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    vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 78-87Em pauta

    De como D. Quixote enrentou os monstruosos moinhos:

    a mediao teatral e a escola na perspectiva da ao cultural

    Heloise Baurich Vidor1

    Resumo

    Este artigo tem como eixo de discusso o conceito de mediao relacionado ao campo da aocultural, na modalidade especfica que a ao artstica, em especial o teatro. Pretende-se revisar

    esta noo focando o papel do mediador teatral, que no contexto brasileiro acumula as competnciasde professor e artista, de modo a analisar as dificuldades e as potencialidades que este profissionalencontra na realizao de projetos artsticos propostos na instituio escolar.

    Palavras-chave: mediador; teatro; pedagogia; ao cultural; professor-artista.

    Abstract

    This papers discussion axis lays on the concept of mediation related to the field of cultural action, inthe specific modality of the artistic action, particularly the theatre. It is intended to review this concept,focusing on the role of the theatre mediator. In the Brazilian context, this role entail both skills of teacherand artist; in this way, it seeks to analyze the difficulties and potentialities that such professionalencounters in the production of artistic projects proposed in the school.

    Keywords: mediator; Theatre; pedagogy; cultural action; teacher-artist

    A aventura vai guiando as nossas coisas melhor do que pudramos desejar.V l, amigo Sancho Pana, aqueles trinta e poucos mais desaforados dosgigantes com os quais penso travar batalha e tirar de todos a vida.

    Miguel de Cervantes

    Introduo

    A aproximao ao tema da ao cultural, fruto do acompanhamento da disciplinaAo Cultural em Cena: Contextos e Processos2remeteu-nos a uma retrospectiva de

    nossa histria com o teatro, que est pautada, em vrios momentos, pelo conceito

    acima referido e sua insero no espao da escola. O incio de nossas atividades

    teatrais no perodo da adolescncia, num grupo de teatro nascido na Escola Tcnica

    Federal de So Paulo, em projeto extracurricular, seguido pela precoce atuao como

    1 A autora Bolsista da FAPESC/SC Brasil.

    2 Esta disciplina foi oferecida pelo Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da Eca /USP, no segundo

    semestre de 2011, e foi ministrada pela Profa. Dra. Maria Lcia de Souza Barros Pupo.

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    professora de teatro, tambm no mbito extracurricular, no Colgio de So Bento

    SP, por sete anos, j nos colocava em contato com as questes que se relacionam

    formao teatral e ao ensino do teatro na escola.

    Com uma formao universitria focada na pedagogia do ator Bacharelado em

    Interpretao Teatral e ps-graduao na rea de Educao e Cultura e Pedagogia

    do Teatro, nosso perfil profissional acumula a dupla competncia de professora e atriz.

    Esta dupla competncia nos levou atuao como professora universitria3, na rea

    de Prticas Teatrais e, posteriormente, na rea de Pedagogia do Teatro formao de

    professores de teatro lugar que atualmente ocupamos.

    Devido a esta trajetria, nos pareceu coerente e instigante focar a presente

    discusso no potencial da ao cultural no espao da escola, tendo na figura do

    mediador4personagem central capaz de articular as aes e enfrentar as adversi-

    dades recorrentes do encontro nem sempre harmnico entre arte e educao. Para

    isso, propomos ao longo do texto revisar conceitos relacionados aos temas mencio-

    nados e problematizarmos questes que perpassam nossa prtica comomediadora

    teatrale formadora demediadores teatrais.

    Mediar sem embrutecer: elos encadeadores de uma complexa ao cultural,

    artstica, teatral

    A palavramediao, em linhas gerais, designa a funo de relacionar dois termos

    ou dois objetos em mbitos variados. Outra forma de definir tal termo, entretanto,

    especialmente rica quando relacionamos esta noo ao conceito de ao cultural:

    Entre o estmulo inicial (objeto, propriedades do objeto) e a resposta verbalque se encontra no fim de uma cadeia de aes, h elos intermediriosque so, ao mesmo tempo, as respostas aos estmulos que os precedeme, por sua vez, estmulos para os elos que seguem. (DUBOIS; GUESPIN;MARCELLESI; MARCELLESI; MEVEL, 2006: 405).

    A imagem de elos intermedirios que se afetam pelos que seguem e so afetados

    pelos que precedem numa ao complexa, encadeada, apresenta-se como uma

    imagem potente que traduz a funo de mediar dentro da perspectiva de um processo

    artstico inserido no mbito de uma ao cultural. A ao cultural, em oposio fabri-

    cao cultural, um processo que no tem um fim determinado previamente, nem

    3 Compomos o quadro de professores efetivos do Departamento de Artes Cnicas da UDESC/ Florianpolis SC.

    4 Ao longo do texto alguns termos foram colocados em itlico para ressalt-los como conceitos chaves na

    discusso.

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    etapas previamente estabelecidas, ou seja, uma aposta a partir de certas balizas,

    de modo que o processo importa mais que os fins (COELHO, 2004), numa ao que

    complexa e encadeada como os elos de uma grande e grossa corrente.

    O termo ao cultural, em linhas gerais, abriga um projeto humanista, no qual

    foras idealistas de liberdade agem na contramo do pensamento liberal dominante

    (CARASSO, 2009). Sinteticamente, o termo colocado dentro da perspectiva de aproxi-

    mao entre o pblico e as obras culturais e artsticas, em termos de fruio e criao.

    A delimitao dos conceitos de arte e cultura-arte como sendo o contrrio

    da cultura (COELHO, 2008); ou o fenmeno da arte como ponto de partida para a

    discusso sobre a cultura (ARENDT, 2009); ou a arte como sendo a crtica da cultura,

    sua reflexo aguda e no um produto cultural (TENDLAU, 2010 a partir da leitura de W.

    Benjamin) abre perspectivas para a diferenciao entre ao culturale ao arts-

    tica (CARASSO, 2009). A partir da, propomos o seguinte raciocnio: refletirmos sobre

    a noo de mediao no mbito da ao cultural, na modalidade especfica que a

    ao artstica, em especial o teatro.

    No texto Mediao Artstica, uma tessitura em processo (PUPO, 2011), a autora reflete

    sobre a noo de mediao artstica atravs da anlise de uma estrutura de mediao5.

    Duas questes, por ela abordadas, merecem destaque para a presente discusso: a

    mediao como modalidade de criao formulaes e experimentaes das crianas

    e jovens e a reflexo sobre a arte e sua insero cultural (PUPO, 2011: 121); e a figura do

    pedagogo-artista como verdadeiro mediador teatral: essa , inclusive, uma vertente que

    caracteriza a formao docente em nosso pas, (...) uma dupla competncia, artstica e

    pedaggica, reunida em um nico profissional (...) (PUPO, 2011:114).

    No pretendemos focar nossa anlise numa estrutura de mediao cultural

    aos moldes franceses, onde temos um tringulo composto por: professor da escola,

    mediador da instituio e artista. O destaque dado s questes acima mencionadas

    nos remete ao mediador artstico, que o propositor/agente da ao e acumula as

    competncias de professor e artista, de modo que o que se espera deste profissional

    que ele faa as pontes entre a instituio em que atua e as artes da cena.

    Tendo em vista que nossa atuao profissional se d na cidade de Florianpolis,

    capital do Estado de Santa Catarina, regio sul do Brasil, a opo de focar a discusso

    nomediadorjustifica-se por dois motivos. Em primeiro lugar porque verificamos que o

    5 A instituio mencionada a Maison du Geste et de lImage, situada em Paris e mantida pela Prefeitura da cidade.

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    Estado de Santa Catarina no possui um projeto de poltica pblica consistente para a

    cultura e para a arte. Diante de uma situao de precariedade, que se reitera pela cultura

    de clientelismo que acomete, em alguns casos, as prprias pessoas interessadas da rea

    de cultura e das artes abrindo brechas para que o favoritismo ocorra o que predomina,

    neste contexto, uma viso extremamente acentuada de cultura como produto a ser

    gerado e consumido e no como ato, fazer processual. Diante deste quadro, propomos

    focar a anlise napessoa do mediador, por acreditarmos que o que faz a diferena, tanto

    no acontecimento ou no da ao, quanto na sua qualidade, est mais relacionado

    qualidade quixotesca, ou seja, idealista da pessoa que a prope e/ou realiza, do que na

    dependncia de uma estrutura de mediao, que implica em investimento relacionado s

    polticas pblicas.

    Estas impresses so fruto da nossa atuao no contexto catarinense, entre-

    tanto se relacionam com uma esfera muito mais abrangente, pois, segundo Hannah

    Arendt (2009), por estarmos inseridos numa sociedade de massas, que se apodera

    dos objetos culturais criando uma cultura de massas ocupada com o entretenimento e

    o consumo o que se configura como uma verdadeira ameaa aos objetos culturais

    podemos concluir que, em maior ou menor grau, estamos todos, independentemente

    do contexto, afetados por estas questes que assumem um carter global.

    Em segundo lugar, a opo de focar a discusso nomediador porque temos na

    capital do Estado de Santa Catarina uma Licenciatura em Teatro, criada em 1986, que

    tem uma relao direta com a produo artstica da cidade, bem como com as aes

    de aproximao de crianas, jovens e adultos com as artes da cena.

    Contudo, apesar de termos os mediadores, como no temos a estrutura de

    mediao, o que se v so aes pontuais em diversos contextos, desvinculadas

    de um projeto de ao cultural. Apesar de terem, na maioria dos casos, timas inten-

    es por parte dos proponentes, essas aes no tm o impacto necessrio diante da

    sociedade, que possa mobilizar uma reivindicao pela criao de um programa para

    a cultura por parte do governo.

    Observa-se, como consequncia destas propostas pontuais, a falta de recursos,

    de planejamento, de estrutura que leva falta de continuidade e comprometimento,

    acabando por se caracterizar como trabalho voluntrio e a, abrir brechas para que

    um carter assistencialista da prtica teatral se instale. Apesar de muitos dos media-

    dores teatrais terem passado pela Licenciatura, observa-se, tambm, falta de clareza

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    e interesse sobre o potencial da ao teatral numa perspectiva de ao cultural, de

    modo a ir alm de uma oficina pontual: uma ao que estabelea um espao de

    criao, reflexo e fruio esttica. Este um aspecto grave, pois se a funo primeira

    da mediao aproximar o pblico da obra, ou a pessoa da linguagem artstica, se

    esse trabalho for bruto e descontnuo pode surtir o efeito contrrio.

    O termo bruto foi escolhido inicialmente por ser contrrio ao termo delicado. Ou

    seja, o teatro experimentado com pessoas que no se inserem no contexto do teatro

    profissional, se no for delicado em suas proposies e expectativas, pode trazer

    efeitos desastrosos, pode afastar as pessoas desta linguagem no s do fazer, mas

    tambm do apreciar6. Neste sentido, por exemplo, na escola, apesar de ser, a prin-

    cpio, um ganho para a rea a obrigatoriedade do teatro nesta instituio 7, depen-

    dendo de como for conduzida a insero, os resultados podem ser contraproducentes.

    Esta uma questo extremamente complexa, um verdadeiro desafio a ser enfrentado

    e que tem sido foco de discusso na rea.

    Voltando ao termo bruto pensamos que a imerso que realizamos na obra de

    Jaques Rancire , especialmente a partir da leitura dos textos O Espectador Emanci-

    pado e O Mestre Ignorante, ampliou sobremaneira o seu sentido. Rancire defende a

    educao emancipadora contrariamente a uma educao que leve ao embrutecimento.

    Justamente quando estamos diante de uma proposio pautada na valorizao dos

    sentidos, como o teatro, a delicadeza fator essencial. Quando usamos o termo deli-

    cadeza, no estamos nos remetendo ao aspecto de suavidade nas aes, mas real

    conscincia do potencial do teatro para promover a autonomia, a partir da perspectiva de

    igualdade de inteligncias, base da argumentao de Rancire. A explicao, colocada

    pelo autor como elemento embrutecedorna relao de aprendizado, d lugar ao

    de decifrar os sentidos de algo que ambos (professor e aluno) desconhecem, mediante

    uma situao criada pelo professor, na qual ele tambm convidado a participar.

    fundamental que algo seja colocado entre professor e aluno, para que a operao de

    desvendamento, traduo dos sentidos, se revele. Num processo de criao artstica

    aos moldes de uma ao cultural, o mediador cria a situao, a partir de certos recursos

    6 Meno proposta triangular para o ensino da arte, na qual o conhecimento em artes se d por trs aes:

    fazer, apreciar e contextualizar (BARBOSA, 2006).

    7

    Aps a publicao da LDB 9394/96, na qual a arte foi reconhecida como rea de conhecimento no currculoescolar, possibilitando a insero das diferentes linguagens artsticas (msica, artes visuais, teatro, dana) a

    serem trabalhadas na disciplina Artes.

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    e objetivos, mas aceita correr o risco de no ter um fim determinado. Aceita que o desen-

    rolar do processo se d entre ele e os participantes mediados pela obra/projeto que

    iro, ao longo do tempo, decifrar os sentidos e construir conhecimento o caminho

    construdo por todos enquanto trilhado.

    A princpio, o teatro pode ser um lugar especialmente frtil para o que prope

    Rancire. Mas, concretamente, que tipo de proposies pode fazer um professor de

    teatro, comprometido com as questes que coloca o autor francs, na sua prtica,

    seja em escolas, seja em outros locais que abrigam esta linguagem artstica, para

    que as aes ganhem envergadura? Voltando ao contexto onde atuamos, colocamos

    a seguinte questo: se em Santa Catarina ns temos osmediadores teatrais mas no

    temos as estruturas de mediao que do sustentao ao seu trabalho, como e onde

    propor aes culturais em teatro que rapidamente no se esmoream?

    A escola como campo rtil para a ao teatral na perspectiva da ao cultural

    A pergunta lanada nos remete ao incio de nossa histria com o teatro, mencio-

    nada na introduo deste texto e que agora ter alguns aspectos detalhados. Com

    catorze anos, comeamos a fazer teatro em um grupo que nasceu na Escola Tcnica

    Federal de So Paulo8, formado por alunos da ETFSP e por pessoas de fora desta

    instituio ns, por exemplo. O professor9 (ou mediador ou ainda professor-mediador,

    ou melhor, tutor) de teatro no sabemos dizer qual desses nomes o define melhor

    teve, podemos afirmar com segurana, uma atuao determinante, tanto para o nasci-

    mento do grupo IVAMBA, quanto para sua existncia por aproximadamente dez anos,

    que de amador tentou se transformar em profissional e que, neste momento, acabou10.

    Ter algum como aquele professor, que fazia a ponte com a instituio, assistia

    alguns ensaios, sugerindo espetculos para serem assistidos, filmes e livros para

    serem frudos, que trazia artistas e intelectuais para darem palestras e oficinas para

    o grupo, nos fez pensar que estvamos no mbito de uma ao cultural em teatro,

    com um mediador atuando de forma significativa ainda que no usssemos esses

    termos. Portanto, iniciamos e podemos dizer que tivemos parte de nossa formao

    8 Usaremos a partir deste momento a sigla ETFSP.

    9 Na poca o professor era Reynuncio Napoleo de Lima.

    10

    Dos mais de trinta componentes que transitaram pelo IVAMBA, durante sua longa existncia, foram poucosos que se profissionalizaram. Os outros tomaram outros rumos profissionais, mas os laos afetivos at hoje so

    preservados, marcados por encontros anuais de confraternizao.

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    teatral num grupo amador/mbito de ao cultural, dentro da instituio escolar, do

    qual participamos por oito anos.

    Este relato traz aspectos interessantes para refletirmos sobre o questionamento

    anteriormente lanado. O primeiro deles o fato da ao artstica (teatral) ter acon-

    tecido dentro da instituio escolar uma escola de cursos tcnicos nas reas das

    exatas, prioritariamente; depois a constatao de que a ao do professor no era uma

    ao de mediao, mas vrias aes de mediao ele mediava vrios aspectos que

    compreendiam a ao como um todo: as questes burocrticas com a Instituio, a

    relao dos alunos com as obras teatrais e/ou cinematogrficas em cartaz na cidade,

    a relao entre os artistas da cidade e aquele grupo de jovens, a relao entre a obra

    o espetculo que estava sendo criado e o momento social/poltico em que vivamos

    atravs de provocaes para refletirmos durante o processo, a divulgao de festivais

    e encontros que pudssemos nos apresentar. Ele no era um membro do grupo efeti-

    vamente, mas era algum que alimentava nosso desejo de fazer e ver teatro, parafra-

    seando Pupo (2009), sem nos dizer como deveramos fazer, sem pautar sua relao

    conosco atravs de explicaes, consideradas embrutecedoras por Rancire.

    Outro aspecto a se pensar a questo do amador versus profissional. Este

    momento transitrio gerou uma crise que encerrou as atividades do grupo, pois fez com

    que nos deparssemos com fatores determinantes para a continuidade do trabalho:

    poca de escolha profissional dos jovens; impossibilidade de continuar no espao da

    instituio j que os fundadores do grupo no eram mais alunos da ETFSP; ambio

    por aprimoramento tcnico, portanto, mais dedicao ao grupo, investimento em

    cursos profissionalizantes. Neste sentido, concordamos com Koudela (2011), quando

    diz que se a ao teatral for considerada como local de criao, reflexo e insero

    cultural, ela pode transcender esta ideia de oposio entre amador e profissional, mas

    vale lembrar que a designao de teatro amador guarda embutido o termo amor

    (KOUDELA, 2011:17) e isso nos remete, novamente, dimenso quixotesca que

    envolve tanto o mediador teatral, quanto os participantes da ao, pois do contrrio a

    ao pode virar mera necessidade de contrapartida, e com este fim claramente deter-

    minado, aproximar-se do que Coelho (2004) define como fabricao cultural.

    Um terceiro aspecto importante a questo do tempo, aliado necessrio para

    que uma ao ganhe envergadura. No mbito de uma ao cultural, que pressupe um

    processo sem um fim determinado, que tenha a oportunidade e o privilgio de perder-

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    -se no caminho, sem a cobrana interna dos prprios participantes e externa da

    instituio que acolhe a ao e que o caminho seja realmente construdo enquanto

    trilhado, imprescindvel que se tenha tempo, que se permita o tempo.

    Voltando nossa prtica atual e ao enfoque da presente discusso na perspec-

    tiva de uma ao artstica em teatro que coloca em interface o papel do mediador

    teatrale o contexto escolarcomo campo frtil para que processos teatrais aconteam,

    podemos observar que, apesar de termos os mediadores teatrais professores de

    teatro licenciados as aes teatrais nas escolas ainda no acontecem plenamente.

    Mas, ainda assim, acreditamos que o perfil duplo deste profissional que, a prin-

    cpio, dispensaria uma estrutura de mediao (aos moldes franceses) para efetivar

    as parcerias entre docentes e artistas, figura-chave neste processo, pois ele tem

    as condies para diluir preconceitos arraigados dos artistas em relao aos educa-

    dores e vice-versa, facilitando o convvio entre os pressupostos da arte (como radica-

    lidade, instabilidade, olhar crtico dos processos culturais) e as questes da instituio

    escolar, sem desconsiderar, entretanto, que este um terreno que inevitavelmente

    ser marcado por tenses.

    Outra questo que nos parece importantssima na ao deste profissional diz

    respeito possibilidade de pensarmos a noo demediao teatralcomo uma rede

    de aes que exigir uma dinamizao da sua atuao para enfrentar as adversidades

    do local onde atua (escola ou qualquer outro). Os professores e futuros professores

    de teatro se quiserem estabelecer processos que estejam no mbito da ao cultural,

    colocando-se como mediadores culturais, ou, aqui no caso, teatrais, precisam estar

    conscientes de que suas aes so mais abrangentes do que a funo de dar aulas,

    buscando verificar quais so as aes em rede que o mediador teatral pode realizar

    neste contexto.

    Um ltimo aspecto e talvez o mais desafiador que o mediador teatral precisa

    enfrentar fazer com que a escola (e outras esferas que tambm abrem suas portas

    para o teatro) acolha a ao artstica, tendo em vista a pedagogia da razo interior

    de que fala Coelho (2004) ou a ampliao da esfera de presena do ser, segundo

    Montesquieu (2008), e no como tbua de salvao que traz consigo suposies

    de que teatro ensina a ser cidado, ensina a ter um objetivo na vida, ensina a no

    ser violento (Icle, 2010), entre outras. Estas expectativas colocadas a priori minam a

    premissa de que numa ao cultural os fins no podem estar determinados, ou seja,

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    atribuem funcionalidade arte, para justificar e acolher sua presena nestes meios.

    O teatro tem potencial para ampliar a esfera do ser e isto muito mais abrangente e

    contundente do que justific-lo sob esta ou aquela funo especfica.

    Consideraes Finais

    Encerramos esta reflexo com a certeza de que a associao entre cultura e

    educao abre um campo frtil para o desenvolvimento de aes artsticas dentro da

    perspectiva da ao cultural, privilegiando uma perspectiva humanista que prev um

    idealismo de quem a prope e a realiza. Neste sentido, a escola pode ser olhada como

    uma instituio cultural, um espao potente para abrigar estas aes, ainda que se

    apresente como espao de tenso e confronto com as particularidades da arte.

    Nossos apontamentos no pretendem ditar modos de agir de um mediador

    teatral ideal, mas trazer tona questes que possam problematizar nossa prpria

    atuao, que tem como responsabilidade a ao mediadora e a formao de media-

    dores, e promover, cada vez mais, a insero deste profissional em uma sociedade

    marcada pelo consumismo e pelo embrutecimento. O projeto idealista que marca uma

    ao cultural o aspecto que enobrece o papel do mediador (cultural, artstico, teatral)

    que, com delicadeza e perspiccia, pode derrotar os monstruosos moinhos de vento,

    como o fez, bravamente, o heri de Miguel de Cervantes.

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