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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-graduação em Filosofia EXPERIMETO E VIVÊCIA: A DIMESÃO DA VIDA COMO PATHOS Tese de Doutorado Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Jr. Aluno: Jorge Luiz Viesenteiner Campinas/2009

VIESENTEINER, Jorge_Experimento e Vivencia - A Dimensão Da Vida Como Pathos

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Nietzsche

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  • Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Cincias Humanas Programa de Ps-graduao em Filosofia

    EXPERIMETO E VIVCIA: A DIMESO DA VIDA COMO PATHOS

    Tese de Doutorado

    Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Jr. Aluno: Jorge Luiz Viesenteiner

    Campinas/2009

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH UICAMP

    Bibliotecria: Maria Silvia Holloway CRB 2289

    Ttulo em ingls: Experiment and Erlebnis: the dimension of life as pathos

    Palavras chaves em ingls (keywords) :

    rea de Concentrao: Histria da filosofia contempornea Titulao: Doutor em Filosofia Banca examinadora:

    Data da defesa: 02-12-2009 Programa de Ps-Graduao: Filosofia

    ietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 German philosophy Pathos Language - Philosophy Life - Philosophy

    Oswaldo Giacia Jr, Henry Burnett, Anna Hartmann Cavalcanti, Antonio Edmilson Paschoal, Vnia Dutra de Azeredo

    Viesenteiner, Jorge Luiz V678e Experimento e vivncia: a dimenso da vida como pathos /

    Jorge Luiz Viesenteiner. - - Campinas, SP : [s. n.], 2009.

    Orientador: Oswaldo Giacia Jr. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. ietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 . 2. Filosofia alem. 3. Pathos. 4. Linguagem - Filosofia. 5. Vida - Filosofia I. Giacia Jr, Oswaldo. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

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    Ai, que preguia! (Macunama)

    Eu preferiria no! (Bartleby)

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    AGRADECIMETOS

    Ao Professor Oswaldo Giacoia pelo impressionante respeito, pelas sugestes de

    leitura de preciso milimtrica e, sobretudo, pela confiana em relao ao trabalho,

    confiana essa que pe medo em qualquer orientando.

    Ao Professor Werner Stegmaier pela acolhida em Greifswald/Alemanha e pela

    sempre fraternal orientao que dedica a cada um de seus estudantes.

    Carmen Lcia pela leitura da tese e valiosas sugestes textuais, mas tambm

    pelos primeiros empurres de pesquisa. Muito obrigado!

    Aos eternos amigos Rosni e Norton, Dete e Maurcio, ao nosso eterno confrade

    Fermino e ao admirvel German, sobretudo pela amizade que nos d o flego necessrio

    para colorir a vida.

    minha Micheli pela pacincia e perseverana em me agentar nos instantes mais

    adversos, mas tambm por terminar de colorir a minha vida.

    Ao Edmilson, amigo que h anos acompanha minha trajetria acadmica. Meus

    sinceros reconhecimentos.

    Ao Grupo de Pesquisa da PUCPR, pela interlocuo fecunda.

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    dona Iranilda e ao Sr. Valdir,

    Ambile, Ana e Cntia; ao

    Victor e Andr; ao Neto e

    Alessandro.

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    RESUMO

    Esta pesquisa tem por objetivo analisar a frmula nietzscheana tornar-se o que se

    . Ela uma alterao da expresso de Pndaro feita por Nietzsche, que o preocupou desde os tempos de estudante at ser publicada como subttulo de Ecce homo. Nossa hiptese que a frmula tornar-se o que se pode ser compreendida atravs do conceito de vivncia (Erlebnis). Vivncia significa estar ainda presente na vida quando algo acontece, porm, nunca estamos conscientes da vivncia quando ainda a atravessamos. Neste caso, a vivncia um contra-conceito da razo e, como tal, compreendida como pathos. Trata-se de uma noo que, patheticamente, no pode ser conceitualmente sistematizada e nem sequer comunicada atravs de signos lingsticos, pois to logo a racionalizamos ou comunicamos, deixa de ser uma vivncia. Tornar-se o que se , porm, acontece unicamente na vida e precisamente atravs das Erlebnisse, de modo que tornar-se se converte em um imenso processo de experimentao essencialmente fluido. Metodologicamente, a pesquisa est estruturada em trs partes. No primeiro captulo analisamos um conceito imediatamente relacionado Erlebnis: a noo de experimento. Trata-se de um conceito essencialmente prtico e que congrega em torno de si uma dimenso tico-esttica no processo de tornar-se o que se . base deste conceito, encontra-se o papel que a cincia ocupa em sua dupla variao semntica, sobretudo a partir de Humano, demasiado Humano at A Gaia Cincia: cincia como propedutica aquela que esvazia os erros ilusrios da razo e da ordenao moral do mundo e como paixo do conhecimento aquela em que o esprito livre aprende a considerar a si mesmo e o mundo esteticamente, em uma prxis efetiva de auto-formao. No segundo captulo abordado o conceito de vivncia. Partimos da sua origem etimolgica e a recepo feita por Nietzsche, passando pela desvinculao do seu carter autobiogrfico, em proveito da interpretao como genealogia das condies nas quais um pensamento emerge e se desenvolve, at sua interpretao como pathos. Vivenciar atravessar patheticamente uma trajetria, cujo movimento realizado para alm da intencionalidade, mas que constri no homem uma abundncia de vida. A ltima parte da pesquisa trata da soluo de dois problemas que se originaram das interpretaes anteriores: um problema de linguagem e outro sobre a intencionalidade. Quanto linguagem, trata-se de investigar como possvel resolver o problema da comunicao de uma vivncia, atravs de trs variantes: primeiro, a anlise daquilo que denominamos como projeto crtico de inverso da compreensibilidade; depois uma interpretao do que Nietzsche nomeou como sua arte do estilo e, por fim, em que medida Zaratustra corporifica as possibilidades de comunicao de uma tenso interna de pathos. Em relao intencionalidade, trata-se de compreender o tornar-se o que se a partir de dois outros registros: por um lado, a idia de destino, na medida em que, etimologicamente, tambm significa pathos; por outro lado, trata-se de compreender a frmula tornar-se o que se sob o signo da fluidez (Fluktuanz). Palavras-chave: experimento vivncia pathos compreensibilidade linguagem intencionalidade

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    ABSTRACT

    The objective of this research is to analyze Nietzsches formula become who you are. It is an alteration of Pindaros expression made by Nietzsche, which has worried him since he was a student until being published with the subtitle of Ecce homo. Our hypothesis is that become who you are formula can be understood through the concept of experience (Erlebnis). Experience means to still be present in life when something happens, however, we are never aware of experience when we are still crossing it. In this case, experience is reasons counter-concept and, as such, it is understood as pathos. It is about a notion which, pathetically, it can not be conceptually systematized and not even be communicated through linguistic signs, since as soon as we rationalize it or we communicate it, it is not an experience any longer. Become who you are, however, happens once in a lifetime and precisely through the experiences (Erlebnisse), in a way that to become is converted into a huge experimentation process essentially fluid. Methodologically, the research is structured in three parts. In the first chapter we analyze a concept immediately related to Experience (Erlebnis): the notion of experiment. It is about a concept essentially practical and which congregates around oneself an ethical-aesthetic dimension in the process of become who you are. Based on this concept, one finds the role that science occupies in its double semantic variation, specially from Human, All Too Human up to The Gay Science: science as propaedeutic the one which empties the illusory errors from reason and from the worlds moral ordination and like knowledges passion the one which the free spirit learns to consider himself and the world in an aesthetically, in an effective praxis of self-formation. In the second chapter we approach the experience (Erlebnis) concept. We start from its etymologic origin and the reception given by Nietzsche, passing through the autobiographical character separation, taking into account the interpretation as the conditions genealogy in which a thought emerges and it develops, up to its interpretation as pathos. To experience is to pathetically cross a range, which movement is done far beyond the intentionality, but which builds in men life abundance. The last part of the research tackles the solution of two problems which were originated from previous interpretations: a language problem and the other one is about intentionality. Regarding the language, it is investigated how it is possible to resolve the experience communication problem, through three variants: first, the analysis of which we call as the comprehensibilitys inversion critical project; after an interpretation of which Nietzsche named as his styles art and, finally, in what measure does Zarathustra materializes the communication possibilities of a pathos internal tension. Regarding intentionality, it is a question of understanding how one becomes what one is starting from two other registers: on one side, the idea of destiny, in so far as, etymologically, it also means pathos; on the other hand, it is about understanding the become who you are under the fluencys signal (Fluktuanz).

    Key-words: experiment experience (Erlebnis) pathos comprehensibility language intentionality

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    Utilizamos como texto de referncia para nossa pesquisa a edio crtica das obras de Nietzsche Kritische Studienausgabe , organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Em relao s tradues das obras publicadas por Nietzsche e disponveis em portugus, optamos por utilizar os textos traduzidos por Paulo Csar de Souza. As poucas vezes em que alteramos sua traduo, foi exclusivamente para se adequar filologia que empregamos em determinados conceitos de Nietzsche, dada sua importncia na economia geral do tema da nossa tese. As alteraes, porm, esto devidamente caracterizadas sob o registro traduo modificada, anotadas logo aps a referncia textual. Salvo indicaes contrrias, todas as outras tradues so de minha autoria. KSA Smtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bnden. Hrsg. Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: DTV & Walter de Gruyter, 1980. KSB Smtliche Briefe. Kritische Studienausgabe. Hrsg. Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: DTV & Walter de Gruyter, 1986. KGB Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe. Hrsg. Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1975-. T O 5ascimento da Tragdia. Co.Ext II, HL Consideraes Extemporneas II: Da utilidade e desvantagem da histria para a vida. Co.Ext III, SE Consideraes Extemporneas III: Schopenhauer Educador. Co.Ext IV, WB Consideraes Extemporneas IV: Richard Wagner em Bayreuth. HH Humano, demasiado Humano. HH II, MS Humano, demasiado Humano (vol. 2): Miscelnea de Opinies e Sentenas (Traduo Rubens Rodrigues Torres Filho). HH II, AS Humano, demasiado Humano (vol. 2): O Andarilho e sua Sombra (Traduo Rubens Rodrigues Torres Filho). A Aurora GC A Gaia Cincia Za Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ningum.

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    ABM Alm do bem e do mal. GM Genealogia da moral. CW O caso Wagner e 5ietzsche contra Wagner. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo. Companhia das Letras. 1999. CI Crepsculo dos dolos. EH Ecce Homo. AC O Anticristo. DD Ditirambos de Dionsio.

    A nomenclatura que utilizamos nas referncias dos textos de Nietzsche a seguinte: Nas obras publicadas: Abreviatura do livro seguido do nmero do aforismo. O

    aforismo 119 de Aurora, por exemplo, referenciado: A 119. Nos fragmentos pstumos: Abreviatura KSA, seguida do nmero do volume, do

    nmero do fragmento e sua pgina. O fragmento pstumo que consta no volume 12 da KSA, registrado sob o nmero 6[4] do vero de 1886/primavera de 1887, por exemplo, referenciado: KSA 12, 6[4] p. 232.

    Nas cartas, utilizamos a abreviatura KGB, seguida do volume e o nmero da carta. Uma carta de setembro de 1882, por exemplo, referenciada: KGB III/1, n. 296.

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    SUMRIO

    AGRADECIMETOS ......................................................................................................... 5

    RESUMO............................................................................................................................... 7

    ABSTRACT .......................................................................................................................... 8

    LISTA DE ABREVIATURAS............................................................................................. 9

    SUMRIO........................................................................................................................... 11

    ITRODUO .................................................................................................................. 13

    PRIMEIRO CAPTULO: CICIA, PAIXO DO COHECIMETO E TORAR-SE O QUE SE ............................................................................................. 21

    1.0. COSIDERAES IICIAIS ................................................................................. 21

    1.1. A CICIA COMO MBIL PARA O EXPERIMETO O MBITO DE HUMAO, DEMASIADO HUMAO ............................................................................... 29 1.1.1. A unidade entre cincia e arte e a eliminao dos erros da razo nos textos dos anos 1870.......................................................................................................................... 29 1.1.2. Cincia e experimento em Humano, demasiado Humano ................................... 36 1.1.3. LOmbra di Venezia e a virada semntica no conceito de cincia ....................... 42 1.1.4. A cincia propedutica: experimento como experimento cientfico .................... 47 1.1.5. A cincia e seus instrumentos crticos: psicologia e histria................................ 49

    1.2. PAIXO DO COHECIMETO E EXPERIMETO O MBITO DE AURORA E A GAIA CICIA.......................................................................................... 66 1.2.1. Da cincia como propedutica cincia como paixo do conhecimento............. 66 1.2.2. A paixo do conhecimento na crise de in media vita ........................................... 68 1.2.3. Paixo do conhecimento, experimento e a supresso da iluso moral do mundo 70

    1.3. PAIXO DO COHECIMETO, AUTO-COHECIMETO E VITA COTEMPLATIVA ............................................................................................................ 85

    1.4. PAIXO DO COHECIMETO E AUTO-FORMAO TICO-ESTTICA .................................................................................................................................. 91

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    SEGUDO CAPTULO: VIVCIA E TORAR-SE O QUE SE ................... 111

    2.0. ERLEBIS: GESE, SIGIFICADO E RECEPO EM IETZSCHE..111

    2.1. ERLEBIS COMO CRTICA DA RAZO DA MIHA VIDA ............. 123

    2.2. ERLEBIS COMO PATHOS E TORAR-SE O QUE SE ....................... 148 2.2.1. Consideraes iniciais ........................................................................................ 148 2.2.2. Erlebnis e o grande desprendimento............................................................... 154 2.2.3. A travessia pathetica da Erlebnis e o par sade/doena..................................... 168 2.2.3.1. O ressentimento .............................................................................................. 182 2.2.3.2. Os Prefcios de 1886................................................................................... 183 2.2.3.3. A Erlebnis do wagnerismo ............................................................................. 186 2.2.4. Nossa virtude, a ltima virtude se chama: probidade ..................................... 189

    2.3. O CULTIVO DO HOMEM A ERLEBIS ................................................. 202

    2.4. O HOMEM COMO UMA SOMATRIA UITRIA DE ERLEBISSE.... 221

    CAPTULO 3: TORAR-SE O QUE SE : PARA ALM DA LIGUAGEM EM COMUM E DA ITECIOALIDADE ..................................................................... 233

    3.0. COSIDERAES IICIAIS ........................................................................... 233

    3.1. O PROBLEMA DA LIGUAGEM A COMUICAO DAS VIVCIAS ITERAS: ALISE DE ABM 268, GC 354 e 381................................................... 235 3.1.1. O projeto crtico de inverso da compreensibilidade ......................................... 235 3.1.2. Alm do bem e do mal 268 ................................................................................. 246 3.1.3. A Gaia Cincia 354 ............................................................................................ 252 3.1.4. A Gaia Cincia 381 ............................................................................................ 258 3.1.5. A arte do estilo: a comunicao de um pathos................................................ 267

    3.2. ZARATUSTRA COMO PERSOIFICAO DE UMA VIVCIA........... 277 3.2.1. O pathos da abundncia como sentimento de distncia em Assim falou Zaratustra ....................................................................................................................... 277 3.2.2. O riso como signo de distanciamento................................................................. 283 3.2.3. A comunicao de Zaratustra atravs de ditirambos .......................................... 291

    3.3. PARA ALM DA ITECIOALIDADE: O DESTIO DE TORAR-SE O QUE SE .................................................................................................................... 306

    PARA UMA COCLUSO: JUSTIA TRGICA E FILOSOFIA DO SILCIO............................................................................................................................................ 321

    REFERCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................... 329

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    ITRODUO

    5ada de humano me estranho (Terncio)

    Tornar-se o que se uma vivncia e uma tarefa essencialmente prtica e,

    sobretudo, uma dimenso da vida compreendida como pathos. Registrada como subttulo a

    Ecce homo, a frase de Pndaro recepcionada por Nietzsche desde seus anos como

    estudante em 1867.1 Curiosamente, porm, a frase emprestada por Nietzsche no

    corresponde ao original grego da segunda das Odes Pticas, sobretudo por conta da

    supresso por Nietzsche da palavra (mathon) que, no contexto da frase de

    Pndaro, faz aluso medida, ao conhecimento ou ao aprendizado. Em todo caso, a maneira

    como Nietzsche registra a expresso altera substancialmente seu sentido original do grego

    que, de um modo geral, pode ser traduzida como, por exemplo, Tendo aprendido o que

    voc , torna-te tal como voc ; ou S fiel a ti mesmo agora que aprendestes que espcie

    de homem te apetece, ou ainda simplesmente Seja o que voc conhece que voc .2 A

    sutileza na alterao da expresso retira precisamente o carter estritamente terico da

    frase, em especial no que se refere ao prvio conhecimento que algum precisa ter de si

    mesmo, para s ento, tornar-se aquilo que conheceu de si mesmo. No por acaso, alguns

    anos depois Nietzsche escreveria precisamente no Ecce homo: Que algum se torne o que

    pressupe que no suspeite sequer remotamente o que .3

    A alterao feita por Nietzsche da expresso original parece retirar seu carter

    terico, para ento situ-la em uma esfera radicalmente prtica, ou ainda, convert-la em

    uma prxis sem teoria. Por isso optamos por interpretar a expresso tornar-se o que se

    em uma tal dimenso prtica, desvinculando-a da usual interpretao autobiogrfica,

    epistemolgica, etc. Neste caso, tornar-se o que se ocorre simplesmente na vida, em

    uma vida. No h modelos, codificaes, elementos religiosos, conceituais ou morais que

    enquadre este tornar-se..., sobretudo porque tarefa de tornar-se o que se , exige-se

    1 Cf. Carta a Erwin Rohde de 3 de novembro de 1867, In: KGB I/2, n. 235. 2 A frase original : . Sobre essa discusso, cf. Babich, Babette E. 5ietzsches Imperative as a Friends Encomium: on becoming the one you are, ethics, and blessing. In: Nietzsche-Studien 32(2003), p. 29-58. 3 EH Porque sou to inteligente, 9.

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    precisamente a suspenso de quaisquer anteparos entre o homem e a vida e, principalmente

    a supresso da compreensibilidade estritamente conceitual da existncia. No temos outra

    coisa em mos na tarefa de tornar-se o que se , a no ser a prpria vida, que pode

    corresponder, tal como Nietzsche escreveu, a dois tipos de sofredores: os que sofrem por

    abundncia e por empobrecimento de vida.4 So estes ltimos que precisam planejar e

    interpretar teoricamente a vida e, portanto, constroem pontes morais, conceituais,

    religiosas, etc., entre ele e sua existncia. Os que sofrem por abundncia de vida, porm,

    so os homens de ao, aqueles que, na tarefa de tornar-se o que se , possuem uma

    prtica sem teoria, sem necessitarem incondicionalmente de um acesso conceitual vida.

    Assim que se justifica nossa opo por um conceito central da filosofia de

    Nietzsche, a fim de interpretarmos a expresso tornar-se o que se , vale dizer, o conceito

    de vivncia (Erlebnis). Embora nunca sistematizado por Nietzsche, o conceito de

    vivncia carrega uma dimenso exclusivamente prtica e, simultaneamente, um contra-

    conceito razo. Nossa interpretao do tornar-se o que se no traz obviamente nenhum

    modelo tico para tal. Antes disso, evocamos no texto uma certa arte de nuance, uma certa

    leveza e sutileza diante da vida que simplesmente no se deixa mais enquadrar em

    quaisquer ajuizamentos. Situamos o homem e sua tarefa de tornar-se... diretamente na

    vida, que por sua vez, desvia-se de qualquer possibilidade de sistematizao terica, pois

    como escreveu Nietzsche, o valor da vida no pode ser avaliado.5 Isso significa que no

    podemos medi-la a partir de uma ordenao moral do mundo, um substrato terico-

    conceitual que utilizamos para interpret-la e que sempre a-temporal, ou com quaisquer

    outros aparentados tericos deste gnero. Tornar-se o que se um processo que se

    desdobra sob condies individuais de vida, sem universaliz-lo em um modelo unvoco e

    nem orientado por uma compreensibilidade conceitual da existncia, pois como foi escrito,

    na tarefa de tornar-se... no se pressupe que j saibamos de antemo o que somos.

    Tornar-se evoca algo como atravessar, percorrer algo no tempo sempre sob

    condies mutveis de vida, e assim que emerge para ns o conceito de vivncia. Erlebnis

    a condio de possibilidade para tornar-se..., pois tudo o que ocorre ao homem, ocorre

    exclusivamente atravs de uma travessia, um percurso, uma trajetria aventuresca em

    4 GC 370. 5 CI O Problema de Scrates, 2.

  • 15

    condies sempre diferentes, ou simplesmente uma vivncia, sem que possamos

    determinar, porm, o que o homem deve efetivamente vivenciar, a fim de se tornar o que .

    Erlebnis no um conceito especificamente, mas sim um contra-conceito da razo e, como

    tal, interpretado por ns como pathos. A auto-formao do homem atravs da vivncia,

    ou ainda, converter-se em poetas-autores de nossas vidas6 a fim de tornar-se o que se

    uma travessia no tempo, cuja trajetria uma vivncia pathetica. Por isso que atravs da

    noo de vivncia, podemos compreender a vida em sua dimenso de pathos.

    Para no recairmos em noes h muito gastas da filosofia de Nietzsche que,

    historicamente, tem seu lugar consagrado de interpretao como, por exemplo, vontade

    de poder, auto-superao da moral, niilismo, uma compreenso autobiogrfica da filosofia

    de Nietzsche, uma mera correspondncia do nosso tema com o conceito de alm-do-

    homem, o eterno-retorno, etc. , o conceito mais apropriado que encontramos foi, portanto,

    a noo de vivncia. Obviamente que o conceito de Erlebnis possui estreitas relaes com

    os temas capitais do pensamento nietzscheano, porm, consideramos uma noo tambm

    sumariamente vlida para interpretarmos a tarefa de tornar-se o que se , de modo que

    nosso trabalho tem a mera pretenso de se situar apenas como mais uma hiptese de

    interpretao. Como hiptese, porm, consideramos nosso trabalho como inserido na

    esteira do atual deslocamento de temticas da 5ietzsche-Forschung, em detrimento de

    temas clssicos e consagrados da filosofia de Nietzsche, tais como os citados acima, mas

    em proveito da perspectiva que lana um olhar a conceitos que foram dados por

    secundrios, mas que, contudo, revelam-se como os pensamentos mais originais de

    Nietzsche.7

    Metodologicamente, estruturamos nossa tese em trs captulos. No primeiro

    investigamos um conceito nuclear e preparatrio noo de vivncia, vale dizer, o

    experimento. Tambm essencialmente prtico, o conceito de experimento possui uma

    variao tico-esttica, no sentido de indicar em que medida o indivduo toma a si mesmo

    6 GC 299. 7 Sobre a discusso deste deslocamento temtico da 5ietzsche-Forschung, cf. Stegmaier, W. 5ach Montinari: Zur 5ietzsche-Philologie. In: Nietzsche-Studien 36 (2007) p. 80-94. Um trabalho atualmente em curso que se insere nesta mesma direo o 5ietzsche Wrterbuch, organizado por Paul van Tongeren, Gerd Schank e Herman Siemens e editado pela Walter de Gruyter.

  • 16

    como experimento e transforma a prpria vida em objeto de uma forma de saber e de arte.8

    Dessa forma, o homem se considera como obra de arte a fim de agregar sua existncia o

    carter de vida artstica, cuja prxis propriamente a auto-formao. Para analisar o

    conceito de experimento, optamos por interpretar principalmente os textos de Humano,

    demasiado humano, Aurora e os quatro primeiros livros dA Gaia Cincia, em especial

    porque, filologicamente, o conceito de experimento est freqentemente associado ao papel

    que a cincia ocupa nesta fase de produo literria de Nietzsche. A cincia o mbil que

    impulsiona o conceito de experimento, e a interpretamos atravs de uma dupla variao

    semntica: a) a primeira delas a partir dos textos de Humano..., quando a cincia exerce

    um papel essencialmente propedutico, e recebe influncia decisiva das leituras que

    Nietzsche faz neste perodo sobre fisiologia, medicina, psicologia, histria e cincias

    naturais. A cincia opera no sentido de despotencializar as iluses da razo, esvaziando

    uma suposta ordenao moral do mundo e da vida, bem como no sentido de congelar cada

    ideal que orientou a a-temporalizao do pensamento, sob a forma de sistemas metafsicos.

    Nietzsche emprega nestes textos um vocabulrio cientfico, a fim de retirar a poeira das

    tralhas psicolgicas da metafsica e aparentados; propedeuticamente, a cincia acaba por

    temporalizar o pensamento, ou seja, insere o homem e o mundo novamente no tempo; b) a

    segunda variao semntica da cincia ocorre principalmente a partir de uma srie de

    fragmentos inditos e preparatrios a Aurora e Gaia Cincia, intitulados LOmbra di

    Venezia e datados da primavera de 1880, quando ento a cincia vai gradativamente

    perdendo seu carter propedutico, para se converter em paixo do conhecimento.

    Desprendido da tradio e sem se apoiar mais em uma ilusria ordenao moral do mundo,

    o esprito livre, atravs da paixo do conhecimento, aprende a pr beleza no mundo e em si

    mesmo e, alm disso, a aprende a considerar a si mesmo como objeto de experimentao,

    uma espcie de poeta-autor da prpria vida. A cincia como paixo do conhecimento o

    primeiro movimento que retira quaisquer aparatos conceituais entre o homem e a vida.

    Neste caso, a passio nova9, como Nietzsche registra neste perodo, o impulso ou o

    pathos que ensina o esprito livre a considerao esttica do mundo e da vida ao invs dos

    erros ilusrios da razo e da ordenao moral do mundo , para fins de auto-formao, o

    8 Cf. Schmid, W. Uns selbst Gestalten: Zur Philosophie der Lebenskunst bei 5ietzsche. In: Nietzsche-Studien, 21 (1992), p. 50-62. Aqui na p. 51. 9 KSA 9, 6[461] p. 316.

  • 17

    primeiro percurso na trajetria de tornar-se o que se . Cincia, experimento e auto-

    formao tico-esttica, portanto, so conceitos que se congregam no primeiro captulo.

    No segundo captulo interpretamos diretamente a noo de vivncia, agora

    compreendida como pathos. Etimologicamente, vivncia (Erlebnis) a condio de

    possibilidade da experincia (Erfahrung) (cf. anlise da diferena na nota 17 do 2

    captulo). O experimento a instrumentalizao terica de uma vivncia, que por sua vez,

    nos inteiramente inconsciente no instante mesmo em que vivenciamos algo. Vivncia

    significa estar ainda presente na vida quando algo acontece10, porm, seu contedo nos

    est obstrudo, na medida em que nunca somos conscientes do pathos prprio da vida. Ao

    instrumentalizar de forma racional e posteriormente uma vivncia, ento comunicamos algo

    atravs de signos de linguagem signos estes j sempre abreviados e empobrecidos , de

    modo que, no fundo, narramos uma experincia e no uma vivncia. Neste aspecto,

    Erlebnis um conceito que, como pathos, no pode ser sistematicamente conceitualizado,

    pois to logo a racionalizamos, deixa de ser uma vivncia. Por isso se trata de um contra-

    conceito da razo. Nietzsche recepciona tal conceito, conforme veremos, desde a

    extempornea sobre Wagner, embora tal recepo receber os contornos e significados

    peculiares da sua prpria filosofia.

    Como pathos, vivncia no revela uma filosofia de carter autobiogrfico em

    Nietzsche; ao contrrio, trata-se antes de compreend-la como crtica da razo de uma

    vida, ou seja, como condies radicalmente individuais atravs das quais um pensamento

    emerge e se desenvolve. Assim, vivncia se revela muito mais como as condies

    genealgicas que esclarecem a filosofia de Nietzsche, e no meramente narrativas

    autobiogrficas.

    A discusso que tambm levamos a termo no segundo captulo se refere noo

    mesma de pathos, sobretudo atravs de conceitos em Nietzsche que representem a

    dimenso de travessia, padecimento ou trajetria atravs de algo. Este movimento de

    Erlebnis um percurso pathetico que no guiado por nenhuma intencionalidade, visto

    que, como foi escrito, raramente nos tornamos conscientes do verdadeiro pathos de cada

    10 Cf. o verbete Erleben, Erlebnis escrito por Konrad Cramer, In: Ritter, Joachim (Hrsg.) Historisches Wrterbuch der Philosophie. Band 2: D-F. Basel/Stuttgart: Schwabe & Co. Verlag, 1972. p. 703: noch am Leben sein, wenn etwas geschieht.

  • 18

    perodo da vida enquanto nele estamos.11 O grande desprendimento, bem como cada um

    dos flagelos de doena e sade atravessados pelos espritos livres so as condies

    sumariamente importantes conquista de um excesso perdulrio de vida. Trata-se da

    abundncia que capacita o homem a amar a superfcie, porque j esteve por muito tempo

    nas profundezas, ou o sofrimento da abundncia de vida que d ao esprito livre a

    prerrogativa da pobreza dos que so os mais ricos, pois s se pobre, ao preo de ser

    suficientemente rico. Esta travessia pathetica por uma vivncia fornece ao homem

    liberdade suficiente para no ter que dar satisfaes nem sequer a si prprio, bem como

    imprimir em si mesmo as mais variadas formas, isto , liberdade suficiente para dar estilo

    ao carter, podendo tambm, inclusive, extingui-lo quando bem quiser. Como pathos,

    porm, nos impossvel vivenciar algo como um querer vivenciar. No vivenciamos uma

    crise, por exemplo, de modo intencional ou racionalmente sistematizada. Toda travessia

    simplesmente se impe patheticamente e sem que tenhamos escolha, de modo que no

    possvel tambm especificar que tipo de vivncia precisamos atravessar, para nos tornarmos

    o que somos. Dessa forma, a tarefa do homem de tornar-se o que se algo inteiramente

    aberta e fluida, embora toda Erlebnis atue sob a forma de cultivo no homem.

    O terceiro captulo finaliza e, ao mesmo tempo, resolve dois problemas que se

    originaram ao longo da nossa hiptese de tornar-se o que se patheticamente: a) um

    problema que envolve linguagem e b) outro a questo da intencionalidade. Se como pathos

    a vivncia no pode ser conceitualizada, pois to logo seja sistematizada deixa de ser uma

    vivncia, ento preciso interpretar qual a linguagem empregada por Nietzsche para

    comunicar uma tenso interna de pathos. Para isso, partimos da anlise daquilo que

    denominamos como projeto crtico de inverso da compreensibilidade. Trata-se de um

    questionamento que Nietzsche faz, segundo o qual qualquer um poderia compreender bem

    a um outro se assim o quisesse e se este outro se fizesse suficientemente claro. O discurso

    filosfico se caracteriza precisamente por essa pretenso de meta-compreensibilidade ou

    ainda de uma compreenso supra-individual, na medida em que uma doutrina ou sistema

    pressupe que algum pode perfeitamente ser compreendido universal e univocamente,

    revelando-se no fundo como um gigantesco preconceito, bem como uma a-temporalizao

    do pensamento. base dessa exigncia por compreenso universal e unvoca est a des-

    11 GC 317.

  • 19

    individualizao do prprio homem e das suas condies peculiares de vida, quer dizer, a

    exigncia por ter algo em comum (gemein) (ABM 268) com as coisas e com os outros,

    bem como o desenvolvimento da conscincia, como rede de ligao entre as pessoas (GC

    354). Porm, ter algo em comum e ser compreendido , segundo Nietzsche,

    absolutamente ofensivo. Com base nisto, o projeto crtico de inverso da

    compreensibilidade se estrutura atravs de trs elementos centrais: a) a temporalizao do

    pensamento e, dessa forma, remontar s condies individuais do emprego de um conceito,

    um signo, uma ao, etc.; b) tal reconquista da individualidade do pensamento implica em

    compreend-lo de maneira fluida, na medida em que to logo se alterem as condies

    individuais do emprego de um conceito, altera-se tambm seu sentido. A fluidez de um

    pensamento significa que o sentido de algo pode continuamente ser deslocado, aumentando

    ou diminuindo as margens de atuao de tal conceito; c) Nietzsche no parte mais da

    vontade incondicional de ser compreendido e, sobretudo, universal e univocamente

    compreendido, mas ao contrrio, quer resgatar a individualidade do seu pensamento e, para

    isso, parte da hiptese de que no queremos apenas ser compreendidos ao escrever, mas

    igualmente no ser compreendidos.12

    Ao inverter esta suposta possibilidade de meta-compreensibilidade, Nietzsche se

    distancia da situao na prpria situao, colocando-se em uma posio tal de

    comunicao, cuja distncia revela precisamente aquele pathos do excesso perdulrio de

    vida. Ao comunicar um tal pathos, Nietzsche se distancia da linguagem da Gemeinheit,

    bem como dos signos des-individualizados de comunicao, em proveito de uma forma de

    comunicao que est aqum do conceito ou pr-conceitual, vale dizer, a linguagem

    ditirmbica ou musical. Trata-se ento de ler um texto como se ouve uma msica e,

    portanto, sem fix-lo conceitualmente. Neste captulo, indicamos tambm como em Assim

    falou Zaratustra est expresso precisamente tal distanciamento dos signos em comum de

    comunicao e, sobretudo, em que medida Zaratustra personifica uma Erlebnis vitoriosa.

    No que se refere intencionalidade, analisamos a frmula tornar-se o que se sob

    os registros de dois outros conceitos: destino e fluidez. Destino significa tambm pathos13

    e, portanto, propriamente a suspenso da intencionalidade.14 A frmula tornar-se o que se

    12 GC 381. 13 Cf. Gerhardt, Volker, Pathos und Distanz. Stuttgart: Reclam, 1988. p. 8. 14 Cf. A 481.

  • 20

    assumida por Nietzsche como destino e corporificada tambm em Zaratustra

    igualmente como destino: Mas assim quer a minha vontade criadora, o meu destino. Ou,

    para falar-vos mais honestamente: tal destino, justamente o que quer a minha

    vontade.15 Alm disso, para alm da intencionalidade, o homem pode tornar-se qualquer

    coisa, sem que haja possibilidade de, intencionalmente, planejar algo ou mold-lo de

    determinada maneira. Isso significa que a frmula tornar-se o que se ,

    simultaneamente, uma frmula includa no signo da fluidez (Fluktuanz).

    * * *

    preciso ainda, porm, fazer uma ltima considerao sobre nossa pesquisa. Ora,

    tornar-se o que se uma vivncia! Acrescente-se, porm, que tornar-se... algo que

    certamente no se aprende escrevendo teses de doutorado. Uma tese excessivamente

    anmica para essa tarefa, excessivamente destilada e parida da Idia. Ao contrrio do

    discurso de Zaratustra que apreciava somente quem escrevia com sangue teses no so

    escritas dessa forma. Teses so alambiques! Nossa tese mesma, tambm destilada de

    alambique, tem a pretenso de sustentar que, tarefa de tornar-se o que se , no serve a

    racionalidade ou intencionalidade, ou ainda um elemento moral ou religioso, e, no entanto,

    destilamos racionalmente nossa pesquisa para analisar a vivncia de tornar-se o que se .

    Isto uma farsa e, neste caso, nossa pesquisa o produto de algo que, de antemo, no

    corresponde ao que est escrito dentro dela. Portanto, escrevemos uma tese que uma

    farsa. Mas farsas so coisas humanas! E se este autor conseguiu aprender algo, foi apenas

    reconhecer, mesmo que envergonhado, que nada de humano me estranho.

    15 Za Das ilhas bem-aventuradas, p. 101.

  • 21

    PRIMEIRO CAPTULO: CICIA, PAIXO DO COHECIMETO E

    TORAR-SE O QUE SE

    1.0. COSIDERAES IICIAIS

    A variao semntica que o conceito de cincia recebe ao longo dos textos de

    Nietzsche imensa, ao mesmo tempo em que tambm palco para grandes equvocos. Em

    todo caso, bem explcita a gradual valorizao do conhecimento e da cincia a partir dos

    escritos de 1875, especialmente os preparatrios a Humano, Demasiado Humano, numa

    espcie de transio que vai da arte e o mito para o conhecimento e a cincia1, ou da

    mscara e o jogo para a tentativa e a experimentao, ou ainda da metafsica do artista

    registrada com a marca do jogo, da brincadeira e da representao teatral para os espritos

    livres (Freigeisterei) que agora esto sob o signo da cincia e do experimento.

    Delimitar o campo semntico da cincia no perodo intermedirio de produo

    terica de Nietzsche, o primeiro passo a fim de justificar tanto a relao entre cincia e

    experimento, quanto tambm em que medida ela parte fundamental do projeto de

    despotencializao e congelamento dos erros e das iluses da razo: Um erro aps o outro

    calmamente colocado no gelo, o ideal no refutado ele congela.... Assim, seja

    santo, heri, gnio, convico ou coisa em si2, em toda parte o impulso para a

    cincia o principal instrumento utilizado por Nietzsche na empreitada que toma o homem

    como experimento e faz dele obra de arte.

    No uma unanimidade, porm, qual a efetiva recepo de Nietzsche do campo

    semntico das cincias naturais em sua totalidade3: no est claro, por um lado, sobretudo

    a relao da confisso sincera ou retrica de Nietzsche sobre a cincia, em sua assim

    denominada fase positivista e, por outro lado, seu fundamental ceticismo do

    conhecimento, bem como o lugar da tentativa de Nietzsche em fundamentar o pensamento

    1 Ottmann, H. Philosophie und Politik bei 5ietzsche. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1999. p. 121 e 123. 2 EH Humano, demasiado Humano, 1. 3 Uma das principais fontes para o tema da relao de Nietzsche com as cincias naturais Mittasch, Alwin. 5ietzsche als 5aturphilosoph. Stuttgart: Alfred Krner Verlag, 1952.

  • 22

    do eterno retorno cientificamente.4 Certo, contudo, que Nietzsche consultou e at mesmo

    possua uma srie de textos sobre cincias naturais5, todos eles inseridos na efervescncia

    cientfica no sculo XIX. O entusiasmo de Nietzsche em relao cincia natural, o mais

    novo dos mtodos filosficos6, sobretudo na fase intermediria, deve-se ao fato de ser um

    importante instrumento de oposio metafsica. Dentre os principais cientistas que

    diretamente influenciaram Nietzsche, podemos listar7: Boscovich com a crtica ao

    atomismo materialista e a posio de que no existe nenhum tomo, mas apenas efeitos de

    foras em relao em todo acontecer8, que Nietzsche recepcionar a partir de uma nova

    perspectiva da hiptese da alma como pluralidade do sujeito e alma como estrutura

    social dos impulsos e afetos9; Darwin em especial no que se refere ao ponto de maior

    conflito, vale dizer, o tema da luta pela existncia e a oposio entre adaptao, por um

    lado, e a idia de que o essencial no processo vital seria, por outro lado, crescimento,

    intensificao, querer ultrapassar ou ser mais10; Julius R. Mayer com a teoria das foras

    mecnicas e seu princpio da eterna conservao de quantas de fora.11 A influncia

    central em Nietzsche ser precisamente na teoria do eterno retorno, por exemplo, na idia

    de um universo fechado: todo devir se movimenta na repetio de um determinado

    4 Zittel, Claus. 5aturwissenschaft. In: Ottmann, H. (Hrsg.) 5ietzsche: Leben-Werk-Wirkung. Stuttgart-Weimar: J.B. Metzler Verlag, 2000. p. 404: Unklar ist vor allem das Verhltnis von N.s aufrichtigem oder rhetorischem Bekenntnis zur Wissenschaft in seiner sogenannten positivistischen Phase einerseits und seiner grundstzlichen Erkenntnisskepsis andererseits sowie der Stellenwert von N.s naturwissenschaftlichem Begrndungsversuch des Gedankens der ewigen Wiederkehr. 5 Cf. a lista em Mittasch, A. op.cit., p. 365ss. Um fragmento do vero de 1875, KSA 8, 10[6] p. 186, tambm indica, em geral, os interesses pessoais de leituras, a propsito de quais cincias Nietzsche tem contato: matemtica, mecnica (com histria), fsica, qumica, cincias naturais, fisiologia, cosmos, geografia, histria, economia nacional, filosofia. [Mathematik. Mechanik (mit Geschichte). Physik. Chemie. Naturwissenschaften. Physiologie. Kosmos. Geographie. Geschichte. Nationalkonomie. Philosophie]. 6 HH 1. Cf. tambm Haberkamp, Gnter. Triebgeschehen und Wille zur Macht. Nietzsche zwischen Philosophie und Psychologie. Wrzburg: Knigshausen und Neumann, 2000 e Barros, Roberto. Crtica cientfica e modelos interpretativos em 5ietzsche. In: Trans/Form/Ao vol. 31 (2008) (Portal Scielo). 7 Sobre a anlise de cada cientista e a influncia em Nietzsche, cf. Zittel, Claus. op.cit., p. 404-409. 8 Abel, Gnter. 5ietzsche. Die Dynamik der Willen zur Macht und die ewigen Wiederkehr. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1998, p. 88: relationale Kraftwirkungen auszulegendes Geschehen. 9 ABM 12. Cf. tambm Giacoia, Oswaldo. 5ietzsche como psiclogo. So Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002. p. 52ss. 10 Cf. CI Consideraes de um extemporneo, 14 e KSA 13, 14[121] p. 301. Cf. tambm Zittel, Claus. op.cit., p. 406. Um elemento importante da recepo por Nietzsche da teoria da evoluo de Darwin, porm, a re-temporalizao das condies de vida e, sobretudo, o pensamento da essncia a partir do tempo e no tempo. Neste aspecto, as relaes do mundo orgnico no pressupem mais um ordenamento lgico-sistemtico, mas sim genealgico-temporal, na medida em que no se trata mais de pensar tais relaes conceitualmente, mas apenas inseridas no tempo. Sobre essa recepo, cf. Stegmaier, W. 5ietzsches Verzeitlichung des Denkens in: KODIKAS/CODE. Ars Semeiotica 19.1-2 (1996), 17-27. 11 Zittel, C. op.cit., p. 407: Mayers Prinzip von der ewigen konstanten Erhaltung des Kraftquantums.

  • 23

    nmero de estados perfeitamente iguais.12 A influncia decisiva da leitura nietzscheana de

    Mayer, porm, ocorre com o conceito de exploso de fora.13 Embora a palavra

    Auslsung ocorra pela primeira vez a partir do incio de 188014, foi em uma carta datada de

    16 de abril de 1881 a Heinrich Kselitz, que Nietzsche registra sua leitura do texto de

    Mayer: ber Auslsung , para mim, o que h de mais essencial e til no livro.15 O

    conceito Auslsung de Mayer aparece em Nietzsche em uma oposio ao impulso de

    conservao, de modo que seria um estado no qual todo vivente quer muito mais

    desafogar sua fora: ele quer e deve [...]; a conservao [da fora JLV] apenas uma

    conseqncia.16 Neste aspecto, o conceito Auslsung, alm disso, passa a vigorar como

    uma possibilidade de oposio ou, at mesmo, de substituio da noo de causalidade17;

    Wilhelm Roux publica seu livro em 1881, sob o ttulo Der Kampf der Theile im

    Organismus, e que ter forte influncia sobre Nietzsche, especialmente no tocante ao

    conceito de organismo. A noo de luta interna de foras imanentes e originalmente

    produtivas usada por Nietzsche para legitimar o funcionamento da unidade do corpo,

    assentada precisamente sobre a luta entre as pequenas partes de clulas.18 essa

    concepo que permite a Nietzsche pensar as foras particulares no organismo a partir de

    uma constelao agonal, na qual a unidade de uma forma orgnica remonta a um

    provisrio domnio de uma determinada fora sobre a respectiva multiplicidade das

    partes.19; por fim, Nietzsche tomou contato com os textos do o astrofsico Johann

    Friedrich Zllner desde 1872. Ele se sente solidarizado com Zllner, principalmente no que

    se refere rejeio que a comunidade cientfica fez sobre a crtica do astrofsico ao 12 KSA 9, 11[245] p. 534. es bewegt sich alles Werden in der Wiederholung einer bestimmten Zahl vollkommener gleicher Zustnde. 13 Mittasch, A. op.cit., p. 110ss: Kraft-Auslsung. Cf. tambm as pginas 119 e 138ss. 14 KSA 9, 1[115]. 15 KGB III/1, n. 103: ber Auslsung ist fr mich das Wesentlichste und Ntzlichste im Buche. 16 KSA 11, 26[277] p. 222s. Gegen den Erhaltungs-Trieb als radikalen Trieb: vielmehr will das Lebendige seine Kraft auslassen es will und mu (beide Worte wiegen mir gleich!): die Erhaltung ist nur eine Consequenz. Cf. Mittasch, A. op.cit., p. 119. 17 Cf. GC 360 e Brusotti, M. Die Leidenschaft der Erkenntnis: Philosophie und sthetische Lebensgestaltung bei 5ietzsche von Morgenrthe bis Also Sprach Zarathustra. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1997. p. 57: S agora, porm, Auslsung se converte para Nietzsche, sobretudo em um conceito que pode substituir a causalidade [Vor allem aber wird ihm Auslsung erst jetzt zu einem Begriff, der Kausalitt ersetzen kann]. 18 Cf. Mller-Lauter, W. Der Organismus als innerer Kampf. Der Einflu von Wilhelm Roux auf F. 5ietzsche. In: Nietzsche-Studien 7 (1978), p. 189-223. 19 Zittel, Claus. op.cit., p. 407s.: N. zufolge baut sich ein Organismus ber die agonale Konstellation der Einzelkrfte auf, wobei die relative Einheitlichkeit einer gewonnenen organischen Gestalt auf die zeitweilige Herrschaft einer bestimmten Kraft ber die jeweilige Vielheit der Teile zurckgeht.

  • 24

    procedimento da cincia natural da poca, uma espcie de prxis assentada sob um

    excesso sem sentido de experimentaes.20 A influncia no conceito de espao21,

    porm, o aspecto determinante da leitura de Nietzsche, embora ocorrer tambm,

    posteriormente, um gradual distanciamento de Nietzsche da teoria de Zllner. Enfim,

    importante lembrar tambm que a cincia natural , como veremos, apenas uma fonte ou

    semitica que serve como as condies genealgicas, a fim de compreender o

    desenvolvimento de certos pensamentos de Nietzsche.

    A razo principal, contudo, de partir da cincia a fim de analisar o conceito de

    experimento, se deve impossibilidade de deline-lo sob a rubrica de uma noo lato,

    embora seja possvel dizer que se trata de um conceito fundamentalmente prtico. Por isso

    optamos por empregar uma metodologia que investiga as variaes do conceito ao longo

    dos escritos de Nietzsche, com especial ateno aos textos a partir de Humano, demasiado

    Humano, e o ponto de partida a presena cannica que a cincia ocupa na fase

    intermediria de produo literria do filsofo.

    A primeira variao stricto do conceito de experimento remonta, pois, precisamente

    importncia que Nietzsche transfere nesta segunda fase cincia. No se trata de reduzir

    o experimento ao exclusivo sentido que cincia recebe neste perodo, quer dizer, numa

    frmula que toma por sinnimo cincia e experimento. Mais que isso, preciso localiz-lo

    no rigoroso sentido de um conceito que congrega em torno de si uma dimenso tico-

    esttica de auto-formao por isso essencialmente prtico , e que confere cincia o

    estatuto de mbil que impulsiona esse primeiro movimento conceitual de experimento.

    A nosso ver, h dois motivos principais a propsito do porqu cincia se relaciona

    com experimento para que a cincia ganhe uma importncia relevante, e aqui se assenta o

    uso prprio que Nietzsche faz das suas leituras da poca: a) desde os textos poca dO

    5ascimento da Tragdia h imenso esforo de Nietzsche em vislumbrar uma unidade entre

    cincia e arte. Essa idia toma corpo em Aurora e A Gaia cincia de tal modo que a cincia,

    atravs do impulso ao conhecimento, pe sua beleza no s em torno das coisas, mas, com

    o tempo, nas coisas22. A cincia e o conhecimento ensinam a considerar como belo tudo

    20 Co.Ext. II/HL, KSA 1, p. 292: an welchem sinnlosen Uebermaass des Experimentirens brigens nach Zllner die gegenwrtige Naturwissenschaft leiden soll. 21 Cf. Abel, G. op.cit., p. 397. 22 A 550.

  • 25

    aquilo que h de necessrio no mundo e na vida. A unidade entre cincia e arte de tal

    modo estreita que a conscincia cientfica do esprito livre se desdobra no mundo como

    apropriao de si mesmo para fins de auto-formao. Por isso que o auto-conhecimento ou

    a impacincia que diz: vi que era hora de refletir, retornar a mim23 alcanados pelo

    esprito livre tem um desdobramento prtico: a cincia ao mesmo tempo em que exerce a

    funo crtica de desprendimento da tradio, capacita tambm o reencontro e a auto-

    formao. O que nos interessa que a unidade entre cincia e arte ser determinante para

    compreender a dimenso esttica do experimento.

    Alm disso, b) a cincia no ensina apenas a considerar o mundo e a vida como

    belos, mas tambm o prprio homem. Na medida em que, como veremos, a cincia se

    converte em paixo do conhecimento, ela precisa ensinar o homem a considerar a si

    mesmo como ator-experimentador e comediante da prpria vida, como obra de arte ou,

    como reza um fragmento desse segundo perodo, a considerar o prprio indivduo como

    experimento.24 quando o esprito livre aprende a arte da jardinagem e a aplica para

    moldar e cultivar a si prprio. A relao entre paixo do conhecimento e o homem como

    experimento ser determinante para compreender a dimenso tica do experimento.

    Os dois aspectos que conferem cincia um importante papel nessa primeira

    acepo do experimento so atravessados por outra hiptese que estar presente em ambos

    os casos, inclusive se configurando como a primeira tarefa do experimento: a idia de que a

    cincia tem a prerrogativa de exercer o papel de congelar os erros da razo ou, de modo

    mais amplo, de esvaziar a iluso da ordenao moral do mundo e da vida. Na medida em

    que os erros e iluses so despotencializados, a segunda grande tarefa reunir as dimenses

    tica e esttica a fim de experimentar novas formas de vida num processo essencialmente

    prtico de auto-formao.25

    23 EH Humano, demasiado Humano, 3. 24 KSA 9, 11[141] p. 494. Der Einzelne als Experiment. 25 A concepo de uma filosofia experimental, segundo Brusotti, M. op.cit.,. p. 260, circunscreve duas tarefas fundamentais: experimentar com novas formas de vida e eliminar o sentimento de culpa [Die Zwei Aufgaben, mit neuen Lebensformen zu experimentieren und das Schuldgefhl zu beseitigen]. A eliminao do sentimento de culpa, segundo Brusotti, remonta nossa hiptese de que cabe cincia esvaziar a iluso da ordenao moral do mundo. Culpa, castigo, pecado, enfim, todas as formas de consolaes so sumariamente congeladas pelo papel que a cincia deve exercer sobre o mundo e a vida. No entanto, queremos apenas pontuar que h todo um entendimento por trs da primeira tarefa da filosofia experimental que, segundo Brusotti, experimentar com novas formas de vida. O que no significa que a hiptese de Brusotti esteja errada. Ao contrrio, ela apenas vem demonstrar que o conceito de experimento essencialmente prtico. Em todo caso, necessrio mostrar que h um percurso que o esprito livre precisa percorrer, a fim de poder se

  • 26

    Seja a unidade entre cincia e arte, seja a cincia que toma o homem como

    experimento, essas possibilidades se desdobram em auto-formao que, neste caso, possui

    duas vertentes: uma esttica e outra tica, ambas compondo o experimento.

    Em uma considerao genrica, compreendemos por esttica a noo que se refere a

    uma vida artstica, uma espcie de prxis que transforma a prpria vida em objeto de uma

    forma de saber e de arte.26 Assim, possvel falar em considerar belo o mundo e a vida e,

    sobretudo, fazer do prprio homem objeto de obra de arte a fim de agregar sua existncia

    o carter de vida artstica. Deste ponto de vista, a noo de esttica possui uma estreita

    relao com tica, pois na medida em que o homem aprende a fazer da vida objeto de arte,

    ele precisa desdobrar esse saber que no nosso caso construdo pela cincia27 , numa

    tica cuja prxis se desdobra em auto-formao.28

    Portanto, nessa rbita de conceitos que se encontra a primeira variao do conceito

    de experimento: numa constelao entre cincia e auto-formao em que o esprito livre

    desprendido da tradio e reapropriado de si atravs da cincia, considera o mundo e a vida

    como obra de arte, desdobrando-se num projeto de auto-formao. Em suma, o

    experimento em Nietzsche nesta segunda fase um conceito especificamente prtico de

    variao tico-esttico.

    Na medida em que o conceito de cincia nortear o primeiro movimento conceitual

    do experimento, importante registrar que nos distanciamos bastante da freqente

    interpretao de vis superficialmente positivista que a noo de cincia recebe no perodo

    intermedirio. Nietzsche no um cientista e, neste caso, ele se serve da cincia apenas

    como uma fonte ou como uma semitica, a fim de comunicar seus prprios pensamentos.

    As leituras que Nietzsche faz sobre cincia neste perodo, mostram como ele se apropriou

    considerar jardineiro de si prprio, ou seja, experimentar novas formas de vida. De fato, o experimento um conceito prtico que testa outras possibilidades de existir, porm, para compreender esse processo de auto-formao preciso desdobr-lo nas duas dimenses que estamos explicando: tica e esttica. Assim, queremos deixar registrado, no entanto, que o texto de Brusotti foi fundamental s nossas reflexes. 26 Cf. Schmid, W. Uns selbst Gestalten: Zur Philosophie der Lebenskunst bei 5ietzsche. In: Nietzsche-Studien, 21 (1992) p. 51. 27 O fragmento do outono de 1880, KSA 9, 6[323] p. 280, explica a importncia em considerar a prxis pessoal, as vivncias e os experimentos com a vida como se fossem experimentos cientficos: ver sua vivncia de tal modo rigorosa e verdadeira como um experimento cientfico [Sein Erlebni so streng und wahrhaftig ansehen, wie ein wissenschaftliches Experiment]. 28 Cf. Brusotti, M. op.cit., p. 17, sobre de que modo o saber e o auto-conhecimento precisam estar subordinados arte: Auto-conhecimento e cincia, neste sentido, portanto na medida em que elas servem auto-formao esto subordinadas arte. [Selbsterkenntnis und Wissenschaft sind in diesem Sinn also sofern sie der Selbstgestaltung dienen der Kunst untergeordnet].

  • 27

    de certas teorias cientficas por vezes at erroneamente no como mera fundamentao

    de seu trabalho, de modo a indicar que tal e tal pensamento de Nietzsche j havia sido

    analisado por um outro cientista. Trata-se antes de considerar tais fontes e leituras como

    semitica, ou ainda, como mapeamento estritamente genealgico para compreender como

    determinados pensamentos de Nietzsche surgiram e se desenvolveram. neste aspecto que

    interpretamos tambm o papel que a cincia ocupa em Nietzsche e, portanto, apenas como

    as condies genealgicas a partir das quais possvel levantar uma hiptese ao conceito de

    experimento.

    Assim, nossa hiptese que h uma variao semntica do conceito mesmo nessa

    poca, e que se dividem em momentos: por um lado, os textos que preparam a Humano,

    demasiado Humano pense-se j a partir de 1875 , em que cincia ocupa um papel

    essencialmente propedutico e recebe influncia decisiva da fisiologia, da medicina, da

    psicologia, da histria e das cincias naturais como fsica e qumica. Ali visvel o

    vocabulrio cientfico para retirar a poeira das tralhas psicolgicas da metafsica e do

    cristianismo; por outro lado, a partir de 1880 e, portanto, dos textos que preparam a Aurora

    e A Gaia Cincia mais especfico, na primavera de 1880, quando Nietzsche dita a seu

    amigo Peter Gast, sob intensa convalescena, o texto indito intitulado LOmbra di Venezia

    , a cincia sofre uma variao semntica e os espritos livres passam a compreend-la

    como paixo do conhecimento, conceito formulado no outono do mesmo ano.

    Compreendida como paixo do conhecimento, a cincia se converte numa espcie de

    impulso com o qual o esprito livre toma posse novamente de si mesmo para iniciar um

    doloroso processo de desprendimento (Loslsung). Separamos nosso texto seguindo

    precisamente a variao conceitual que a cincia recebe nos dois momentos, ou seja, a

    cincia como mbil ao experimento no mbito de Humano, demasiado Humano e depois

    no mbito de Aurora e A Gaia Cincia.

    Esses dois movimentos conceituais em torno da cincia nos permitiro justificar sua

    localizao numa estreita relao com a arte, ou mais ainda, no indicativo de que cincia e

    arte so iguais e formam uma unidade29, bem como seu vnculo com o experimento

    propriamente dito. Por fim, esse primeiro movimento terico nos permite compreender em

    29 Abel, G. Wissenschaft und Kunst. p. 13. In: Djuri, M.; Simon, J. Kunst und Wissenschaft bei 5ietzsche. Wrzburg: Knigshausen und Neumann, 1986 [dass die Gesetze in der Kunst und in der Wissenschaft letztlich die gleichen sind und eine Einheit bilden].

  • 28

    que medida a vida vai, gradativamente, partindo de uma concepo de pathos do

    conhecimento ou paixo do conhecimento at uma considerao estritamente como

    pathos, tal como veremos no segundo captulo, sob a noo de vivncia. Iniciemos por

    explicar, porm, a relao entre cincia e arte desde os escritos dos anos 1870 , atravs,

    principalmente, dos fragmentos pstumos da poca.

  • 29

    1.1. A CICIA COMO MBIL PARA O EXPERIMETO O MBITO DE

    HUMAO, DEMASIADO HUMAO

    1.1.1. A unidade entre cincia e arte e a eliminao dos erros da razo nos textos dos anos

    1870

    Ao se remontar aos textos que preparam ao 5ascimento da Tragdia bem como a

    outros do perodo em que lecionava na Basilia, embora a marca decisiva seja ainda um

    estatuto privilegiado arte, h tambm alguns pares de textos em que Nietzsche esboa um

    grande interesse em vincular j neste perodo cincia e arte. Mesmo assim, a nica

    possibilidade de vida est na arte, uma vez que funo do impulso cincia, e no

    da arte, a completa negao das iluses.30 Aqui fala o jovem Nietzsche ainda embriagado

    pelos mestres que no se cansam em apontar para a superioridade da arte. No mesmo

    fragmento do inverno de 1869/70primavera de 1870 a inteno eliminar a formao

    especificamente cientfica e, portanto, criar as condies para a libertao do

    predomnio do anthropos theoretikos. primeira vista, pelo menos atravs desses textos,

    arte e cincia esto em searas distintas e o artista deve prevalecer sobre o homem de

    cincia: A arte recebe atualmente uma dignidade completamente nova. As cincias, ao

    contrrio, esto rebaixadas em um grau.31 Trata-se ainda aqui da exigncia da iluso da

    tragdia como uma espcie de antdoto verdade objetiva.

    Os textos preparatrios, porm, fornecem ao mesmo tempo algumas chaves

    valiosssimas de leitura a propsito do confronto arte e cincia. Nietzsche parece orbitar,

    por um lado, entre uma oposio peremptria que salta aos olhos em obras publicadas e

    alguns pstumos e, por outro lado, num anseio de vincular ambas as estruturas a fim de

    reservar um espao mais bem localizado cincia. Isso se esclarece na medida em que

    entre as prelees ao 5ascimento da Tragdia o Drama musical grego e Scrates e a

    tragdia bem como os registros poca de Basilia, aparece o projeto A tragdia e os

    30 KSA 7, 3[60] p. 76: Einzige Mglichkeit des Lebens: in der Kunst. Sonst Abwendung vom Leben. Vllige Vernichtung der Illusion ist der Trieb der Wissenschaften: es wrde Quietismus folgen ware nicht die Kunst. 31 KSA 7, 19[104] p. 453: Jetzt bekommt die Kunst eine ganz neue Wrde. Die Wissenschaften dagegen sind einen Grad degradirt.

  • 30

    espritos livres32 cujo contedo propunha uma interpretao tico-poltica do drama

    musical grego.

    Desse conjunto de fragmentos nos interessam duas questes que j ocorrem de

    modo embrionrio nesses anos de 1870, mas que tomaro corpo nos anos 1880, e que so

    peas-chave para o conceito de experimento: a) a hiptese de que a cincia congrega um

    agir positivo capaz de eliminar iluses da razo, pois, como veremos, o conceito de

    experimento possui uma estreita relao com a supresso da denominada iluso da

    ordenao moral do mundo; b) a inteno mais detida em mostrar como a cincia se

    transforma em arte33, especialmente porque a unidade entre cincia e arte construir a base

    para a dimenso esttica do experimento, cuja atmosfera precisa se desdobrar em auto-

    formao do homem, conferindo ao experimento uma atmosfera essencialmente prtica.

    Nietzsche entrev nessa fase o perigo de que o saber absoluto fatalmente

    conduziria a um pessimismo com aspiraes intransigente aniquilao do mundo e dos

    deuses. A leitura de Eduard von Hartmann Philosophie des Unbewussten (edio de

    1869) crucial no diagnstico da ameaa do pessimismo do conhecimento.34 Neste caso,

    a cincia se revela como um agir positivo ao lado da arte e no ofuscada por ela. Diante

    do pessimismo como anseio absoluto ao nada, a cincia mecanismo a ser utilizado

    como destruidora da iluso juntamente com a arte, enquanto nica forma de existncia

    restante pois no dissolvida pelo Lgico.35

    A cara hiptese que vai aparecer apenas poca de Aurora, vale dizer, o combate

    intransigente aos erros intelectuais e s iluses da razo, j ocorre embrionariamente nesses

    anos de 1869/72. Neste perodo, Nietzsche elabora um fragmento que menciona uma

    32 KSA 7, 5[22] p. 97. Cf. tambm 5[1. 42] e 5[43] as disposies em captulos do plano. 33 Uma leitura imprescindvel a propsito da unidade entre arte e cincia, j neste primeiro perodo Aldo Venturelli. Cf., p.ex., Venturelli, A. Kunst, Wissenschaft, und Geschichte bei 5ietzsche. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2003. p. 27. A correlao dessas trs diferentes dimenses de interpretao decorre em diferentes sentidos, paralelos transformao da cincia em arte e a formulao de uma concepo de arte como necessrio correlato e suplemento da cincia [Die Verknpfung dieser drei unterschiedlichen Interpretationsdimensionen verluft in verschiedener Hinsicht parallel zu der Umkehrung der Wissenschaft in Kunst und der Formulierung einer Auffassung der Kunst als ein nothwendiges Correlativum und Supplement der Wissenschaft] 34 KSA 14, p. 532. 35 KSA 7, 3[55] p. 75s. Bezwingung der Welt durch positives Thun: erstens durch Wissenschaft, als Zerstrerin der Illusion, zweitens durch Kunst, als brigbleibende einzige Existenzform: weil durch das Logische unauflsbar.

  • 31

    espcie de mandamento da cincia, cuja formulao reza para no se deixar dominar pelas

    iluses. O argumento explicado nos seguintes termos:

    Eventualmente, a maioria dos homens sente que est vivendo em uma rede de iluses. Porm, poucos reconhecem quo distantes essas iluses se estendem. No se deixar dominar pelas iluses uma crena infinitamente ingnua, mas um imperativo intelectual, o mandamento da cincia. O anthropos theoretikos festeja o descobrimento dessa teia de aranha e, com ele, a vontade de existncia celebra suas orgias: ele sabe que a curiosidade no chega ao fim e considera o impulso cientfico como a mais poderosa mechanai para a existncia.36

    Cabe cincia o papel de dissipar certos erros e iluses que a razo produz, a fim de

    restituir s coisas o que seu. Nietzsche oscila entre o privilgio da iluso concedido arte

    e o imperativo intelectual que a cincia impe diante dele, a fim de evitar ser dominado

    pelo ilusrio. H uma espcie de misto entre a prerrogativa da iluso na arte como

    subterfgio que transfigura o absurdo da existncia, e suas primeiras prelees sobre a

    moral, cujo substrato ser relegar a ela a produo de forte cortejo de iluses, construdo

    pela dialtica fria da razo. Talvez por isso que a arte seja a nica forma de existncia

    restante, pois ela no cai nas malhas dos erros intelectuais ou do lgico. Em todo caso,

    parece haver uma insistncia na funo do impulso cientfico de evitar a iluso, ao

    mesmo tempo em que ela pode sobreviver juntamente com a arte.37

    A propsito do estatuto hierrquico entre arte e cincia, no se trata de negar o

    privilgio que a arte recebe nesta primeira fase, ao contrrio, de fato a cincia ainda est a

    um passo atrs da arte e, tal como revela algumas passagens, ainda muito relacionada

    barbrie.38 Mas tambm no significa que h uma oposio abismal entre as duas

    instncias culturais e, principalmente, preciso reconhecer que h um esforo gradativo de

    vincular arte e cincia numa unidade que se intensifica e toma forma na segunda fase do

    autor.

    36 KSA 7, 5[33] p. 101s. Die meisten Menschen spren gelegentlich, da sie in einem Netz von Illusionen hinleben. Wenige aber erkennen, wie weit diese Illusionen reichen. Von Illusionen sich nicht beherrschen lassen, ist ein unendlich naiver Glaube, aber es ist der intellektuelle Imperativ, das Gebot der Wissenschaft. Im Aufdecken dieser Spinngewebe feiert der anthropos theoretikos und mit ihm der Wille zum Dasein ebenfalls seine Orgien: er wei, da die eugier nicht zu Ende kommt und betrachtet den wissenschaftlichen Trieb als eine der chtigsten mechanai zum Dasein. 37 Cf. a relao entre a questo da arte e cincia, especialmente no tocante ao dilogo com o homem terico, expresso pela interlocuo de Nietzsche com Scrates, em Burnett, Henry. A recriao do mundo: a dimenso redentora da msica na filosofia de 5ietzsche. Tese de doutorado apresentada Unicamp, 2004, p. 144ss. 38 KSA 7, 19[297] p. 511. Wissenschaft vertrgt sich mit Barbarei.

  • 32

    A propsito desse esforo, precisamente nesses mesmos textos de 1869-72,

    inaugura-se um debate em torno da relao cincia e arte. Trata-se da recorrente hiptese

    em que Nietzsche pretende analisar o mecanismo de como a cincia se transforma em

    arte.39 Os freqentes planos que vinculam arte e cincia apontam para uma espcie de

    suposto modelo pertencente a Empdocles que congregaria em si o que Nietzsche chamou

    de cincia trgica.40 Neste caso, pergunta por qual forma exclusiva de conhecimento a

    arte pode ser legtima respondida atravs da cincia trgica, vale dizer, aquela de

    Empdocles que reuniria em si a capacidade da absoluta dissoluo de todo limite, ou seja,

    a que constri um saber sem medida e limite.41 Ora, nos parece que trgico na cincia

    opera tal como na prpria tragdia, como dissoluo dionisaca no seio de uma unidade

    primordial. Obviamente, no explcita a aluso Ur-Eine em se tratando da cincia,

    todavia, notrio o mesmo mecanismo de dissoluo, quer dizer, uma cincia trgica que,

    atravs de um saber, dissolve medidas e limites. No por acaso o fragmento concludo

    numa clara referncia arte como produtora daquele mesmo impulso que produz um efeito

    teraputico.42

    Cincia trgica est ainda sob a gide da influncia dos mestres, em especial

    Schopenhauer, pois aquela preparadora do gnio que, segundo Nietzsche, alm de ter

    em Schopenhauer seu precursor uma espcie de sntese entre o filsofo, o artista e o

    santo.43 Para alm da justificao esttica do mundo e da vida, trata-se agora de empenhar

    o sacrifcio pela verdade, que dever ser levada a cabo pelos alemes a fim de atingir o

    novo grau da arte que os gregos no conseguiram, vale dizer, o conhecimento trgico que

    prepara o gnio44: a meta da cincia que Scrates inaugurou o conhecimento trgico

    39 KSA 7, 6[11] p. 132. Der Mechanismus, wie die Wissenschaft in Kunst umschlgt. Cf. ainda 6[1. 10. 18], 7[125. 142]. 40 Venturelli, A. op.cit., p. 15-48, desenvolve extensamente essa questo. 41 KSA 7, 7[101] p. 161. Welche Form des Erkennens kann der Kunst allein gerecht werden? Die tragische Wissenschaft, die sich wie Empedokles in den Aetna strzt. Das Wissen ohne Ma und Grenze. Dieser Trieb mu sogar die Kunst erzeugen, als die Heilerin. 42 Cf. tambm o mesmo argumento tambm em torno de um plano sobre a relao entre arte e cincia, no fragmento do inverno de 1870-71/outono de 1872 em KSA 7, 8[13] p. 224. 43 KSA 1, p. 375. III Considerao Extempornea. 44 importante reconhecer a virada que essa considerao sobre o gnio toma em Humano..., na esteira do rompimento de Nietzsche com Schopenhauer. Nesta segunda fase, o gnio incisivamente criticado precisamente pela ausncia de esprito cientfico, quer dizer, se por um lado o gnio incorpora o sacrifcio pela verdade atravs do conhecimento trgico, por outro lado, pela falta do esprito cientfico que ele se converte num inimigo da verdade: [...] nota-se que lhes falta o esprito cientfico. [...] Na medida em que o gnio dessa espcie mantm o fervor das convices e provoca desconfiana frente ao esprito modesto e

  • 33

    enquanto preparao do gnio. O novo estgio da arte [o conhecimento trgico JLV] no

    foi alcanado pelos gregos: este uma misso germnica.45 Em todo caso, preciso

    ressalvar ainda, a propsito da oscilao do gnio filosfico entre arte e cincia, que nele

    deve haver um comportamento tal que o impulso ao saber domesticado atravs da arte,

    tanto porque precisa permanecer com a dimenso artstica46, quanto porque nunca se

    satisfaz com o torvelinho colorido das cincias.47 A referncia, pois, revela um certo

    partidarismo pela superioridade da arte: A domesticao da cincia ainda s acontece hoje

    em dia pela arte. Trata-se de um juzo de valor sobre o saber e a erudio. Imensa tarefa e

    dignidade da arte nesta tarefa!.48

    O estatuto que tem a cincia neste estgio no de predomnio sobre a arte, mas

    tambm no de absoluta submisso. H uma oscilao entre as duas instncias e um forte

    interesse em fundi-las numa unidade. Correto dizer, no entanto, que em nenhum momento

    a cincia arroga para si a prerrogativa de ordenao, prescrio ou fundamentao. Parece

    que esse aspecto resolve alguns equvocos em torno da imputao de um certo positivismo

    superficial a Nietzsche. Em Wissenschaft und Kunst, ao citar um fragmento da segunda fase

    de Nietzsche, precisamente do inverno de 1880/81, Gnter Abel49 se refere ao fato de que a

    cincia trouxe muitos benefcios, porm ela no pode ordenar, indicar caminho: mas sim

    s quando se sabe o para onde? que ela pode ser til.50 Assim, cincia relegado o

    exclusivo papel de esclarecer.

    cauteloso da cincia, ele um inimigo da verdade, por mais que acredite ser seu enamorado pretendente. (HH 635) 45 KSA 7, 7[174] p. 206. Das Ziel der Wissenschaft, welche Socrates inaugurirte, ist die tragische Erkenntni als Vorbereitung des Genius. Die neue Stufe der Kunst wurde nicht von den Griechen erreicht: es ist die germanische Mission. Die von jener tragischen Erkenntni herausgeforderte Kunst ist die Musik. Cf. tambm 7, 7[125]. 46 KSA 7, 19[45] p. 433s. 47 KSA 7, 19]35] p. 427. bunten Wirbelspiele der Wissenschaften nie befriedigen. 48 KSA 7, 19[36] p. 428. Die Bndigung der Wissenschaft geschieht jetzt nur noch durch die Kunst. Es handelt sich um Werthurtheile ber das Wissen und Vielwissen. Ungeheure Aufgabe und Wrde der kunst in dieser Aufgabe! Cf. tambm 7, 19[76] e 23[14] 49 A hiptese que, se por um lado Nietzsche se serve freqentemente das cincias, por outro lado, de modo algum sucumbe seduo cientificista [szientistischen Verfhrung], como seria o caso de um certo positivismo, sobretudo porque teorias cientficas [...] no podem exercer a funo de fundamentao filosfica. Abel, G. op.cit., p. 11. [...] dass Nietzsche sich der Wissenschaften des fteren bedient, sie durchaus positive einstuft, ihnen aber in keinem Falle verfllt, d.h. in keener Weise einer szientistischen Verfhrung erliegt []. Wissenschaftliche Theorien ... knnen nicht die Funktionsstelle philosophischer Gundlegung einnehmen. 50 KSA 9, 8[98] p. 403. Die Wissenschaft hat viel Nutzen gebracht []. Sie kann nicht befehlen, Weg weisen: sondern erst wenn man wei wohin?, kann sie ntzen.

  • 34

    Acontece que esse mesmo argumento dos anos 1880 j ocorre tambm nos textos de

    1873, inclusive com os termos praticamente idnticos. Ento, se correto dizer que h uma

    oscilao freqente entre cincia e arte, tambm correto dizer que cincia nunca vai

    ocupar o papel fundante: as outras cincias (natureza, histria) s conseguem esclarecer, e

    no ordenar. E se elas ordenam, s podem se referir aos benefcios.51 Desde os primeiros

    escritos, em suma, o tema da cincia combate constantemente com um certo anseio de se

    investigar em que medida a cincia se transforma em arte, embora esteja sempre um passo

    atrs dela. Diga-se outra vez que o combate entre as duas esferas da cultura no cria um

    abismo intransponvel, mas preciso reconhecer a freqente inteno em vincul-las.

    Esse quadro, porm, ganha plena forma a partir de 1875 quando Nietzsche tem uma

    freqentao mais intensa com os textos sobre cincias naturais. Neste caso, desaparece

    aquele certo predomnio da arte sobre a cincia da primeira fase embora com a variante

    indicada sobre o anseio por fundi-las a fim de conceder um estatuto mais privilegiado

    cincia. No posfcio de Colli e Montinari ao tomo de Humano, demasiado Humano

    apresentado esse mesmo movimento nos textos de Nietzsche, ou seja, o primado que foi

    concedido arte no perodo do 5ascimento da Tragdia e das Consideraes

    Extemporneas, agora claramente transferido cincia.52 A noo de esprito livre entra

    em cena como uma espcie de prolongamento do artista. Neste aspecto, trata-se do

    definitivo reconhecimento dos espritos livres53 sobre a vantagem de uma certa

    51 KSA 7, 29[197] p. 709. Die anderen Wissenschaften (Natur, Geschichte) vermgen nur zu erklren, nicht zu befehlen. Und wenn sie befehlen, vermgen sie nur auf den 5utzen zu verweisen. 52 KSA 2, p. 707s. Der Primat, der in der Periode der Geburt der Tragdie und der Unzeitgemssen Betrachtungen der Kunst zugestanden wurde, wird jetzt mit klaren Worten auf die Wissenschaft bertragen. 53 O movimento conceitual em torno da cincia carrega atrs de si tambm o instante em que Nietzsche se desvincula dos mestres. o caso de Schopenhauer, quando num fragmento da primavera/vero de 1874, KSA 7, 34[43], ainda era tido como o destruidor que liberta. O esprito livre. [...] o gnio que se pe contra a fraqueza da poca. Antagnicas so as palavras de exatos 4 anos depois quando Nietzsche reconhece numa auto-confisso o desvio que fizera em relao ao gnio destruidor, i.., o homem schopenhaueriano (KSA 8, 27[34]). O tom de 1878 incisivo: O homem schopenhaueriano me impeliu a um ceticismo contra tudo o que foi tido por honroso, tudo o que foi defendido at ento (tambm contra os gregos, Schopenhauer, Wagner), gnio, santo pessimismo do conhecimento. Por esse desvio cheguei altura, com ventos mais frescos. [Der Schopenhauersche Mensch trieb mich zur Skepsis gegen alles Verehrte Hochgehaltene, bisher Vertheidigte (auch gegen Griechen Schopenhauer Wagner) Genie Heilige Pessimismus der Erkenntniss. Bei diesem Umweg kam ich auf die Hhe, mit den frischesten Winden]. KSA 8, 27[80] p. 500. Se antes o esprito livre era associado ao mestre Schopenhauer, agora caracterizado precisamente como aquele que quer se sentir libertado da tradio, em suma, uma espcie de m conscincia do tempo que se distingue dos espritos cativos: chamado de esprito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedncia, seu meio, sua posio e funo, ou com base nas opinies que predominam em seu tempo. Ele a exceo, os espritos cativos so a regra (HH 225).

  • 35

    quantidade de cincia para apropriar-se de si mesmo: eu quero me tornar sbio at os 60

    anos e reconheo isso como uma meta para muitos. Uma quantidade de cincia para, por

    ordem, apropriar-se e fundir-se em si.54

    O signo da Aufklrung55 avana e se espalha nos textos desse perodo num

    movimento de desprendimento do sentimento religioso, uma radical desconfiana56 ctica

    desabrocha voltando-se contra a metafsica, e o esprito cientfico o mote que traduz uma

    nova aurora do Iluminismo.57 O fragmento de novembro de 1882/fevereiro de 1883,

    quase como um espcie de auto-confisso em que se volta retrospectivamente a alguns anos

    antes, Nietzsche reconhece que os anos de 1875/76 foram uma oportunidade para trocar a

    pele. Definitivamente, o esprito livre toma forma como o que se despede da tradio graas

    conscincia cientfica: Houve uma poca em que um nojo de mim mesmo me tomou de

    assalto: vero de 1876. O perigo do erro, a m conscincia cientfica sobre a ingerncia da

    metafsica, o sentimento de excesso, o risvel no ajuizamento portanto, produzir uma

    razo e tentar viver na maior sobriedade, sem pressupostos metafsicos. O esprito livre

    passou sobre mim!58

    Retornar a si mesmo doravante o caminho a ser seguido. E se uma tarefa para

    espritos livres, o veculo a conduzir rubricado sob o signo de cincia.59 Os espritos livres

    54 KSA 8, 23[160] p. 463. Ich will weise werden bis zum 60. Jahre und erkenne dies als ein Ziel fr Viele. Eine Menge von Wissenschaft ist der Reihe nach anzueignen und in sich zu verschmelzen. 55 Henning Ottmann amplia essas indicaes a propsito do movimento terico que a cincia passa a ter a partir do projeto das Extemporneas e, mais especificamente, a partir de 1875. Nietzsche se torna esclarecido e seus anseios se traduzem nos espritos livres e o cortejo de conscincia cientfica que os acompanha: Tambm Nietzsche anseia por uma libertao da religio; tambm ele ctico; tambm ele se tornou tolerante; tambm ele busca uma moral para espritos livres que deve ser mais uma vez estica e epicurista. Ottmann, H. op.cit., p. 122. Nietzsche wird Aufklrer []. Auch Nietzsche erstrebt Befreiung von der Religion; auch er ist Skeptiker; auch er ist tolerant geworden; auch er auf der Suche nach einer Moral fr freie Geister, die noch eimanl die stoische und epikureische sein soll. 56 HH 150. 57 HH 237. 58 KSA 10, 4[111] p. 147. Es gab eine Zeit, wo mich ein Ekel vor mir selber anfiel: Sommer 1876. Die Gefahr des Irrthums, das schlechte wissenschaftliche Gewissen ber die Einmischung der Metaphysik, das Gefhl der bertreibung, das Lcherliche im Richterthum also die Vernunft herstellen, und in der grten Nchternheit, ohne metaphysische Voraussetzungen zu leben versuchen. Freigeist ber mich weg! 59 W. Stegmaier se refere aos espritos livres precisamente como o grande indivduo que tem por guia a cincia que, segundo ele, no est em oposio arte, mas sim sua superao. [[...] ist Wissenschaft nicht Gegensatz zur Kunst, sondern ihre Aufhebung]. Trata-se, pois, do contexto em que se cria a grande arte a partir do grande indivduo, e da se redime o sofrimento, o esprito livre se torna hoje aquele que se une livremente com as cincias e no se deixa mais enganar por moralizaes. Stegmaier, W. 5ietzsches Genealogie der Moral. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994. p. 29. [Aus dem grossen Individuum, das grosse Kunst schafft und dadurch vom Leiden erlst, wird jetzt der freie Geist, der frei ber die Wissenschaften verfgt und sich von Moralisierungen nichts mehr vormachen lsst].

  • 36

    travestem esse movimento e, enquanto homens cientficos, so os herdeiros e

    prolongadores dos artistas. Portanto, das formulaes iniciais sobre o mecanismo de como a

    cincia se transforma em arte, bem como a freqentao incisiva com as cincias naturais,

    prescindir do conhecimento e da cincia j no mais possvel. pergunta pelo lugar que

    ainda tem a arte aps esse conhecimento remonta a uma gradual fuso entre as duas

    estruturas culturais: essa lio da arte, de ter prazer na existncia e de considerar a vida

    humana um pedao da natureza [...] esta lio se arraigou em ns, ela agora vem

    novamente luz como necessidade todo-poderosa de conhecimento. [...] O homem

    cientfico a continuao do homem artstico.60

    1.1.2. Cincia e experimento em Humano, demasiado Humano

    A partir de Humano, demasiado Humano texto rubricado sob o signo de uma

    crise61 necessrio lidar com uma concepo bem mais ampla de cincia do que aquela

    que a toma como traduo de um esboo equivocado e superficial de positivismo. Trata-se,

    como bem observaram Colli e Montinari, da exigncia em se ampliar o campo de

    investigao do conceito bem como da definitiva continuao da arte atravs da cincia:

    Para a realizao dessa cincia que, na verdade, aproxima-se mais do jogo que da

    necessidade (por isso Nietzsche afirma que a cincia estaria determinada a levar adiante

    a arte), necessrio, porm, uma ampliao extrema do campo de investigao.62 Se isso

    verdade, por um lado, pela definitiva unidade formada entre cincia e arte, por outro lado,

    esse par incorpora uma outra estrutura que precisamente um desdobramento prtico dessa

    unidade, que pe em curso um projeto de auto-formao do esprito livre.

    Para explicar esse argumento necessrio compreender que o conceito de cincia

    no to genrico como pode parecer a primeira vista. Nossa hiptese que h uma

    60 HH 222. Cf. tambm Venturelli, A. op.cit., p. 83: Neste sentido, pertence arte uma funo insubstituvel de transio para uma cincia filosfica realmente libertadora. Alm disso, Nietzsche confere arte de uma poca ps-metafsica, uma tarefa ainda mais penosa: a transformao dos homens cientficos do futuro numa simples continuao do homem artstico [In dieser Hinsicht kommt der Kunst eine unersetzbare Funktion beim bergang in eine wirklich befreiende philosophische Wissenschaft zu. Doch schreibt Nietzsche der Kunst einer nachmetaphysichen Epoche eine noch folgenschwerere Aufgabe zu: die Verwandlung des wissenschaftlichen Menschen der Zukunft in eine einfache Weiterentwicklung des knstlerischen]. 61 EH Humano, demasiado Humano, 1. 62 KSA 2, p. 709. Zur Verwirklichung dieser Wissenschaft, die wahrlich dem Spiel nhersteht als der Notwendigkeit (weshalb Nietzsche behauptet, die Wissenschaft sei dazu bestimmt, die Kunst weiterzufhren), ist jedoch eine usserste Ausweitung des Untersuchungsfeldes ntig. O grifo nosso.

  • 37

    variao semntica da cincia mesmo nesta segunda fase. Esse movimento conceitual se

    desdobra, por um lado, at Humano... quando cincia se situa numa seara exclusivamente

    propedutica.63 Se j a partir de 1875 Nietzsche tem a percepo de que a libertao do

    homem veio da cincia64, porque, propedeuticamente, ela serve como instrumento na

    mo do esprito livre a fim de se apropriar novamente de si mesmo e se desprender da

    tradio, um veculo usado por esse esprito tornado livre, que de si mesmo de novo

    tomou posse.65 O anseio por retorno e reencontro de si tem na cincia o instrumento

    propedutico mais adequado, a fim de pr em curso o imenso projeto de desprendimento e

    63 H uma srie de comentrios, refiro-me especialmente aos textos da Nietzsche-Forschung, que mesmo de modo no explcito parecem apontar na direo da cincia como propedutica. Schlimgen, Ottmann, Brusotti, Campioni e Abel so algumas das leituras que vislumbram nossa hiptese. Outro motivo importante para situarmos cincia nesta seara propedutica, deve-se aos freqentes equvocos em relegar a relao que Nietzsche tem com a cincia ao mbito positivista. Ottmann (p. 164), Brusotti (p. 101) e Abel (p.10s), p.ex., so taxativos quanto a esses equvocos. Alm do mais, Nietzsche tem em vista a formao dos espritos livres, misto de desprendimento e reencontro consigo mesmo com o resgate da inocncia do devir, cujo instrumento principal para a auto-formao precisamente a cincia. Vejamos alguns argumentos. Em 5ietzsches Theorie des Bewusstseins, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1999, p. 49, Erwin Schlimgen registra o carter essencialmente especulativo da cincia que vislumbra uma dimenso investigativo-propedutica e, portanto, tomada como meio e no um fim em si mesmo: Nietzsche considera as verificaes das cincias naturais de seu tempo antes como potencial especulativo do que como conhecimento objetivamente seguro [die naturwissenschaftliche Befunde eher als Spekulationspotencial denn als objektiv gesicherte Erkenntnisse]. Henning Ottmann, op.cit., p. 167, situando didaticamente o lugar da cincia em Nietzsche, elege trs pontos que cercam o conceito que parece tambm apontar para uma concepo propedutica. So eles: 1. Cincia em Nietzsche deveria ser anlise; as complexas unidades so decompostas em unidades simples, p.ex., a vontade num feixe de impulsos e anseios. [...] 2. cincia analtica deve ser reduo; o superior deve ser referido ao inferior; [...] e 3. ligando-se a isso a cincia em Nietzsche deveria ser dialtica. Ela tentaria demonstrar a ultrapassagem do um no mltiplo, do infinito no finito, do bem no mal. Alm disso, Marco Brusotti, op.cit., p. 101, tambm se refere a uma ampla preocupao que Nietzsche tinha com a cincia, especialmente quando se tem em mente o desdobramento prtico com que a ci