Video e Experimentacao Social

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES MESTRADO EM MULTIMEIOS

Vdeo e experimentao social: Um estudo sobre o vdeo comunitrio contemporneo no BrasilCLARISSE MARIA CASTRO DE ALVARENGA

Campinas - 2004

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INSTITUTO DE ARTES MESTRADO EM MULTIMEIOS

Vdeo e experimentao social: Um estudo sobre o vdeo comunitrio contemporneo no BrasilCLARISSE MARIA CASTRO DE ALVARENGA

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Multimeios, da Universidade Estadual de Campinas, como exigncia parcial para obteno do grau de Mestre em Multimeios, sob orientao do prof. Dr. Ferno Vtor Pessoa de Almeida Ramos.

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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IA. - UNICAMPAlvarenga, Clarisse Maria Castro de.

AL86v

Vdeo e experimentao social: um estudo sobre o vdeo comunitrio contemporneo no Brasil. / Clarisse Maria Castro de Alvarenga. Campinas, SP: [s.n.], 2004. Orientador: Ramos, Ferno Pessoa. Dissertao(mestrado) Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes.

1. Vdeo comunitrio. 2. Documentrio. 3. Comunicao social. I. Ramos,Ferno Pessoa. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Ttulo.

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memria, sempre viva, do amigo Mateus Afonso Medeiros

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Agradecimentos Agradeo, em primeiro lugar, ao meu orientador, prof. Ferno Ramos, por ter clareado os problemas que eu enfrentava, antevendo seus desdobramentos, e sugerindo snteses por mim impensadas. s professoras do dep. de Multimeios: Luciana Corra de Arajo, Lcia Nagib e Sheila Schvarzman, pelas excelentes aulas ministradas durante o perodo dos cursos do Mestrado, contribuindo para que meu projeto ganhasse novas perspectivas. Pelos valiosos comentrios elaborados na fase do exame de qualificao, agradeo tanto ao prof. Mrcius Freire (e ainda pela forma minuciosa como apresentou a histria da antropologia flmica em suas aulas no dep. de Multimeios) quanto ao prof. Luiz Fernando Santoro, da Eca-USP. Ao prof. Luiz Orlandi pela sua capacidade para fazer do pensamento algo contagiante atravs da experincia de seus cursos: de Esttica, no dep. de Filosofia da Unicamp, e aquele que investiu sobre a operatoriedade dos conceitos da filosofia contempornea, na PUC-SP. Aos professores Csar Guimares, do dep. de Comunicao Social da UFMG, e Ruben Queiroz Caixeta, do dep. de Cincias Sociais da UFMG, pela correspondncia que estabeleceram entre cinema, filosofia e antropologia, nas aulas que partilharam na Fafich-UFMG, e que tive a oportunidade de assistir. Agradeo ainda aos antroplogos Luciana Frana e Stlio Marras. Luciana disponibilizou no apenas sua monografia, mas tambm as entrevistas e o material que serviu de base para sua instigante pesquisa sobre o filme Conversas no Maranho, de Andrea Tonacci, e Stlio me estimulou a aprofundar em questes conceituais que perpassam este trabalho, o que contribuiu para que eu abandonasse solues simplistas encontradas ao longo do caminho e buscasse problematizar mais os posicionamentos tomados. queles que participaram diretamente da pesquisa, agradeo pela generosidade que dispuseram de suas experincias e de seus conhecimentos, permitindo que entre ns ocorresse um rico dilogo: Bernardo Brant, Christian Saghaard, Cristina Santos Ferreira, Diogo 90, Donizete Soares, Gianni Puzzo, Gisele Gomes, Grcia Lopes Lima, Itamar Silva, Ivana Gouveia, Jayme Rampazzo, Jorge Cordovil, Mari Corra, Nailton Maia, Rafaela Lima, Svio Leite e Vincent Carelli. Ainda fundamentais foram as contribuies de Mari

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Travassos, do Estdio Cip, Ana Flvia Ferraz, da Auuba Comunicao e Educao, e Joo Paulo, da TV Casa Grande, todos eles auxiliaram na formao do acervo para a pesquisa e ainda me transmitiram informaes sobre suas respectivas metodologias de trabalho. Aos companheiros de trabalho Andr Mendes, Ana Paula Paiva, Miriam Aguiar e Soraia Rodrigues, agradeo pelo cotidiano estimulante que compartilhamos durante este perodo, em Belo Horizonte. Tambm aos companheiros de mestrado Leandro Vieira e Mariana Meloni pelo convvio em Campinas. minha me, Tereza, pela maneira naturalmente afetuosa como incentivou a curiosidade e a pesquisa desde sempre, e ao meu irmo, Dido, pela pacincia com que acompanhou o desenvolvimento deste projeto, tornando-se um de seus grandes colaboradores. Finalmente, aos queridos amigos: Adriana Barbosa, Alexia Melo, Ana Paula Orlandi, Andr Sena, Bruno Vasconcelos, Cinthia Marcelle, Cntia Vieira, Elisa e Daniela Arajo, Fabiana Queirolo, Juliana Leonel, Ktia Kasper, Lel, Luiz Guilherme e Ana Melo Brando, Manoel Neto, Maril Dardot, Oswaldo Teixeira, Pablo Pires, Paulo Maia, Rodrigo Moura, Slvia Amlia, Valria de Paula e Yana Tamayo. Valria. Em especial, ao Benjamin, por tudo.

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ndice

INTRODUO

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1. O QUE VDEO COMUNITRIO? ELEMENTOS PARA UMA DEFINIO 25 1.1 A questo da tecnologia 25 1.2 O problema de dar a voz ao outro 31 1.3 Produo compartilhada 35 2. VDEO COMUNITRIO EM CONTEXTO 2.1 A herana do vdeo militante 2.2 Os movimentos sociais 2.3 Do vdeo popular ao comunitrio 2.4 O olhar indgena de Andrea Tonacci 2.5 O vdeo comunitrio contemporneo 3. A ATUAO INDIGENISTA 3.1 O Vdeo nas Aldeias 3.2 Anthares Multimeios 4. A PRODUO DE VDEO CURTA-METRAGEM 4.1 Oficinas Kinoforum 4.2 BH Cidadania 5. POR UMA PEDAGOGIA DAS IMAGENS 5.1 Gens Servios Educacionais 5.2 Oficina de Imagens 5.3 Ncleo de Educao e Comunicao Comunitria 6. TRANSMISSO TELEVISIVA 6.1 TV de rua e TV a cabo 6.2 Associao Imagem Comunitria 6.3 TV Favela 6.4 TV 100% Comunidade CONSIDERAES FINAIS VDEOS PESQUISADOS BIBLIOGRAFIA 43 43 47 56 59 63 69 69 81 95 95 110 121 121 131 142 151 151 156 175 183 191 197 201

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Resumo Esta dissertao apresenta uma pesquisa sobre a prtica do vdeo comunitrio contemporneo no Brasil, realizada nos anos de 2003 e 2004. Investigamos a metodologia de uso do vdeo e a trajetria de dez grupos - trs localizados em So Paulo, trs no Rio de Janeiro, trs em Belo Horizonte e um em Olinda. Paralelamente pesquisa de campo, efetuamos uma reviso bibliogrfica, tomando como parmetros: a experincia autoral do cineasta Andrea Tonacci, ainda na dcada de 1970, e a experincia institucional da Associao Brasileira de Vdeo Popular (ABVP), entidade que agrupou as manifestaes do movimento do vdeo popular, entre 1984 a 1995. Do ponto de vista terico, associamos o estudo de Jean-Claude Bernardet sobre o documentrio brasileiro das dcadas de 1960 e 1970 com o estudo sobre cinema e antropologia, de Claudine de France. A aproximao entre os elementos citados nos sugeriu a necessidade de problematizar o conceito de vdeo comunitrio e propor uma leitura para alguns daqueles vdeos que envolvem comunidades em seu processo de realizao. Rsum Cette dissertation prsente une tude ralise en 2003 et 2004 sur la pratique de la vido communautaire contemporaine au Brsil. Nous avons examin la mthodologie dusage de la vido et la trajectoire de dix groupes trois So Paulo, trois Rio de Janeiro, trois Belo Horizonte et un Olinda. En parallle la recherche auprs des communauts, nous avons ralis une rvision bibliographique prennant comme paramtres lexprience dauteur du ralisateur Andrea Tonacci pendant les annes 1970 et lexprience institutionnelle de lAssociation Brsilienne de Vido Populaire (ABVP), organisation qui a rassembl la manifestation du mouvement de la vido populaire de 1984 1995. Du point de vue thorique, nous avons associ ltude de Jean-Claude Bernardet sur le documentaire brsilien des annes 1960 et 1970 avec ltude sur le cinma et lanthropologie de Claudine de France. Le rapprochement de ces lments nous a suggr la ncessit de rflchir sur le concept de vido communautaire et de proposer une lecture de quelques unes de ces vidos qui mobilisent des communauts dans leurs processus de ralisation.

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IntroduoVoltando a cabea um pouco esquerda, v o perfil direito de Sexta-feira. Lavram-lhe o rosto equimoses e golpes e, no malar proeminente, afastam-se os bordos violceos de uma chaga feia. Robinson observa, como sob uma lupa, esta mscara prognata, um tanto bestial, que a tristeza torna mais obstinada e mais amuada. ento que nota nesta paisagem de carne sofredora e feia qualquer coisa de brilhante, de puro e de delicado: o olho de Sextafeira. Sob as longas e curvas pestanas, o globo ocular perfeitamente liso e limpo incessantemente varrido, refrescado e lavado pelo movimento da plpebra. A pupila palpita sob a ao varivel da luz, aplicando exatamente o seu dimetro luminosidade ambiente, de modo a que a retina seja sempre igualmente impressionada. Na massa transparente da ris encontra-se imersa uma nfima corola de plumas de vidro, uma tnue roscea, infinitamente preciosa e delicada. Robinson est fascinado por este rgo to sutilmente composto, to perfeitamente novo e brilhante. Como que uma tal maravilha pode estar incorporada num ser to grosseiro, ingrato e vulgar? E se, neste instante preciso, descobre por acaso a beleza anatmica, espantosa, do olho de Sexta-feira, no dever, honestamente, perguntar-se se o araucano no todo ele uma adio de coisas igualmente admirveis que ele ignora s por cegueira? Robinson debate-se interiormente com esta dvida. Pela primeira vez, entrev nitidamente, no mestio grosseiro e estpido que o irrita, a possvel existncia de um outro Sexta-feira tal como outrora pressentira, antes de descobrir a gruta e o combo, uma outra ilha, escondida na ilha administrada. Mas esta viso devia durar apenas um instante fugidio, e a vida devia tomar ainda o seu curso montono e laborioso. (Michel Tournier, em SextaFeira ou os Limbos do Pacfico, p. 160-161)

A relao entre cineastas e povo se modifica ao longo da histria do cinema brasileiro. A cada passo que do, um no sentido do outro, surgem, alm de novos conflitos, a possibilidade de outras maneiras de filmar, da o interesse nessa dinmica, sobretudo, por parte da crtica voltada para os discursos constitudos no campo do cinema documentrio. No seria difcil apontar que uma das manifestaes desse interesse est, por exemplo, na busca incessante pela captura das figuras do povo, suas razes e crenas, que passam a ser mostradas em primeirssimo plano no documentrio contemporneo. Assim como a imagem retirada da ilha de Speranza, onde se desenrola o encontro de Robinson e Sextafeira no romance de Michel Tournier, temos que uma das formas possveis da relao entre cineastas e povo advm do interesse crescente pelo olhar que parte das prprias comunidades nativas, numa tentativa talvez de que esse olhar do povo possa vir a nos mostrar um outro povo diferente daquele at ento representado pelos cineastas ou mesmo de nos apontar outras maneiras de filmar. A partir da segunda metade da dcada de 1990, como em nenhum outro momento no Brasil, podemos detectar uma srie de iniciativas envolvendo grupos que encontram, ao

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alcance das mos, um equipamento de vdeo digital, que lhes permite atuar como produtores de imagens. Diferente do que acontece no jornalismo televisivo ou no documentrio brasileiro mais contemporneo, o que parece interessante nessas imagens no exatamente a forma como as entrevistas so conduzidas, ou seja, as tipologias de interpelaes que os entrevistadores propem aos personagens; nem mesmo a maneira como os entrevistados se saem das perguntas ou provocaes verbais dos diretores. O que interessa aqui , sobretudo, a emergncia de um determinado cotidiano compartilhado entre aqueles que participam da realizao de um vdeo. Isso acontece quando, em So Paulo, Carlos, um garoto da favela Monte Azul, observado por um grupo formado por moradores dessa mesma periferia da cidade. Tendo atrs de si uma parede sem reboco, ele filmado pelos amigos em plano fechado com pouca iluminao. Fala para a cmera sobre suas metas e os obstculos que o impedem de atingi-las, reflexo que lhe ocorre durante um baseado. Na seqncia seguinte, perambula pelo bairro em busca de emprego, sempre negado a cada nova abordagem. Entre uma tentativa e outra, consegue descolar um copo dgua; negocia um pequeno emprstimo informal com um estrangeiro, garantindo o almoo. Ao final da empreitada, dirige-se para uma quadra de skate, onde - a sim - algum admirado por seus pares, entre eles justamente os participantes das Oficinas Kinoforum, responsveis pela concepo e realizao de Tato (2001), um vdeo dedicado a acompanhar o cotidiano dele. Na quadra, faz evolues sobre a prancha e, em voz over, fala que, para ser um bom skatista, preciso aprender a cair, estabelecendo uma analogia entre a queda fsica e o fracasso de suas expectativas. Retornando mesma locao do ponto de partida, o skatista tem agora o corpo reclinado, postura que lhe permite, a um s tempo, tirar a cmera de seu horizonte e falar, contemplando o espao desativado ao seu redor. Os realizadores do filme pedem que Carlos d uma mensagem aos jovens. Novamente com um cigarro de maconha entre os dedos, responde no ter mais o que dizer. A cmera deixa a locao, passando a circular pelos becos de Monte Azul at que, ao tentar transpor uma rua sem sada, colide em um muro. bastante evidente nesse vdeo a proximidade que existe de fato entre os adolescentes que compartilham o dia-a-dia em Monte Azul e, especificamente, a

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proximidade daquele grupo que se formou em torno do filme, incluindo a a presena do cineasta vindo de fora e o prprio personagem, que se permite filmar em situaes que no chegam a ser como aquelas dos filmes familiares, mas so situaes compartilhadas na intimidade de um grupo de pessoas que compactuam o mesmo interesse pelo skate e pelo vdeo, nesse caso. A proximidade entre as pessoas nas situaes de tomada surge como um primeiro estmulo para se pensar o que pode uma cmera arraigada em uma comunidade. Em Tato, como mostramos, est em jogo o dia-a-dia vivenciado pelo grupo de skatistas de Monte Azul e suas questes, a saber: a parania pela insero no mercado de trabalho, o gosto pelos movimentos fsicos do skate e certa reflexo existencial acompanhada do uso de drogas. Essa espcie de pacto entre aqueles que participam da realizao de um filme, ativando a formao de uma comunidade ao redor deles sejam eles quem for , est presente nesse vdeo que uma das primeiras incurses da Associao Cultural Kinoforum no universo do vdeo comunitrio. A instituio ministra oficinas de vdeo na periferia de So Paulo para jovens de 17 a 25 anos, desde 2001. possvel identificar atualmente, no pas, vdeos comunitrios produzidos por grupos localizados em reas urbanas, como vilas, favelas, bairros perifricos de centros metropolitanos, bem como em reas rurais, tais como projetos de vdeo desenvolvidos junto ao MST (Movimento dos Sem Terra), comunidades ribeirinhas, interioranas e aldeias indgenas. Apesar dos poucos registros formais sobre esses trabalhos, observa-se a ecloso desses projetos de vdeo, em geral envolvendo oficinas de vdeo ministradas por cineastas. A disponibilidade do recurso do vdeo permite que essas comunidades, sejam elas formadas por ndios ou brancos, crianas em situao de risco ou trabalhadores sem terra servindo-se desse material, tomem suas prprias imagens do mundo. A dinmica de realizao dessas imagens feitas pelo povo, por assim dizer, diferencia-se da forma como, dentro da cinematografia brasileira, ao menos desde a dcada de 1960, so criadas, por cineastas, imagens do povo com a proposta de represent-lo. Afinal, essas imagens, s quais nos dedicamos atravs da pesquisa que vimos apresentar, decorrem da insero, em diversos nveis, dos grupos sociais, outrora retratados, no processo de produo do vdeo. A apropriao dos equipamentos, por parte de grupos leigos pode vir a acontecer de maneira espontnea ou atravs de um estmulo externo. Pode ocorrer tambm de forma

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eventual ou regular, desenvolvendo-se ao longo do tempo. Aqui trataremos daquelas iniciativas, internas ou externas ao grupo, que orientam de forma sistemtica a aproximao entre comunidades e recursos do vdeo. Em geral, esse tipo de atuao atribudo a ONGs (Organizaes NoGovernamentais) ou associaes localizados na esfera da sociedade civil que contam com patrocnio de empresas privadas ou pblicas. Entretanto, h tambm aes nesse campo empreendidas pelo Estado, como poltica pblica, por produtoras de cinema e vdeo, e por empresas privadas especializadas em prestar servios na rea. Este trabalho baseia-se na investigao da prtica de dez grupos trs localizados em So Paulo, trs em Belo Horizonte, trs no Rio de Janeiro e um em Olinda. Estimulados por essa pesquisa, formulamos um terreno conceitual, com referncias nos estudos sobre o documentrio brasileiro, notadamente aquele empreendido por Jean-Claude Bernardet em Cineastas e Imagens do Povo1, que aborda documentrios das dcadas de 1960 e 1970, assim como o estudo sobre a antropologia flmica elaborado por Claudine de France, em Cinema e Antropologia2. De sada, a noo de vdeo comunitrio no estava centrada em uma concepo a priori de sensibilidade esttica videogrfica, mas no procedimento de envolver, em diferentes nveis, grupos sociais nas diversas situaes inerentes ao processo de realizao de vdeos, tais como criao de roteiro, produo, gravao, edio e exibio. A inteno foi deixar que a anlise dos filmes sofresse alteraes decorrentes da diversidade de sensibilidades encontradas, dos referenciais que cada grupo articula, das diferenas que apresentam entre eles. Elementos para uma definio mais aprofundada de vdeo comunitrio foram levantados ao longo de todo este trabalho. Aqui esto desenvolvidos no captulo 1, cuja proposta no exatamente responder, o que estaria fora de nosso alcance, mas ao menos problematizar a questo: o que vdeo comunitrio? No captulo seguinte, procuramos demarcar que essa maneira de usar o vdeo, envolvendo comunidades, surge com o fim da atuao direta da ABVP (Associao

Jean-Claude Bernardet. Cineastas e imagens do povo. So Paulo: Companhia das Letras, 2003 [1 edio 1985]. 2 Claudine de France. Cinema e antropologia. Campinas: Ed. Unicamp, 1998.

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Brasileira de Vdeo Popular)3, instituio que deflagrou no pas o movimento do vdeo popular. A associao existiu formalmente de 1984 a 2001, sendo que havia deixado de atuar como produtora de vdeos j em 1995, poca em que os equipamentos de vdeo digital comeam a se tornar mais acessveis do ponto de vista financeiro. Da mesma forma que a ABVP centraliza o movimento do vdeo popular, diretamente ligado aos movimentos sociais, quando a associao deixa de produzir, iniciase um outro tipo de produo, em certa medida herdeiro dessa tradio. Foi possvel formular que o vdeo comunitrio, da mesma maneira que outras vertentes da produo em vdeo no abordadas neste trabalho como a mdia ativista4 surgiria a partir da, no lugar da produo de vdeo popular, sendo ao mesmo tempo tributria dessa linha de trabalho e apresentando novos traos. Para compreender a produo brasileira de vdeo comunitrio, tivemos, portanto, de, primeiramente, retomar e revisar a bibliografia que versa sobre o movimento do vdeo popular. Essa tarefa, que est feita ainda no captulo 2, serviu para que pudssemos detectar como o contexto do vdeo comunitrio contemporneo, tematizado nos captulos subseqentes, mantm relaes ainda pouco examinadas com acontecimentos anteriores. Chamaremos ateno no apenas para o vdeo popular, mas tambm para a ascendncia de certas experincias autorais de cineastas, como Andrea Tonacci, ocorridas ainda na dcada de 1970. bem verdade que, em princpio, havamos planejado empreender um rastreamento horizontal das ocorrncias atuais de vdeo comunitrio em todo o pas. Diante da necessidade de delimitar nossa empresa, restringimo-nos a uma pesquisa direta, mais aprofundada, que passou a envolver os dez referidos grupos. A relao final de projetos pesquisados a seguinte: Oficinas Kinoforum (SP), Anthares Multimeios (SP), Cala Boca J Morreu (SP), Associao Imagem Comunitria (MG), Oficina de Imagens (MG), BH Cidadania (MG), TV 100% Comunidade (RJ), TV Facha (RJ), TV Santa Marta (RJ) e Vdeo nas Aldeias (PE).A Associao Brasileira de Vdeo Popular existiu de 1984 a 2001, perodo no qual reuniu produtores independentes e grupos realizadores de vdeo ligados aos movimentos sociais. O acervo da ABVP conta com cerca de 500 ttulos. 4 Para informaes sobre essa linha de trabalho sugerimos: John D. H. Downing. Mdia Radical Rebeldia nas comunicaes e movimentos sociais. So Paulo: Ed. Senac, 2002; Juliana Monachesi. A exploso do artivismo. Folha de So Paulo, caderno Mais!, 6 de abril de 2003; e o site do Centro de Mdia Independente .3

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Sabemos como a deciso de selecionar ocorrncias prximas do ponto de vista geogrfico, faz-nos incorrer no mesmo equvoco de diversos estudos voltados para as manifestaes cinematogrficas e videogrficas brasileiras, que desconhecem as experincias mais distantes, apoiando-se quase sempre em categorias prprias de uma classe mdia urbana e intelectualizada. Temos indcios de que seria preciso conhecer mais de perto experincias significativas que ficaram de fora deste trabalho, pelo fato de estarem alm da nossa capacidade de deslocamento, como a experincia da TV Casa Grande5, em Nova Olinda (CE). Esse projeto nos pareceu ter conseguido concretizar aquilo que o grande objetivo dessas iniciativas: passar o controle da realizao dos vdeos para um grupo de cineastas ordinrios, que se utiliza da produo de imagens em movimento para trabalhar suas questes internas e, a partir da, inseri-las dentro de um universo cultural maior, como o da cidade. Durante nosso trabalho, pudemos comprovar que as pesquisas acadmicas sobre o tema encontram-se em estgio inicial, no campo do vdeo. Depois dos estudos que problematizam o movimento do vdeo popular, o tema raramente foi formulado. Ao verificar esse estado de coisas, decidimos investir em uma pesquisa direta, identificada na busca de fontes primrias, que conjugamos com anlise dos filmes e com a abordagem de experincias relevantes historicamente, procedimentos que, em princpio, pareceram ajudar-nos a compreender essa manifestao contempornea. As fontes primrias podem ser traduzidas aqui nos coordenadores de projetos atuantes no mbito do vdeo comunitrio brasileiro. Eles foram ouvidos por serem os detentores do quadro de referncias que cerca a atuao dos respectivos grupos e tambm por estar a cargo deles, como lderes, a tarefa de formular, em ltima instncia, a concepo de vdeo comunitrio que sustenta a prtica dos grupos. Em princpio, as entrevistas foram planejadas atravs de um roteiro que serviu para nossa orientao. Entretanto, no chegou a ser usado nas entrevistas, cujos dilogos se mostraram invariavelmente bastante mais ricos que nossa capacidade de planejamento. Foram longas e valiosas conversas, que transcorreram nos locais onde os projetos so5

Tivemos contato com o projeto atravs de trs vdeos que nos foram enviados. Dois deles so reflexivos: um making of que mostra como funciona o projeto e sua insero na cidade e o outro mostra o processo de realizao de uma revista em quadrinho sobre o tabagismo encomendada pela Unicef. O terceiro Os drages - festa de So Sebastio, um relato sobre problemas que a festa de So Sebastio traz para Nova Olinda.

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desenvolvidos6. Nos casos em que o entrevistado sugeriu conversar com algum outro integrante do grupo, isso foi prontamente acatado. Ao longo do trabalho, conversamos com: Bernardo Brant da Oficina de Imagens (4.09.2003); Rafaela Lima (11.06.2003) e Cristina Santos Ferreira (22.07.2003) da Associao Imagem Comunitria; Svio Leite do BH Cidadania (02.07.2003); Christian Saghaard da Oficina Cultural Kinoforum (13.06.2003); Gianni Puzzo da Anthares Multimeios (13.06.2003); Grcia Lopes Lima (12.06.2003), Donizete Soares (12.06.2003), Jayme Rampazzo (12.06.2003) e Diogo 90 (12.06.2003) da Gens Servios Educacionais; Nailton Maia (3.07.2003) e Ivana Gouveia (3.07.2003) da Facha; Itamar Silva (04.07.2003) da TV Santa Marta; e Jorge Cordovil (4.07.2003) e Gisele Gomes (19.04.2004) da TV 100% Comunidade; e Vincent Carelli (20.04.2004) e Mari Corra (20.04.2004) do Vdeo nas Aldeias. Durante a realizao da pesquisa, surgiram alguns entraves que foram essenciais para a compreenso da lgica singular de nosso objeto. A dificuldade de ter acesso s fitas de vdeo dos grupos que tanto nos exasperou no incio permitiu constatar, por exemplo, que esse material circula em sees fechadas, dentro das comunidades envolvidas, chegando muito recentemente a tomar parte em eventos da rea de vdeo, catlogos de festivais ou acervos pblicos. Ficou claro que faz parte da maneira como esses projetos de vdeo comunitrio se organizam a ateno primeira a problemas e questes internos e a baixa circulao desses trabalhos em outros ambientes, o que no significa que os produtos sejam desinteressantes para outros pblicos. Alguns deles mencionam o interesse de mostrar os trabalhos para outros pblicos, o que apenas comea a acontecer de forma ainda pouco sistemtica. Portanto, a recepo desses trabalhos est ainda bastante atrelada a um pblico que em geral se localiza nas vizinhanas de onde o vdeo foi realizado. As videotecas dos projetos7 servem para uso interno, tanto que em geral no seguem um tipo de ordenao que facilite o acesso do pblico externo, sobretudo nos projetos com mais tempo de trabalho e que, por isso, acumulam mais material. Em alguns casos no h disponibilidade para se fazer cpias das fitas ou mesmo uma aparelhagemExceo para a entrevista com os coordenadores do projeto Vdeo nas Aldeias, que ocorreu no Rio de Janeiro. 7 Exceo para a videoteca do projeto Oficinas Kinoforum (SP), que se encontrava sistematizada e disponvel para consulta. Temos que observar que se trata de um projeto que existe h trs anos apenas e ligado a uma produtora que tambm atua na exibio de filmes.6

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disponvel para assistir aos trabalhos no local. Pudemos perceber que os coordenadores tiveram de se desdobrar para fazerem chegar as esperadas fitas at ns, o que raramente aconteceu dentro dos prazos acordados. preciso dizer tambm que essa produo, apesar de um suposto crescimento numrico fato que no pretendemos comprovar a partir de uma pesquisa como esta apesar de acreditarmos que isso seja verificvel , reflete-se, timidamente, nos festivais e eventos da rea de vdeo, que recentemente comearam a inclui-la em sua programao. Existe, portanto, uma lacuna que prejudica o desenvolvimento das experincias que permanecem dispersas e desconexas pelo territrio brasileiro. De maneira geral, podemos afirmar que a conjuntura encontrada essa. Contudo, h excees. O projeto Vdeo nas Aldeias uma delas. Iniciou em 1987, uma trajetria que partiu de documentrios realizados pelos ento coordenadores do projeto, o cineasta Vincent Carelli e as antroplogas Dominique Gallois e Virgnia Valado, dentro do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e se desenvolveu no sentido da formao de realizadores indgenas nas aldeias, eles prprios autores dos ltimos trabalhos, exibidos e premiados em festivais nacionais e internacionais de documentrio. O projeto contava, at 2003, com 50 ttulos em seu acervo. Sua produo pode ser vista, no na ntegra, mas ao menos parcialmente, em acervos pblicos8. Trabalhos do Vdeo nas Aldeias constam tambm em catlogos de festivais. Destaque para a importante retrospectiva do projeto, intitulada Um olhar indgena, que ocorreu no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, de 19 a 25 de abril de 2004. Para essa ocasio foi editado um catlogo talvez a mais relevante fonte bibliogrfica atual sobre esse projeto que, atravs de textos de crticos, pesquisadores e dos prprios coordenadores, oferece-nos um apanhado de questes fundamentais que cercam a sua prtica. Alm disso, j haviam sido publicados alguns artigos, assinados no apenas por Gallois e Carelli, mas tambm por outros pesquisadores vindos do campo da filosofia ou da antropologia9.Os filmes esto disponveis no acervo do Ita Cultural, na videoteca do IFCH (Instituto de Filosofia da Faculdade de Cincias Humanas da Unicamp) e no Lisa (Laboratrio de Imagem e Som em Antropologia Visual), da USP. 9 Seria preciso destacar trs deles: o elucidativo artigo de Evelyn Schuler, publicado na Revista Sexta-Feira, So Paulo: Editora 34, n2, ano 2, abr. 1998, p. 32-41; um segundo artigo que avana nas questes apresentadas por Schuler, desta vez de Mateus Arajo Silva, publicado na revista Devires, Belo Horizonte:8

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Reafirmamos que se trata de um caso nico, envolvendo inclusive uma linha de atuao distinta dos demais projetos pesquisados, aspecto que vamos procurar tematizar nesta dissertao. Podemos adiantar que esse projeto surge formulado no campo da antropologia e mais recentemente passa a se definir dentro do campo cinematogrfico, o que por si s j o distingue das demais experincias de vdeo comunitrio, que se apiam em referncias vindas de diferentes universos: da produo curta-metragista de vdeo, como veremos no captulo 4; da educao, como est no captulo 5; ou mesmo as transmisses televisivas, como mostraremos no captulo 6. No queremos reivindicar que os festivais de cinema e vdeo e as publicaes da rea venham a contemplar o gnero do vdeo comunitrio, at agora desprezado. Nem mesmo escolhemos o nosso objeto de pesquisa na crena de ser preciso dar a voz10 a esses grupos que praticam o vdeo de maneira localizada, em suas comunidades. Acreditamos que seja aceitvel optar por um uso do vdeo em escala local, sem aspirar ao mercado dos festivais ou s publicaes. Estamos interessados, sim, em imagens produzidas por comunidades, mas no queremos exigir delas que se enderecem a ns. Mesmo porque sabemos que essas imagens podem circular de maneira horizontal sem ter para isso a chancela de instncias previamente formalizadas. Reconhecemos que seja uma tarefa de quem se interessa por essas imagens o esforo de tomar contato com elas, tal como procuramos fazer no transcorrer desta pesquisa. Entretanto, no podemos, finalmente, deixar de sinalizar a situao precria em que se encontram as sistematizaes nesse campo, no qual procuramos nos mover. importante explicitar que esta pesquisa foi uma oportunidade de desenvolver uma questo que vem acompanhando-nos a partir da experincia acadmica na graduao. Em 1994, ao ingressar no projeto TV Sala de Espera, do departamento de Comunicao Social da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), tivemos a chance de realizar, junto a um grupo de professores e alunos, uma televiso comunitria na periferia de Belo Horizonte. A partir da, ocorreram outras experincias vinculando o vdeo a diferentesFafich-UFMG, n O, dezembro de 1999, p. 27-39; e o artigo de Ruben Queiroz Caixeta publicado na revista Geraes, Belo Horizonte: Dep. de Comunicao Social, n 49, 1998, p.44-49. preciso dizer que esses trs artigos foram de fundamental importncia para a formulao da presente pesquisa. 10 Jean-Claude Bernardet nos mostrou, ao analisar documentrios brasileiros das dcadas de 60 e 70, o quanto marcou a produo desse perodo o esforo, por parte de documentaristas, de dar a voz ao outro. Em Cineastas e imagens do povo. So Paulo: Companhia das Letras, 2003 [1 edio 1985].

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grupos sociais11, que se distinguiam pela aplicao oscilante de referncias ora retiradas do vdeo comunitrio, ora do documentrio. Nos ltimos dez anos, desde os primeiros contatos que tivemos com o vdeo comunitrio at hoje, percebemos que h um inegvel encaminhamento no sentido da democratizao da prtica do vdeo. Entretanto, as imagens decorrentes desse processo so pouco estudadas. Quando o povo assume o lugar de produtor de imagens, tal como pretende em diversos nveis o vdeo comunitrio, no nos consideramos preparados para trabalhar reflexivamente com esse material, talvez por receio de reproduzir a mesma situao desfavorvel que os grupos sociais perifricos encontram na sociedade brasileira, tal como a m conscincia que afeta o cinema brasileiro, ao menos desde o primeiro cinema novo. Buscamos, com isso, formular uma pesquisa que nos permitisse, ao mesmo tempo, conhecer os procedimentos usados nos projetos de vdeo comunitrio e verificar que tipo de produto videogrfico esse modo de atuao tem gerado e que o diferencia dos demais discursos documentrios sobre o povo. Na fase em que a ABVP atuou como produtora, os chamados vdeos populares mostravam mais uma viso de mundo e forma de pensar dos educadores e comunicadores que se fizeram representantes dos movimentos sociais do que propriamente uma manifestao desses movimentos, tal como demonstrou o estudo de Henrique Luiz Pereira Oliveira12. De maneira geral, essa questo elaborada tambm internamente na ABVP a partir das discusses sobre a participao dos sindicatos e associaes, que de fato no chegaram a tomar lugar no processo de produo dos chamados vdeos populares. Ao que nos parece, seria mais interessante tratar as experincias do vdeo comunitrio contemporneo no como um trabalho videogrfico feito inteiramente pelo cineasta com a proposta de representar uma comunidade pr-existente, nem tampouco como um trabalho feito por uma comunidade com a proposta de se auto-retratar, mas

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Atravs do TV Sala de Espera, participamos dos seguintes projetos: Sade e Alegria (Par, 1994); junto ao Centre Internacional de lEnfance, o Projeto de Animao Audiovisual para Meninos de Rua (Belo Horizonte, 1995); e junto a ABVP, o TV Beira Linha, experincia de transmisso televisiva em baixa potncia, durante a oficina Codal (Comunicao para o Desenvolvimento da Amrica Latina) (Belo Horizonte, 1995). Em seguida, partimos para uma atuao documentarista: Umdolasi (Belo Horizonte, 2001) e Cavalhada das crianas de Morro Vermelho (Belo Horizonte, 2003-). 12 Henrique Luiz Pereira Oliveira. Tecnologias audiovisuais e transformao social: o movimento de vdeo popular no Brasil (1984-1995), So Paulo, 2001. Tese (doutorado em Histria), programa de estudos psgraduados em Histria, PUC-SP, mimeo.

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justamente como um trabalho de troca cultural, viabilizado atravs do vdeo, entre um grupo heterogneo de pessoas, que se valem dos recursos tcnicos do vdeo para produzir imagens e acabam tornando indiscernveis as categorias que nos permitiam at ento distingui-los ou represent-los. Buscamos aqui investigar os acontecimentos prprios experincia do vdeo comunitrio, que, tal como queremos sugerir, seria uma forma de experimentao social para cineastas e povo, que permitiria ativar espaos locais e neles serem inventadas outras comunidades, outros mundos possveis talvez no momento tambm menos previsveis , atravs do compartilhamento da experincia da filmagem.

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1. O que vdeo comunitrio? Elementos para uma definioA cmera nas mos de um caador vira uma questo de sobrevivncia. H uma preciso no olhar que no nossa. A gente treina outras coisas, no esse trabalho minucioso. O Valdete, por exemplo, fez Shomtsi, primeiro filme dele, com quatro horinhas de bruto. Mas ele uma pessoa que j desenhava maravilhosamente bem. Ento, ser que foi o desenho? s vezes difcil distinguir o que a gente est introduzindo e o que deles prprios. (Mari Corra, diretora do Vdeo nas Aldeias, entrevista concedida em 20.04.2004)

1.1 A questo da tecnologia Ron Burnett, em artigo publicado em 1996, destinado a analisar as relaes entre vdeo, polticas culturais e comunidade13, afirma que a insero do vdeo, um instrumento tcnico, na vida cotidiana de uma comunidade pode gerar implicaes ainda desconhecidas. Aconselha, portanto, que se d um passo atrs para examinar prontamente as possveis implicaes dessa prtica, antes de lev-la adiante. Sem desconhecer a importncia do emprego do vdeo por comunidades, pretende opor-se a certo modismo detectado por ele em relao a trabalhos que vinculam vdeo e potencializao da comunidade, no sentido da participao, do controle democrtico e da comunicao.Within the utopian ideals of the video movement [refere-se ao movimento do vdeo popular], the notion of sharing information, reflects a desire to jump-start the learning process and also a desire to create open contexts for communication and exchange. As well, the presumption is that by making video in local contexts, the images will reflect the genuine needs of the people who participate and, as a consequence, formely closed channels of communication will be opened.

Para completar, Burnett nos diz que o ativismo daqueles que atuam nessa rea segue por um conceito ingnuo (naive) de comunidade. Pela dificuldade de se obter acesso aos mltiplos aspectos que envolvem a vida de uma comunidade e tambm pela exigncia do realizador estabelecer uma aliana com o grupo, a noo mesmo de comunidade empregada nos projetos de vdeo que pretendem compartilhar a produo estaria baseada na recusa das diferenas e ainda num vago conceito de resoluo de conflitos. A opo protelatria assumida por Burnett em relao a projetos de vdeo comunitrio por si s corre um grande risco ao solicitar algo impossvel: que o presente pare de transcorrer a fim de que se possa pens-lo melhor, postura que, sobretudo, para umRon Burnett. Vdeo: the politics of culture and community. In: RENOV, Michel e SUDERBURG, Erika (Edit.). Resolutions - contemporary video practices. Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 1996, p. 283-303.13

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cineasta seria incabvel. Fazendo essa ressalva inicial, possvel que seu posicionamento em relao ao uso do vdeo por comunidades possa ser melhor examinado por meio da aproximao com outros pontos de vista expressos sobre o assunto em um artigo14 escrito por Dominique Gallois e Vincent Carelli, publicado na revista Sexta-Feira. Os ento coordenadores do projeto Vdeo nas Aldeias abrem o referido texto com uma crtica ao socilogo Hlio Jaguaribe pelo primitivismo de sua postura em relao aos ndios. Na concepo de Gallois e Carelli, o posicionamento de Jaguaribe se baseia em uma suposta fragilidade da cultura indgena, que acarreta, em ltima instncia, a adoo de procedimentos paternalistas em relao ao futuro desses povos. A crtica constitui resposta ao fato de Jaguaribe ter declarado imprensa que o uso de equipamentos eletrnicos, por parte dos ndios, seria um sinal de assimilao e perda de identidade. Ao que a dupla lamenta da seguinte forma: Na verdade, os ndios eletrnicos ainda representam uma pequena minoria, tratando-se de uma tecnologia dificilmente acessvel maioria das comunidades indgenas. Obviamente, a defesa decorre do ataque frontal de Jaguaribe aos preceitos do Vdeo nas Aldeias que no apenas minimiza a possibilidade de perdas culturais decorrentes da apropriao, por parte dos ndios, dos recursos do vdeo, mas tambm defende que justamente dentro desse contexto que se daria a reconstruo da auto-imagem dessas comunidades, algo fundamental devido s modificaes culturais ocorridas a partir do contato inexorvel com o homem branco. Os ndios poderiam, assim, dinamizar suas diferenas no apenas em relao aos brancos, mas tambm entre eles mesmos, de etnia para etnia. Ao compararmos os dois artigos, somos levados a formular a seguinte pergunta: quem so de fato os primitivos ou ingnuos? Aqueles que condenam a insero dos equipamentos em comunidades que no apresentam um histrico dentro dessa prtica? As prprias comunidades? Ou, por fim, aqueles que defendem a insero do vdeo, desconhecendo seus possveis impactos e riscos eminentes? Obviamente, sobre essa questo no cabe um julgamento. Mesmo porque sabemos que a dicotomia criada gira em crculo, sem sair do lugar. Tentando passar ao largo desses

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Dominique Gallois e Vincent Carelli. ndio eletrnicos: a rede indgena de comunicao. Revista SextaFeira, So Paulo: Editora Pletora, n2, ano 2, p. 26-31, abr. 1998.

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ataques, podemos perceber que o processo de apropriao dos recursos videogrficos est longe de ser entendido como um processo natural ou puro e nesse ponto que podemos aproximar os lados da disputa. Tanto Burnett e Jaguaribe, de um lado, como a dupla Gallois e Carelli parecem evidenciar isso em seus discursos, cada um a sua maneira. O uso do vdeo no isento de conflitos, mesmo quando as imagens so feitas pelas prprias comunidades, e gera, sim, interferncias nas questes, sejam elas internas ou decorrentes do contato com o mundo externo comunidade, da inclusive a necessidade premente de nos debruarmos sobre essas imagens e investigarmos a apropriao desses equipamentos. Partindo para um segundo eixo problemtico dessa mesma discusso, a perspectiva que defendemos aqui em relao ao uso do vdeo se afasta, por sua vez, daquela que deposita exclusivamente nos avanos tecnolgicos uma justificativa para a ocorrncia das manifestaes do vdeo comunitrio contemporneo. No acreditamos, tal como parecem enunciar grande parte dos estudos sobre a produo em vdeo no Brasil, que esses ou quaisquer outros trabalhos devam ser relacionados exclusivamente aos benefcios de um avano tecnolgico, que teria nos trazido a imagem digital. E, podemos dizer, junto dela, uma viso evolucionista, espcie de elogio que serve a qualquer manifestao videogrfica contempornea, desde a vdeoarte at o vdeo comunitrio. inegvel que as camcorders favorecem a experincia de comunidades com os equipamentos, mas isso no significa que essas comunidades estejam fazendo vdeo da mesma forma como fazem os artistas plsticos, os cineastas (sejam eles documentaristas ou no), as produtoras de vdeo ou as redes de televiso, que se valem do mesmo recurso tcnico. Tambm no podemos esquecer que, antes da existncia desse contexto tcnico, houve uma srie de tentativas anteriores de se fazer um cinema comunitrio, o que nos sugere certo nvel de embasamento histrico para as experincias atuais sobre as quais nos debruamos. Dizemos isso porque grande parte das idias elaboradas acerca dessa prtica se apia na tecnologia digital, como se o uso do vdeo por comunidades tivesse que ser pensado partindo dos avanos tecnolgicos e voltando, ao final, para reafirmar esse mesmo parmetro. No queremos, de maneira alguma, deixar de reconhecer que , de fato, verificvel a existncia de um tipo de tecnologia digital de gravao e edio de imagens. Entretanto, acreditamos que no a possibilidade das snteses numricas digitais em si o

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mais interessante de ser pensado e sim a presena desses sujeitos frente ao mundo, que se torna visvel atravs dessa tecnologia ou, melhor, queremos saber como esse equipamento tem sido usado e que imagens tem gerado. Nas palavras de Ferno Ramos, a imagem digital teria nos aproximado de um tipo de representao afastada do mundo porque elaborada a partir de matrizes numricas. Esse tipo de representao se difere da relao entre comunidade e mundo que o vdeo comunitrio prope, j que o que est em jogo no caso dessa modalidade de trabalho justamente a relao dos sujeitos com um mundo compartilhado por eles, com aquilo que lhes prximo.A imagem digital numrica parece estar mais em sintonia com nossa poca e sua averso a qualquer proximidade maior entre a representao e o campo referencial. A modelizao logartmica do mundo, quando pensada de maneira excludente, peca por no se dar conta que deixa de lado um campo inerente ao transcorrer: o da vida, em sua abertura para o formato indeterminado do presente. Mesmo que a sensibilidade esttica contempornea no valorize essa abertura, sempre haver interesse para a representao que adere a esse eixo de confluncia espao-temporal que, a partir de nossa insero nele, denominamos presente.15

Como imaginar que seria possvel, sem a existncia de um equipamento de vdeo digital, que os cineastas do Carandiru, que participaram das gravaes de Prisioneiros da Grade de Ferro (Auto-retratos) (Paulo Sacramento, 2003)16, compusessem uma seqncia sobre o amanhecer do dia, de dentro de uma cela, tal como acontece nessa densa passagem do filme e que muito se aproxima da forma como pode operar o vdeo comunitrio? O que vemos ali o transcorrer intenso do tempo entre os presos, na forma de mais um dia que nasce e que igual a tantos outros, sobretudo - poderamos suspeitar -, na perspectiva daquele que se encontra confinado. Mas ali esse instante consegue diferenciar-se, tornar-se singular, mesmo dentro de sua repetio ou justamente por ela e pela presena ali de uma situao de tomada compartilhada pelos detentos. As manifestaes mais recentes do vdeo comunitrio vm sendo tratadas pela mdia ou em debates promovidos por festivais e eventos da rea de cinema e vdeo aindaFerno Pessoa Ramos. Falcias e deslumbre face imagem digital. Revista Imagens, Campinas, SP: Ed. Unicamp, n 3, p. 28-33, dez. 1994. 16 No h como deixar de mencionar, alm da atuao dos prisioneiros, que passaram por oficinas de vdeo com o objetivo de realizar esse filme, o encontro da fotografia de Aloysio Raulino, diretor que j havia encursionado pela experincia de dar a cmera para um personagem filmar em Jardim Nova Bahia (1971), com a direo de Paulo Sacramento, que colaborara como professor no projeto Oficinas Kinoforum de vdeo comunitrio.15

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sem auxlio de qualquer bibliografia ou linha de abordagem, o que no nos desobriga da tarefa de produzir aqui uma leitura sobre essas idias correntes. A impresso que se tem que a discusso no consegue sair de um primeiro estgio, em que apenas se constata a existncia, a necessidade ou o aumento desse tipo de trabalho videogrfico envolvendo comunidades. Em uma matria de capa da edio de domingo do caderno 2 do Estado de S. Paulo17, por exemplo, o reprter Eduardo Nunomura escreveu que existiria em funo da acessibilidade dos equipamentos digitais uma verdadeira exploso de projetos audiovisuais na periferia de So Paulo, passando em seguida a reportar a atuao de alguns projetos que atuam em regies perifricas da cidade. Por outro lado, tornou-se lugar-comum nos debates sobre filmes documentrios, sobretudo nos ltimos anos, o questionamento por parte do pblico em relao aos cineastas, perguntando a eles por que fizeram um filme que busca representar um grupo social, sendo que poderiam ter deixado que a prpria comunidade retratada o fizesse. Temos a impresso de que o uso extensivo da categorizao do vdeo comunitrio revela um desconhecimento de como operam os filmes produzidos por comunidades ou at mesmo um desconhecimento desse acervo. No queremos, em hiptese alguma, sugerir que os trabalhos envolvendo comunidades venham ocupar o lugar de filmes autorais, ou mesmo disputar qualquer espao com eles. So registros diferentes e justamente por isso podem interferir uns nos outros, podendo, nessa aproximao, alterarem-se mutuamente, sem chegar, contudo, a perderem suas respectivas especificidades. A tecnologia digital surge como uma realidade para as produes brasileiras em vdeo no mesmo momento em que a ABVP fecha suas portas, em 1995. As iniciativas no campo do vdeo comunitrio so iniciadas a partir de um outro patamar tecnolgico, definido, do ponto de vista tcnico, pelo uso e repasse da tecnologia digital de captao de imagem e som, bem como do processo digital de ps-produo. A inexistncia desse contexto tecnolgico tornaria improvvel a emergncia do vdeo comunitrio tal como o conhecemos hoje, calcado na experincia das oficinas de vdeo e na manipulao dos equipamentos por parte das comunidades envolvidas. O vdeo

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Eduardo Nunomura. Cmera na mo, idias nas ruas. O Estado de S. Paulo. So Paulo, 27 de julho de 2003. Caderno 2, p. 1-2.

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digital torna mais fcil o processo de produo de um curta-metragem, por exemplo, o que favorece o interesse de diversos pblicos leigos no uso dessa tecnologia. Seria mais difcil que um adolescente, um trabalhador ou um idoso se interessassem por um processo moroso e complexo como o cinematogrfico. Sem esquecer tambm que o processo digital muito mais acessvel do ponto de vista financeiro, o que o diferencia do cinema, em que temos oramentos altos inclusive se compararmos a outras formas de manifestaes artsticas devido ao elevado valor da pelcula e de seu tratamento, cpias e conservao. Na atuao dos pioneiros, fica bastante claro que o equipamento de cinema era um empecilho que impedia o desejo de colocar a cmera nas mos da comunidade, como veremos no prximo captulo. Andrea Tonacci pretendia, na dcada de 1970, dar a cmera para os Canela filmarem, mas isso se tornou invivel por causa do equipamento, que no era prprio para isso, conforme a avaliao do prprio cineasta. No a primeira vez que evocamos, dentro da histria do cinema, esse tipo de reflexo, que no desconsidera a presena de elementos tcnicos como mais um dos elementos heterogneos que entram na constituio de um filme ou mesmo de um tipo de cinema. No caso do cinema verdade, por exemplo, as cmeras mais leves e o surgimento da captao independente do udio atravs do Nagra fundaram uma estilstica que permitia pensar uma outra relao do cinema com o mundo. As palavras de Ferno Ramos sobre o cinema verdade poderiam ser transpostas para se pensar, aqui, o vdeo comunitrio em sua relao com a tecnologia digital.Mais do que um estilo, portanto, o cinema verdade inaugura uma nova tica dentro do documentrio, marcada pela noo de reflexividade. O contexto ideolgico que cerca o surgimento do cinema direto/verdade mostra, portanto, a confluncia de um salto qualitativo tecnolgico, acompanhado imediatamente de uma revoluo estilstica, que desemboca no estabelecimento de uma nova tica para o documentarista.18

Pela extrema mobilidade dos equipamentos digitais, facilidade de manuseio e acessibilidade do ponto de vista econmico mas no apenas por isso , foi possvel aos projetos de vdeo comunitrio, a partir da segunda metade da dcada de 1990, passar de fato a cmera para as mos de pessoas que no apresentavam at ento um histrico como realizadores.Ferno Ramos. Cinema Verdade no Brasil. In: Fransciso Elinaldo Teixeira (org.) Documentrio no Brasil Tradio e transformao. So Paulo: Summus, 2004, p. 83.18

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necessrio ponderar ainda que apenas parte da tecnologia necessria para a realizao dos vdeos foi repassada atravs da prtica do vdeo comunitrio. Processo mais complexo, do ponto de vista do manuseio dos equipamentos e mesmo da elaborao de linguagem que exige, a edio dos trabalhos permanece a cargo dos coordenadores do projeto. Isso certamente permite a eles um controle decisivo sobre a expressividade desse outro olhar, que os projetos tanto buscam. Queremos afirmar que esses novos equipamentos podem gerar uma outra filosofia se combinados com um tipo de prtica voltada para a experimentao social, na qual, muitas vezes, os cineastas se dispem a ter uma relao mais orgnica com as comunidades envolvidas. E se recentemente as pessoas filmadas puderam passar para o lado da cmera, temos que pensar tambm que a cmera estaria passando para o lado das pessoas filmadas e seria esse gesto que o vdeo comunitrio poderia efetuar: no apenas fazer as pessoas comuns passarem para o outro lado experimentando as gravaes, mas colocar a cmera do lado das pessoas comuns, quebrando o eixo no qual esse equipamento esteve historicamente equilibrado.

1.2 O problema de dar a voz ao outro Estamos interessados em evocar um tipo de relacionamento entre comunidades e recursos do vdeo que se constitui como uma experincia hbrida e, por isso mesmo, buscamos pens-lo levando em conta as diversas instncias que, em relao, permitem a afirmao incessante das diferenas. A despeito de um julgamento no sentido de considerar essas experincias boas ou ms para as comunidades, teremos que so experincias que agrupam inevitavelmente uma gama heterognea de aspectos em sua composio. Queremos, portanto, assinalar a possibilidade da realizao do filme, reunir ao seu redor sujeitos vindos de diversas partes. Nesse caso, a diferena no est apenas entre cineastas e comunidade, entre essa e outras comunidades ou entre essas e os recursos do vdeo. A diferena est no interior da comunidade, no interior da equipe que pretende levar at um determinado grupo os recursos do vdeo e assim por diante.

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A respeito do cinema verdade, Jean Rouch, cineasta que experimentou o compartilhar das filmagens em vrias de suas acepes, disse certa vez que essa modalidade de cinema no prev uma verdade nica, mas uma verdade que surgiria com o filme, uma verdade do filme. Acreditamos que, no caso do vdeo comunitrio, tal como queremos abordar essas experincias, podemos considerar que no se trata de uma comunidade nica e preexistente a ser retratada, mas, parafraseando Jean Rouch, de algo como uma comunidade do filme. Ou seja, um grupo que se cria e se recria em torno da realizao do filme. Dessa forma, seria possvel que a experincia comunitria chegasse a reconfigurar a experincia dos sujeitos envolvidos nesse trabalho, a partir da utilizao dos recursos materiais do vdeo dentro do presente vivenciado e compartilhado pelo grupo. Abre-se, portanto, um campo para que a comunidade possa, em tese, retrabalhar seus espaos, tempos e imagens. Servindo-se do pensamento de Jacques Rancire, Csar Guimares chamou ateno para a possibilidade de certa fala, que se distancia da voz dada ao povo, ser um ato de fala poltico e esttico.O que est em jogo aqui embora no se trate de um movimento poltico organizado uma forma de subjetivao que tanto poltica quanto esttica. No porque haveria uma tomada de palavra que conduziria expresso de uma cultura ou de um ethos coletivo prprio dos favelados, mas porque trata-se de uma cena de palavra na qual a capacidade de enunciao vem reconfigurar a experincia, pois aqueles que tomam a palavra desfazem e recompem as relaes entre os modos do fazer, os modos do ser e os modos do dizer que definem a organizao sensvel da comunidade, as relaes entre os espaos onde se faz tal coisa e aqueles onde se faz outra, as capacidades ligadas a esse fazer e as que so requeridas para outro19

Com isso pretendemos propor que o vdeo comunitrio no tenha como finalidade gerar um tipo nico de representao de qualquer comunidade pr-existente isso em geral feito para forjar a afirmao de uma identidade apaziguadora. Essa proposta totalizante, que busca empreender uma, e somente uma, representao identitria de um povo, faz com que tratemos essas imagens como algo sob nosso controle, que podemos dominar, que est dentro de nossa capacidade intelectual de elaborao. Um tipo de representao, por sinal, prximo daquela crtica que Jean-Claude Bernardet elabora a respeito dos filmes documentrios produzidos nos anos 1960 e 1970,

Cesar Guimares. A imagem e o mundo singular da comunidade. In: Frana, Vera Regina Veiga (org.) Imagens do Brasil: Modos de ver, modos de conviver. Belo Horizonte: Autntica, 2002, p.17-25.

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nos quais observa o que chamou de modelo sociolgico, que pretendia dar conta de representar o real em sua totalidade, atravs de, entre outros procedimentos estilsticos, a voz over e as entrevistas aos especialistas. Os entrevistados devidamente qualificados em geral so convocados para explicar a situao de opresso vivenciada pelo povo, que acaba entrando como uma espcie de ilustrao das teorias apresentadas pelos especialistas. Essa maneira de produzir representaes do povo, prpria ao modelo sociolgico, tem como ideal a tarefa de representar um povo e para tanto toma o sujeito sempre como um tipo social definido, que nos oferecido para nossa interpretao do mundo dos outros, como espectadores que nos tornamos dele. Uma srie de tentativas foi levada a diante a fim de desconstruir esse modelo. Seja a partir de recursos de montagem, como aqueles experimentados por Arthur Omar, em Congo (1972), que trata da congada sem inserir uma s imagem dessa manifestao cultural, seja esta mais prxima de ns a experincia de Aloysio Raulino, em Jardim Nova Bahia (1971), que chega a entregar a cmera para que o seu personagem filme imagens da praia de Santos e da Estao do Brs. Raulino abdica-se da tarefa de retratar o seu personagem, tendo por isso tensionado ao limite a abdicao do cineasta diante de seus meios de produo para que o outro de classe fale, at o impossvel20, no quadro da filmografia estudada por Bernardet. Mas nem por isso seria possvel esquecer que o material captado por Deutrudes Carlos da Rocha havia sido tratado por Raulino, tal como ressalta o ensasta.A cmera pouco estvel, os movimentos irregulares, a lente no muda, a fotografia bastante granulada, as figuras descentradas. Um charme que lembra o cinema primitivo, filmes amadores de famlia. Que Deutrudes segurava a cmera, no h dvida, mas em que medida ele filmava?21

Haveria, portanto, uma diferena grande entre as imagens feitas por Deutrudes e Raulino. As primeiras so vazias, acinzentadas e as outras cheias, com primeiros planos, povoadas. Essa diferena entre as tipologias de imagens reproduziria um pouco da relao entre os dois papis (personagens e cineastas) envolvidos no filme. Ao final, Bernardet conclui que a melancolia gerada pela seqncia de Deutrudes s foi alcanada pelo tratamento final, que o estilo de Raulino impe s imagens.20 21

Jean-Claude Bernardet. Cineasta e imagens do povo. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 137. Ibid. p. 230-231.

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Para ns, diferentemente do que prope o partido crtico de Bernardet, seria bastante estimulante essa situao em que Deutrudes se encontra: ele est com a cmera na mo, mas no ele quem filma. O nosso interesse no estado do personagem, que para ns no tem sinal negativo, decorre justamente do fato de no estarmos preocupados, do ponto de vista crtico, em mostrar com quem est o domnio sobre a palavra, sobre o discurso, o que certamente estava entre as preocupaes centrais do crtico na dcada de 1980. Se os cineastas do perodo estavam preocupados em restituir a palavra ao povo, o crtico estaria interessado em mostrar que havia furos nesse tipo de orientao. Apesar das vrias tentativas cinematogrficas que foram empreendidas, teria sido impossvel restituir a palavra ao povo, nesse perodo, mesmo que a cmera tenha passado para as mos de um personagem que antes seria retratado pelo cineasta. Afinal, tal como o equipamento que Raulino empresta a Deutrudes, a palavra era apenas emprestada. Se emprestamos, podemos tomar de volta22. Ao que nos parece, as experincias de vdeo comunitrio mantm a mesma proposta que motivou os realizadores daquele perodo, da a necessidade de nos reportarmos crtica de Bernardet. Isso pode ser observado nos captulos frente, que trazem depoimentos dos coordenadores de projetos de vdeo comunitrio. Entretanto, preciso observar que, muitas vezes, essa palavra, que se pretende dita pelo outro, ou pelo povo, acaba por nos mostrar como so ficcionais nossas categorias analticas, tal como aponta Francisco Elinaldo Teixeira, seguindo uma linha de anlise ps-estruturalista, debitria do pensamento deleuziano sobre o cinema.No se trata nem de dar a voz ao outro nem mesmo como diz [Ismail] Xavier a respeito de [Eduardo] Coutinho, de tirar das pessoas o que elas tm a dizer, sem esquecer que tudo diante da cmera se torna teatro. De fato, que a cmera age sobre situaes e personagens sua presena, nunca constituiu problema desde os primrdios do documentrio. O desafio, viu-se a respeito da funo fabuladora, o de como se dar intercessores, de como o cineasta faz interceder a fabulao que se pe a criar o personagem real no ato interativo de ambos, para alm das identidades j ancoradas no presente, de tal modo a abandonar as fices prontas que traz na bagagem e rumar com ela na constituio de novos povoamentos, de um povo que ainda no est dado, que nunca ser dado, mas a se constituir num devir incessante. Tornar-se outro junto com o personagem! Fazer do outro, portanto, no um interlocutor, menos ainda um a quem se dar a voz, mas, para alm disso, o outro como um intercessor junto ao qual o cineasta possa desfazer-se da venerao das prprias fices ou, de outra forma, que o pe diante da identidade inabalvel como uma fico. Ressignifica-se, A questo quem o dono do discurso? continua remetendo ao mesmo sujeito, o cineasta. E o fato de quase sempre se por o verbo dar entre aspas, apenas vem expor uma espcie de deslizamento verbal que contm o seu oposto: a possibilidade de uma reverso fulminante que transformaria o dar num tomar. Ver: Francisco Elinaldo Teixeira. Enunciao do documentrio: o problema de dar a voz ao outro, mimeo.22

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com isso, a viso recorrente sobre as facilidades do documentrio como um domnio no qual sabemos quem somos e quem filmamos23.

Sabemos que Deleuze, no estudo que faz sobre o cinema, desenvolve essa idia da criao do que chamou de intercessores, que permitiriam tanto aos homens que filmam quanto aos homens filmados se colocarem a fabular, passando incessantemente entre o real e o fictcio (a potncia do falso) e esse devir que viria a se confundir com um povo, que sempre falta. De acordo com Deleuze, seria dentro desse processo que se daria no um discurso de um ou de outro, mas um discurso indireto livre, tal como havia formulado Pier Paolo Pasolini.No mais O Nascimento de uma nao, mas a constituio ou reconstituio de um povo, em que o cineasta e suas personagens se tornam outros em conjunto e um pelo outro, coletividade que avana pouco a pouco, de lugar em lugar, de pessoa em pessoa, de intercessor em intercessor. Sou um caribu, um alce do Canad... Eu outro a formao de uma narrativa simulante, de uma simulao de narrativa ou de uma narrativa de simulao que destrona a forma da narrativa veraz.24

Em suma, estamos querendo dizer que no pretendemos aqui considerar o vdeo comunitrio como um discurso do povo sobre si mesmo, que se ope ao discurso dos cineastas sobre o povo. Mas, justamente como um discurso, que, para se livrar das armadilhas recorrentes de certa busca por ancorar a verdade, a representao ou a identidade, constitui-se de forma precria, como um discurso simulante, que falseia, que duvida, e no qual existe certa tendncia para a indiscernibilidade entre a voz do cineasta e a do no-cineasta, entre um lado e outro da cmera.

1.3 Produo compartilhada Em uma produo de vdeo comunitrio, a realizao entendida como uma experincia coletiva a ser vivenciada por um grupo, seja de moradores de um bairro, usurios de uma instituio ou qualquer outro conjunto que rena sujeitos que compartilham, em certo momento, parcelas de tempo e espao de modo a manterem entre si relaes. Em geral, essa comunidade do filme formada por pessoas que no apresentavam

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Francisco Elinaldo Teixeira. Eu outro: documentrio e narrativa indireta livre. In: Documentrio no Brasil Tradio e transformao. So Paulo: Summus Editorial, 2004, p.66. 24 Gilles Deleuze. A imagem- tempo. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1990 p.186.

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anteriormente uma trajetria de contato direto com a produo em vdeo e que trabalham em conjunto com sujeitos que apresentam algum tipo de formao cinematogrfica. A essa comunidade, que se forma ao redor do filme, como dissemos anteriormente, fica reservada a tarefa que antes fora assumida integralmente pelo cineasta, pelo videasta ou pelo documentarista que por ventura viessem a retratar aquele grupo social, seguindo um ponto de vista, inevitavelmente, externo a esse grupo. A partir da transcorre um trabalho processual de apropriao sobre a tecnologia audiovisual e sua aplicabilidade mais localizada. importante sublinhar que isso no significa que esse grupo, por ter interesses comuns, age de maneira unidirecional ou livre de interferncias externas. H muitos equvocos sobre a conformao desse processo de realizao videogrfica. Em geral, existe certo consenso que considera essa imagem fruto de uma representao mais natural, devido possibilidade de se trabalhar com a auto-imagem, ao invs de uma imagem tomada por um ponto de vista externo ao grupo. Entretanto, o que deve acontecer na experincia do vdeo comunitrio no a supresso do ponto de vista externo, do cineasta ou documentarista, mas a incluso de outros pontos de vista, tornando a realizao polifnica, atravs da multiplicao e intercmbio de papis e olhares envolvidos nessa produo. Se a experincia de vdeo comunitrio estiver empenhada apenas em uma troca de papis entre cineastas e povo, certamente incorrer na mesma problemtica que mostrou Bernardet. A comear pela figura do cineasta, temos que ele passa a responder como aquele que vai formar a comunidade nas prticas videogrficas. Ele permanece em uma posio limtrofe, pois est, ao ensinar como se faz vdeo, interferindo na lgica que rege o funcionamento das questes internas da comunidade, mesmo no fazendo parte dela. Oscila, dessa maneira, entre a interferncia e a no-interferncia no processo de realizao videogrfica do grupo, podendo chegar a colocar em xeque, a partir das experincias compartilhadas, tanto seu prprio universo cultural como alguma questo especfica vivenciada pela comunidade. No caso de grande parte das experincias de vdeo comunitrio, as gravaes que a comunidade assume ocorrem dentro de oficinas, que so ministradas pelos cineastas. Eles vo ensinar a um grupo da comunidade o manuseio da cmera, sendo que, em geral, esse

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processo antecedido pela exibio de filmes, que so selecionados tambm pelo cineasta. Isso quer dizer que o realizador deve escolher, dentro de sua cultura cinematogrfica, aqueles filmes que de certa forma passam a apresentar uma pedagogia das imagens, responsvel por formar aquela comunidade em um certo tipo de realizao. Em seguida, ocorre a criao dos roteiros e as gravaes, que em alguns casos so acompanhadas pela mesma equipe que ministrou as oficinas. As imagens gravadas podem vir a ser discutidas, antes de serem editadas. Em geral, o grupo acompanha a edio do material gravado, mas sem responder por essa atividade, que fica por conta de um tcnico do projeto ou do prprio cineasta. Em relao recepo, os trabalhos produzidos pela comunidade do filme so exibidos para um grupo maior do que o grupo de pessoas que participou das gravaes. Se se tratar de um projeto em uma escola, por exemplo, o mais provvel que o grupo convoque toda a comunidade escolar para assistir ao vdeo alunos, professores, funcionrios , sendo que, suponhamos, apenas um grupo de cinco alunos e um professor participou da realizao do vdeo. Este pode ser tambm mostrado em uma escola vizinha. Se for uma aldeia, o vdeo deve ser mostrado no ptio tambm para todos os ndios que vivem ali ou pode ser mostrado em outra aldeia. No caso de um trabalho desenvolvido junto a uma instituio na periferia de um centro urbano, o vdeo pode ser exibido para um pblico de pessoas envolvidas com a entidade. Ento, atualmente, quando falamos em recepo dentro do contexto dos vdeos comunitrios preciso considerar uma audincia localizada nas proximidades da realizao do filme e que envolve um pblico bastante prximo dos realizadores. Vamos transpor o foco dos cineastas para os membros da comunidade. A partir do momento em que se elege um grupo dentro de uma comunidade para ser formado e conseqentemente atuar na produo do vdeo, esse grupo assume, automaticamente, uma posio intermediria, estando, ao mesmo tempo, dentro e fora dessa comunidade. Os realizadores nativos necessariamente tero que se postar em alguns momentos como integrantes da comunidade, outros como documentaristas. emblemtico, nesse sentido, o tipo de participao dos ndios que atuam como realizadores no projeto Vdeo nas Aldeias. Quando filmam um ritual, no so dispensados dos preparativos que envolvem tcnicas como a pintura do corpo. Isso permite que, ao longo do ritual, em alguns

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momentos atuem como documentaristas e em outros tomem parte na encenao. Mesmo porque h partes de alguns rituais especficos em que a participao externa vedada e, pelo fato de estar participando do ritual, o cinegrafista indgena revestido de um estatuto que o diferencia inclusive de outros cinegrafistas brancos. Cada projeto resolve essas relaes de uma maneira particular, gerando um nvel de envolvimento comunitrio especfico. H aqueles em que a comunidade gradativamente assume o processo, chegando a interferir na edio do vdeo e outros em que h uma forte delimitao por questes sociais, econmicas, tcnicas, metodolgicas ou estticas , indicando at onde cada um pode ir. Como se trata de um trabalho sistemtico de envolvimento de um grupo com o vdeo, as propostas de vdeo comunitrio esto centradas em metodologias de trabalho. A variedade de propostas, que pretendemos mostrar nos captulos 3, 4, 5 e 6 indica que existem muitas maneiras de compartilhar a feitura de um vdeo comunitrio. Se podemos localizar uma varivel comum a esses trabalhos que eles exigem que o cineasta se coloque em cena atravs das oficinas, da edio do vdeo, ou de vrias outras formas , interferindo na dinmica interna da comunidade. Por isso temos que entender que uma metodologia de vdeo comunitrio, mais do que qualquer outra, deve considerar os sujeitos envolvidos como seres que se relacionam, seres em dilogo, seres em confronto. No h como subsumir a presena do cineasta ocidental dentro de uma aldeia indgena ou dentro de um bairro perifrico localizado margem do centro urbano. Isso faz dos vdeos comunitrios produtos desses encontros e, mais que isso, interessantes elementos de anlise, pois as trocas culturais no podem ser neutralizadas em seu interior. Ao que parece, as experincias mais problematizadoras no campo do vdeo comunitrio contemporneo no se ocupam de um trabalho audiovisual feito inteiramente pela comunidade, mas justamente de um trabalho de troca cultural, viabilizado atravs do vdeo, entre coordenadores do projeto ou professores de vdeo e um grupo de pessoas sem histrico de atuao com o vdeo. justamente nesse ponto que lanamos mo dos estudos da antropologia flmica. A deciso de dar a cmera para o outro filmar, compartilhando com ele a feitura do filme, uma radicalizao daquilo que estava presente na origem da prtica do filme etnogrfico,

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atravs da incluso dos homens filmados no processo de produo do filme. Seja mostrando as imagens para os homens filmados durante o processo de realizao, como fez Robert Flaherty, em Nanook of the North (1922) ou como fez, na dcada de 1960, o prprio Jean Rouch, que estimulava a participao ativa de seus personagens no filme, mostrando as imagens e pedindo que eles elaborassem comentrios sobre o que viam, entrevistando-os, sugerindo que eles encenassem uma situao e reunindo pessoas desconhecidas entre si para que, da relao estabelecida entre elas, surgisse um filme. Dessa forma, do ponto de vista do filme etnogrfico, percebe-se que a metodologia da observao, na qual o cineasta que est atrs da cmera apenas descreve o que v, teve que ser substituda por um outro mtodo que prev, entre outras coisas, as oficinas de vdeo, que ensinam a manipular a cmera e a editar as imagens. Esses procedimentos, prximos do que se conhece como uma antropologia participante, objetivam uma situao vislumbrada por Jean Rouch, ainda na dcada de 1970:Amanh, ser o tempo do vdeo colorido autnomo, das montagens videogrficas, da restituio instantnea da imagem registrada, ou seja, do sonho conjunto de Vertov e Flaherty, de um cine-olho-ouvido-mecnico e de uma cmera to participante que ela passar automaticamente para as mos daqueles que at aqui estavam na frente dela. Assim, o antroplogo no ter mais o monoplio da observao, ele mesmo ser observado, gravado, ele e sua cultura. Dessa maneira, o filme etnogrfico nos ter ajudado a compartilhar a antropologia.25

bem verdade que ainda no atingimos a situao imaginada por Jean Rouch, visto que no h sinais de registros empreendidos por comunidades que sejam dirigidos a colocar antroplogos ou cineastas literalmente em cena, o que seria bastante interessante. No caso dos vdeos comunitrios, surge essa categoria dos realizadores da comunidade, que vo atuar diretamente na relao com o cineasta. Vamos tomar a concepo do filme como um produto da relao entre realizadores e homens filmados, como afirma Claudine de France. Dentro dessa perspectiva, a constituio do conhecimento sobre um povo, uma cultura, pode vir a ser dada de maneira horizontal e no-hierarquizada.

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Jean Rouch. La camra et les hommes. In: FRANCE, C. de. Pour une Antropologie Visuelle, Paris-La Haye-New York, 1979. Apud Ruben Queiroz Caixeta. revista Geraes, Belo Horizonte: Dep. de Comunicao Social, n 49, 1998, p.44-49

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Nesse caso verifica-se como as relaes que se estabelecem (entre coordenadores do projeto, realizadores indgenas e comunidade) acabam gerando nveis de mise-en-scne26 que, por sua vez, compem o filme. preciso dizer que reverbera aqui o pensamento de Claudine de France sobre o jogo das mises-en-scne, que transcorrem nas descries contidas em um filme.Uma coisa no entanto parece clara: quer a escolha do fio condutor coincida ou no com uma das tendncias mais declaradas do processo observado, o que o espectador apreende da imagem sempre o produto original do afrontamento de duas mises-en-scne, a das pessoas filmadas e a dos cineasta27

O que observamos no caso dos vdeos comunitrios que se fazem presentes no apenas dois nveis de mise-en-scne, mas vrios deles se desenrolam. claro que um cineasta do povo pode estar com a cmera na mo, mas percebe-se a interferncia dos coordenadores do projeto at mesmo na maneira como os realizadores comunitrios descrevem as atividades do ambiente onde vivem. No seriam as descries, elementos recorrentes nos filmes indigenistas comunitrios, a grande preocupao do antroplogo-cineasta ocidental? E no caso dos filmes realizados na periferia dos grandes centros no so insistentemente repetidas algumas das preocupaes dos cineastas envolvidos nesses processos, tais como a retratao da comunidade, seus problemas, personagens e solues? Ao que nos parece, nos trabalhos de vdeo comunitrio, estruturados em torno de oficinas de vdeo, h que se considerar a pertinncia de um jogo mais amplo, j que envolve vrios nveis de mise-en-scne, e no apenas o confronto usual entre dois lados. Nesse sentido, possivelmente aqueles projetos que desenvolvem metodologias que consideram a possibilidade do conflito, das negociaes e da resignificao at mesmo dentro do grupo da comunidade so tambm aqueles que abrem um campo para que diversas mise-en-scnes possam se inscrever no filme, considerando a que tanto quem est de um lado como quem est do outro da cmera se pe a encenar. Podemos acrescentar que o aspecto mais frtil dessa experincia est justamente em criar novas maneiras das pessoas se envolverem na situao de tomada e novos sentidosUtilizamos aqui o conceito de mise-en-scne que Claudine de France extrai de Xavier de France: Se a cenografia geral estuda toda forma de apresentao a outrem, a cenografia da imagem animada se dedica aos procedimentos cinematogrficos utilizados para colocar em cena os cenrios, ou os feitos e gestos das pessoas filmadas, conforme nota presente em Cinema e Antropologia, p. 50. 27 Claudine de France. Cinema e Antropologia, Campinas: Ed. Unicamp, 1998, p. 47.26

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para as imagens da comunidade, atravs das discusses em torno das imagens captadas ou da montagem. Assim, parece possvel flexibilizar, intercambiar e at mesmo gerar certa indiscernibilidade entre os nveis de mises-en-scne prprias a um ou outro ator e assim gerar outros jeitos de filmar o mundo. O vdeo No tempo das chuvas (2000), realizado na aldeia Ashaninka, dentro do projeto Vdeo nas Aldeias, por exemplo, constitui-se de uma seqncia de descries das atividades da aldeia no perodo do inverno. O filme descreve as seguintes atividades: construo de canoa, colheita do murumuru e da palha do murumuru, colheita do cip, colheita da mandioca, preparo da sca (tingu) para pescar, pesca, preparo do peixe, cestaria, tecelagem da cusma (uma espcie de bata), preparo da mandioca e da carne, preparo da caciuma (bebida alcolica preparada base de mandioca), festa. possvel identificar que cada uma das atividades descrita de forma rigorosa. Em certa medida, os ndios so agora um pouco antroplogos e um pouco cineastas. Ao assumirem as cmeras, eles assimilaram tambm o conhecimento sobre esse tipo de miseen-scne do cineasta, que coloca os ndios em cena para descreverem suas atividades, a partir de uma frmula, como a alternncia entre dominantes corporais e materiais, planos abertos e fechados. Entretanto, as descries no se restringem a isso, pois so entrecortadas por piadas, momentos de descanso e intervalos, que fazem dessa mise-en-scne algo tambm singular. visvel que a familiaridade entre ndios filmados e realizadores indgenas acaba gerando um outro tipo de mise-en-scne, que no exatamente a transferncia da mise-en-scne do coordenador do projeto. Da a necessidade de falarmos em uma maior complexidade dos nveis de mise-en-scne. Uma seqncia desse filme, em especial, traz-nos a situao de tomada, no sentido do encontro entre homem filmado, realizador indgena e coordenadores do projeto. Duas ndias (uma delas com um beb) saem para colher palha de murumuru, que ser usada para fazer cesto e abano para o fogo, e cip para fazer vassoura, cesto e peneira. As duas tentam arrancar um pedao de cip de uma rvore. A ndia que carrega o beb diz no ter coragem de puxar porque est com medo do cip cair e machucar a criana. Surge uma soluo: um dos dois ndios que filmavam a cena deixa sua condio de cineasta e se coloca de frente para a cmera com o objetivo de executar a tarefa que a mulher no conseguia.

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Nessa tomada, o ndio que passa a sustentar a cmera acompanha o balano do cinegrafista no cip e, nesse movimento, acaba pegando tambm as duas ndias e o beb e revelando a situao de tomada. A impresso que se tem que essa cena contm a potncia de uma tomada quando a cmera se abre para o real, para o mundo que transcorre em frente a ela, captando mesmo essa interrelao entre as pessoas que filmam, as pessoas filmadas e as pessoas que ensinam a filmar, a partir do momento em que surge uma situao (tornada situao de filmagem) que acaba envolvendo a todos. O registro da tentativa de destacar o cip no parece ser uma mera brincadeira entre os ndios que filmam, j que existe a preocupao de descrever toda a seqncia que vai da busca pelo murumuru, ao cip e cestaria na aldeia. Por outro lado, a preocupao de descrever no impede que se crie uma outra maneira de usar a cmera entre eles. nesse sentido que essa cena possui os ensinamentos que os ndios tiveram sobre como descrever as atividades (aqui nos referimos a isso como sendo uma mise-en-scne dos coordenadores do projeto), juntamente com a encenao que prpria deles, tanto do ponto de vista da encenao de quem filma quanto na de quem filmado. Essa parece uma cena que nos mostra esses vrios nveis de mise-en-scne como se fossem camadas de sentido somadas umas a outras, sendo que essa estrutura pode vir a abrir-se para nossa percepo.

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2. Vdeo comunitrio em contexto 2.1 A herana do vdeo militante Neste captulo, vamos apresentar, primeiramente, as idias que cercaram a prtica do vdeo militante, na dcada de 1960. Em seguida, partimos para mostrar a militncia dentro do movimento do vdeo popular, essa inserida dentro do contexto dos movimentos sociais que ocorreram no Brasil, sobretudo, na dcada de 1980. Nossa reviso bibliogrfica sobre o vdeo militante (bem como sobre o movimento do vdeo popular brasileiro) parte da leitura de A Imagem nas mos o vdeo popular no Brasil28, de Luiz Fernando Santoro. Tendo participado do movimento do vdeo popular em seus primeiros tempos e sido tambm um dos fundadores da ABVP, que presidiu de 1984 a 1987, Santoro permaneceu como a grande referncia de pensamento sobre o tema. A importncia de seu trabalho decorre de associar a problemtica interna dos grupos atuou diretamente na TV dos Trabalhadores29, criada em 1986, pelo departamento cultural do Sindicato dos Metalrgicos de So Bernardo do Campo e Diadema (SP) com a articulao projetiva de um primeiro lder do movimento de vdeo popular. Afora isso, o livro de Santoro, que foi lanado em 1989, portanto, depois que ele j havia deixado a presidncia da ABVP, permanece como o nico ttulo publicado sobre o tema no pas. Os demais estudos so dissertaes, em geral assinadas por pessoas tambm ligadas diretamente ao movimento do vdeo popular30, muitas delas orientadas por Santoro, tal como j havia observado o historiador Henrique Luiz Pereira Oliveira31. Nossa abordagem sobre o vdeo popular sofre interferncia tambm dessa anlise mais recente de Henrique Luiz Pereira Oliveira, que no esteve envolvido no mesmo meio, tendo se interessado pelos vdeos da ABVP em virtude de sua pesquisa de doutorado. Entre

Luiz Fernando Santoro. A imagem nas mos - o vdeo popular no Brasil. So Paulo, Summus editorial, 1989. 29 A TV dos Trabalhadores foi coordenada pela jornalista Regina Festa desde sua fundao e contou com uma equipe formada por profissionais da rea de vdeo e operrios metalrgicos. 30 Regina Festa. TV dos Trabalhadores - a leveza do alternativo (estudo de caso), 1991; Jacira Vieira de Melo. Trabalho de formiga em terra de tamandu: a experincia feminista com vdeo, 1993; Cassia Maria Chaffin Guedes Pereira. O circo eletrnico. TV de Rua a tecnologia em praa pblica, 1995; Mrio Galuzzi. O vdeo como processo de interao entre realizador e comunidade: uma experincia no ABC paulista, 1996. 31 Henrique Luiz Pereira Oliveira. Tecnologias audiovisuais e transformao social: o movimento do vdeo popular no Brasil (1984-1995). So Paulo, departamento de histria, PUC-SP, dissertao de doutorado, 2001, mimeo.

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um trabalho e outro, procuramos inserir intervenes produzidas pelas demais dissertaes e trabalhos acadmicos que tenham trazido contribuio direta ao tema tratado. Mostraremos tambm um outro tipo de atuao, que pode ser entendido tambm como desdobramento desse iderio primeiro que cercou o vdeo militante: a atuao autoral indigenista, calcada em princpios que apresentam vizinhana, ao mesmo tempo, com a atuao autoral de um cineasta e com as preocupaes que cercam a antropologia aplicada a esses povos. Ao final, tentaremos mostrar que o vdeo comunitrio contemporneo articula essas duas referncias, sendo que h alguns grupos mais centrados nos acontecimentos que cercaram o movimento do vdeo popular e outros que remetem mais ao tipo de prtica no qual o cinema autoral se aproxima da antropologia flmica. Como possvel notar, optamos por seguir um caminho no-cronolgico, tentando respeitar as articulaes que a reviso bibliogrfica sobre esse tema nos sugeriu, sem preocupao alguma de tentar tirar da um passado enobrecedor, identificado em um mito fundador, que nos permitisse depreender um modelo de atuao futuro ou mesmo as utopias de um caminho brilhante pela frente32, inspirados pela crtica que Jean-Claude Bernardet faz a historiografia do cinema brasileiro. A concepo de vdeo popular, tal como descrita por Luiz Fernando Santoro, nasce embebida no esprito vanguardista dos ltimos anos da dcada de 1960, na Europa. Para refazer esse trajeto, o autor cita declarao de Jean-Luc Godard, em uma semana sobre o cinema poltico, na poca, em Montreal. Quero dizer ao pblico, inicialmente, que ele no possui esse instrumento de comunicao ainda nas mos dos notveis , mas que poder servir-se dele se lhes derem oportunidade para dizer e ver o que quiser, e como quiser33. Santoro atribui a essa declarao o surgimento de vrias experincias de TV comunitria, nos anos 1970, em Quebec. Em 1972, eram cerca de 150 sistemas de TV por cabo, aos quais estavam conectados cerca de 30% dos lares da capital canadense. Esse fenmeno, financiado pelos governos federal e municipal, teria sido uma maneira de preservar a identidade dos cerca de seis milhes de cidados de lngua francesa contra a invaso de programas norte-americanos, falados em lngua inglesa.

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Jean-Claude Bernardet. Historiografia clssica do cinema brasileiro. So Paulo: Annablume, 1995. Luiz Fernando Santoro. op cit. p. 22.

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Em seguida, Santoro acrescenta outra importante atuao de Godard que, em 1969, em uma reunio na Universidade de Vincennes, teria oferecido um equipamento de vdeo aos estudantes, propondo que estes tomassem em mos um dos instrumentos do poder34. Essa proposio, vinda da parte daquele cineasta, expoente da nouvelle vague, deflagraria uma srie de discusses, nas quais o vdeo era colocado de maneira oposta TV de massa, a partir da perspectiva do chamado vdeo militante. Em ambas as citaes, que abrem a reviso sobre o vdeo militante elaborada por Santoro, h um sentido comum nas reivindicaes de Godard: as pessoas deveriam tomar os equipamentos de vdeo nas mos. Essa possibilidade atribuda, agora nas palavras de Santoro, acessibilidade da tecnologia, que teria mostrado que qualquer pessoa poderia fazer um vdeo.O vdeo vem ocupar esse espao, pois permite, em tese, que qualquer um faa televiso fora das emissoras de TV, alinhando-se assim ao discurso emergente em maio de 68 da conscincia do papel dos meios de comunicao no condicionamento ideolgico, evidenciados em pichaes de rua em Paris como: Attention, la radio ment e Fermez la tl, ouvrez les yeux.35

A importncia de sublinhar aqui essas primeiras idias sobre o vdeo militante, nas quais Santoro vai alicerar o movimento do vdeo popular, est na centralidade que essa discusso assume para o movimento do vdeo popular e para o vdeo comunitrio, como veremos adiante. Tanto que, alm do ttulo da publicao de Santoro fazer referncia a essa idia (A imagem ao alcance das mos), as ltimas frases do livro reafirmam sobremaneira o mesmo posicionamento:O vdeo apresenta uma perspectiva bastante rica, que refora o compromisso daqueles que se preocupam com a realidade social latino-americana e brasileira. E isso fazendo uso de um meio de comunicao que no revolucionrio, como muitos acreditam, mas que pode ser um componente das lutas populares em todo o continente, colaborando para que as classes populares possam expressar a sua prpria viso de mundo, informar-se, registrar a sua histria, ou melhor, POSSAM, COM UMA CMERA, TOMAR A SUA PRPRIA IMAGEM NAS MOS.36 (grifo do autor)

No resta dvida de que o movimento do vdeo popular, da mesma forma que o vdeo militante, defendia, em ltima instncia, a participao direta no sentido de que a cmera deveria estar nas mos das pessoas para que elas prprias pudessem tomar as suas34 35

Ibid. p. 22. Ibid. p. 22. 36 Ibid. p. 113.

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imagens do mundo. importante dizer que esse processo no seria uma decorrncia da evoluo tecnolgica, mas fruto de uma deciso poltica dos realizadores de vdeo ligados aos movimentos sociais. Assim como, no final da dcada de 1960, havia sido cunhada a expresso vdeo militante para nomear um tipo de trabalho que se opunha produo massiva identificada na televiso, na dcada de 1970, o vdeo passa a ser entendido tambm como instrumento de contra-informao. O vdeo militante teria que interferir na prtica dos meios de comunicao de massa com outro tipo de informao, que viesse preencher a lacuna deixada por esses meios pela omisso ou tratamento superficial de temas que questionem as relaes de poder estabelecidas 37. Santoro acrescenta que, ainda no incio da dcada de 1970, surgem as primeiras experincias de videoanimao, atividades culturais que lanam mo do vdeo. Para explicar o termo, o autor se serve de uma definio de Jean-Pierre Dubois-Dume.Toda animao social e cultural que utiliza os meios eletrnicos da TV em circuito fechado para pr em movimento uma vila, um bairro, ou mesmo um grupo. Isto implica, de uma parte, a vontade de colocar as pessoas em relao umas com as outras, de ajud-las a descobrir, a exprimir, a discutir e resolver os problemas que eles encontram; e de outra parte na utilizao de um equipamento leve constitudo por uma cmera eletrnica, um videocassete e um monitor de TV38

A conjugao desses dois aspectos do vdeo militante contra-informao e videoanimao junto da defesa da idia da participao teriam sustentado a concepo das experincias de televiso comunitrias, na Frana e no Canad. A idia era recriar a noo de comunidade por meio de um dispositivo eletrnico. A praa pblica passa a ser eletrnica e o encontro com os vizinhos no se d mais nas ruas, mas via depoimentos e participao em programas de TV locais39. Entretanto, j em 1974, ano em que a tecnologia do vdeo torna-se disponvel no Brasil, evidencia-se um refluxo em relao a essas idias de gerao de novas relaes sociais a partir do uso da tecnologia. Santoro avalia que seria difcil acreditar que as emisses de carter comunitrio, por si s, fossem capazes de formar uma comunidade, como tambm ilusrio pensar que esses novos instrumentos em mos de grupos isolados,Luiz Fernando Santoro. op. cit. p. 22. Jean-Pierre Dubois-Dume. Videoanimation. In: Comunications. Paris, Seuil, n 21, 1974, p. 117. Apud Luiz Fernando Santoro. op. cit. p. 24. 39 Ibid. p. 24.38 37

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sem estarem a servio de um movimento social determinado que justifique sua utilizao, possam ser eficazes40. Estava claro que no existiria uma relao direta entre o uso da tecnologia do vdeo e os ideais revolucionrios. A proposta do vdeo militante ser, ento, retomada, na dcada de 1980, pelos lderes do movimento do vdeo popular na Amrica Latina para configurar uma prtica distinta, que nem por isso deixa de se apropriar das caractersticas mais marcantes do vdeo militante, a saber: a contra-informao, a videoanimao e, sobretudo, a questo da participao. Na Amrica Latina, o vdeo popular desenvolve, a partir da dcada de 1980, uma trajetria distinta, de acordo com a anlise de Santoro, que identifica aqui um quadro mais dinmico do que o observado na Europa41. Nessa poca j estava posto aquele que viria a ser o grande desafio das propostas em vdeo popular. Tal como no vdeo militante, a participao direta das pessoas na produo e veiculao das imagens seria responsvel pela manifestao do popular, tal como nos diz Augusto Gongora.A tecnologia do vdeo poderia ser utilizada com uma lgica alternativa, sempre e quando se logre consolidar uma prtica alternativa em um espao prprio que se construa a partir do setor popular. necessrio advertir, em todo caso, que no basta difundir programas nesse nvel, ou considerar os setores populares somente como fontes informativas. O desafio de fundo est na construo de processos de comunicao com carter autenticamente democrtico onde tais