nacionais que vêm pescar nos maresbrasileiros, os quais também apresentam um obser-vador de bordo para fiscalizar a pescaria.

Semelhante ao que acontece lá na Europa do Pin-ta Preta, quando vez ou outra um bote da Capitaniados Portos, levando um fiscal a bordo, sai do navio rumoà embarcação, em pleno alto-mar à procura de algumairregularidade, surpreendendo os tripulantes. Se encon-trassem uma rede de pesca não autorizada para aqueletipo de barco, era multa na hora.

— E podem navegar para a terra que vamos dar umjeito nessa rede! — ordena o fiscal.

Mas bem que a gente podia negociar, né? — per-gunta aquele português, tentando encontrar um outrojeitinho para resolver a situação.

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A resposta vem com um olhar severo, de quem nãoestá ali para ser subornado. Horas depois, com a em-barcação atracada à costa, lá estão os tripulantes,em meio à fumaça que se libertava da fogueira, orgu-lhosa em queimar a rede ilegal.

O que mais decepcionou Pinta Preta foi acompa-nhar o processo de venda do litoral brasileiro a bar-cos estrangeiros, principalmente norte-americanos.Eles ganharam os nossos mares por “preço de bana-na”, como diz o clichê que caracteriza o país tropi-cal. Através de um tratado bilateral, as empresasnacionais se associaram às estrangeiras para a ex-ploração dos recursos pesqueiros, em uma políticaconhecida como joint-ventures — tão americaniza-da quanto o próprio objetivo de desnacionalizaçãoda pesca. E lá vêm as grandes embarcações, comtecnologia de ponta, máquinas que substituem o tra-balho braçal do homem, a pescar chernes de dezquilos que mal conseguem passar por essas mesmasmáquinas com tecnologia invejável e são descarta-dos. Jogados novamente ao oceano, já mortos, paraservirem de comida aos outros peixes.

— Mas, quanto vale um pedaço de mar por aqui? —pergunta o empresário às autoridades brasileiras.

— Ah, podemos fazer um acordo de alguns poucosdólares... ou reais.

— Poucos reais? Excelente... — alegra-se o estran-geiro, já pensando em quanto iria lucrar em cima danossa moeda.

— Sim, mas seu barco será arrendado pela nossaempresa, dividiremos a produção...

A partir daí, o tal acordo fica entre quatro paredes e aportas fechadas. E pensar que os vizinhos ali debaixo, os

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uruguaios que dividem espaço na pesca dos peixes no-bres próximos à fronteira do Chuí, cobram o preço dobarco — que pode chegar a dois milhões de dólares —para liberar uma licença de pesca na sua costa.

Pior ainda quando Pinta Preta vê pescador sem teronde morar, ou vivendo de aluguel. Mal ele sabe quantodeu a produção, apenas recebe o dinheiro que lhe ga-rantiram no final da pescaria e vai embora, sem enten-der por que havia recebido tão pouco se a pesca foratão farta. Lá nos tempos de Manoel, nenhum tripulantesaía da empresa sem conferir todas as notas de despe-sa e a quantidade de pescado.

Logo depois que descarregava as caixas cheias depeixes, encontrava-se com o dono do barco para con-ferir as notas. Ali mesmo, na borda da embarcação erodeado pelos outros tripulantes, estavam o Pinta Pretae o armador a fazer suas contas e a dividir os lucros.Cinqüenta por cento ficava para o patrão e a outrametade era destinada aos tripulantes. Muitas vezes, omestre de barco garantia quatro partes daquelas queseriam posteriormente divididas com os pescadores. Mashoje, antes mesmo de o barco sair do cais, geralmentedez por cento já ficam para o patrão. A despesa daembarcação — incluindo manutenção, alimentação,gelo e combustível — também é descontada da produ-ção final. Aí sim, o restante é dividido entre o armadore os outros tripulantes.

— Mas, Américo, pior mesmo é quando o mestre debarco ganha uns 200 mil reais por viagem e o tripulantesai só com mil reais! — conta seu Manoel àquele ho-mem batizado com o nome do continente que o aco-lheu, um de seus quatro filhos brasileiros, pescador in-dustrial nas grandes embarcações atuneiras.

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— Pai, como vou saber quanto o mestre e o patrãocombinaram ganhar, se mal posso conferir as notas?

— Pois abra o olho! Mestre de barco que faz esse tipode acordo com o patrão, se esquecendo dos outros tripu-lantes, é mestre de barco que você deve evitar! — aconse-lha, após 33 anos de experiência no comando de diversasembarcações e pescador pioneiro em desenvolver a pes-ca do atum e cherne no litoral catarinense.

***Logo depois que saiu da pescaria, há pouco mais

de 5 anos, seu Manoel acabou sabendo de algumas his-tórias que envolveram o nome do temível Pinta Preta.Mestre de barco que sempre andava armado: seja comum facão preso à cintura, um revólver e, principalmen-te, aquele chicote de arraia, que o tornou conhecidoentre os pescadores que aqui vinham trabalhar.

— Chicote de arraia? Que isso... Se algum tripulan-te meu aparecesse com uma cicatriz dessas no corpo,perdia a carteira de mestre na hora! E eu ainda ia pre-so. Se tinha mestre de barco que fazia isso devia ser umlouco!

— Mas, ô, Pinta Preta! Vai dizer que não é verda-de... O pessoal anda falando por ai! — pergunta o com-panheiro, enquanto bebe mais um gole da cerveja gela-da que acabara de chegar à mesa.

— Nunca usei chicotes. Andava armado, isso sim.Muitas vezes, peguei tripulantes que tinham três ou qua-tro mortes nas costas, fugiram da polícia, ou ficarampresos durante um tempo. Eu precisava me defender.Mas, só tive uma discussão a bordo, apenas uma: ocara me ameaçou com facão e tudo, mas ninguém saiuferido, não.

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— Ah, vais dizer que nunca teve tripulantes que teincomodaram? — insiste o companheiro, tentando ti-rar alguma história intrigante dos tempos em alto-mar.

— Pois sim, aqueles que chegavam drogados. Dro-ga ali, não podia não. Mas os caras insistiam em traba-lhar daquele jeito! Um dia mesmo, liguei para a Capita-nia daqui pra prender as drogas que estavam no barco.

— E eles foram até lá?— Não, falaram para denunciar em Florianópolis.

Nada parece funcionar mesmo... — finaliza a conver-sa, antes de pegar a zica, para enfrentar a fila do bancoe retirar apenas três salários-mínimos de aposentado-ria, quando deveria receber o triplo.

É a falta de aplicação de leis, meu amigo. Deixa pralá. Guarda o dinheiro no bolso, sobe na bicicleta e pe-dala rapidamente para casa: ainda há tempo para al-moçar a carne assada de panela que Marília, mais umavez, havia preparado.

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13. TIQUE-TAQUE“A terra é toda brutalidades, como o

mar é movimentos. Uns homens enjoamcom os movimentos do mar; outros

enjoam com as brutalidades da terra.”(O Lobo do Mar – Jack London)

Fecho os olhos. Dor de cabeça. Garganta seca, von-tade de comer nada. Nove horas e cinco minutos. Tomoum banho, tontura que desce com a água. Olho para ajanela, mar azul. Nem sinal de terra. Mal consigo fixaros olhos no horizonte. Move-se, junto às ondas. Braçose pernas fracos. De quem pouco sentiu gosto de comi-da. Lá em terra, diziam: não fique sem comer. Impossí-vel. Até o cheiro de mar me é estranho. Parabéns paraeles, penso. Só por se acostumar a este movimento. Anão ter para onde ir. Como conseguem? Ô, moça! Jáenjoei que nossa! Hoje, dou risada. Como sempre, Zé.Mas a gente tem que continuar, né? E come algumacoisa: segredo para não marear. Não sinto fome. Novehoras e dez minutos. Ê, menina, mas eu pensei que vocêia enjoar lá no começo da viagem. Até que demoroupara ficar fraquinha. Ainda tem cor no rosto!

Olho-me no espelho. Que balança. Pálida? Nem tanto.Os olhos semicerrados pedem descanso. Descanso de quê?Passo o tempo a observá-los. A acompanhar aquela roti-na marcada por vírgulas. Seqüência de movimentos.Iguais. Sem ponto final. Deito-me. Nove horas, quinze mi-nutos. Enjôo que parece dominar há dias. Pelo menos,abrigo-me na cama. Penso lá no Bruno. Encostado àborda do barco. “A gente tem que continuar, né?”.

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Vidas separadas pelo mar136

Conselho do Zé. E ele insiste, mas o corpo revida.À minha frente, aquele teimoso relógio. A marcar:

nove horas e vinte minutos. O tempo não passa. Eu,deitada na cama. E os segundos, lentos. Testam-me apaciência. Fecho os olhos, evito a provocação. Mas elecontinua ali. Discreto na parede branca. Com os pon-teiros a caminhar vagarosamente. Da janela do cama-rote, vejo a claridade. O mar reflete o brilho, fere a pu-pila. O horizonte se move. Nove horas e dezessete mi-nutos. Ponteiros tranqüilos. Demasiado tranqüilos.

Duas batidas breves à porta. Entra! Debaixo da bar-ba, sai aquela voz, já familiar. Tenta isso, moça! Talvezdê certo. Paulinho mostra-me um esparadrapo. Paraquê? Coloca em formato de cruz, em cima do umbigo.Superstição. Já ouvi falar. Então, dizem que funciona.Mulher grávida faz isso. Tenta aí. Que tinha a perder?Estava em alto-mar, sem visão da terra. Enjôo que nãopassa. Ondas que não cessam. Corto dois pequenospedaços. Solto uma tímida risada. Não acredito no queestou fazendo! Fecho meus olhos, mais uma vez. Dor-mir ajuda a acelerar aqueles ponteiros.

Onze horas. Ainda bem! Cheiro de feijão, peixe, car-ne. Em terra, seria agradável. Ali, sinto nojo. Desço asescadas. Vou até a cozinha. Agonia-me ficar parada.Ei, moça, tens que comer, senão vai passar mal mes-mo! Marrom já pega um prato. Essa comida é muitopesada! Escuta o que estou te falando. Tenho experiên-cia nisso. Veja só, vou preparar algo. Acompanho seusmovimentos. Uma concha cheia de feijão. Espalha-seno prato. Três colheres de farinha. Mexe rapidamente,olha o pirãozinho! Mais um pedaço de peixe. Com bas-tante molho. Está pronto, menina!

Sinto fome, mas não vontade. Medo de passar mal.Isso tudo? Com certeza. As regras em mar são diferentes

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Vidas separadas pelo mar 137

daquelas lá da terra. Sente enjôo? Pois coma. Nada desopa e caldos. Isso é coisa para doente. Não para gentedo mar. Pirão de feijão e peixe. Isso sim é remédio!

Sinto o gosto salgado da comida. Sabor de casa.Cada tempero. Bem preparado. Almoço dos bons!, bemque me diziam. Deixo o medo do enjôo. Agora passa.Tens que comer. Ficar fraca é que não pode.

Tento caminhar entre o convés, acompanhar a pes-caria. O Bruno está ali, a puxar a rede. A sentir mal-estar. Eu? Disponho de mordomia. De deitar-me, fe-char os olhos. Cerrados, passaram-se duas horas. Maisum pouco: seja bem-vindo, fim de tarde!

Bate na porta. E aí, moça, melhorou? Sim, Pauli-nho. Pode sentir esse cheiro? Butiá. É bom que só! Vaimelhorar mais. Tem certeza? Ô, se vai! Experimenta,um golinho. Doce, amargo, mistura-se tudo. Tomo o meubutiazinho, toda a noite. Isso cura qualquer coisa! Estásempre ali, ó, guardada no quarto, bem fresquinho. Tudobem? Sinto melhor. Sei não: foi o esparadrapo, o pirãoou o butiá? Os três, menina! Aqui, a gente tenta tudo.Uma tem que dar certo. Mas é o butiá, eu garanto! E láem terra? Sem butiá, tem cerveja. Com os amigos. Pes-cadores. Os que não embarcam, estão na artesanal, aconsertar suas tarrafas. Tentar vender o que dá. Ondemoras? Lá em Aguada, no bairro de Vila Alvorada. Vilade pescadores lá da minha cidade: Imbituba, com seus40 mil moradores. Somos família aqui, família lá. Co-nheço esta gente desde a infância. Todo mundo do bar-co é vizinho. Nas ruas estreitas, escuras. Só aquelasluzes acesas. Dos bares sempre abertos. Um em cadacanto. Bar é o que mais tem. Cheio de histórias. Cerve-ja gelada, sardinha frita. Até a noite.

Mas, quando tudo adormece, a vila parece umoceano. Às escuras. Silêncio.

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14. DONAABÉRCIA

“Sabe que eu não me vejo fora dobarulho? Eu não posso ficar em silêncio.

Porque foi muito tempo com o bar.”(Laci Gomes da Silva)

— Dona Abércia, me vê aí uma dose de cachaça ...— Depois o café e depois o conhaque, né? — com-

plementa, enquanto já entrega o copo de pinga paraseu Fraita.

Toda vez era assim: Fraita sempre dava uma paradano Bar do Pescador, quando passava pela rua Blume-nau — um caminho pouco movimentado naqueles anosde 1970, bem diferente de hoje, por ser a principal viade acesso aos caminhões-contêineres que chegam aoPorto de Itajaí. Aquela baixinha atrás do balcão, quepintava panos de prato nas horas vagas, levantava-seprontamente para preparar o pedido do antigo freguês,antes mesmo de atravessar a porta do boteco.

O local ficava realmente movimentado quando Frai-ta se misturava aos pescadores, fregueses fiéis daquelebar localizado em frente às grandes empresas de pescada época. E, se Pedrinho escolhesse aquele balcão parasuas bebedeiras, nem se fala! Dona Abércia reservavapaciência para servi-lo e calma para juntar os cacos devidro que deixava no chão. O mestre de barco reuniadois ou três tripulantes e bebiam oito, nove, dez e lá vai

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cerveja. Quanto mais garrafa se empilhava na mesa,mais as histórias daqueles pescadores aumentavam.

— Ô, peixe grande... Uns 30 quilos! Tinha uns olhossaltados, a cauda não parava de balançar, chutava agente para longe! — dizia um, embaralhando tudo quan-to era palavra, enquanto descrevia cada escama doanimal.

— O melhor mesmo foi ver o cabaço vomitando noconvés do barco! Esses jovens aí não agüentam viagemlonga não... — contava outro, esquecendo que tambémpassara mal nas primeiras pescarias.

A palavra final era sempre de Pedrinho. O diminuti-vo surgiu de seu físico frágil, a calvície acentuada, abaixeza que pouco intimidava as pessoas. Mas que nadacombinava com aquele homem de atitudes grosseiras exingamentos carregados de palavrões. Ao final dos en-contros de bar, só se ouvia a barulheira: o mestre, comuma única braçada, empurrava todas as garrafas ao chão.

— Que é que foi?! Tô pagando... — gritava ele, apóso silêncio espantado das pessoas que ali estavam. E láia Abércia, cabisbaixa, com a vassoura e a pá pararecolher a sujeirada.

Mas, nas cadeiras daquele lugar, raramente sentavagente querendo confusão. Os pescadores se reuniamali para botar conversa fora, encontrar-se com os ami-gos em terra, comentar sobre a pescaria que, naquelestempos, enriquecia o bolso dos embarcados e, mais ain-da, dos donos de barcos.

— A pesca foi boa?— Ôôô, se foi! Deu peixe de tonelada! — respondia

Pedrinho, quando ainda estava calmo por beber poucomais de um copo de cerveja. O pessoal já tá chegandoaí pra comemorar!

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E vinham. Vinham em bando! Primeiro, precisavamgarantir alguns peixes que conseguiam pegar do barco— um pouquinho pra família, não ia fazer tanta falta! Ea cena se repetia: Dona Abércia só conseguia enxergarbraços jogarem aquelas caixas por cima do muro, quecaíam na calçada. Depois, era uma rapaziada pulandoo portão da empresa, caminhando entre os pedestrescom os quilos de peixe e desviando das carroças e dosraríssimos carros que transitavam pela rua, ainda re-vestida por paralelepípedos.

Abércio, marido de Laci — nome verdadeiro de“Abércia”, que fora apelidada com a derivação femini-na pelos próprios pescadores — já abria a porta dosfundos do bar, que dava para a sua casa. Ali, aquelestripulantes depositavam as caixas de peixe, até levarempara a família no dia seguinte. O casal também apro-veitava para garantir alguns pescados: desde que havi-am comprado o bar, em 1978, nunca mais precisaramir ao Mercado de Peixe.

— Já pegou um pouquinho, né, Dona Abércia? —perguntava um dos pescadores, com ar de intimidação.

— Ah, meu filho, ladrão que rouba ladrão tem cemanos de perdão! — dizia Laci, em meio a um sorrisoirônico, ao lembrar-se das caixas sendo jogadas para ooutro lado do muro.

E assim eles ficavam horas e horas, bebendo cerve-ja, jogando conversa fora e apostando partidas de tru-co, dominó e sinuca. Quando questionados sobre a fa-mília, alguns, já contagiados pela alegria de estar emterra e depois de muitas cervejas na mesa, simplesmen-te respondiam:

— Casa, Dona Abércia? Ainda não... Pois a senho-ra não sabe que a primeira coisa que a gente faz em

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terra é vir comemorar a pescaria? A família a gente vêdepois...

Mas havia aqueles que traziam até mulher e filhospara comer os salgados de Laci: eram risólis, coxinhas,pastéis e o tradicional pão, presunto e queijo — o pre-ferido dos fregueses.

Já alguns pescadores ficavam quietos, com suascamisas desabotoadas, sentados no canto, a pensarsabe-se lá em quê. E outros, carentes de uma conversamais séria dentro dos barcos, faziam de Laci uma con-fidente pessoal. Ela transformava aqueles minutos dedesabafo no balcão do bar em uma consulta terapêuti-ca. Conseguia até para analisar alguns perfis de seus“pacientes”.

Aqueles com problemas na família...— Pois meu filho nasceu, não consegui vê ele. Mal

passei em casa. E agora, que já tá com quatro anos,aquele moleque!, ele nem me reconhece... — dizia um,soltando algumas lágrimas em meio a uma baforada eoutra.

Havia os pescadores que mal chegavam a terra e jápediam para comprar fiado.

— Cadê seu dinheiro, meu filho?! Acabaste de rece-ber! A pesca não foi boa?

— Foi até foi, né, Dona Abércia... Mas ontem, sabecomo é, tem tanto bar com mulher à vontade aqui porestas bandas! E a gente, lá no mar, no meio de um mon-tão de marmanjo durante semanas. Quando chego aqui,é um paraíso! Aí, o dinheiro voa...

Esses eram quase sempre solteiros. Mas muitos játinham lá suas famílias.

Existiam também aqueles que faziam do bar um lo-cal para recados.

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— Dona Abércia, entrega esse papelzinho pra ela?— sussurrava o pescador, com o olhar desconfiado aoanalisar toda a clientela sentada por ali.

Logo em seguida, chegava a esposa desse mesmoembarcado, que minutos antes havia deixado o bilhete.

— Entrega esta carta para o motorista da empresade pesca daí da frente? — pergunta, sem aquela timi-dez que contaminava o marido.

Horas depois, lá vinha a tal moça — que tambémtrabalhava na mesma empresa — pegar o recado. E ooutro rapaz a ler a carta. E assim aconteceu, duranteanos. Amantes e casados se conheciam, eram empre-gados do mesmo lugar, mas sequer imaginavam queum traía o outro.

Os bilhetes permaneciam fechados até serem entre-gues aos destinatários, sem que nenhuma frase ou pa-lavra fossem lidas por Laci. Ela nunca quis se introme-ter nessas relações: era apenas atendente e cozinheirado bar. Também não permitiu que a curiosidade falassemais alto. Podiam até pedir esse tipo de favor, mas nadade fofocas ali dentro. Os casais que se entendam, fala-va para si mesma.

E quantos desentendimentos amorosos passavam poraquele balcão: era marido descobrindo que a mulher otraía, era esposa reclamando da ausência do maridoem casa, eram namoros fazendo-se e desfazendo-se.

Comentários e desabafos ouvidos por aquela baixinha— que de frágil não tinha nada — mas posteriormenteesquecidos. Até hoje, ela não faz muita questão de lem-brar tais segredos. Sou cega, surda e muda!, dizia, atrásdo balcão, quando ouvia algo que lhe desagradava.

Apesar do trabalho e da barulheira, sentia-se feliz alidentro. Até o aroma do bar, impregnado nas paredes

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revestidas com azulejos ornamentados por pinturas deflores, tornou-se familiar para Laci. O odor ardente dacachaça misturado ao cheiro de frituras e cigarro acom-panhava-a o dia inteiro.

Sua rotina começava muito cedo, às cinco da ma-nhã: colocava o velho avental, já manchado pelo óleoda frigideira, para preparar os salgados que serviriamde desjejum aos comerciantes dos armazéns de grãos,aos trabalhadores dos moinhos e aos estivadores can-sados de carregar madeira nas costas. Às seis da ma-nhã, as portas do Bar do Pescador eram abertas parafechar somente às dez da noite ou até de madrugada.

Acostumou-se tanto com aquele aglomerado de gentefalando e gritando que seu tom de voz aumentara para seimpor em meio às grossas vozes daqueles homens. Nemmesmo quando estava grávida da quarta filha abando-nou o balcão. O barrigão virou o xodó dos fregueses, ale-gres com a quarta “Abercinha” que viria por aí.

Aos poucos, sem saber quando e por que, o pequenobar transformou-se no local perfeito para partidas freqüen-tes de dominó. Entre as garrafas de cerveja, cachaça,whisky e outras bebidas, os mais de vinte jogos daquelaspequenas peças pretas se destacavam nas prateleiras.

O espaço ficara limitado para tanta gente. Haviaapenas uma mesa de sinuca, o balcão com pouco maisde quatro metros e a cozinha. O resto do bar fora dedi-cado aos jogos de dominó, onde as seis únicas mesasderam lugar às equipes de jogadores que organizavampequenos campeonatos.

Em 1986, Abércio, Laci e os clientes mais antigosdo Bar do Pescador criaram a Associação Clube Qui-na 86 e organizaram o primeiro campeonato estadual,reunindo 18 cidades. Alugavam espaços em clubes e lá

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iam os competidores: organizados com uniforme e tudo!Os pescadores embarcados, que muitas vezes não sa-biam quando iriam retornar a terra, também tinhamvaga nos times, nem que ficassem como reservas.

Naqueles finais de semana, Laci não parava um se-gundo: preparava almoços, salgados, docinhos e o quemais aquelas duzentas pessoas lhe pedissem para fa-zer. Sabia que seria só por alguns dias. No próximomês, os bares de outras cidades sediariam as equipes.

Enquanto enrolava, entre as mãos, mais um bolinhode carne prestes a ir para a frigideira, pensava em tudoque ela e seu Abércio haviam construído com o dinhei-ro do bar. Quando iria imaginar que a loucura do ma-rido daria certo? Lembra muito bem: era o ano de 1973,na época em que as madeireiras começaram a entrarem decadência frente à forte exportação de pescado.Entre as madeiras empilhadas no cais, atracavam asgrandes embarcações e as muitas baleeiras dos peque-nos pescadores. O Porto de Itajaí ainda estava localiza-do no início da rua Blumenau e se misturava com osoutros trapiches. Além daquelas madeireiras, existiamainda moinhos de trigo e arroz e uma grande empresade extração de sal.

Se quisesse atravessar a rua, precisava olhar paraos dois lados: alguma bicicleta ou carroça podiam cru-zar seu caminho. Tão diferente da estrada de mão úni-ca, destino para os caminhões-contêineres e os carrosem alta velocidade, que não reservariam nenhum mo-mento de silêncio, anos mais tarde.

Pois foi bem naqueles anos, quando a tranqüilidadehabitava a área comercial e portuária de Itajaí, queAbércio virou-se para a mulher, concentrada nobordado de uma nova toalha, e disse:

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— Vou comprar um bar!Exatamente com essas palavras e seguro de sua de-

cisão. Sem se assustar com a proposta do marido, elaapenas levantou os olhos embaixo dos discretos ócu-los, coçou os curtos fios do cabelo castanho claro, bor-dou mais um ponto e manteve-se calada: acostumara-se às suas idéias imprevisíveis e a fazer tudo o que elelhe dizia. Da janela de casa, observou Abércio pegan-do a chave do jipe e, lá fora, acelerando o motor até osom perder-se no meio do caminho — seria a últimavez que ouviria aquele barulho. O antigo mecânico vol-tou a pé, horas depois, com a notícia da compra doBar Noturno.

Bar Noturno? Pois sim, um local que não servia ape-nas como bar... E que, para Laci, haveria de mudar denome. Imagina! Sair da Vila Operária, bairro conheci-do pelo número de trabalhadores que ali residiam, paratrabalhar em um local próximo ao porto, junto aos la-drões e prostitutas, onde mulher “correta” não ousavapassar? Mas, se o marido escolhera, ela deveria obede-cer.

Ficaram no bar por apenas um ano quando, em ou-tro impulso, Abércio decidiu comprar uma lanchonetena cidade vizinha. E lá foi ela, malas embaixo do bra-ço, sem questionar para, quatro anos depois, retorna-rem a Itajaí. E, novamente, comprarem o mesmo bar.

Agora, morariam em uma casa de madeira constru-ída pelo marido, no terreno da lanchonete. Durantemuito tempo, ele dormiria na mesa de sinuca, enquan-to ela e as três filhas dividiriam espaço na sala aperta-da. E, aos poucos, o Bar do Pescador ganhava fama econquistava fregueses fiéis que nunca mais deixariamde passar por ali.

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O local também faria jus ao nome: uma grande em-presa de pesca se instalou na rua Blumenau — no mes-mo ano que retomaram as atividades no bar — e ga-rantiu mais fregueses para o casal Abércio. Aquela mes-ma empresa, com o muro baixo, de onde pulavam pes-cadores e caixas de peixes e que hoje também perdeuespaço para os contêineres e rebocadores do porto.

Ah, bons tempos aqueles!, lembra Laci, já com 63anos e 14 quilos mais magra — resultado de sua desis-tência em ficar atrás dos balcões ou em frente ao fogão,mas ainda preservando a cor natural do cabelo. Em2005, seu marido faleceu e ela não viu mais sentido emtrabalhar ali. Continua morando no mesmo local, emum apartamento construído em cima do bar. Arrendouaquele espaço cheio de lembranças — que ainda man-tém o mesmo nome pintado com tinta vermelha — paraum conhecido. A baixinha ainda gosta de ouvir as pes-soas falando alto, o barulho de alguma garrafa caindono chão, o pessoal todo a contar suas vidas. Mas prefe-re passar o dia inteiro fora de casa, visitando amigos,participando de atividades recreativas para idosos, es-quecendo-se da solitária vida que já a condenou a umadepressão.

Este silêncio repentino em sua rotina também inva-diu o bar onde hoje muitas mesas e cadeiras permane-cem solitárias, o dia inteiro. As conversas tornaram-seapenas ruídos e a comemoração da pescaria farta jánão encontra espaço ali, até porque a pesca não estámais tão lucrativa assim. Os nomes dos fregueses con-fundem-se com outros rostos e suas histórias apagam-se gradativamente da memória.

O barulho das caixas de peixe caindo na calçadasão apenas lembranças, em meio ao Porto de Itajaí que

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tomou conta da rua. Saudades daqueles anos de 1980,quando o porto exportava uns poucos 40 contêinerespor semana e ainda soava silencioso. Hoje, são maisde 8 mil contêineres que passam por ali.

Por ela, nunca sairia deste lugar. Mas, em nome doprogresso e do desenvolvimento da cidade, como asautoridades andam dizendo, possivelmente terá de aban-donar a casa e deixar o Bar do Pescador apenas nasaudade. Ouviu dizer que irão construir uma grandeavenida, a Via Expressa Portuária, que irá ligar a BR-101 ao porto, a fim de organizar todos aqueles carros ecaminhões, além de concentrar as mercadorias paraexportação em um único local — e não jogá-las nosvários terrenos espalhados pela cidade, que acaboutransformando Itajaí em um grande depósito de contê-ineres.

Disseram que ela e os outros moradores da rua pro-vavelmente terão de sair dali, por ser uma zona de apoioportuário. Ao todo, a Via Expressa e a expansão do portoirão ocupar a área de 62 residências. As famílias serãoindenizadas, por lei. Laci ainda nem sabe direito o quefazer com o dinheiro e para onde ir.

Do São João, eu não arredo o pé!, diz e enfatiza afiel moradora de um dos bairros mais antigos da cida-de. A memória dos momentos que viveu com o maridoe com as filhas, as conversas com os fregueses e o tra-balho pesado no bar estão guardados naquele pequenoambiente. Agora, sem saber ao certo quando terá desair, ela tenta preservar as memórias em muitas fotos,alguns quadros e os 30 troféus carinhosamente guarda-dos na garagem, lembranças dos campeonatos estadu-ais de dominó que, desde 1996, deixaram de existir nasmesas do Bar do Pescador.

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15. NEGRUME

“No mar, tanta tormenta e tanto dano,Tantas vezes a morte apercebida;

Na terra, tanta guerra, tanto engano,Tanta necessidade aborrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indiguine o céu serenoContra um bicho de terra tão pequeno?”(Os Lusíadas/Canto I – Luís de Camões)

Sinto meus braços e pernas. Fortes, novamente. Atontura, o enjôo, a dor de cabeça. Foram deixados. Juntoà irritação com o relógio. Subo ao toldo do barco. Chei-ro de mar. De vento. Já está lá o Zé Maria, contemplan-do a negridão. Tetu, na vigília, a enxergar algum pontode luz. Parece mais escuro que os outros dias. Sem es-trelas. Nuvem negra se aproximando. Sente o frio? Vaichover. Cadê a lua? Hoje, ela só vem perto da meia-noite. E permanecerá escondida. É dia dela, não. Fiquesozinha menina, não terás sua companhia. Apenas asluzes de segurança do barco. Fracas, mal consigo en-xergar. Vejo apenas a espuma das ondas. Violentas.Melhor voltar ao meu canto. É chuva, temporal. Na cer-ta. Como se proteger? Só esperar. Deixar o vento pas-sar. Mas está na melhor época: verão é calmaria. Noinverno é que complica.

Verão é calmaria, dizem eles. Primeiras gotículas deágua. Gélidas. Desço as escadas, sem equilíbrio algum.O barco movimenta-se para lá e para cá. Uivo forte

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que balança as ondas. Fecho os olhos. Concentro-meem meu sono. Que não vem. Estava desperta. Olho pelajanela. As ondas a balançarem. Apenas o som agressi-vo. Chama para o fundo.

O que revela o mistério negro dos oceanos? Na mi-nha infância, seus tesouros e sereias. Esqueletos de pi-ratas. Lendas dos contos infantis. Ali, surgiu a vida. Oprimeiro grão de vida. Desenvolveram-se. Hoje esta-mos aqui. Vidas. Pois ali embaixo, há muitas delas. Ouvestígios, apenas. Navios negros, repletos de algas. Pe-daços da proa, embarcações naufragadas.

É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar,canta Lenine. Com sabedoria das coisas da água. Masnão com a experiência de quem por perigo passou. Édoce morrer no mar, repete. As ondas sufocam aindamais. Ter para onde ir, não há. Fique aí, tranqüilize.Deixe a tempestade passar. Renda-se ao descanso, é sóesperar. Vai dormir, moça! Mas pouco consigo fecharos olhos. Uma da manhã. Olho para as ondas raivo-sas, sinto o cheiro do mar, o estalo do Monkfish, ma-deiras frágeis à sua força. A embarcação que se despe-daça. Lança ruídos agonizantes. Fica a balançar de umlado a outro, a proa abaixa-se com as ondas, levanta-se prontamente. Observo aquele movimento. Calmariade antes se foi. Agora é inimiga.

Um barulho vem lá de fora. Diferente daquele ruído.Sons de comando. Vozes grossas. Imperativas. Pessoasfalando, homens a postos. Desçam a âncora! Com cal-ma. Barulho de correntes. Barco estático. Insignificanteperto daquela imensidão. Firme-se a terra, garanta-nosa segurança deixada lá. Olhos para as ondas. Dois, trêsmetros. Temporal forte. Tentam engolir a proa, o con-vés. Sinto-me engolida por elas. Meu corpo desce e sobe,

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conforme o movimento. “Se preocupa não, moça, noinverno é bem pior”.

Lá em terra, lembro os avisos. Sua louca, quer mor-rer? E se acontecer alguma coisa? Para onde você vai?Conselhos mal ouvidos. Estou ali, à mercê do mar. Queme fascina, um medo apaixonado. Espuma branca quesai das bocas negras. Olham raivosas para meu encan-to. Riem quando desequilibro. Estás com medo? Achoque não. Se dali surgiu vida, pode destinar a morte. Nomar ou em terra, tudo tem a sua hora.

Somos ciscos naquele mar. Controlados por ele. Se-res humanos, insistimos em desafiá-lo. Com orgulho.Imponência. Teimosia. Estamos estáticos, ali. Deixan-do o temporal passar. Descanse, moça. Amanhã, a ro-tina nos espera. Fecho os olhos, novamente.

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16. SALMA BENTA

“Agora, de um certo tempo pra cá,eu nunca mais prestei.

Sempre doente dos nervos, alguma coisa. Sempre sofrendo, né?”

(Salma Benta Santos de Maria)

O vestido longo, de um vermelho sangue, arrasta-seno chão. O decote exibe o colo jovem, enfeitado porpérolas e pingentes multicolores presos aos colares quelhe cobrem o pescoço. Nos punhos e dedos, as jóiasfalsas continuam a enfeitar-lhe o corpo, camuflando umafalsa elegância. O chapéu, que projeta sombras em parteda testa e dos olhos, sugere-lhe uma sutil delicadeza.Os pés descalços, gélidos pela maresia e pela brisa da-quela manhã, aproximam-se vagarosamente do mar.Seus olhos ficam horas sem piscar ao observar o próxi-mo navio a atracar no porto. Eram oito em ponto: jus-tamente o horário marcado para o seu retorno. “Lá vemele, há de ser!”, pensa.

Cada marujo é analisado criteriosamente por Judite.Escondido por trás daqueles uniformes da Marinha podeestar seu marido. São todos tão parecidos: cabelos curtos,relativamente magros, caminhar calmo e uma seriedadeque se perde ao chegar a terra. Estão cansados, mas reveramigos e familiares alivia as tensões nascidas lá fora.

Não consegue encontrar ninguém que se assemelheaos traços do esposo guardados em sua lembrança.Tanto tempo longe de casa podem ter-lhe acrescentado

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algumas marcas de expressão, barba por fazer ou atémesmo fios brancos de cabelo. Mas deve estar ali, per-dido, procurando-a.

— Onde está ele? — pergunta, ainda com o sem-blante calmo.

O capitão do navio acostumara-se a conversar coma dama culta e educada, toda vez que desembarcava.Também sabia como agir à pergunta que sempre lhefizera.

— Ele ainda não conseguiu vir... Muito trabalho. —responde, com um olhar que exprime pena da situaçãosufocante daquela mulher.

Seu jeito culto e contido era absorvido pelo desespe-ro e pelas lágrimas, conduzidas por gritos inconforma-dos de saudade. Aquele momento chamava a atençãodas pessoas que não a conheciam. E a aflição daquelesque a respeitavam e sabiam quem era a elegante moça.Ela não se permitia esconder a ansiedade, e a posteriortristeza, com a chegada de novos marinheiros.

Judite era conhecida como a “louca de amor”, na-quela Itajaí que ainda nem apresentava um cais noporto. Perambulava todas as tardes pelas ruas e praçase, a cada apito do navio, lá estava ela, entregue à in-contida espera pelo marido, que partira para nunca maisvoltar. A família ocultou, por várias semanas, o quehavia ocorrido. Mas as respostas eram falhas e ausen-tes para enganá-la.

Descrente da notícia, Judite não desistiu de compa-recer ao porto na esperança de reencontrá-lo. Comomuitos jovens daquela época que sonhavam em traba-lhar na Marinha Mercante, ele embarcara em sua pri-meira viagem, prometendo-lhe a volta. E ela prometeuque o esperaria, sempre.

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A imagem daquela mulher, enfeitada com suas jóiase abatida pelo sofrimento, permaneceu viva até 1934,quando a morte veio para apagar a sua espera.

***Salma apóia-se na borda da bateira, atracada na

Praia Mansa, que beira sua casa em Canto Grande.Olha com dificuldade ao mar, tentando desvendar al-gum movimento estranho em meio à claridade daquelamanhã. As ondas estão calmas, não há nada que reve-le a chegada do barco. Seu olhar apagado une-se à fei-ção que revela tristeza e um sofrimento sem fim. Poucosorri: os lábios apenas acompanham o movimento daspalavras e, quando parados, mostram-se derrotados.O cabelo de fios brancos e finos permanece amarradocom uma presilha discreta. A saia comprida, abaixodos joelhos, aumenta-lhe a idade, revelando que poucose importa com a beleza física. Com o terço enroladoentre seus dedos, começa a rezar as orações, decora-das desde a infância. A religiosidade está presente atéem seu nome: Salma Benta Santos de Maria, fala lenta-mente e em tom seguro, orgulhosa de carregar três pa-lavras sagradas.

Pai Nosso, que estais no céu... Como haveria de es-tar seu filho? Enfrentando o vento frio daquele inverno,a fome pela impossibilidade de pescar ou as dores her-dadas do acidente? Muitas perguntas, sem as respostasdo oceano.

A última vez que o viu foi na madrugada do dia 6 dejunho de 1993. Salma acordou-se no meio da noite semsaber o porquê. Precisava ir ao banheiro, deveria serisso. Enquanto caminhava pela casa, observava seusdoze filhos. João, o caçula dos seis homens, havia

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deixado o short e a jaqueta azul separados em cima dacabeceira da cama: iria acordar cedo para substituir umcamarada na pescaria. Na época, os chamados “cama-radas” eram os tripulantes de um barco ou de uma lan-cha, quase sempre pertencentes a uma condição econô-mica desfavorável. João também vivia em difícil situaçãofinanceira e aquela oportunidade serviria como experiên-cia, para começar a vida de pescador, como fizeram osirmãos. Mas a licença para trabalhar em alto-mar ficouem meio ao vão. Daquela viagem, que duraria apenasum dia, sua volta se tornou uma incerteza.

O vento forte impediu que a lancha continuasse otrajeto com seus quatro tripulantes. Ao caírem no mar,não havia colete salva-vidas e a baleeira fora emborca-da pelas ondas de quatro metros de altura. Dalmo eCláudio ainda conseguem desvirar o barco e retomarseus lugares. Mas o garoto de apenas 14 anos e o donoda lancha sumiram em meio àquelas ondas. Dalmo ten-ta procurar desesperadamente o irmão: vê a jaquetaazul flutuando na água e uma das sandálias presa entreas pedras da costa.

O nome de João é pronunciado em voz alta, mas seperde na ventania, que ameaça o barco ainda mais.Enquanto tenta encontrar outros vestígios dos tripulan-tes, enxerga a rede vazia, flutuando nas ondas violen-tas, donas de duas vidas.

Por um instante, sente um brusco movimento na proada lancha, interrompendo a procura pelo irmão. Joãoestá agarrado ao barco, mas não encontra forças parasubir. O irmão ainda tenta puxá-lo para dentro: tudo oque consegue é arranhar os braços cansados do caçu-la. A água salgada entra em seus olhos, dificultandoainda mais a visibilidade.

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Aos poucos, aquele corpo se rende ao mar. O ventoacalma sua força e, milagrosamente o céu perde as ne-gras nuvens, sem revelar nenhum sinal de acidente.Dalmo e o amigo Cláudio voltam para casa: sem rede,nem peixes. Trazem apenas a lembrança e a tristeza damorte do irmão e do dono do barco, que desaparece-ram para nunca mais retornar.

***— Vou levar a bateira pra costa! — grita Daniel para

os outros tripulantes da embarcação.— Cuidado, cara, é perigoso. Já é noite, aquela ilha

é mal-assombrada... — comenta o amigo, tentando fazê-lo desistir da idéia.

— Isso é só história!Daniel começa a remar em direção à ilha, enquan-

to solta uma gargalhada incontrolável provocadapelas superstições infantis de seus colegas. Haviaapenas dois moradores naquele local, rodeado porpalmeiras e vegetação virgem. Pescadores que alipassaram juraram ver assombrações no meio dasárvores: alguns disseram que até encontraram pes-soas vestidas de branco caminhando na costa; ou-tros preferiram seguir os ditos populares e acreditarem lobisomens e bruxas.

O lugar parece ser mesmo assombrado: o único si-nal de vida são as lamparinas acesas da casa daquelevelho homem que mora ali. Daniel pegou emprestadauma bateira para pescar espécies diferentes na costada ilha. A pescaria estava fraca e precisava garantiralgum peixe para os almoços em família, que enchiama mesa composta pelos 11 irmãos e seus pais. Não iriase assustar com aquelas conversas de assombração,

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que mais lhe lembravam a infância e as noites embai-xo dos cobertores, com medo de fantasmas.

— Como é que um bando de marmanjo pode cairnesse tipo de história? — indaga, enquanto se aproxi-ma da ilha.

Seu amigo não consegue parar de caminhar no con-vés. Tenta encontrar algum objeto no mar, o movimen-to dos remos ou a lanterna a balançar na ilha, para quefossem buscar Daniel.

— Já faz duas horas que ele saiu daqui. E não deumais nenhum aviso ...— comenta ao mestre de barco.

Procurá-lo seria uma situação incerta: o céu estavaencoberto e apenas as luzes da embarcação não garan-tiriam um resgate adequado. Mesmo desafiados, o bar-co dirige-se lentamente à ilha, tentando seguir a rotaescolhida pelo tripulante. As lanternas se movimentamno convés e no toldo, guiadas pelas mãos trêmulas dosoutros tripulantes, que misturam o temor da morte docolega com as assombrações da ilha.

Mas o que aquelas luzes conseguem encontrar é ape-nas a bateira. Estava emborcada, com um dos remosflutuando tranqüilamente próximo ao barco. Danielhavia chegado muito perto da ilha, mas não consegui-ra completar a trajetória.

Dois dias depois, Salma recebe a notícia da mortede seu filho. Encontraram o corpo daquele jovem de 19anos boiando nos mares de Registro, próximo a San-tos, onde saiu com a bateira em direção ao local mal-assombrado. Nunca esqueceria aquele maio de 1979,quando o mar lhe havia roubado o primeiro filho.

***

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Apenas ouvem um estalo, no meio da pescaria. Ocabo de aço se desprende com violência da rede queantes sustentava. A trajetória retilínea e rápida impedequalquer chance de desviar-se daquele golpe: ele vemcerteiro e leva o sopro veloz. Um dos tripulantes senteuma ardência na perna, provocada pela textura rígidado cabo a atingir bruscamente a pele. O sangue escor-re-lhe pelo joelho e o corte parece em chamas.

O outro vê o impacto no abdômen ganhar a cor aver-melhada e quente: as mãos tentam estancar o ferimen-to, mas não conseguem firmeza para sustentar a dor.As pernas amolecem e ele se entrega ao chão do con-vés, em um grito que sufoca o traiçoeiro ruído do cabo.

Já Danir mal consegue acompanhar o caminho da-quele objeto que havia ferido dois amigos e agora cor-ria em sua direção. Muito menos gritar ou exprimir qual-quer manifestação de dor. O impacto atinge seu pesco-ço, queima-lhe a pele, rompe os músculos. Sente ape-nas um ardor profundo e fugaz. Perde o controle dosbraços e das pernas, seus olhos fecham-se e o corpo évencido pela fraqueza.

No convés, entre os gritos dos outros tripulantes e ocabo de aço caído no chão, está o corpo de Danir, coma cabeça desalinhada, e as manchas de sangue a es-correr para o mar, entre as frestas do barco.

— Dona Salma, pediram que a senhora volte paracasa. Aconteceu um acidente com o seu filho Danir —avisa Pedro, secretário do Dr. Sérgio, que interrompe aconsulta marcada há mais de um mês.

Outra desgraça! Só poderia ser. Nunca chamam osparentes quando estão em alto-mar: dessa vez, deviaser grave. Não agüentaria a morte de outro filho, ape-nas um ano depois do acidente fatal com Daniel.

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Salma não consegue acalmar-se durante o caminhoda cidade de Porto Belo ao bairro de Canto Grande.Procura o terço dentro da bolsa, reza as ave-marias semnenhum segundo de pausa, enquanto a irmã acelera ocarro nas ruas esburacadas e rodeadas por árvores, quesombreavam qualquer vestígio de luz.

Quando finalmente chegam a casa, todos os famili-ares e alguns vizinhos estão reunidos no jardim. Suaspernas não conseguem firmeza para encontrar os de-graus da escada, que levariam à cozinha. Ao veremSalma aproximando-se da mesa, os sussurros se trans-formam em um incômodo silêncio. Minutos depois, oterço que estava entre seus dedos cai sobre o corpodaquele jovem de 19 anos.

***Salma termina suas rezas e prende, mais uma vez, o

olhar no horizonte, ainda à procura do terceiro filhoque o oceano lhe roubou. Mas se Deus quisera assim,como haveria de lutar contra? Ele sabe o que faz, sus-surra, para consolar sua tristeza. Ao mesmo tempo, asmemórias da infância daqueles jovens ainda desafiamqualquer tipo de aceitação. Lembra quando as crian-ças sentavam-se com ela, à beira da praia e em meioàs bateiras, para descascar camarão. Ou os momentosnos quais dormiam abraçados à mãe, quando todossentiam saudades do pai que permanecia dias no mar.E daquela decisão que o destino lhes impunha: todosdeveriam ser pescadores, para ajudar no sustento dafamília.

Ali no bairro de Canto Grande, a maioria dos mora-dores vive da pesca e as famílias pouco mudaram nodecorrer dos anos. Até mesmo as casas são as mesmas

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— misturadas às novas residências que surgiram nasúltimas décadas. A maioria apresenta apenas um an-dar, o jardim bem cuidado, aquela cerca de madeira,revelando a calmaria e segurança do local. Rodeiam aigreja de arquitetura açoriana e alemã, o último pontopara o ônibus que sai de Itajaí em direção a Bombas.Bairro silencioso, por manter as características de ci-dade pequena: com um mercado familiar, crianças brin-cando nas calçadas, as muitas árvores trazendo frescornos dias abafados. As poucas ruas são compostas porparalelepípedos, onde carros raramente costumam cir-cular. Os resquícios do passado também se encontramnas histórias dos mais jovens, conhecedores da vida deSalma.

Ela não é a única que perdeu os filhos ou parentesao mar. Tem a Ana, que ficou esperando meses pelofilho; tem também a Maria, seu marido morreu numnaufrágio há anos; e por aí vai. Mas as três mortes, queroubaram a alegria desta senhora de 67 anos, são asmais lembradas: não só pela tragédia, mas pelo sofri-mento que muitos ainda acompanham.

Eram filhos tão bons, nunca deram problema, porque levá-los dessa forma? Até hoje, Salma não encon-tra respostas. Para ela, tudo poderia ser explicado pelavontade de Deus. Vontade que, mesmo na tentativa deaceitar, repudia.

Os rostos de Danir, Daniel e João são exibidos naspinturas expostas na sala, que imitam fotografias empreto e branco. Ela pouco passa por aquele lugar: dedi-ca-se mais à cozinha, à limpeza dos peixes que seumarido e os filhos, Dalmo e Delacir, trazem do mar naspequenas bateiras, ou a cuidar da filha de 34 anos comgraves problemas emocionais. Às vezes, um turista ou

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outro aluga uma casa, construída no próprio terreno, oque acaba garantindo uma renda extra. Mas ela mes-ma não sabe fazer outra coisa, a não ser se dedicar àfamília, à pesca e às orações diárias.

Há tempos, já havia acabado sua reza. No entanto,ainda mantinha o terço apertado entre os dedos. Elenão volta mais. Afasta-se do Sta. Marina, de onde ga-rantem alguns mariscos, e abandona aquela visão sau-dosista. Adeus, filho! Melhor cuidar dos afazeres do-mésticos, da limpeza dos peixes e dos outros filhosque Deus não lhe tirara.

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17. RICARDO(Parte I)

“Na hora, a gente fica pensando:e agora, como a gente

vai voltar pra terra?” (Ricardo Alexandre Cardoso)

Cortava cada pedaço daquele papel, com um cuidadomaior que o de costume. A tesoura teimava em desobe-decer a suas mãos seguras, preferindo entregar-se ao uivoconstante que fazia surgir marolas de todos os lados. Eleinsiste em finalizar o corte, apoiando as costas na parededa casaria e firmando os pés no chão de madeira, quemal conseguiam dar-lhe a estabilidade desejada. Parte dobarco, com pouco mais de 40 centímetros de comprimen-to, exibia-se através de um formato bem definido e minu-ciosamente trabalhado. O convés da traineira, am-plo e com parte da rede já ocupando seu espaço, só espe-rava a tinta que ocultaria emendas e imperfeições. O ca-íque estava amarrado com um fino cabo de aço, enroladoa uma roldana, e pronto para o trabalho. O porão apre-sentava alguns fios elétricos, de diferentes cores, ainda porserem testados: os quais fariam toda aquela máquina fun-cionar, até quando a bateria assim ditasse. E a casaria,onde suas mãos se concentram neste momento, precisaapenas do teto e dos detalhes da janela. Um verniz e pron-to! Já podia vender a miniatura perfeita dos grandes bar-cos de pesca de sardinha.

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Ricardo cuidava de cada detalhe das pequenas em-barcações apenas usando cola, tesoura e pedaços depapel de diferentes espessuras, que sobravam das em-balagens de alimentos. Começou a criar as miniaturasde uma hora para outra, usando o conhecimento ad-quirido após aprender com o trabalho nos estaleiros deNavegantes, quando as brincadeiras de infância foramtrocadas pelo emprego, aos dez anos de idade. A casade máquinas, o convés, o porão, os triliches apertadosonde dormiam, a casaria, os caíques, os metros de rede,o cabo de aço e os detalhes observados apenas por umverdadeiro conhecedor e amante de sua profissão esta-vam ali, em uma escala infinitamente menor que o ta-manho real das grandes embarcações. Se lhe pergunta-vam com quem aprendera a fazer tudo aquilo, comosabia com qual escala deveria ser feita a miniatura, deque forma conseguia transformar pedaços de papel emum material que mais se parecia com madeira, ele res-pondia: ah, não sei explicar, não. Isso tudo saiu de mimmesmo... Vou imaginando, montando, criando e ficaassim, aí ó, como tu tais vendo!

E dessa maneira até conseguia um dinheiro-extrapara levar à família. Com apenas 18 anos, Ricardo es-tava casado e sua Gabriela já passara dos três meses.As contas do fim do mês são pagas com dificuldade —o salário de tripulante só lhe rendia misérias. Pior é vol-tar a casa apenas para quitar dívidas, porque tempo deficar com a mulher e a menina? Ah, tem não. O jeitosempre foi arranjar outra forma de ganhar dinheiro,menos sacrificante que aquela vivida em alto-mar. Re-servava as horas que restavam dos dias e das noitespara fazer algo do qual realmente gostava e poderia trazeralgum lucro. Não conseguia muito, até porque fazia

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pouco tempo que estava naquela de fabricar barcos dementira, mas dava para tirar alguma coisa.

Ricardo encostava-se em qualquer canto, de pé mes-mo, para cortar os papéis e começar a colá-los de ma-neira ordenada. Passava o tempo inventando e rein-ventando embarcações, quando já não precisava maispuxar rede. Ou quando o assunto esgotava entre oscompanheiros de trabalho — momentos freqüentes paraquem vivia semanas convivendo com as mesmas pes-soas e dividindo um espaço de pouco mais de 20 me-tros de comprimento.

Mas, naquela tarde de domingo, o que mais deseja-va era esquecer as marolas que faziam o Verde Vale IIvirar de um lado a outro, desorientado com aquele mo-vimento rude e descompassado. Ele e os outros seiscompanheiros já estavam há um dia sem trabalhar —culpa dos ventos de força 6, que inspiravam ondas demais de cinco metros de altura. Muito menos puderamrecolher a linha de espinhel jogada na região, em buscade mais cherne nos mares do sul. Abaixo da embarca-ção, os 180 metros de profundidade conseguem exer-cer força suficiente para manter o barco flutuando; mas,em contrapartida, revelam a raiva daquelas ondas emtoda a sua superfície.

Estavam ancorados desde a noite anterior, esperan-do a ventania tranqüilizar-se. Os sete pescadores tive-ram de se trancar na casaria, tornando o ambiente ain-da mais limitado, com cheiros e calores duelando-se atodo o momento. Acostumado a atravessar as frestasda porta, o vento frio mal consegue lutar contra o hálitoquente concentrado na cozinha, acentuado pelo vaporde café preto que saía do bule enferrujado pela mare-sia. Negão tenta secar o suor que escorre pela testa com

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o antebraço direito, enquanto segura firmemente a facaafiada, sempre companheira do preparo de almoços ejantares; apóia, sem segurança, o cotovelo em cima dapia para disfarçar o desequilíbrio perdido em meio àoscilação dissonante da embarcação.

Mas China e Jorge nem pareciam estar preocupa-dos com aquele vai-e-vém mareado: seus corpos estãoentregues ao sono nos triliches apertados, fazendo aventania sumir frente ao cansaço de nove dias de tra-balho em alto-mar. Jairo, como responsável por todosaqueles tripulantes e pelas dez toneladas de cherne quehaviam pescado, não podia deixar o cargo de mestrepara dar-se ao luxo de um descanso.

No painel de controle, apenas o chiado incômododo rádio consegue revelar algum indício de tecnologia.A embarcação nem radar apresentava, tornando difícilsaber quem navegava próximo dali. Tinha de prestaratenção nas palavras e frases trocadas entre os mestresde outros barcos, para tentar encontrar amigos e vozesconhecidas. Ou deixar algum dos tripulantes como vi-gia, como forma de alertar a passagem de algum navio.Aliás, vigia era o cargo que fazia uma falta danada nes-tas horas. Com aquele vendaval, tripulante nenhumhaveria de conseguir cumprir a função, até porque malconseguiam perceber algo à frente. Jairo não tirava aatenção do mar, seguro de que seus olhos poderiamenxergar qualquer movimento vindo de longe.

Maldita hora que aceitou um barco sem radar. Mas,como poderia reivindicar embarcação melhor? Se pas-sasse pela fiscalização da Capitania dos Portos, nemele nem o Verde Vale sairiam livres. Até porque nin-guém que estava ali apresentava carteira para embar-car. Poucos haviam chegado até a oitava série e, sem

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estudo, nunca conseguiriam passar pelas provas e tirarpermissão para o embarque. No entanto, como no Bra-sil sempre se dá um jeito, a saída foi encontrar outrapessoa para despachar o barco — essa sim, possuindoautorização. Dessa situação, surgiu um amigo que pre-fere a segurança do asfalto à instabilidade do oceano.O taxista havia tirado carteira de embarque, mas sairpara alto-mar? Nunca. Inscreveu-se como mestre doVerde Vale e, no retorno, ganharia o salário de tripulan-te: mesmo sem pisar na embarcação e conferir as tone-ladas de cherne.

Ah, e que crime teria feito? Tem um monte de barcoaí com tripulação ilegal, já virou até algo comum. Eletinha muito mais experiência do que aquele que fazia odespache e assumia o falso posto de mestre de barco.O que valia, lá fora, eram o conhecimento empírico e acoragem para passar dias e dias à mercê do oceano. Edessas qualidades, Jairo tinha convicção de que des-frutava.

— Tudo em ordem aqui embaixo! — grita Beto, agar-rado à escada de acesso ao motor, cujo corrimão sem-pre se mostrava encardido pela graxa desprendida deseus dedos. Os poucos minutos em que permanece na-quele local abafado tornam-se suficientes para o cheirodo óleo penetrar por entre os poros de sua pele e sódeixá-lo após alguns dias longe do barco.

— Tranqüilo... Logo esse temporal passa e vamospegar mais umas toneladas de cherne! — responde Ja-iro, sem tirar os olhos da tempestade que contestava aafirmação, não revelando vestígios de se render à cal-maria.

E Ricardo ficava ali, com as costas apoiadas naparede, mais preocupado em finalizar a miniatura a dar

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ouvidos ao respirar desordenado de Jairo e ao som dasondas ininterruptas, que batiam intensamente na jane-la da casaria.

Seu primo, Renato, olhava por entre o vidro da ma-loca, tentando adivinhar de onde viria a próxima ma-rola. As ondas quebravam em cima do convés e deter-minavam o movimento da embarcação; rapidamente aágua que entrava por ali escorria pelas frestas laterais,impulsionada por aquele balanço impetuoso. Tinha dese segurar na maçaneta da porta, para conseguir man-dar em suas pernas, desequilibradas pela invisibilidadedo barco em meio àquela ventania sem fim.

— Ô, primo, dá uma olhada aí fora... Parece que omar vai engolir a gente!

— Ah, nem te preocupa, não! Aqui, no Sul, é sem-pre assim. Vai passar, deixa de bobagem... — respondeRicardo, concentrado com as proporções da casaria desua miniatura.

— Não sei como tu não ficas preocupado, primo.Até parece que tem anos de trabalho, e mal chegou aqui.Tu achas mesmo que essas suas três ou quatro viagensque fizesse já te deixam todo confiante?

— Deixa de besteira, homem! É mais fácil morrerem terra, de acidente de carro, do que com uma embar-cação!

Renato olha com desprezo para o primo. Onde já seviu duvidar do mar? Aquelas ondas estavam convictasde que não mereciam qualquer subjugação: entravamviolentamente pelo convés e desejavam destruir cadacentímetro da madeira que formava o Verde Vale. Malconseguia enxergar a popa, a menos de três metros dedistância da casaria, com tanta água que atingia a ja-nela.

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— Vai um café aí? — oferece Negão, tentando fazercom que nenhuma gota quente caia do bule.

— Tomar café como, com o barco desse jeito? —retruca Jairo, já nervoso com o temporal ininterrupto eo prejuízo de dois dias parados.

— Ah, dá-se um jeito, tempo ruim tem em tudo quan-to é mar...

Ricardo ouve, distraído, a conversa do cozinheiro edo mestre de barco, enquanto leva a miniatura até acama. Apóia um de seus pés na parede, para deter odesequilíbrio do corpo; as costas tentam achar algumaposição um pouco mais confortável no colchão toma-do pelo desgaste. Segura firmemente, com um zelo par-ticular, aquele pequeno barco, quando sente um impul-so que o arremessa ao chão. A traineira se desprendede suas mãos e é lançada contra a parede, misturando-se aos colchões e travesseiros jogados desordenadamen-te. China e Jorge seguram-se nos pés dos triliches, ten-tando lutar contra a força que parece sugá-los para ooutro lado da casaria.

Jairo é atirado ao leme e observa, com o tórax apoi-ado no timão e os braços tentando encontrar um apoio,a casaria inclinar-se verticalmente em direção ao mar.Negão segura-se na pia, mas é vencido pelas panelasque caem sobre seu corpo e pelos cacos de vidro nochão, cortando-lhe a pele. Renato fica retraído contraum dos cantos da maloca, os braços segurando forte-mente os joelhos, com a cabeça e as costas apoiadasna parede, onde consegue ver a janela exibindo o marrevolto — muito mais íntimo do que desejava.

Os poucos segundos em que a embarcação permane-ce totalmente inclinada na vertical, com a proa para cima,são de total imobilidade para aqueles pescadores.

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Vidas separadas pelo mar172

Acuados, cada um tenta adivinhar, ou somente aguar-dar, a próxima ação do Verde Vale e das marolas. Ri-cardo, segurando-se em uma das laterais dos triliches,consegue apenas sentir o suor desprendido da palmadas mãos, facilitando a possibilidade de seus dedos per-derem a sensação de força e a segurança.

Alguns estalos saem do corpo do Verde Vale, quecomeça a inclinar-se para frente. Todas as toneladas decherne e o peso carregado em sua estrutura acentuama velocidade da embarcação ao voltar pela mesma tra-jetória e chocar-se violentamente contra o mar. O im-pacto do barco contra a água soa pesado e parece abrirum vácuo no oceano. O choque ensurdece, mas umzunido agudo continua perturbando-o e fazendo-o tre-mular ao ritmo daquele som.

Não se importando com as dores que tomam seucorpo, Ricardo levanta-se e corre em direção a bom-bordo, na tentativa de saber de onde vinha o incômodoruído que parecia arranhar cada centímetro da embar-cação. Vê-se minúsculo perante aquele gigante, nave-gando tranqüilamente, sem perceber que, junto ao seucaminho, segue também o Verde Vale, arrastado porsua força imponente. Ricardo apenas consegue identi-ficar a inscrição “Rio de Janeiro”, ornamentando umade suas laterais. O navio ainda insiste em empurrar,por alguns metros, o Verde Vale, que mal lhe faz cóce-gas. Após poucos segundos, abandona-o ao destino oqual lhe impusera.

— Peguem os coletes! — grita Jairo, tentando fazercom que aquela imagem deixasse de hipnotizar os tri-pulantes. Ele corre para a casaria e, nervosamente, ten-ta achar alguma estação na qual pudesse conversarcom as embarcações próximas e passar a posição onde

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Vidas separadas pelo mar 173

se encontravam. Deveria ter algum barco por perto, ti-nha de ter. As mãos trêmulas mal conseguem coorde-nar aqueles poucos botões do rádio, que não demons-tra vontade alguma em deixar seus incômodos chiadospara depois.

Ricardo e Renato correm para o convés, crentes deque a água já havia invadido todo o navio junto comos estalos nervosos do Verde Vale. Olham pela janela,mas, felizmente, a embarcação teimava em flutuar. Umsuspiro de alívio.

Beto desce nervosamente a escada da casaria, es-quecendo-se do desequilíbrio criado pelas marolas. Aochegar à casa das máquinas, sua visão espelha um te-mor que não queria afirmar. O navio havia perfurado ocasco do Verde Vale e os estalos vinham justamente detoda a estrutura da embarcação perdendo suas forçasperante a fúria do mar.

— Ô, pessoal, vem ligeiro aqui pro motor! — berraJairo, que começa a descer mais um degrau e encostasua pele na água gélida dos mares do sul.

Negão ainda tenta amarrar o colete salva-vidas,meio desengonçado, enquanto apóia-se no corrimãopara ajudar o motorista. China, Ricardo e Renato ten-tam tirar a água com baldes, com pouco mais de 30centímetros de diâmetro, mas o mar teima em entrar,misturando-se ao cheiro de óleo e à fumaça que sai domotor. Os braços daqueles pescadores seguem movi-mentos repetitivos e rápidos, acostumados a puxar rede,mas agora brigando para arremessar a água a lugaralgum.

— Beto, isso aqui não vai adiantar! — grita Renato.— Não interessa, a gente tem que salvar o motor!Mas o nível da água insiste em subir ainda mais,

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cobrindo praticamente todo o corpo dos tripulantes echegando até o ombro. Negão é o primeiro a abando-nar a casa das máquinas, com medo de que o coletesalva-vidas se soltasse, deixando-o sem apoio algumpara aquele corpo pouco íntimo do mar. Ricardo e osoutros tripulantes sobem rapidamente as escadas, já comdificuldades em mover as pernas, impedidas pela forçada inundação.

— Estamos ao sul da barra do Rio Grande, 180metros de profundidade. Alguém aí? Câmbio! — gritaJairo, ainda tentando encontrar algum barco por perto.Segura o leme, com força, como se pudesse ter controlesobre a embarcação. Do outro lado do rádio, apenasaquele chiado inconveniente e a voz de outros mestresde barco tornando-se cada vez mais distantes.

Beto levanta seus braços para fora da água e tentacoordená-los junto com o movimento das pernas, malconseguindo mexerem-se dentro da maquinaria inun-dada. Lança suspiros breves e repetitivos, com a bocavoltada para cima, buscando uma maneira de não en-golir a água salgada que volta e meia respinga em seuslábios. Chega até o corrimão da escada, onde conse-gue subir alguns degraus. Fita, mais uma vez, o motordo Verde Vale, entregue ao oceano. Despede-se.

China olha paralisado para o que vê da janela dacasaria: toda a embarcação já está embaixo da água eo local que ainda resiste é justamente onde ele conse-gue se proteger. Do lado de fora, Ricardo começa a nadardesesperadamente em direção ao bote salva-vidas; lutacontra o frio, contra as marolas violentas da tempesta-de, contra a ventania, contra o Verde Vale. Puxa o fioque inflaria a bóia, mas, ao soltá-lo, o cabo arrebenta-se e o bote cai no mar. Não pensa duas vezes: o que

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mais queria era arranjar uma maneira de sair dali. Levaconsigo a bomba e, com a força que ainda lhe resta,começa a enchê-lo, ao mesmo tempo, que briga contraas investidas das ondas.

— Estamos ao sul da barra do Rio Grande. 180metros de profundidade. O Verde Vale II está naufra-gando. Por favor, precisamos de socorro, urgente! Al-guém na escuta? — do outro lado, Jairo ouve apenas osilêncio.

Beto coloca o colete salva-vidas e, deixando de ladoa imagem do motor entregue ao mar, une-se aos outrostripulantes que nadam descontroladamente em direçãoà bóia. Um agarra-se aos braços do outro; outro tentaencontrar o momento exato para subir sem ser atingidopelas marolas; o mais temeroso lança lágrimas que setornam invisíveis no meio da tempestade. Ninguémnunca havia sofrido um naufrágio antes, mas, naque-las horas, todos se uniam para manter a calma e en-contrar uma saída para se salvarem.

Jairo tenta, mais uma vez, algum contato que pu-desse tirá-los dali. Mas, somente vem aquele chiado.Sai da casaria, de onde vê todos os sete amigos espe-rando-o dentro do bote; as ondas de cinco metros an-seiam sugar aquele único instrumento capaz de mantê-los vivos, sem deixar vestígios. Os braços cansados deRicardo ainda encontram forças para segurar-se a umadas laterais da casaria, sem deixar que a bóia se afas-tasse dali. Jairo agarra-se às mãos de China para unir-se à incerteza do retorno. De longe, todos dizem umadeus silencioso ao Verde Vale II que, aos poucos, en-trega-se ao oceano.

Naquele momento, sentiam-se sós.

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18. SÓ

“E pensava que no meio daquelasolidão infinita, no meio do escuro

rumor do mar, não precisava senão vera luz de um navio, para dar um gritoque se ouviria a qualquer distância.”

(Relato de um Náufrago – Gabriel García

Marquez)

O mar acorda sereno. O temporal da noite anteriorperdeu forças diante daquela vastidão. Luz forte. Acla-ra o céu. Cheiro de café. Ouço barulho de motor, má-quinas, rede, vozes. Já me é familiar. No mesmo horá-rio. As mesmas ações. Subo ao toldo, encontro o hori-zonte. Engraçado. Também criei uma rotina. De todasas manhãs estar aqui. Silencio. Perco-me em pensa-mentos. Gosto de apreciar aquele azul, sentir o cheirosalgado, maresia na pele. É meu refúgio. Sempre foi.Sinto-me cansada? Olho o mar. Tristeza? Alegro-mecom ele. Angústia? As ondas sempre me acalmaram.Até na solidão fazem-me companhia. Desde pequena,o mar era meu amigo. Diziam-me: você nasceu no mar,menina! E eu, a deliciar-me na imaginação pueril. Deque nas ondas havia nascido. Mãos mágicas a me cons-truir. Sem perceber a denotação daquela frase. Havianascido em Itajaí, cidade de praia, apenas isso. Dourisada, até hoje.

Agora, estou aqui, neste mar sem fim. Preocupadacom o depois. Sonhos para anos. Sinto-me envolta nospensamentos. A criar situações. Inventar o futuro.

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Reinventar o passado, talvez. Fico ali, horas. Esqueço obarulho do motor. As conversas no convés. As risadasdo Zé. O olhar desconfiado do Eca. Apenas observoaquele mar. Sem preocupação. Hipnotizo.

Fixo meus olhos nas ondas. Agora, sem mal-estar.Sinto-me liberta daquela sensação. Vejo um cação aexibir um azul mais forte em contraste ao oceano. Noprimeiro dia, não teria percebido a diferença. O marparece aguçar a visão. Perco-me com a correria, comos sons, com o falar. Mas ali estão o silêncio da minhavoz, a calmaria de meus movimentos e a sonoridadedas ondas. O olhar torna-se único. Majestoso.

Aquela imensidão assusta. Fascina. Não estou só,no barco. Mas, no barco, estamos sós. A quase 200quilômetros da costa. Entregues à sorte. Ao tempo. Aoautocontrole. Às mesmas pessoas e vozes. Àquela roti-na. Água para todos os lados. Infinito. Sem possibilida-de de escolha. Optar por outra paisagem. Encontrarnovas companhias. Mandar no cotidiano. Impor regrasao mar. Aqui, ele quem manda. Nós apenas sobrevive-mos.

Volto meu olhar à mesma cena. Puxa rede, olha opeixe, mata o peixe, puxa a rede. Rotina, novamente.Com hora determinada. Mas sem data prevista para oretorno. Sem saber se amanhã o dia será bom. Semsaber se vem peixe na rede. Sem saber se retornarão àssuas casas. Como conseguem? Permanecer vinte diasno mar, cinco em terra, volta para o barco, até logo!para a família. Perdem contato. Notícias. Esquecem asvozes das mulheres, dos filhos. Aqui, são esquecidos.Fazem-se esquecer. Não são vistos nas ruas. Não en-contram os amigos. Existem nas saudades, apenas. Sin-to-me sem identidade. Pequena. Frágil. Livre no ocea-

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no. Mas esquecida ali. Sem poder sair. Condicionadaàquele ambiente. Sem saber o que acontece em terra.Um mundo ao redor. Silencioso. Sem notícias. Apenasnós. Aquela realidade. Mesmas vozes. Paisagem de céue mar.

Olho para aquele azul de dois tons. Perco-me na cla-ridade. Sem piscar, continuo ali. Sem me mover, ape-nas observo. Não há mais o que imaginar. Barulho dasondas. Idéias se convertem em nada. Absoluto. O nadaexiste? Ali, parece impor-se. O nada além do horizonte,onde os olhos não alcançam. O nada que esconde aterra. O nada abaixo do oceano, quando o peixe nãovem. O nada além da rotina. O nada no céu. Vazio,sem pássaros. Ficaram lá em terra. O nada. Apenas obarco, no meio do mar. Esquecido. Só.

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19. RICARDO(Parte II)

“Eu acho que, quando as coisas apertam em uma situação dessas, ninguém pensa em nada.

Pensam ‘cada um para si e Deus por todos’.Pra quem tá em terra, tá sossegado, tudo passa.”

(Ricardo Alexandre Cardoso)

Em meio ao nada. De todos os lados surgem ventos:noroeste, sueste; a tensão não consegue fazê-los distin-guir de onde virá a próxima marola. Todos os oito pes-cadores tentam encontrar espaço em um dos lados dabóia, que se limita aos seus 3 por 3 metros quadrados.Dali, apenas conseguem ver o Verde Vale emborcado,teimando em não se entregar ao oceano.

A marola começa a se formar a metros de distânciade onde estão, já revelando qual lado do bote irá atin-gir. Todos se dirigem para o sentido oposto, como ma-neira de tentar equilibrarem-se naquele espaço mínimo— a única forma de continuarem vivos, longe dos ca-ções que assustam os pescadores e da água gélida dosmares do sul. Naquele momento, o medo maior era con-gelar com aquela água que não parava de invadir abóia. E, dessa maneira, eles seguiam: mudando de po-sição como a onda assim mandasse e retirando a águaque entrava no bote.

Jairo insiste em salvar o sinalizador, já molhado coma quantidade de marolas que investiam contra eles.

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Acende o rojão, segura-o para cima e, com os olhos eboca contraídos, espera até que o som exploda aquelefogo que poderia ser visto a metros de distância. Falsaoportunidade. O sinalizador estoura dentro da bóia, nãoconseguindo lutar com a quantidade de água ao qualfoi exposto.

Os braços magros e cansados de Ricardo não pa-ram de fazer movimentos repetitivos, buscando, de to-das as formas, uma forma de prolongar a sobrevivên-cia. A água fria parece penetrar como pequenas lâmi-nas afiadas por toda a sua pele. O vento do temporalmal consegue permitir enxergar alguma coisa. Seusolhos misturam a pigmentação esverdeada com pontosvermelhos, alimentados pelo sal do oceano.

O som que o acompanha é apenas aquele que nas-ce junto ao uivo intenso do vento, das marolas chocan-do-se contra a bóia. Estranha a ausência do ruído in-cômodo do motor; até já havia esquecido como era osom do oceano fora do barco. Presta atenção à respira-ção nervosa dos companheiros, misturada à sensaçãode frio. Ninguém demonstra desespero, não se ouvempalavras de descrença ou força; manifestações de tris-teza revelam-se nulas. Naquele momento, suas vozesecoam um silêncio estranho.

A noite chega, escura. Céu e mar unem-se, em umanegridão sem fim.

***Gabriela balança o brinquedo, tentando encontrar

aquele som que sempre lhe tira boas risadas. Desde queaprendera a rir, pegava o chocalho de diferentes colori-dos com as duas mãos e só queria saber de movimen-tá-lo para lá e para cá, extraindo-lhe uma música sem

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harmonia alguma, apenas de estranhos ruídos, mas osuficiente para movimentar todo o seu rosto em dife-rentes gargalhadas. Tenta encontrar de onde saem aque-les barulhos estranhos: observa o objeto por todos oslados, coloca-o na boca para sentir algo; olha mais umavez.

Enquanto movimenta o chocalho, sente os pés ner-vosos de sua mãe a balançar o carrinho, onde passahoras e horas do seu tempo — meio a contragosto. Es-tava acostumada a um vai-e-vém mais lento; mas, na-quele dia, tudo por ali parecia um pouco mais agitado.De todos os lados, surgem rostos estranhos e familia-res. Vozes que reconhecia, outras que nunca haviaescutado. Cantam um canto estranho, uma melodia re-petitiva. Uns parecem sussurrar, outros preferem imporsuas vozes, alguns apenas pensam de olhos fechados.E sua mãe? Continua balançando o carrinho, automa-ticamente. Alguém, que vez ou outra aparece por ali,está abraçando-a e dizendo-lhe um monte de ruídos, osquais não consegue distinguir. Por que sua mãe não lhedava atenção? O jeito era parar de se concentrar nochocalho e soltar aquele velho choro, para conseguirdizer o que queria. Sempre dava certo.

— Ai, dona Vilna! Olha só... Por que Deus foi tirarmeu Ricardo e me deixar sozinha com uma menina detrês meses?

— Calma, Regiane, calma. Tenho certeza de que elesestão vivos. Vamos orar e pedir a Nossa Senhora quetragam todos de volta.

O olhar sereno e as palavras seguras daquela se-nhora de 81 anos eram o que conseguia confortá-la.Desde a manhã de segunda-feira, quando recebeu anotícia de que o Verde Vale havia naufragado, não

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conseguia deixar de pensar um segundo sequer em seumarido. Como estaria ele, em alto-mar? Estavam nabalsa? Foi tempestade? Ah, quantas vezes lhe disse paranão se aventurar no oceano, quantas vezes! Mas Ricar-do sempre repetia: salário de duzentos reais em terranão consegue sustentar família alguma. É lá fora quevou conseguir dinheiro! E o que havia mudado? Salá-rio de tripulante também nunca foi lá aquelas coisas e opior era sempre ter que lhe dar adeus não sabendo ahora do retorno. Parecia até castigo de Deus.

— Não diga isso, Regiane! Deus está do nosso lado.Ricardo vai voltar para a família, tenha fé!

— Eu quero acreditar nisso, mas vem um e me dizque todos morreram, vem outro e diz que não. Vem essamoça da TV e fica falando do naufrágio toda hora.

O boca em boca que dispersou a notícia do aciden-te, em Navegantes, logo chegou aos ouvidos da impren-sa. Jornalistas não paravam de ligar para as famílias, àprocura de entrevistas e notícias de última hora. Seráque aquela gente não podia entender o momento peloqual estavam passando? Não, o que eles queriam eraminformações e mais informações sobre a tragédia: as-sim poderiam preencher as páginas dos jornais e osminutos da TV.

— Não se preocupe com isso, menina. Vamos nosconcentrar em nossas orações para dar forças a elesque estão no mar...

E seguiam as orações, reunindo vizinhos, amigos efamiliares: todos de família de pescadores que conheci-am muito bem aquela situação. Por horas, dias e noi-tes, a corrente de oração passou por todas as casas dosfamiliares, unindo a pequena cidade de Navegantes.

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***Ricardo tenta encontrar uma posição confortável,

para aliviar as dores das costas e das pernas. Durantetoda a noite, seus joelhos permaneceram dobrados, ape-nas se movimentado conforme as ondas colidiam con-tra a bóia. Nem o cansaço permitiu que fechasse osolhos. O mar agitado teimava em derrubá-los da balsa,sem reservar qualquer momento de pausa. Olha paraRenato, que continua tirando a água com as mãos emformato de concha: ele, que já estava inseguro comaquele vendaval, ainda dentro do Verde Vale, teve aconfirmação do que temia. Negão não se permite dei-xar o colete salva-vidas: para quem mal sabia nadar, ojeito era agarrar-se ao incômodo material, que lhe co-meçava a criar as primeiras feridas na pele. Beto pou-co movimenta o olhar: vigia o oceano à procura de al-guma embarcação que pudesse passar por ali. Chinaainda tenta encontrar algo para comer: mas aquelesalimentos em formato de goma desmancharam-se como sal de ondas violentas. Jairo, cabisbaixo: que deveriapensar naquele momento? Em como sair dali, na famí-lia que deixara, no prejuízo daquela viagem, na embar-cação sem radar, em tudo ao mesmo tempo.

Já Ricardo não consegue organizar seus pensamen-tos. Pensa na família, pensa no temporal, pensa emnada. Involuntariamente, continua fazendo o movimentode tirar a água da bóia, de ir a um lado e outro parabuscar equilíbrio, de encostar-se em algum canto em-baixo da lona. Lá em terra, eles devem estar bem. Se eumorrer, vão orar, chorar, sentir a ausência por um tem-po: mas vão continuar vivendo. Minha Gabriela, mi-nha Regiane. Vão ficar bem. Bebe um gole de água,para tentar enganar a fome. Em terra, vão ficar bem —

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reafirma. O problema é estar ali, no meio do nada, semsaber quando vão encontrá-lo, sem saber onde estão,sem saber se irá agüentar.

De longe, ouve um zunido familiar, tornando-se ra-pidamente mais forte. Olha para cima, com os olhossemicerrados tentando proteger-se de um sol que timi-damente começa a aparecer. O avião interrompe qual-quer pensamento e ganha a atenção de todos os tripu-lantes. Estranho perceber que, após tantas horas aban-donado ao oceano, fizeram-no dar valor maior a qual-quer acontecimento estranho àquele cotidiano. Uma fis-gada de crença toma conta de todos os tripulantes, quecomeçam a soltar risos nervosos e acreditar no retorno.Jairo pega o espelho para criar feixes de luz ao ser dire-cionado ao sol. Na água, o brilho tornava-se muito maisintenso e reflexivo, chamando a atenção para que per-cebessem aquele movimento distante no meio do ocea-no. O avião dá as costas ao pedido de socorro; nemsequer o enxerga. Diz adeus e os condena à própriasorte.

Mas, naquela noite, o céu dormiu estrelado.

***O Corveta Baiana navega nos mares do Rio Gran-

de do Sul, já tranqüilo após o temporal que se prolon-gou por três dias. Do ponto do acidente — captado porembarcações distantes que ouviram as informações eos gritos desesperados de Jairo — o navio traça umatrajetória circular, distanciando-se gradativamente da-quele local.

A bordo, 40 marinheiros especializados, passandopelo segundo dia de busca pelas vítimas do naufrágiodo Verde Vale II.

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— Acredita mesmo que eles podem estar vivos?— Acho que esses já se foram...— Pode ser que estejam aí ainda, perdidos.— Eu acho que vai ser difícil conseguir achar algum

sobrevivente depois do temporal...E assim as especulações prosseguiam. A maioria pre-

parada para encontrar apenas os corpos ou, como emmuitos casos, lançar o diagnóstico de “desaparecidos”.

Acompanhando as operações da Marinha, a impren-sa continua a extasiar a notícia nas capas dos jornais,nas emissoras de rádio, em flashes nos telejornais. Sem-pre com um tom que possa refletir certa tensão, por causadas dificuldades nas buscas e as condições adversasdo mar no dia do naufrágio. Mas, eles mantêm as pala-vras de alerta à população como se, a qualquer mo-mento, algo pudesse acontecer, prendendo a atençãodo público nas notícias de última hora.

No oceano, apenas o nada.

***Percebe a primeira claridade daquela manhã. Arde-

lhe olhar diretamente ao sol, nascendo em sua frente.Aparece em meio às poucas nuvens acinzentadas, res-quícios do temporal que começou naquele 24 de marçode 1996. Sente fraqueza no corpo, vontade de deitar-seem sua cama, dormir sem a companhia das águas ge-ladas. As pernas sentem dormência de não poderem semover; os braços já não conseguem fazer força paralevantarem-se. Dá graças a Deus por não precisar maislutar contra a tempestade. Olha para os lados. Os com-panheiros continuam calados, abatidos.

Sente-se sozinho, naquelas horas que insistem emcaminhar lentamente. Em deixá-lo entediado com a

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Vidas separadas pelo mar188

paisagem. Mar, céu, céu, mar. Sente-se um nada nomeio daquela imensidão. Antes, orgulhava-se em domá-la. Agora, mal consegue dominar as ondas que tranqüi-lamente balançam a bóia.

O sol, preguiçoso, nasce vagarosamente. Meu Deus,quantas horas ainda iria ficar ali? Silêncio. Nunca sen-tira, de maneira tão intensa, cada segundo quanto ago-ra. Começa a passar a mão pela camiseta e a bermu-da: sente o tecido esfarelar-se com facilidade, já entre-gue ao sal e às primeiras horas de sol. Lança ao mar ospedaços de camisa que ainda restam. Apenas sobra ocolarinho, que consegue aquecer parte de seu pescoço,gelado por causa dos ventos de outono.

Ao lado, Negão passa a mão pela nuca e sente apele grudada ao colete. Derrama um pouco de águasobre o local, mas grita com a ardência muito maior;cada gota parece conseguir entrar profundamente nacarne rasgada. Todos ouvem o grito, como se a dor tam-bém pudesse exprimir o desespero daqueles tripulan-tes.

Meio-dia. O sol começa a arde-lhe o rosto. Não há oque fazer. Vontade de sair nadando por aí. Ninguémvai a nado para lugar algum, sempre ouviu dizer. Perdi-do, mal consegue captar os sentidos. Nem a direção. Anuca está tensa, sente o pescoço fazer um esforço so-bre-humano para sustentar a cabeça; as têmporas late-jam, primeiros sinais das dores que se tornariam cadavez mais fortes. Massageia, em movimentos circularescom a ponta dos dedos, a região ao lado dos olhos.Observa o céu. As nuvens revelam cada vez mais o solda tarde.

O balanço das ondas começa a entediar Ricardo.Vai e vem constante. Não dispunha de um minuto

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Vidas separadas pelo mar 189

sequer de sossego. Amolece o corpo. Fraqueza nos bra-ços e nas pernas. Maldita dor de cabeça. Fome. Nadaaparecia por ali. Só aquele azul, a espuma branca dasondas, o céu cada vez mais claro. E, novamente, o nada.Sente uma dor forte no estômago, que há dois dias nãosentia nem um sabor.

Cruza as mãos à frente, apoiando-as em cima dojoelho, dolorido por não conseguir se mexer. Sente go-tas de água baterem em sua boca; tenta aliviar a ardên-cia com um leve movimento de lábios, mais inchadosque o normal. Mas tudo parece contaminado pelo mar.Maldito mar: sempre gostava de senti-lo em sua pele,quando ia lá pra praia de Navegantes. Mas, agora, nãoo deixava em paz. Promete a si mesmo que se saíssedaquela situação, pediria as contas e voltaria ao esta-leiro. Nunca mais queria saber de pesca.

— Ô, gente! Olha aí a companhia que arranjamos!— grita Jairo, interrompendo o silêncio e apoiando-sena borda da bóia.

— Esse aí parece estar com mais fome que a gente!— solta Renato, que consegue arrancar algumas risa-das dos companheiros.

O dourado nada ao redor do bote, sentindo o cheirode suor e da pele queimada. Tenta lançar algumasinvestidas contra a bóia com sua cauda; permite queseja observado bem de perto.

— Ô, se tivesse um anzol agora. Lá no Verde Vale,esse dourado não saía vivo! — comenta Negão, já pen-sando nas diferentes formas de assar o peixe de ummetro e meio de comprimento. Mas o que vêm à mentesão os dentes desafiando suas escamas, que lhe cortamo lábio, até encontrar a carne macia. A língua sentindoo gosto do sangue quente, que escorre entre seus

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dedos. Os olhos vivos do animal, desesperados, a fitá-los. Aquele pensamento enjoa os sentidos; a fome silen-cia.

***“Há mais de 50 horas, a embarcação Verde Vale

naufragou a 140 milhas do Farol de Albardão, em umaárea próxima ao Chuí, divisa entre Rio Grande do Sule Uruguai. A Marinha já começou as buscas, só queaté agora não há nenhum sinal dos tripulantes que es-tavam no barco. As causas do acidente ainda são des-conhecidas, mas acredita-se que o mau tempo...”. Re-giane desliga a TV, cansada de ouvir sempre as mes-mas notícias.

Gabriela já consegue dormir com todos aqueles sonse a movimentação intensa de pessoas em sua casa.Acostumou-se aos dois dias de agitação e de rostos es-tranhos. Regiane observa a tranqüilidade da menina,com certa inveja. Como queria ela conseguir dormir,não saber do acidente, brincar como se nada esti-vesse acontecendo. Como estava lindo o seu bebê.Ricardo pouco aproveitou os momentos junto à me-nina. Quando ela nasceu, retornou do mar apenasquinze dias depois. Passou uns três dias em casa, evoltou ao trabalho.

Onde estaria ele agora, minha Nossa Senhora dosNavegantes! Salve o meu Ricardo e todos os seus com-panheiros de trabalho. Que ventos, tempestades, bor-rascas, raios e ressacas não os perturbem mais. Faz de-saparecer o medo nas horas de perigo. Dai-lhes ânimoe disposição para lutar e vencer. Nossa Senhora dosNavegantes, rogai por todos os pescadores do VerdeVale.

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***Manhã de quarta-feira. Mais uma noite sem dormir.

Mais um dia de espera. Encontravam-se ali, novamen-te sozinhos. Sem o som do motor do Verde Vale, asbrincadeiras que faziam entre uma puxada de rede eoutra, o chiado do rádio que tanto os acordara às seishoras da manhã.

Ricardo sente fraqueza em cada centímetro de seucorpo. Os dedos mal se movem. Não há forças nas per-nas, nos braços que pescaram tanto cherne. O sol de-seja furar a pupila; os cabelos de fios castanhos estãocada vez mais claros. Apóia a cabeça contra os joe-lhos. Precisa esperar. Esperar para encontrar o cardu-me, esperar o pagamento em terra, esperar para ver afamília. Paciente ele já era. Mas, diferente do que acon-tecia na rotina de embarcado, ali, no meio da imensi-dão, não havia esperança da certeza. Certeza de que osencontrariam vivos ou certeza de que viveria.

Ao render-se àquele balanço constante do mar, ouveum som diferente. Um som trêmulo que perturba seusilêncio. Olha para Renato, a fim de certificar-se de queaquilo não era alguma alucinação. O primo respondeao olhar, com um tímido sorriso. Faz um sinal com asobrancelha, direcionando-a para cima. Ricardo cobreparte de seus olhos para ver o que era aquela sombra.Desta vez, não lhes dão as costas. Um avião da Mari-nha sobrevoa o local e sinaliza o resgate.

As setenta horas de espera, finalmente, chegam aofim.

***— Vocês não vão poder dizer isso. Falem que foi

apenas o tempo ruim que fez o barco naufragar! —

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reponde, com uma voz ríspida, mas insegura, o sargen-to da Capitania dos Portos da cidade de Rio Grande.

— Não! Estávamos em alto-mar e um navio bateuna gente! — responde Jairo, já irritado com a mentiraque queriam fazê-los falar.

— Mas vocês não têm carteira e o barco só tinhaautorização para pescar a 50 milhas da costa! — cons-tata, após perceber que a embarcação estava a 250milhas.

— Só que não passamos por fiscalização nenhumae a gente estava lá sim, pescando cherne.

— Gente, para que as coisas não se compliquem,até para o nosso lado... Digam que foi mau tempo.

— Não, foi um navio cargueiro, a gente estava a 250milhas, não houve fiscalização. Não interessa! — insis-te Jairo.

Ricardo ouve a conversa, meio querendo rir da situ-ação. Quem diria que pediriam para mentir no depoi-mento? Ah, mas conhecendo a personalidade dos com-panheiros de barco, sabia muito bem que ninguém iriafalar o contrário do que realmente aconteceu.

Toma um gole de água, desinteressando-se pela dis-cussão. Passa a mão no rosto, ainda inchado e quei-mado pelo sol e sal. Como era bom poder esticar osjoelhos, quando mal conseguia mover-se naqueles trêsdias e meio em alto-mar. Suas pernas e braços aindaardem do sol; consegue sentir cada osso manifestar certador — estava acostumado com sua magreza de 60 qui-los, mas agora se sentia fraco com aqueles 54.

Que alívio conseguir trocar duas palavras com Re-giane, confortando-a, mesmo por telefone. Teria de es-perar mais cinco dias para retornar para casa, até fin-dar aquela confusão de inquérito, exame sei-lá-de-que

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e o que mais perguntassem a eles. Mas, voltaria paracasa. E nunca mais, jurava para si mesmo, retornaria aembarcação alguma.

***Toda a cidade de Navegantes parecia estar reunida

em frente ao ferry-boat. Flashes, câmeras, abraços, sor-risos, aplausos, faixas com palavras de carinho. Todosesperavam os heróis do Verde Vale II com uma grandepasseata de comemoração. A Igreja de Nossa Senhorados Navegantes, logo em frente ao Rio Itajaí-Açu e àcidade de Itajaí, também parecia testemunhar aquelagrande festa.

Ricardo não imaginava que tudo aquilo era paraeles. Recebia abraços de gente conhecida, de gente es-tranha. Pessoas querendo-lhe dar a mão, parabenizan-do pela coragem. Palmas e mais palmas que o faziamesquecer todos aqueles dias à mercê do oceano. Comoera bom voltar para casa e ser valorizado desta forma.Ele? Um pescador, que mal tinha completado os estu-dos, agora era um exemplo para todas aquelas pesso-as. Quisera ele também ser valorizado pelos grandesdonos da pesca, os armadores, as empresas as quaislhe pagavam com troco.

Ricardo se lembraria com mais intensidade do quepensara enquanto era louvado na passeata, dias de-pois, após receber o pagamento daquele mês e o segu-ro de vida. As poucas notas de dinheiro mal consegui-am encher sua carteira. Olha para aqueles valores esente vontade de jogá-los na cara de seu patrão, de pro-testar contra um trabalho sem direitos, de abandonar apesca para sempre, de entrar na Justiça. Foram

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duzentos reais de salário e uma indenização de 4 reaispara cada um. Quatro reais. Era isso que sua vida e avida de cada pescador valiam para as empresas? Mas,prefere calar-se. Já havia passado por tanta coisa na-quele naufrágio que não queria mais saber de advoga-dos, depoimentos, processos e mais processos.

Olha para Regiane e Gabriela, envergonhado como que trouxera para, mais uma vez, pagar as contas. Aesposa observa o dinheiro jogado em cima da mesa efita o marido, com aquele olhar que já conhecia. Saiadeste trabalho, arrume algo em terra, homem! Por fa-vor... Era isso que ela sempre repetia. Recorda a pro-messa que fez se saísse vivo do naufrágio: nunca maissairia em barco algum: emprego, somente nos estalei-ros.

Mas, como era difícil brincar com o destino. As cica-trizes de queimadura das 70 horas em alto-mar mal co-meçavam a curar-se em seu rosto e todo o seu corpo,quando novamente volta àquele chamado; àquele feiti-ço que parece tomá-lo de volta.

Vinte e dois dias depois, estava ele novamente, tri-pulante do Ferreira III, em busca de mais riquezas quevinham do oceano. Sinal de que ainda havia muito tra-balho para fazer lá fora.

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20. BERNARDETE

“Aprendi a respeitar aquela gente que está no mar.Se não fosse a rádio, para quem eles iam pedir socorro?Como é que alguém de terra iria mandar recado pra lá?

Foi isso que me deixou a certeza de que,mesmo com dificuldades, não podia parar,

porque não tinha mais ninguém pra fazer isso.”(Bernardete Felício)

— O céu tá tudo vermelho, Bernardete, nunca viisso, não!

— Fala pra minha esposa que amo ela! Diz pra mi-nha filhinha pra não chorar pelo papai!

— O negócio tá vindo pra gente, tá vindo um rede-moinho... Que isso, meu Deus!

— A gente vai morrê, a gente vai morrê!— Tá muito forte, não tem como controlar o barco!— Tem um buraco no céu e no mar! Nós tamo aí no

meio! Tá girando tudo!O Furacão Catarina havia deixado marcas de des-

truição por onde passara. Algumas cidades estavamincomunicáveis, sem acesso à água, luz ou telefone.Oitenta por cento das escolas da região foram danifi-cadas e 33 mil pessoas ficaram desabrigadas.

Mas que preocupação tinha ela com o que haviaacontecido em terra? Seus pensamentos encontrarammoradia em alto-mar. Maldita hora que os pescadoresteimaram em permanecer no oceano, cegos por causados cardumes em abundância que as marolas violentastraziam para a embarcação. Lá longe, os ventos havi-

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am alcançado a velocidade de 240 km/h. Não, mas éapenas um ciclone, força sete, a gente agüenta, Bernar-dete! — acreditavam eles. E lá se foram o Antônio Ve-nâncio, o Vale II e o São Jorge II, crentes que a força deseu corpo formado de madeira conseguiria enfrentar oque achavam ser apenas mais um ciclone. Foram oitomortes, deus do Céu, naquele mar que poucos conse-guiram vencer.

Os gritos solitários de Zezinho e Adalto ainda teima-vam em atrapalhar seu sono. A cama mal consegue re-laxar o corpo exausto das quarenta e oito horas semfechar os olhos para qualquer descanso: vira-se de umlado a outro, olha para o relógio com ponteiros lentos,sente o vento cortante entrar pela fresta da janela, tra-zendo os resquícios do temporal daquele março de 2004.

O outro lado reserva uma sala enfeitada com umarede de pesca pendurada na parede, repleta de bibelôsrepresentando animais marinhos. Em uma pequenamesa, estão os dois “maicos”, como chamam: espéciede walkie-talkie, fixos aos aparelhos de rádio, respon-sáveis pela troca de informações entre aqueles que per-manecem em terra e os que vão para o mar. Ali tam-bém ficam uma agenda telefônica, com o número devários pescadores e familiares, além dos poucos botõesque regulam freqüência e volume. O rádio está desliga-do, mas o barulho insistente, companheiro das conver-sas entre ela e os pescadores, continua exibindo seuincômodo som. Maldito ruído.

Os olhos não conseguem mais fingir aquele sono.Sente o cheiro do café, vindo lá de baixo. Pobre Rosân-gela: ela até tenta mostrar alguma disposição, mas pou-co conseguiu descansar depois daqueles dois dias emque se dedicou intensamente à rádio. Está na cozinha,

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comendo um biscoito e aquecendo a garganta com lei-te quente, mas sem prestar muita atenção ao movimen-to dos braços, das mãos e da própria mastigação. Ape-nas o olhar lança um tímido desvio quando ouve ospassos de Bernardete a descer a escada, arrastandoaquelas havaianas já gastas.

— Também não conseguiu dormir, né? — pergunta,enquanto tenta arrumar os cabelos de cachos desorde-nados com a mão direita e, com a outra, passa a lentedos óculos na camisa, em uma tentativa frustrada delimpar suas manchas.

Rosângela apenas movimenta a cabeça, como res-posta negativa.

— Pelo menos, agora, tenho a tua ajuda. Não quei-ra imaginar o sufoco que passei há oito anos.

Senta-se à mesa, corta uma fatia de pão, passa umacamada grossa de manteiga. Rosângela já lhe serve ocafé quente, que transpira na xícara.

— Pois, tu sabes que lá em 1996, foi aquele transtorno.Uns três meses depois da Rádio Costeira de Navegantesentrar no ar, já teve aquele barco que naufragou.

— Ô, dona Bernardete, a gente vai ancorar logo, otempo tá fechando, câmbio!

— Faz isso, meu filho, que o nosso Senhor vai prote-ger vocês! — responde, ainda esquecendo o tal “câm-bio”, que sinaliza o final da informação e a espera daresposta do interlocutor.

— Com certeza! Não dá pra desafiar o mar, não,câmbio!

— Fica com Deus, que aqui eu tô rezando...Naquela noite, todas as embarcações que navegavam

nos mares do Rio Grande do Sul já estavam ancoradas à

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espera da calmaria para trabalhar novamente. Agora,restava aos tripulantes um descanso desconfortável,acompanhado pelo som do vento e das ondas que agi-tavam violentamente os barcos.

Bernardete faria o mesmo, já que à noite poucopodia ajudar aqueles trabalhadores. As luzes das em-barcações interferiam na transmissão do rádio e in-seriam ainda mais o irritante chiado durante as con-versas. Conversas mesmo, pois o que muitos pesca-dores buscavam era uma parceira para bate-paposou apenas a certeza de que ela estava ali, acompa-nhando a rotina em alto-mar e representando osamigos em terra. Sua voz tornara-se íntima àqueleshomens e, vez ou outra, era a responsável em dar asboas-novas sobre o nascimento de uma menina, ocasamento do filho ou o primeiro dia de aula do ca-çula. Mas, nem sempre, a notícia chegava de formatão agradável: seu pai faleceu hoje, teu marido so-freu um acidente lá no mar; voltaram sem um tripu-lante.

De mãos atadas. Assim se sentia, quando estes acon-tecimentos ocorriam lá fora. O jeito era rezar e recorrerà ajuda do barco que estivesse mais próximo.

Quando o sol mostrava a primeira claridade damanhã, lá estava Bernardete a saudar os amigos domar. Às seis horas, os barcos já estavam acordados,repassando as notícias da noite anterior e a posiçãoem que se encontravam.

— Bom dia, dona Bernardete! Amanhece uma cal-maria que só!

— Hoje vamo recuperar o tempo perdido!— Tava uma praga pra dormir, onda e vento pra

tudo quanto é lado, mas até que deu pra descansar!

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— Eu dormi pouco, com medo de que alguma coisaacontecesse.

— Pelo menos, tá todo mundo bem! — responde,ainda com os olhos semicerrados de quem mal acaba-ra de acordar.

— Sei não, dona Bernardete. O Rio Nilo e o PauloAmorim não respondem! — diz o pescador, que tenta-va incansavelmente se comunicar com as embarcações.

Estranho. Os mestres de barco nunca deixaram oscolegas sem notícias. Ainda mais quando todos se co-nheciam lá da Praia de Araçá, em Porto Belo, onde amaioria era da mesma família ou velhos amigos.

— Tão encontrando eles? Câmbio.— Não, Bernardete, tá tudo quieto!A última vez que ambas as embarcações se falaram

foi no boa-noite. Mais nada. Nem suspiro. Do outro ladoda linha, ela acompanha o desespero dos pescadores aprocurar os companheiros, chamando pelo rádio, bus-cando qualquer ruído que saísse do Paulo Amorim e doRio Nilo. Onde estão?, respondam!, estão bem? Nada.As mãos trêmulas regulam os botões dos aparelhos, quese confundem à sua frente. Tenta encontrar outra esta-ção onde pudesse se comunicar. Mas, as palavras se-guem conduzidas pelo choro e pela tristeza de perderonze amigos para o oceano.

Aquela seria a primeira experiência de naufrágioque Bernardete acompanharia. A primeira dos outros45 naufrágios, 55 casos de acidentes com tripulantes emais de 60 mortes em alto-mar, que aconteceriam du-rante os 12 anos posteriores.

— É... Agüentei muita coisa... Pior mesmo foiquando me vi sozinha pra conduzir a rádio toda.

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— continua seu desabafo, enquanto Rosângela esquentamais uma xícara de leite.

Senta-se de forma confortável na cadeira, deixandoas pernas esticadas, as havaianas pendentes na pontados pés. A coluna curvada, cotovelos apoiados em cimada mesa, os olhos a observarem aquele último pedaçode pão que coloca com voracidade na boca.

— Pois foi difícil aquele tempo... — continua, enro-lando as palavras junto à mastigação.

— Queres falar sobre isso mesmo? Estás cansada...— revida Rosângela, que persiste em manter os olhosabertos.

Bernardete olha para o fogão, com aquela chaleirachiando. Parece o rádio que tanto ouviu nas duas últi-mas noites. Fecha os olhos exaustos e continua, com avoz mais suave, incomum ao seu jeito ríspido de falar.

— Preciso lembrar. Tá engasgado aqui, ó! Pois eulembro muito bem o quanto sofri no começo desta rá-dio. Quando os pescadores nem tinham como se co-municar.

Teve que vir gente do Rio de Janeiro para implantara Rádio Costeira, com toda a aparelhagem necessáriae profissionais treinados. Se hoje as transmissões sãofeitas na casa de Bernardete, próxima ao Molhe deNavegantes, na época, tudo funcionava em um dos maisde 20 estaleiros da cidade, onde ela cozinhava panela-ços de arroz e feijão para os funcionários. Mal sabiacomo funcionava aquela parafernália toda, o que sig-nificavam as chamadas SSP, as ondas de longa dis-tância pelas quais se comunicava com os pescadoresem alto mar; e as PX’s, mais curtas, quando algum pes-cador artesanal, próximo à costa, precisasse falar.

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Só se interessava mesmo pelas conversas que saíamdas caixas de som, do pessoal que estava lá nos maresdo Uruguai, Rio de Janeiro, Pará.

— Bernardete, eu vou deixar a senhora e o Aldirpara cuidar das coisas por aqui, enquanto dou umapassada rápida no Rio pra resolver uns problemas. —comenta Tato, um dos fundadores da rádio, já seguran-do as malas na mão.

Ajudar, ela bem que podia, o problema era respon-sabilizar-se completamente pela rádio. Completamen-te. Não se passaram nem quinze dias da rápida (e in-findável) viagem de Tato, para chegar Aldir e dar-lhea notícia de uma outra partida.

— Eu sei para quem estou entregando a rádio! —insistia, com uma segura tranqüilidade na afirmação.

— Mas, Aldir, eu não sei como fazer! — teimavaBernardete, já levantando a voz grave, os braços emmovimentos rápidos e a testa acrescida pelas marcasde expressão que revelam a sua braveza, como se aspalavras pudessem sair do corpo. Ele nem se assustavacom o tal alarde: acostumara-se com o alto tom de voze o olhar severo daquela mulher.

— Eu tenho certeza de que você vai tocar a RádioCosteira de Navegantes, não vai desistir e vai levar aemissora pra frente!

Levar a rádio para frente sem mesmo conhecer arealidade dos pescadores e o funcionamento de toda aparafernália. Seu trabalho era ali na cozinha do estalei-ro, ao som das conversas da rádio, longe daqueles bo-tões e zunidos.

— Pra quem já foi fotógrafa, isso vai ser fácil! —dizia Aldir, sorriso sereno, já se despedindo dos equipa-mentos com um breve olhar.

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Vidas separadas pelo mar204

Nas horas vagas, Bernardete gostava de pegar suacâmera fotográfica e sair tirando fotos por aí. Ah, issoela sabia fazer muito bem! Trabalhara até em estúdiofotográfico em Porto Alegre e Curitiba, quando era maisnova. Enquadramento, iluminação, foco: tudo aquiloparecia mais fácil do que controlar estações e qualida-de de áudio. Ainda mais quando seus ouvintes ficavamlá no mar.

O pouco que entendia da pesca guardara das lem-branças da infância, quando começou a trabalhar nas“salguinhas”, como eram chamadas as pequenas in-dústrias de peixe, onde descascava quilos de camarão.Na época, não havia muita opção de trabalho em Itajaípara quem tinha pouco estudo: ou tornava-se funcio-nário das madeireiras, ou estivador, ou pescador ou iapara as salgas mesmo. Criança ali era o que não falta-va. Bernardete, com a baixa estatura de seus 7 anosque se mantém até hoje, aos 53, misturava-se aos ou-tros moleques, que subiam em cima de banquetas paraalcançar a pia de lavação dos pescados. Se havia lei tra-balhista? Que isso! Naquele tempo eles mal conheciam osdireitos. Mas era ali que ela também brincava, e muito.

Quando sobrava tempo, saíam das salgas e iam lápara o Itajaí-Açu, junto com outras turmas de crianças,para ver quem pegava mais peixe. Sempre conseguiapescar um bocado de bagre. O problema foi quandoaquele esporão cortou a palma de sua mão e causou uminchaço que mal permitia fechá-la. Se não tinha dinheiropara ir ao médico, o jeito era estancar o ferimento comvinagre misturado ao pirão de farinha de mandioca, quesua mãe dizia ser um santo remédio. E não é que foi?Dias depois já estava lá, pescando mais bagre, descas-cando camarão e brincando com a criançada!

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Pronto: estavam listadas as suas poucas experi-ências com a atividade pesqueira. Agora deveria con-trolar a Rádio Costeira de Navegantes sozinha, semdinheiro, nem prática. Dividiria seu tempo entre acomunicação com os pescadores e a procura de ajudafinanceira junto às empresas armadoras.

— Hum, tá cobrando pra trabalhar pros pescador! —dizia um, olhando torto para a nova proprietária.

— Pois ela tá explorando gente que não deve! —criticava outro, como se Bernardete cobrasse algumtrabalho dos pescadores.

Nem adiantava explicar que a ajuda vinha dosarmadores. Os familiares olhavam desconfiados paraaquela novata na rádio. Mas o que acontecia em ter-ra ela nem queria saber: continuaria fazendo seu tra-balho, informando as famílias, conversando com ospescadores. Em oito de novembro de 2004, conse-guiu transformar a emissora em Instituto de Rádio-Difusão Comunitária, formando um convênio comempresas de pesca. Estava “levando a emissora prafrente”, como afirmara Aldir.

— E ainda bem que tu veio me vender aquela as-sinatura de jornal, mulher! — continua, em um tími-do agradecimento à Rosângela, sua companheira detrabalho há dez anos.

— Sabe aquelas coisas que têm hora pra aconte-cer? Deve ter sido isso. — comenta, com um sorrisonas palavras, relembrando o dia em que conheceu aRádio Costeira.

— Pois chegou na hora certa. Não tava conseguin-do fazer tudo, não. Tu lembras como ficou curiosa comos maicos e o aparelho?

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Vidas separadas pelo mar206

— Pior que nem sabia direito que tinha barco lá nomar... Pra mim, era tudo novidade! — engasga-se como café, em meio aos risos.

— Sim, veio novinha, 25 anos, perdida aqui emNavegantes. Tinha que ser novidade mesmo.

Em 1994, Rosângela foi embora de Arapongas —município no norte do Paraná com aproximadamente100 mil habitantes, onde pesca era coisa estranha. Malconhecia a existência de rádio costeira, muito menosque existiam mais de 600 barcos de pesca movimen-tando os portos catarinenses. No entanto, o que maislhe chamou a atenção foi o trabalho daquela possívelassinante de seu jornal.

— Então, como funciona esse troço aí?— Ah, a gente chama as embarcações que estão lá

no mar, que tão navegando até lá no Oiapoque, e con-versa com os pescadores, vê se eles precisam de algu-ma coisa.

— E tem barco navegando lá no Oipaoque?— Ô, é barco que não acaba mais! De manhã, te-

nho contato com mais de trezentas embarcações.Já que o emprego também não andava lá aquelas

coisas, por que não apostar na rádio? Para ela, asnotícias do mar pareciam bem mais interessantes doque aquelas que apareciam no jornal. Em setembrode 1997, lá estava a companheira de trabalho, tãobaixa na estatura quanto a nova chefe, a conversarcom os tripulantes, assumindo um tom de voz seme-lhante ao de Bernardete, que chegava a confundiros pescadores.

— O Xaropinho tá por aí, câmbio? — pergunta, jáíntima da aparelhagem.

— Positivo, “Bernardete”, tô te escutando forte.

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Vidas separadas pelo mar 207

Ajudamos os caras pra ir pela costa aí!— É verdade, nós também queremos agradecer pela

força que deu para o companheiro que tava com pro-blema no barco. E cuida dessa garganta aí, faz gargare-jo se não vai ficar mais rouco ainda. Um abraço. Ficacom Deus!

— Fazer gargarejo com quê?— Faz gargarejo com limão puro ou vinagre, mas

não coloca sal, porque irrita mais a garganta, câmbio!— Positivo! Vou almoçar aí depois eu faço, minha

linda!Total dedicação à rádio. Precisou até mudar-se à casa

de Bernardete para trabalhar na Costeira, enquanto acompanheira divide seu tempo em programas de televi-são e em outras emissoras de rádio.

— O mais engraçado é que tu acabou fazendo tudocertinho! Nem me preocupei mais... — lembra Bernar-dete, contraindo os olhos ao tomar o café já frio.

— E você arranjou mais coisa pra fazer...— Não tem como ficar na preguiça, não...— Mas tu não pára nunca, né, mulher? — ri Rosân-

gela que, mesmo após começar a trabalhar ali, nuncaviu a amiga descansar um segundo sequer.

— Só doente, Rosângela. Enquanto tiver saúde, agente vai tocar a Costeira pra frente! — repete a pro-messa silenciosa que fez a Aldir, lá no começo da rádio.

***No final da praia de Navegantes, atrás de um exten-

so terreno baldio, é possível enxergar uma pequena casaem construção. Dois andares, com a fachada ainda sempintura, azulejos por colocar, sacos de cimento espalha-dos no chão. Não há sons de máquinas, nem homens,

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Vidas separadas pelo mar208

muito menos as conversas típicas dos construtores.Enxerga-se apenas uma mulher: cabelo solto, boné parabarrar o sol do meio-dia, bermuda abaixo do joelho,camiseta manchada de terra e tinta. Empilha tijolos,prepara o cimento. Há mais de um ano está ali, cons-truindo o seu novo lar.

Mesmo quando consegue tempo para descanso, prin-cipalmente aos finais de semana, lá está Bernardete, apassar o dia na construção da nova sede para a RádioCosteira de Navegantes. Já fui criança, cozinheira, fo-tógrafa, locutora... Pedreira? Não seria tão difícil. Mes-mo com os pés inchados, dores de cabeça por causada insolação daquela tarde de sábado e o cansaço deuma semana inteira de trabalho, não abandona a cons-trução de maneira alguma. Já era pra ter ficado pronta,mas ainda não deu! Quando estiver tudo certo, vai seraquela festa!

Tempo para família? Tem não. Até para conversarnão lhe sobra horário. Filhos? Nenhum em terra. Meusfilhos são todos aqueles pescadores, abandonados nomar. Pois, pra mim, esses homens, cada vez que voltas-sem, deveriam ser recebidos com fogos e glória, porquesó eles e eu sabemos a realidade do oceano. O que é osofrimento em alto-mar, o que passam com furacão, comtemporal e pescaria fraca.

Prepara mais um cimento para colocar na parede.Está irritada por ter comprado os azulejos errados. Issovai atrasar tudo! Olha para o céu, que começa a mos-trar os primeiros sinais da noite por vir. Apressa-se emterminar aquela parte da casa. Que fome ela sentia.Mas vamos, Bernardete, agüenta mais um pouco! Sãosó mais alguns tijolos. Fica quieta e trabalha! Tenho tem-po pra conversa, não.

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21. CATIVO

“Os homens são tão necessariamenteloucos que não ser louco significaria ser

louco de um outro tipo de loucura.”(Blaise Pascal)

Navega. Levando homens. Heróis. Mitos. Aquelesque procuram se conhecer. Encontrar suas verdades.Descobrir as dúvidas. Nas águas que purificam. Quelevam embora. Ritual de Passagem. Passageiros não per-tencentes à terra alguma. Abandonados à incerteza.Entregues à sorte. Ao próprio destino. Daquele embar-que, que pode ser o último. O retorno, que pode nãochegar. Confiança nos astros. Nos segredos que o martransmite. Abandonados às encruzilhadas da natureza.Às armadilhas do oceano.

Navega. Na Europa da Renascença. Na razão queali ressurge. Nas histórias dos grandes heróis. Exibe-senos rios da Renânia e dos canais flamengos. Narrenshif

da literatura. Dos filósofos. Das histórias romanescas.Torna-se concreta. Sai das palavras. Para explorar osmares europeus. Transportar os loucos que ali semostram. Perambulam nas ruas. Isolá-los da cidade.Sumi-los.

Navega. Nau dos Loucos. Dos sem-vergonha. Dosestranhos. Que leva as inseguranças, as dúvidas, ostranstornos. Loucos sem medo. De mostrar suas fra-quezas. De dizer verdades. Não pode! Fere a conduta.Então, leve-os. Transforme-os em passageiros. Sem

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destino. Nem planos. Que há nesse barco? Insanidade.Prenda-a. É um mal à saúde pública. Que fazem comeles? Ficam ali, jogados nos porões. Junto aos ratos. Àsondas que entram. Enclausurados. Como devem ficartodos os insanos. Para que não contaminem nossa so-ciedade. Presos como criminosos. Qual seu crime? Aloucura. Qual o tratamento? O abandono. Total isola-mento.

Passageiros das águas. Leve embora sua loucura.Navegue para outro mundo. Tire o louco de sua casa.Leve a louca mente para lugar nenhum. Enclausurado,no barco. Entregue ao mar de infinitos destinos. De mildevaneios. Solitário. Sem fuga. Preso aos seus pensa-mentos. Ao esquecimento. Internado no exterior. Aosmil caminhos, sem saídas. Ao ar livre, aprisionado. Detudo, da completa amnésia. O abandono de onde sur-gem as angústias. Suas tentações. As imagens e a mi-séria, dizia Foucault. Aprisionado ao exterior. Um cár-cere a céu aberto.

***Um cárcere a céu aberto. Assim sentia-me. Tanto

lugar para escolher. Mas sem possibilidade de fugir.Aprisionada àquela realidade. À paisagem que antesme fascinava. Às horas que teimam em caminhar, len-tas. Aos pensamentos, muitos. Que cessam. Aprisiona-da ao existencialismo. Mas sem dominar o destino. Sa-bia a hora do embarque. Mas desconheço o dia da che-gada. No mar das incertezas.

Olha aqueles pescadores! Enclausurados em um es-paço. Presos à profissão. Às saudades. À espera da terrapróxima. Ao salário, sabe-se lá quanto será. Encarcera-dos nos pensamentos. Na distância. No cheiro de mar.

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Quarto dia de navegação. E questionava-me sobretudo. Nossa existência. Minhas escolhas. Nossas im-perfeições. Minha fragilidade frente àquele horizon-te. Sentir-se inferiorizada. O ser mais um. Apenas maisum. Ou ninguém. Estava confusa, apreensiva. Ficandolouca? Sei não. Se a loucura é própria do homem, esta-ria eu passando para outro estágio. Da mesma loucuraque me definia.

Brincadeiras em terra. Cuidado com a “loucura domar”. É lenda. Está bem. Mas, em terra, vivemo-la.Loucura da rotina. Da cidade e seus barulhos. Das ho-ras aceleradas. Sem respirar. Apenas, agir. Onde esta-ria a loucura maior? Em terra, onde pensamos que exis-timos? Ou em mar, onde pensamos sobre nossa exis-tência? Devaneios, sim. Quem não os tem? Apenas,escondem-nos. Aprisionam-nos. Exteriorizar as incer-tezas. As crises? Fraqueza. Lá em terra, não pode. Ondeestaria o aprisionamento maior? Penso agora. Ali, sen-tíamos mais um. Mas, havia espaço para pensar. Tem-po para refletir. Liberdade para ficarmos presos a nósmesmos. Ali, sentia-me. Pensava-me. Duvidava-me.Sonhava-me.

Este ambiente enlouquece? Moça, sei não. Para uns,pode ser. Para outros, é liberdade. Olha isso! Imenso,tanto para explorar. Tantos lugares azuis assim paraconhecer. E a loucura do mar? Ah, história. Mas já ouvifalar. Cozinheiro que não agüentou dois dias aqui. Pu-lou para o oceano. Ao nada. Apenas jogou-se, deses-perado. À procura da morte. Talvez sua única liberda-de, quem sabe. Outro já louco estava, diziam. Lá daterra. Problemas com a família. Serviço, sei não. A ci-dade enlouquece, loucura que não finda. Família, ami-gos. Pessoas. Enlouquece. Veio para o mar. Jogou-se.

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Suicídio. Mas, não coloque culpa no mar. Ele não temculpa de nossas dúvidas.

Estar em pleno oceano. Perdida. Sem referência deterra. Liberta de minha rotina. Deixava-me estranha.Introspectiva. Presa em mim mesma. Nasceria aí umaloucura? Em tão poucos dias. Imagine aqueles que aquificam um mês. Já se acostumaram. Foram obrigados.Para eles, o barco não parece sufocante. É ambiente detrabalho. De convivência. Único. O mar? Um compa-nheiro de viagem. Silencioso. Está ao meu lado. E eu,entregue a ele. Comanda meu destino.

Sinto-me presa.

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22. TOUREIRO

“Porque a gente sai de casa e não sabequando vem. Tem bastante amigo praconversar, saímos em vinte e poucos,

mas de repente, a gente fica muito juntoe fica o mesmo assunto.”

(Célio José de Melo)

Célio olhava aquele rebanho todo, espalhado pelosextensos campos do bairro Dom Bosco, lá pelos anos70. Estava em cima de uma das árvores que margea-vam o riacho, onde tantas vezes se banhara para tirar asujeira do corpo, depois de um dia inteiro de brincadei-ras. Dali dava para ver gado que não acaba mais, osgalpões dos matadouros que começavam a ser desati-vados e as cercas de arame que tanto machucavamsuas pernas e braços quando queria pular para o terre-no particular. Ah, tinha madeira também, muita! Masenquanto outras crianças brincavam de pique-escondeentre aquelas centenas de tábuas empilhadas, Céliogostava mesmo era de instigar os bois. Entre galhos efolhas, conseguia observar qual daqueles animais pa-recia o mais agressivo. Encarava-o como se fosse seuinimigo, respirava mais fundo, olhava para Cláudio —que se equilibrava em outro galho — e mandava o sinalde ataque.

— É agora! — sussurrava Célio, ao pular por cimadas pastagens.

E lá iam eles, pisando leve e fazendo sinal de silêncio, aaproximar-se do boi que mais lhe haviam encantado.

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Aos poucos, os garotos começavam a chamar sua aten-ção, davam gritos e soltavam gargalhadas, até o animalabandonar a mastigação do pasto para perseguir osmeninos. Aí a festa começava: os moleques tinham deusar o máximo que suas pernas, com pouco mais de 10anos, permitissem-lhes correr. A perseguição termina-va quando ambos subiam em uma árvore mais próxi-ma, para se proteger do animal. Esperavam o cansaçopassar, a respiração retornar à tranqüilidade inicial, atéelegerem o novo caminho para a próxima corrida —cada vez que escolhiam um boi, já traçavam o roteirode fuga. Em meio aos rebanhos, aquelas tardes de in-fância davam lugar a novos dias.

***O boi encara o toureador, vestido com uma cal-

ça jeans justa, camisa desabotoada e botas de courodesgastadas e sujas de terra. A comunidade de Nave-gantes se apertava nas arquibancadas, em meio aosturistas, aos pescadores que paravam de trabalhar nofinal da quaresma e aos estivadores responsáveis pelaorganização da brincadeira. Já era fim de tarde e o boirevela cansaço. Mas ainda reserva forças para atacar oúltimo farrista. O pano preto e vermelho, os holofotesligados em todos os cantos da arena, o som alto dosaplausos e dos gritos que vinham daquela gente emba-ralham-lhe os sentidos.

Caminha vagarosamente em direção a Pequeno,que não permite mover seu corpo com 1,60 metrosde altura, braços e pernas finos, olhar negro desafia-dor a se exibir em meio ao rosto miúdo, revelandoum sorriso ousado. A aparente fragilidade não de-monstra medo perante o animal com mais de 200

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quilos. Abaixa a cabeça e prepara-se para pular emcima do homem. Neste exato momento, Célio desviaseu corpo da investida daquele boi e consegue agarrá-lo pelos chifres. Enquanto isso, outros farristas se apro-ximam para ajudar o toureador a pegar o animal.

Era final da quaresma do ano de 1986 e a Farra doBoi reunia uma multidão cada vez maior. Mais de cin-qüenta barraquinhas vendiam lanches e bebidas eapertavam-se ao redor da arena, próxima ao ae-roporto da cidade de Navegantes. As churrasca-das eram organizadas em galpões, onde tambémaconteciam bailes durante noites e madrugadas.E as fazendas lucravam com os aluguéis dos ani-mais. Todos os anos, nessa mesma época, a Farrase espalhava também pelas cidades de Zimbros,Porto Belo, Bombinhas, Ganchos, Penha — locaisonde a festa era organizada principalmente pelospescadores. No entanto, aquele ano seria um dosúltimos para a Farra do Boi, em Navegantes. Am-bientalistas julgavam a tradição, com mais de 200anos, um crime e os estivadores foram impedidosde organizar brincadeiras, segundo as novas leisde proteção aos animais.

Célio não poderia mais participar das farras naque-la cidade. Mas, cada vez que desembarcava, aprovei-tava para acompanhar a brincadeira em outros muni-cípios do litoral catarinense, onde a lei preferia fecharos olhos. Raramente perdia a oportunidade de ser tou-reador e farrista: nem que precisasse desistir de umaviagem em alto-mar. Sua paixão sempre foi as toura-das, desde pequeno, quando desafiava qualquer boi quevia no pasto. Mas, ser pescador? Não, a pesca estavadistante de sua realidade.

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Até hoje, nem ele sabe por que foi parar nas embar-cações. Já havia trabalhado como taxista, cobrador,entregador de encomenda, mas passava longe do mar.Só de pensar nas ondas lhe puxando o corpo, os braçospesados fazendo um esforço maior que o necessáriopara sair daquelas águas e a possibilidade de ter suavida perdida ali o deixavam em pânico. Quando ia àpraia, permitia que a água atingisse a altura de sua cin-tura, nada mais. Nunca conseguira nadar, mas tam-bém não imaginava que um dia precisaria saber.

***A pesca lá nos anos de 1985 até que estava boa. Mas

se soubesse que o trabalho como embarcado lhe garanti-ria salários tão imprevisíveis, nem teria escolhido essa pro-fissão há dois anos. O tempo ruim atrapalhava ainda maisa pescaria e, naquele dia, todos os barcos decidiram an-corar até que o sudoeste mudasse de direção e perdesseforça. Os porões do convés eram invadidos por um ecosolitário, interrompido pelo uivo do vento e das fortes on-das que colidiam contra a embarcação. Há quase duassemanas, não viam um cardume de atum.

No mastro do Yamaia III, Toureiro — apelido queganhara pelos companheiros de trabalho — acompa-nhava com atenção qualquer mancha mais escura nomar. Sua visão de olhos pequenos já estava cansadade usar aqueles binóculos o dia inteiro: toda vez que osretirava, parecia enxergar grãos de areia por algunsmomentos. A claridade, refletida na água, deixava-oainda mais cansado. Estava difícil ver algum cardumenaquelas ondas. Mais complicado era se equilibrar nomastro: mesmo sentado, o vento queria derrubá-lo dali,a qualquer custo. Mas um tom acinzentado no mar

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aproxima-se rapidamente do barco. Poderia ser o mo-vimento das ondas misturado aos efeitos de luz e som-bra das águas, pregando-lhe uma peça. Só que sua vi-são provava o contrário: era um grande cardume quese dirigia para a proa da embarcação.

— Ó o peixe aí! — grita Célio, enquanto desce ra-pidamente as escadas, já levando a capa e as botas.

No convés, os homens se levantam num susto e, empoucos instantes, todos estão vestidos para puxar aâncora e jogar a rede.

— É peixe pra uma multidão! — empolga-se o jo-vem pescador, com os olhos hipnotizados pelo cardu-me. O garoto até já pensara em desistir da pesca indus-trial nesta primeira viagem, por causa da escassez depescado, que parecia desaparecer ainda mais em todoaquele oceano.

Naqueles tempos, o peixe capturado ficava no con-vés até ser levado para o gelador — hoje, o atum caidireto para a câmara frigorífica, através de uma peque-na rampa. As escamas refletiam o brilho do sol, tornan-do a pescaria ainda mais milagrosa. Aquelas toneladasmisturavam-se aos homens, que pareciam nunca tervisto tanta fartura antes.

Mas, quando o mestre decide virar o barco de proaàs ondas, a fim de capturar o cardume que se dirigia àfrente da embarcação, duas fortes marolas entram no con-vés. Aqueles que estavam na borda do barco, com suasmãos calejadas por causa da fibra da vara de pesca, se-guram-se na embarcação. Os outros se desequilibram esão atirados ao chão pela força das águas. Enquanto omestre engata marcha lenta no barco, tentando evitar umnaufrágio e a morte de mais de 20 homens, todas as 12toneladas de peixe voltam ao habitat natural.

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Célio agarra-se no corrimão da escada, tentandodesesperadamente subir. Naquela época, não haviabotes salva-vidas: apenas coletes que deveriam garan-tir a segurança de cada um dos trabalhadores. Mas,naquele momento de desespero, não consegue mo-ver-se dali. Nunca deixara que a linha do mar ultrapas-sasse a cintura e, agora, apenas a cabeça se mantinhafora da água. Seus músculos enrijecem, o pânico tomaconta do corpo: não conseguia mover-se, apenas sentiaaquele mar entrar em suas narinas.

Maldita hora em que não aprendera a nadar! Iriamorrer antes pelo medo, do que afogado. Nem nasarenas, quando o boi o encarava com aquele olharraivoso, sentira tanto temor, quanto naquele momen-to. Para enganar o animal, bastava apenas um panopreto e vermelho a balançar nervosamente; mas paradriblar a água salgada, os ventos e as ondas, de queprecisaria? Nesse caso, muita sorte.

A sorte sempre o acompanha desde as pastagensdo Dom Bosco até as farras em Navegantes ou PortoBelo. Quando criança, sofrera apenas alguns arra-nhões das cercas e chifradas dos bois; como tourei-ro, havia quebrado uma perna, um braço, algumaslesões na coxa. Mas nada que a sorte não curasse.Não seria ali que ela o abandonaria.

Aos poucos, o barco começa a se estabilizar coma água escorrendo por entre os vãos. O convés no-vamente fica vazio, apenas com alguns bancos ebotas espalhados no chão molhado. Os braços deCélio perdem a rigidez, os pés voltam a sentir osdegraus da escada. Tudo havia acabado; e ele, empânico, ainda não sabia por que estava ali.

***

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— Não vai, pai, não vai! — as unhas curtas da me-nina tentam fazer-lhe pressão no braço. Morgana esta-va com 5 anos e, ao ver o ônibus se aproximar, começaa implorar para que o pai não a deixasse novamente.

A cena se repetia todas as vezes que saía para omar. A menina o acompanhava até a hora do embar-que. Com a mala em uma das mãos e Morgana a segu-rar-lhe firmemente a outra, caminhavam até o ponto deônibus. A garota não saía dali sem ganhar o últimoabraço do pai, que sempre lhe prometia retornar empoucos dias. Ela sabia que era mentira e levaria sema-nas para voltar, mas se conformava com a promessa.

Célio sobe as escadas do ônibus lentamente, desvi-ando a pequena mala de seus pés. Já vira inúmerasvezes esta cena, só que as lágrimas teimavam em cair.Quando a porta se fecha, vê o rosto de Morgana en-charcado pelos longos minutos de choro a dar-lhe no-vamente aquele melancólico até breve.

A menina se acostumou definitivamente com as lon-gas viagens do pai, quando começou a estudar, um anodepois: tinha professores, amigos, cadernos e lápis de corpara passar os dias. Mas Célio ainda não entendia porque tinha feita tal escolha. Maldita hora em que aceitara aproposta de embarcar. O salário era bom, melhor do querecebia antes, mas não lhe garantia nenhuma estabilida-de. Em junho, os atuneiros paravam e lá ia ele tentar vagaem outro barco ou algum emprego em terra. Ou, até mes-mo, sobreviver com os dois salários do seguro-desempre-go enquanto esperava a pesca recomeçar.

Não aproveitou fins de semana, não soube o que erapassear com a família, muito menos, passar datas come-morativas junto com os parentes. Apenas acompanhavaa maioria das farras-do-boi que aconteciam em Zimbros

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Vidas separadas pelo mar222

e Porto Belo, lá pelos meses de março e abril. Ah, essapaixão, ele nunca abandonaria! Guardava cuidadosamen-te a foto das touradas e, para quem lhe perguntasse, con-tava o detalhe de cada imagem como se ainda estivesselá. “Aqui eu estava domando o boi mais bravo da festa”,“esse aqui era o pessoal acampado antes das touradas”,“aqui sou eu com minha esposa em uma festa lá em Bom-binhas”. Inúmeras fotografias perdidas em meio às pou-cas que havia guardado da pesca.

***Começa a preencher as lacunas daquela folha que lhe

solicitavam seus dados pessoais. O desenhar da canetaganha firmeza com a possibilidade de ver-se longe do oce-ano. Estava embarcado há 25 anos e não se consideravaum apaixonado pelo mar, como muitos colegas que havi-am conhecido a pescaria, ainda pequenos. Ele, desde ainfância, conheceu mesmo os bois das pastagens do DomBosco e dos circos de touradas. Apreciava o pó que sedesprendia das arenas, a firmeza do chão e a segurançade seus passos ao enfrentar o touro.

Com a ficha de inscrição em mãos, Célio começa asonhar com aquela oportunidade de voltar a viver em ter-ra. A Capitania dos Portos havia aberto um curso paratrabalhar como rebocador nas plataformas. O salário erabom e a experiência em embarcações garantia maior pos-sibilidade de ser escolhido. Mas, estaria novamente à mercêdo seguro-desemprego até completar todas as fases paraclassificação. Pouco importava. Estava em terra.

Quanto perdi, meu Deus, estando lá longe, à esperado peixe que não vem, à espera de rever minha filha. Eagora, esta espera por outra opção, esta espera paraviver em terra. Ah, esta espera valeria a pena.

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23. CEDO DEMAIS

“Eu sou aquele naviono mar sem rumo e sem dono.

Tenho a miragem do portopra reconfortar meu sono,

e flutuar sobre as águasda maré do abandono.”

(Miragem do Porto - Lenine)

Vamos voltar. Como? Absorta em pensamentos. Malentendo a afirmação. Vamos voltar, moça. Problemasno barco. É grave? É não. A gente dá um jeito. Pauli-nho, sempre sereno. Esconde a preocupação. Que acon-teceu? Um dos geradores do barco. Está queimado. Semmotivo. Má instalação, algum defeito. Já é a segundavez que acontece. Viagem passada foi assim. Que fa-zer? Ancorar em Imbituba. Ah, nossa terrinha! Vamospuxar rede. Levantar âncora. E voltar a terra. Mal deutempo para as saudades. Pra quem se acostumou aos25 dias longe de casa. Isso aqui foi passeio! Nem traba-lho. E a pescaria? Foi fraca, dessa vez. Próxima via-gem, teremos que pescar. Para conseguir cobrir o custodesta. O prejuízo. O gasto de óleo. Não há o que fazer.Estamos só com o gerador reserva.

Havia problemas no barco. Mas a notícia me acalma.Livra-me da idéia de imensidão. De aprisionamento.Voltar a terra, saudades. Saudades daquela correria. Dobarulho. De ouvir música. De ver gente. Sentir o equilí-brio. Pisar no chão estável. Como estavam os amigos, afamília? Voltar para contar as histórias. Responder às per-guntas dos mais ansiosos. Aceleram-se as horas.

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Vidas separadas pelo mar224

Olho para o mar. Ao continente que não se enxerga.Às cordas espalhadas no toldo. Desço as escadas. Cami-nho por entre os homens. Trabalhadores do convés. Pu-xando rede. Deslizando na água que ali cai. Nas águas-vivas que lhes queimam a pele. Observo aquele trabalho.Último dia. Sinto a despedida. Estranho. Acostumara-mea ficar ali. Com a idéia de que a volta atrasaria. Nemchegaria. Agora, tão breve, retornaríamos.

Observo cada um deles. As brincadeiras do Zé, suasrisadas. A preocupação do Boca com as coisas da natu-reza. A seriedade de Paulinho, ansiedade com a pesca. Omal-estar de Bruno e esforço para manter-se em pé. Aexperiência de Tetu, com seus vinte e poucos anos. O Valdire a vontade de trabalhar em terra. O Marrom, a atrapa-lhar-se com as tampas de panela que vez ou outra caíam.O silêncio de Eca, que não ousou lançar palavra sequer.A experiência de Gê, seu amor ao mar. Os pensamentosperdidos de Zé Maria.

Olho para tudo, sentindo a despedida. O cheiro decomida, permanente. O barulho do motor, o óleo que sedesprende. As camas conjugadas, a TV que começava amostrar sinal. Subo as escadas. Observo o leme. O Norteda bússola. A proa a movimentar-se conforme as ondas.Mar calmo. Como no primeiro dia. O beliche onde passeimuitas horas. Aquele relógio a revoltar-me. Voltaremos,enfim.

O fim de tarde parece chegar mais rápido. Todos jápuxaram as redes. Já tomaram seus banhos. Sentados,para aquela última janta, em mar. Zé Maria sobe ao toldo.O rádio mostra seus primeiros sinais. Vestígios da terra.Eles descansam. Bruno sente o alívio. Vontade de sair dali,ver sua mãe. Os outros, experientes que só. Fizeste ape-nas um passeio de barco. Uma voltinha por aí. Olha só, já

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Vidas separadas pelo mar 225

está de volta. Gostou? Tudo. Até do não-agradável. Apren-der a conviver. Com aquelas pessoas. Sua família. Vocênão as escolhe. Mantenha a calma. A paciência longe decasa. Ali, somos apenas nós.

Observo o mar ganhar seu negrume. Última noite.Negridão que se acentua. Fora do barco. Dentro dele. Eco-nomize a luz. Esta noite, não poderá vê-la. Outro geradorqueimou, diz Zé. Calmo. Como voltar? Se preocupa, não.O negócio aqui é motor e óleo. Mas e a energia? O barcoàs escuras. É um perigo, isso sim! Navios que nem nosvêem. Gigantes que te falei, lembra? Paulinho estará emalerta. Nós, também. Lanternas acesas, ao redor do bar-co. Dou risadas. Qual a piada? Mulher no barco dá azar,ouvi falar. Que isso, moça! Acredito nessas histórias, não.Mas, faz sentido. Pescaria não foi lá aquelas coisas. Doisgeradores queimaram. Faz sentido. Gargalhadas.

Volto ao beliche. A mala já arrumada. Para a parti-da daquele ambiente. Deitada, vejo os homens a pas-sarem lá fora. Da janela, pouco os reconheço. Apenasas vozes. As luzes frágeis das lanternas. A sinalizar queo barco estava ali. Que ali havia algo. Havia vidas. Sin-to um sono irreconhecível. O mar balança calmamen-te. Parece querer tranqüilizar-me. Não se preocupa!, dizele. Amanhã, verá a terra. Fecho os olhos, mas prendo-me àqueles sons. Cochichos. Estão em vigia. Para quenada aconteça. Não me preocupo. Confiança naquelestrabalhadores. Segurança de que estarei em terra. Embreve. Fecho os olhos, a pensar no que se passou. Nodescontrole completo do destino. Nas conversas a bor-do. E naquelas conversas que eles me esconderam. Porser mulher, moça! Sem preconceito. Ali, era parte da-quela família. Senti-me nela.

Chega o sono. O barco às escuras. Sumimos.

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Vidas separadas pelo mar 227

24. BOM

“A gente se criou nesse ramo. Eu jáestou com 58 anos,

então a gente tem que terminar orestinho da vida,

porque eu não sei fazer outra coisa.Domingo, o mercado é fechado e a

gente sempre vem aqui sentir o cheirinhodo peixe, de tão gostoso que é.”

(Auri Novaes)

Auri tenta proteger-se do frio em um intenso abraçoao próprio corpo e escondendo o queixo sob a gola dablusa de lã. Mal olha a rua a qual percorre todos osdias: já havia memorizado a maioria dos buracos da-quela estrada de chão, que o tirava do bairro Fazendi-nha, onde morava, e trazia-o até a Banca de Peixe, láno centro de Itajaí. O longo caminho levava quase umahora para ser percorrido. Mas naquele vento fino de in-verno, que lhe cortava os lábios e a pele, preferia mes-mo trocar a bicicleta já enferrujada pelos sapatos decouro que mal conseguiam aquecer seus pés, de tãogastas as solas.

Cada passo libera um som solitário no bairro ilumi-nado por precários postes de luz: guiava-se pela lua cheia,que se exibia majestosa no céu pouco nublado. Masseu brilho sedutor revelava ainda mais a cerração da-quela manhã, tornando o caminho propício aos fantas-mas que seus avós tanto falavam, escondidos em meioàs araucárias. Prefere baixar os olhos e deixar-se levar

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pelo caminho já decorado por suas pernas. Espia, derelance, o portal do cemitério do Fazenda, com aquelavelha inscrição em latim, alertando-o sobre a linha tê-nue que separa a vida da morte: “Lembra-te homemque és pó, e ao pó voltarás”.

Rapidamente desvia sua atenção daquele mórbi-do cenário que, nos anos de 1960, ainda não revela-va a presença das residências e prédios. O bairroFazenda mostrava-se como um lugar bucólico domi-nado por pastagens de gado, áreas de extração demadeira, o longo trilho da Estrada de Ferro SantaCatarina, rodeado por árvores, mato, e mais árvo-res. O cemitério afastava qualquer tipo de vida hu-mana, preferindo construir uma organização parti-cular em cima daqueles poucos morros que compu-nham o relevo plano de Itajaí. Os túmulos, dispostoslado a lado e espalhados ao redor da grande cruz,assemelhavam-se às quadras de uma cidade que cir-cundam a praça central.

Auri nunca soube explicar por que o vento sem-pre teimava em soar com uma intensidade maior na-quele local: agarrava-se aos próprios braços aindamais agora, como forma de espantar também o medoe a insegurança. Mas, por um instante, sua concen-tração é interrompida por um baque inesperado —só podia ser um daqueles fantasmas de que sua avóalertara. Mal olha para trás: as pernas ganham umarapidez sobre-humana, a correr daquele vulto incan-sável que o perseguia. O menino tropeça em um dosburacos da precária estrada e enxerga o fantasmaaproximando-se de seu corpo estirado ao chão.Apóia-se no antebraço para levar seus joelhos, ma-chucados do tombo, próximos ao quadril. Levanta-

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se rapidamente, gemendo de dor e, mesmo comas pernas exaustas, não desiste de fugir até o seudestino.

Os postes que iluminavam o centro da cidade tor-nam aquele vulto ainda maior, forçando o garoto a es-quecer seu cansaço e continuar correndo até a antigaBanca de Peixe. Ao reconhecer o movimentado local,formado por um único telhado que cobria aquele pe-queno galpão quadrado, com uma pintura bege, locali-zado em cima de um trapiche aparentemente frágil,percebe que conseguira espantar a tal alma penada:fruto de sua imaginação somada à projeção da própriasombra na rua, além do ruído da folha de coqueiro quecaíra em frente ao cemitério.

Naquele dia, ele chegaria muito antes das três horasda manhã, nos barulhentos bares do mercado invadi-dos pelo cheiro de peixe frito e cachaça.

— Ô, Bom, fugiu de alguém? Vem sentar aqui pratomar aquela cervejinha com tainha frita! — grita Rati-nho, o dono de um dos restaurantes que ficavam aber-tos, nas madrugadas adentro.

Enquanto ouve o convidativo chamado do cozinheiro,ainda permanece apoiado com a palma das mãos so-bre os joelhos, tentando recuperar o fôlego perdido du-rante a corrida. Como era aconchegante sentir aquelecheiro de peixe, ver o empurra-empurra dos comerci-antes à procura do melhor lugar na venda, além dasrisadas que saíam dos cinco restaurantes na oferta dopescado mais fresco e da cerveja mais gelada. Bom,um dos apelidos criados pelos colegas por um motivoque desconhece ou nega saber, senta-se com os donosde outros codinomes, como o Salmoura, o Trem e poraí vai.

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— Bom, segura essa! — berra Salmoura, um dosvendedores mais bagunceiros da Banca, a atirar umsaco cheio de água em direção a Auri.

Todos que estavam sentados na lanchonete silen-ciam, ansiosos pela reação daquele garoto com pou-co mais de 15 anos. Ele se dirige à cozinha do mer-cado e, de lá, volta com outra sacola cheia de águapara lançar em direção ao colega: apenas se ouvia oestouro do saco plástico contra o peito de Salmoura,seguido da característica gargalhada do Auri, cujasrisadas pareciam nunca perder a força de tão longase fortes. Aí começava aquela festa, que se repetiadurante várias madrugadas: todos se molhavam, es-condiam-se dentro dos bares, corriam de um lado aoutro. Tornavam-se crianças.

Lá pelos anos 60, o Mercado de Peixe, localizadona beira do rio Itajaí-Açu, atrás do Mercado Públi-co, era certamente um dos locais mais movimenta-dos do centro da cidade. Enquanto o pequeno muni-cípio de 60 mil habitantes adormecia, os comercian-tes estavam a postos para garantir seu espaço pelo“avanço”: quem chegasse antes, conseguia o melhorpescado, sem precisar passar por qualquer fiscaliza-ção.

Às três da manhã, quando as primeiras baleeirasancoravam nos trapiches em frente ao mercado, co-meçava a correria dos vendedores em direção aocais, que se posicionavam desordenadamente emfrente às lanchas dos pescadores artesanais: era pei-xe pra lá, “o mais fresco é meu!”, “pega esse aqui!”e, ao final daquela disputa pelo melhor pescado, ape-nas se via os braços carregados de robalo, bagre,pescada, mero e o que mais aparecesse naquele rio.

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— Vai ficar sem peixe, rapaz! — dizia um, a pu-xar uma das cordas que prendiam as lanchas, fazen-do o colega tropeçar e cair no Itajaí-Açu.

Quantas e quantas vezes, Bom tomou aquele banhoinesperado, fazendo-o derrubar todos os peixes quehavia escolhido com tanta cautela. Se dava briga? Quenada, era apenas mais uma desculpa para bagunçasposteriores.

— Amanhã você vai ver, moleque! — respondia-lhe,encharcado, misturando a falsa braveza com um sorri-so pueril.

E amanhã era outro que caía no rio em meio às gar-galhadas dos pescadores e da rapaziada do mercado.Rapaziada mesmo, porque mulher não podia passar porali, não! E se passasse... Lá vinham os assobios e ascantadas para as mais corajosas ou atrevidas, além dasinvestidas na livre concorrência.

— Olha o peixe fresquinho para a senhorita! — gri-tava um, a exibir o robalo ainda balançando a cauda.

— Não, o meu é que é melhor! — berra Trem, lá dooutro lado da venda.

— O do Bom é o mais fresco! — sorri Auri, lançan-do seus olhos azuis acrescidos de uma tenra ousadia àfreguesa. O cabelo sempre dividido ao meio, com umtopete cuidadosamente delineado e fios negros, um tantoarrepiados, completam aquele rosto que lhe chama aatenção — bem diferente do cabelo grisalho jogado paratrás e os olhos cobertos pelas lentes grossas dos óculosque o acompanhariam anos depois.

E assim iniciava a disputa de quem vendia o peixemais saboroso pelo melhor preço. Não havia câmarasfrigoríficas, para congelar o pescado: o jeito mesmo eradepositá-lo em coxos de cimento, que serviam como

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balcão da venda. Nenhum vendedor era proprietáriode banca e, muitas vezes, Bom precisava dividir aquelerecipiente improvisado com mais dois comerciantes.

— Esses peixes aqui são meus, aquela parte é tua!— dizia Auri, empilhando cuidadosamente cada pes-cado para poupar espaço no restrito local.

— Tá certo, Bom, pode confiá que ninguém aqui vaipegar o teu espaço! — respondia Trem, já exibindo atainha fresca para um dos muitos fregueses que movi-mentavam o mercado.

Às oito horas da manhã, todos aqueles gritos e ba-rulhos começavam a perder força, já que peixe nãohavia mais. Lá fora, as carroças que vinham de cida-des vizinhas deixavam o mercado carregado de tainha.Havia também o pessoal que chegava lá no bairro Itai-pava, a quase dez quilômetros do centro da cidade, combagres e cações amarrados à pequena cestinha presaao guidão da zica. Na época, o peixe era barato quesó: quem não tinha dinheiro para comprar carne, ga-rantia camarão, sardinha e robalo para o almoço e ojantar. Gente rica passava longe do mercado: imaginase iriam conviver com aqueles vendedores barulhentose as precárias condições de higiene das vendas paracomprar um pescado?

Quem diria que estas mesmas pessoas engoliriamsuas palavras anos depois, quando o peixe se tornariaum alimento de elite.

***Foi lá nos anos de 1970, que seu Auri começou a

observar os novos clientes, privilegiados por uma me-lhor classe social, freqüentando o Mercado de Peixe.Naquele ano, os coxos de cimento foram substituídos

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por bancas particulares, com um balcão frigorífico eespaço para limpar o pescado. Os 26 comerciantes te-riam uma loja própria para vender seu produto: maisorganizada, higiênica e com uma maior fiscalização. Onovo mercado funcionaria atrás, em frente à antigabanca.

Bom foi bem esperto: quem entrasse no mercado jáencontraria a loja nº 18, com peixe fresco e o sugestivonome de “Bom Pescado”. Muitas vezes, ele deixou asua venda, para dar uma olhada na demolição da Ban-ca de Peixe, ao lado, com mais outros vendedores queguardariam nas lembranças as histórias do “avanço”para garantir espaço na venda, as brincadeiras com oSalmoura e o Trem, e as tainhas da lanchonete do Ra-tinho. Auri não sentiu uma grande tristeza ao ver a ban-ca, com mais de 50 anos de história, reservada ao pó:havia garantido um local privilegiado para continuarvendendo seu peixe, coisa que mais gostava de fazerna vida.

Em 1982, o mercado passaria por uma nova refor-ma e ganharia floricultura, loja de artesanato, frutei-ra, armazéns e as tradicionais bancas de peixe. Ape-nas o restaurante do Charles — que receberia pes-soas famosas como o rei Pelé e a sua camisa auto-grafada exibida em uma das paredes — continuariareservando ao mercado aquele cheiro de comidacaseira e peixe frito. O som de ônibus e motores?Esses deixariam de existir, para dar lugar à Centralde Abastecimento Paulo Bauer.

Hoje, Auri nem negocia o produto com os própriospescadores: as pequenas baleeiras que lotavam o caisforam substituídas pelas mais de seiscentas embarca-ções que movimentam o Itajaí-Açu. O pescado já vem

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em grandes caminhões frigoríficos que chegam ao mer-cado às seis horas da manhã. E, mesmo que precisas-sem disputar o melhor peixe, aquele empurra-empurrade antes não seria movimentado pelos inúmeros ven-dedores do passado. Apenas os comerciantes e unspoucos “peixeiros”, que saem pelos bairros da cidadea vender pescado com suas bicicletas, conseguem al-guns quilos de peixe. Às vezes, a escassez é tanta, quenão resta coisa alguma para a venda. Aí, o jeito é ele-var o preço, só para gente rica pagar.

Quem vem de fora se espanta com a organização ea limpeza do local. No entanto, se tivessem conhecido afelicidade do mercado de antigamente, com os restau-rantes abertos de madrugada, as brincadeiras no trapi-che e a alegre disputa por um espaço nos coxos, talvezpudessem sentir sinceras saudades daqueles tempos depescaria farta e peixe barato.

Quase toda noite, após doze horas seguidas de tra-balho, Bom ainda tarda, para despedir-se do cheiro domercado: chega em casa, tempera a tainha, coloca nagrelha e fica lá, a beber sua cerveja e comer o alimentopreferido. Solitário: a mulher e os cinco filhos preferema carne ao gosto do pescado. Peixe faz bem: olhem pramim! Trabalho há quarenta e três anos com isso, comotodos os dias o meu peixinho e nunca tive um problemade saúde! Nem aquelas rugas de velho eu tenho!, avisa,enquanto seus filhos torcem o nariz para o que o paicomenta. Seu negócio é vender e apreciar o gosto da-quela riqueza que vem do mar. Mas nem adianta cha-má-lo para uma pescaria — nunca passou da boca dabarra.

Com apenas o primário completo, Bom conseguiusustento para a família e estudo aos cinco filhos com o

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dinheiro da venda de peixes. Até se consagrou, entre osoutros colegas do mercado, como um dos vendedoresmais conhecidos e ninguém tira seu título de comerci-ante mais antigo do local. Sua empatia com o comér-cio e clientes lhe garantiu a cumplicidade de fregueseslá dos tempos dos coxos. Cliente sempre tem razão, mes-mo que, às vezes, não tenha!, aconselha, para quemquiser descobrir seu segredo.

Não há lugar melhor para encontrá-lo, senão nomercado. Até mesmo aos domingos, quando o lugarpermanece com seus portões fechados — contamina-do pela calmaria do rio Itajaí-Açu, sem os bagres, me-ros, tainhas, e influenciado pela atual tranqüilidadedaquele pedaço de terreno no centro da cidade — Bomainda passa por lá. Só para sentir aquele cheiro de pei-xe que o acompanha diariamente, há mais de quatrodécadas.

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25. SAUDADES

“Cambaleei como bêbado. Era surpreen-

dente o efeito da cessação do balanço

marinho. Tínhamos estado tanto tempo

sobre a rede das ondas que a terra firme

nos desorientava. A cada instante

esperávamos que o solo se movesse ou

afundasse, e as muralhas rochosas

regirassem ou adernassem como um

navio — e aprontávamo-nos para

contrariar esses movimentos: eles não

vinham e isso nos perturbava o equilí-

brio”.

(O Lobo do Mar – Jack London)

Acordo com um braço de terra a mostrar-se napequena janela. Estranho. Estava acostumada aonada. Agora, com a companhia de algo além. Le-vanto. O barco parece brincar com as águas. Desli-za. Caminho até o convés. Nem acredito. Terra, no-vamente. Estranho vê-la tão perto. Gaivotas exibem-se. O nascer do sol dá boas-vindas. A mostrar-seatrás do morro.

Olha lá. O nosso lar. Moro bem ali. Naquela rua.Cheia de casinhas, tá vendo? Aponta, Zé, à Vila deAguada. Ô, vou ligar para casa! Avisar que estamoschegando. Nem deve ter ninguém. Foram tudo para oCarnaval. Mas falta uma semana, Zé. Que nada! Car-naval aqui começa antes. Tudo é festa. Essa mulhera-da, tem ninguém em casa, não. Vou chegar e ela ainda

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vai me cobrar. Por que chegou antes? Que está fazendoaqui, homem? E ri, este Zé.

A minha também não está. Boca silencia. Viajou, atrabalho. Sozinho em casa, estranho. Moramos em frentea uma lagoa. Vista linda que só. Não podia ser diferen-te. Olha lá! Está vendo aquele barco? Perto da praia.Um carvoeiro. Encalhado, há mais de 30 anos aí. Mui-ta gente pegava carvão nos destroços. Só sobrarampedaços do coitado. Ninguém conseguiu tirá-lo? Quenada. Turismo, minha amiga. Dinheiro. Está lá. A ferru-gem na água.

Zé Maria no celular. Ansioso para ver o seu “chei-ro”. A menina. O garoto. Malas prontas. Sorriso. Estásereno. Dois dias em terra, apenas. Para consertar osgeradores. Sorte assim, de estar com a família tão cedo?Tem não. Aproveita, quando nem esperava vê-la tãocedo. Surpresa para a mulher. Tranqüilidade ao meni-no. Abrandece quando o pai chega.

Olhe lá, o bote está chegando! Quer ir? Não. Tempopara despedir-me. Do Monkfish, ancorado em meio aomar. Apenas aceno, tímida. Ao Eca, que faz um brevetchau. Tetu e Bruno o acompanham. Vejo alívio no ros-to de Bruno. Dias depois, ouviria a notícia. Preferiu nãomais embarcar.

Gê espera, na borda. O próximo bote. Que nada!Vai logo para o seu rancho. Pescar o que não deu naviagem. O mar é vício, já. Passatempo. Sem ele, que hápara fazer? Olha esse azul aí. Tem coisa mais bonita,não! Peixe, ô, como é bom! Calmaria. Balanço. A ter-ra? Parada demais. Boniteza é lá fora!

O próximo bote se aproxima. Sua vez, menina! Pau-linho, sempre preocupado. O olhar sério. Mas tranqüilo,sempre. Afasto-me do Monkfish. Um adeus para

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Paulinho, Zé, Zé Maria, Gê, Xamixunga. Impossível nãorir. Nunca entendi o motivo. Até me falarem, em terra:xamixunga é o nome popular de sanguessuga. Coisado interior. É gente que “suga” a energia do outro. Sabeaquele invejoso? Que gruda em você. Pois é, xamixun-ga. Por que o Valdir? Motivo algum, sacanagem do Zé.Pois Valdir nunca demonstrou cobiça. Estava lá, semquerer aquela vida. Voltaria a ser pedreiro. No mar?Não dava, não. Melhor a terra firme, ver família. O sa-lário baixo. Mas a pesca está fraca. Vou ficar por aqui.

Monkfish permanece parado. Incomoda deixá-lo. Sin-to o chão imóvel, estranho. Gente diferente, ao redordo porto. Outras vozes. Cheiro de cidade. De volta àrotina. Que terei amanhã? Deveres a cumprir. Lá fora,tão mais fácil — para mim. Sem cobranças, nem preo-cupações. As pernas ainda fracas. Os pés desencon-tram-se. Confusos. Bem que falaram. Mas pouco acre-ditei. Aqui, em terra, desfrutava da estabilidade. Queperdi, há cinco dias. Acostumei-me com o balanço. Issotudo é normal, demais.

Despeço-me daqueles homens. Que logo voltarão parao oceano. Para as dúvidas que ele dimensiona. O esque-cimento. O abandono. A solidão. As saudades. Acostu-maram-se. Como? Difícil entender. Uns gostam de lá.Outros, sem opções. Despeço-me do mar. Espaço paradevaneios. Pensamentos. De uma experiência única. Des-peço-me da rotina lenta, do relógio calmo, das tonturas.De conviver com estranhos. Do espaço limitado. Do exte-rior sem limites. Despeço-me do que senti, aprendi, vivi.Daquilo que, na fala, é intransmissível. Que, na escrita,perde-se. Daquilo que apenas a sensação permite signifi-car. Despeço-me desse inexplicável.

Despeço-me, apenas.

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FONTES

ENTREVISTADOS (Personagens)

Aldo José da CunhaAuri NovaesCélio José de MeloBernardete FelícioLaci Gomes da SilvaLuiz Carlos da CruzManoel da Costa SantosMaria Felício SilvaOlga da Silva LeutérioRicardo Alexandre CardosoSalma Benta Santos de MariaVirgínia Lane da Cruz Silva CardosoZilda Francisca da Cruz

ENTREVISTADOS (Pesquisadores e Especialistas)

Aluísio Vieira - diretor Sindicato dos Trabalhadores nasEmpresas de Pesca de Santa CatarinaAmarildo Madeira – engenheiro – Porto de ItajaíHéder Cassiano Moritz - diretor de logística do Porto deItajaíJosé Roberto Severino – historiador – superintendenteFundação Genésio Miranda Lins (2005-2008)Paulo Ricardo Pezzuto – Coordenador do Grupo deEstudos Pesqueiros da Univali

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Roberto Wahrlich – oceanólogo – Grupo de EstudosPesqueiros da UnivaliSargento Guilherme Alves da Silva Filho – Capitaniados Portos de ItajaíSargento Marconi Leite Santos – Capitania dos Portosde ItajaíTenente José Marcos Kascharowski – Capitania dosPortos de Itajaí

PESQUISAS EM INSTITUIÇÕES

Capitania dos Portos de ItajaíCentro de Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar daUniversidade do Vale do ItajaíCentro de Documentação e Memória Histórica deItajaíComércio e Indústria de Pescados Kowalsky Ltda.Estaleiro MacariniPorto de ItajaíRádio Costeira de NavegantesSecretaria da Pesca de ItajaíSindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Pescade Santa CatarinaSindicatos das Indústrias da Pesca de Itajaí e Região

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Vidas separadas pelo mar 249Editora Maria do Cais

A Editora Maria do Cais é pú-blica. Inclusiva. Social. Minoritá-ria. Desde que foi criada, em ou-tubro de 2005, tem sido um ca-minho para editar livros voltadosà inclusão étnica, cultural e denovas narrativas históricas. E darvoz a políticas inclusivas causaenfrentamento. Foi assim, quan-do a Editora, unidade da Funda-ção Genésio Miranda Lins, pu-blicou pela primeira vez no seuJornal Itajahy, de set/out de2006, a pesquisa do professorJosé Bento Rosa da Silva sobreafricanos na origem de Itajaí eque alterou a historiografia cata-rinense. E isto causou desconfor-to a grupos que vêem a cidadecomo açoriana, onde os negroseram lembrados nos discursosoficiais ou nas exposições quasepermanentes apenas na sua an-tiga condição de escravos.

Desde o seu início, a Editora,seja pelo seu nome ou por al-guns livros já lançados, tem sidoalvo de críticas ideológicas. An-tes mesmo da primeira publica-ção, críticas na imprensa e noslugares de sociabilidade tinhamcomo base o preconceito, o ra-cismo e a assepsia social, mes-mo que a intolerância apareces-se de forma velada. As críticas seiniciaram pelo nome Maria doCais. Estava colocado um emba-te antigo. Primeiro, uma iniciati-va de dar visibilidade ao que édo cotidiano, do povo e que per-tence ao imaginário social. De-pois, vieram os defensores da“moral” e dos “bons costumes”,que defendem uma história quetrata exclusivamente das grandespersonagens.

A Editora é um meio de se posicionaraos moldes de um Dom Quixote, queolha ao seu redor e vê monstros ao invésde moinhos de vento. Não é mera coinci-dência que essa obra que força a lingua-gem a expor sua função - a metáfora -,inaugura a literatura moderna, quase umséculo depois do início da história doBrasil.

Nesse passado distante, e aos olhosdos colonizadores europeus, os negroseram vistos apenas como selvagens quemantinham uma relação de feitiço comos objetos de rituais de magia. O termofeitiço como desqualificação do outro foicunhado na língua portuguesa, no perío-do de colonização do continente africa-no. Em outro período e no seio dos paí-ses civilizados, Karl Marx percebeu, noséculo 19, uma relação de feitiço/fetichecom a mercadoria. Ao perceber que a re-lação humana passava a ser medida pormercadorias, a dinâmica da sociedadecapitalista perverte o princípio de valori-zação da vida. Para Marx, a relação é sem-pre entre pessoas e nunca entre sujeito emercadoria.

A partir da consciência de que há umalonga duração dessa desqualificação dooutro e da dinâmica de afirmação da po-sição dos mais favorecidos, a Editora seconfigura como um local de representa-ção de grupos minoritários. Mesmo queestas minorias sejam uma maioria silen-ciada.

Agora, a Editora publica este livro deSheila Ana Calgaro, dando seqüência àpolítica editorial de valorizar as múltiplasvozes para ampliar, mais ainda, as me-mórias da cidade. Assim, a Editora au-menta o leque de narrativas sobre o pas-sado de pessoas que vivem em Itajaí eregião.

José Isaías Venera - editor

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Vidas separadas pelo mar250

A cidade onde se trabalha(aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura de Joinville)

Água é poesia(parceria com a Semasa)

Anuário de Itajaí 2005-2006

Bento aos Vivos(aprovado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura)

Cultura e Identidade no Brasil(co-edição com a Unoesc)

Currículo e Avaliação(co-edição com a Editora Univali)

Digressões sobre o Ensino de História:Memória, História Oral e Razão Histórica

(parceria com o Grupo Memória da Unicamp)

Diretrizes para a avaliação da aprendizagem naEducação Infantil: caminho da infância

(parceria com a Secretaria de Educação de Itajaí)

Esculpindo a arte do conhecimento(parceria com a Associação dos Pais e Professores da Escola

Básica Avelino Werner)

Estética e Pesquisa(co-edição com a Editora Univali)

Ética e Metodologia(co-edição com a Editora Univali)

Histórias com Sabor(aprovado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura)

50 anos de História: Imigração Japonesa emSanta Maria, Rio Grande do Sul, Brasil (1958-2008)(parceria com a Universidade Federal de Santa Maria)

Publicações da Editora Maria do Cais(outubro de 2005 a dezembro de 2008)

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Vidas separadas pelo mar 251

Itajaí, meu amor: Antologia de poemas emhomenagem ao Município de Itajaí(parceria com a Secretaria Municipal de Educação)

Irene de Souza Boemer: Dama do Rádio – Cronista da Cidade(aprovado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura)

Haicai(parceria com a Secretaria Municipal de Educação)

Itajaí em Retalhos(parceria com a Secretaria Municipal de Educação)

Manual de Instruções das APPs da Rede Municipalde Ensino de Itajaí(parceria com a Secretaria Municipal de Educação)

Mídia e Conhecimento(co-edição com a Editora Univali)

Misturando Memórias: contos e crônica de Itajaí(aprovado pela Lei Municipal de Incentivo à cultura)

Poesias, crônicas, contos 2005-2007(aprovado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura)

Poesias, crônicas, contos 2008(aprovado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura)

Política de Inclusão: Leis Municipais de Itajaí paraInclusão Étnico/Racial na Educação(parcerias: Grupo de trabalho de Diversidade Étnica e Cultural;Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial; NEAB/UDESC; Curso de História – Univali)

Reciclagem do lixo: Qual a importância do cenário atual?(parceria com a Fundação do Meio Ambiente de Itajaí –FAMAI)

Revista Revelação(parceria com a Secretaria de Educação de Itajaí)

Vidas separadas pelo Mar(aprovado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura)

Referencial Pedagógico da Educação Infantil(parceria com a Secretaria Municipal de Educação)