Vietnam GI - Completo

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Universidade Federal Fluminense Instituto de Cincias Humanas e Filosofia Departamento de Histria Trabalho monogrfico de concluso de curso Orientadora: Ceclia da Silva Azevedo Leitor crtico: Norberto Ferreras Aluno: Ricardo Poo Vianna

Fuck The Army:O movimento de soldados e veteranos contrrios Guerra do Vietn

UFFUniversidade Federal Fluminense

RICARDO POO VIANNA

Fuck The Army: O movimento de soldados e veteranos contrrios Guerra do Vietn

Monografia Departamento Universidade

apresentada de Federal Histria

ao da

Fluminense

como requisito para a obteno do grau de Bacharel em Histria

______________________________________________ Prof Dr Ceclia da Silva Azevedo Orientadora

______________________________________________ Prof. Dr. Norberto Ferreras Leitor crtico

Niteri 2011

Agradecimentos

No que a Histria no me d prazer na escrita, mas como bom, depois desses ltimos meses, voltar a escrever livremente sem a preocupao com as mincias que a disciplina exige! E mais do que justo usar essas primeiras linhas para aqueles que precisaram aturar meus sumios, minhas preocupaes e minhas idias. Primeiramente, queria agradecer Professora Ceclia Azevedo, que despertou em mim o interesse pela histria dos Estados Unidos logo no meu terceiro perodo, na disciplina sobre o dissenso americano. Devo-lhe muito tambm por ter topado me ajudar neste projeto ao longo dos ltimos seis meses. Suas sugestes, correes e seu apoio no poderiam ser melhores e sou grato por tudo. Agradeo tambm minha me por sempre estar l desde que me entendo por gente. Ao meu pai que, mesmo quieto na dele, sei que se preocupa. Ao meu irmo, por me acordar ao falar que fez a monografia dele em trs meses e que eu estaria perdendo tempo adiando a minha. Obrigado de verdade por me aturarem nesses ltimos meses. Helena, pelo apoio incondicional e por compreender minhas ausncias e sequer reclamar delas, pois compreendia os benefcios que este trabalho me traria. Agradeo aos meus tios por tambm sempre darem fora e mostrarem interesse em como estava o progresso da escrita. E Fernandinha, a prxima da fila voc! Aproveita agora! Aos meus avs, por serem maravilhosos e terem criado toda essa famlia. Se hoje eu consegui concluir este trabalho, isto se deve diretamente a tudo que vocs fizeram at hoje. V, esta monografia para voc.

Sumrio

INTRODUO.................................................................................................................1

O IMAGINRIO DA GUERRA E AS MEMRIAS SILENCIADAS...........................6

A TRADIO PACIFISTA...........................................................................................27

O VIETNAM GI...............................................................................................................45

CONSIDERAES FINAIS..........................................................................................61

BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................67

General, your tank is a powerful vehicle It smashes down forests and crushes a hundred men. But it has one defect: It needs a driver.

General, your bomber is powerful. It flies faster than a storm and carries more than an elephant. But it has one defect: It needs a mechanic.

General, man is very useful. He can fly and he can kill. But he has one defect: He can think.

Bertold Brecht

Introduo

No dia 19 de maro de 2011, o Presidente Barack Obama autorizou uma ao militar limitada na Lbia, tendo em vista a violncia de Muammar Kadhafi na represso a seus opositores no pas. De acordo com o presidente vencedor do Nobel da Paz de 2009,Estou profundamente consciente dos riscos de qualquer ao militar, independente dos limites que impomos. Quero que o povo americano saiba que o uso da fora no foi nossa primeira escolha, e no uma escolha feita facilmente, mas no podemos assistir enquanto um tirano diz a seu povo que no haver piedade.1

Criticado pelo Congresso ao qual a Constituio reserva o direito de declarar guerra por no ter esperado sua aprovao para atacar, e dividindo opinies na sociedade, o cenrio no novo nos Estados Unidos. Em 2003, a Guerra do Iraque se (re)iniciava e, apesar do apoio nacionalista inicial que se seguiu aps o 11 de setembro, no tardou para que ocorresse uma onda nacional e internacional de reprovaes sobretudo quando descobriu-se que o Iraque no possua armas de destruio em massa. Questionava-se o porqu da invaso unilateral, os custos exorbitantes, o desrespeito aos direitos humanos como os seqestros e prises ilegais, o uso de tortura nos interrogatrios e os abusos cometidos na priso de Abu Ghraib, que vieram a pblico em 2004 a morte de civis e de soldados e, por fim, a situao iraquiana aps a guerra. Estas tenses e questionamentos, todavia, no so novidade. Acompanharam a histria americana desde pelo menos a guerra contra o Mxico, no sculo XIX, e marcaram o imaginrio americano da guerra. As contradies e os escndalos envolvendo o Iraque e o Afeganisto em muito se assemelham aos relacionados ao conflito que iria assombrar qualquer outra empreitada posterior dos Estados Unidos em nome da liberdade: a Guerra do Vietn. So incontveis os registros contrrios a um dos conflitos mais polmicos do sculo XX. Realizar uma interveno militar em um pas que poucos norte-americanos haviam ouvido falar at ento e que mal sabiam localiz-lo num mapa parecia, inicialmente, um custo desnecessrio de dinheiro e vidas, para dizer o mnimo.1

Obama autoriza ao militar limitada na Lbia, mas sem tropas em terra. Disponvel em http://g1.globo.com/obama-no-brasil/noticia/2011/03/obama-autoriza-acao-militar-limitada-na-libia-massem-tropas-em-terra.html. Acesso em 3 de abril de 2011.

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Principalmente aps a Ofensiva do Tet, em 1968, no demorou para que as notcias sobre as atrocidades cometidas, os elevados gastos, o altssimo nmero de civis e soldados mortos e a durao do conflito colocassem grande parte da sociedade contra o governo e a guerra. Protestos pacifistas tomaram conta das ruas; a msica folk e o rock compuseram a trilha sonora da oposio; veteranos vieram a publico contar suas experincias nefastas; a televiso trouxe o napalm e as exploses aos lares americanos; a grande e a pequena imprensa noticiaram dados e relatos das atrocidades. As crticas provinham de praticamente todos os lados. A imprensa de vis mais liberal, como o Washington Post e o New York Times, passou a revelar informaes secretas, como os Papeis do Pentgono2, enquanto os jornais de esquerda, como o The Nation3, denunciavam o governo e a postura imperialista de seus representantes. Neste contexto, tambm surgiam em ritmo acelerado diversos jornais de menor circulao e que no chegaram a ser conhecidos do grande pblico, por terem como pblico alvo soldados, que tambm se inseriam no movimento antiguerra. O presente trabalho, assim, busca trazer luz a memria de soldados que lutaram no Vietn e que transformaram suas opinies e experincias no conflito em cartas e artigos publicados pelo jornal Vietnam GI, entre 1968 e 1970. A chamada imprensa GI underground teve incio em meados da dcada de 1960, quando os primeiros veteranos regressavam do front. Como os Estados Unidos comearam a levar tropas regulares para o Vietn em 1965 at ento, os americanos s enviavam consultores militares ao Sudeste Asitico e os convocados deveriam servir por pelo menos dois anos, em 1967 chegavam os primeiros relatos dos combatentes. Embora a imprensa alternativa j criticasse a empreitada, fazia-o junto a outras reivindicaes como o fim do racismo, o respeito aos direitos civis, aos direitos da mulher, a universidade gratuita, a liberalizao das drogas, entre outras que formavam o quadro geral da contracultura da dcada de 1960.2

Os Papis do Pentgono foram parte de um relatrio secreto de 7000 pginas sobre o envolvimento poltico e militar dos EUA no Vietn entre 1945 e 1971 e que foram entregues ao New York Times por Daniel Ellsberg, ex-funcionrio do Departamento de Estado. A partir de junho de 1971, o jornal passou a publicar uma srie de artigos com trechos do documento. Os Papis revelavam que o governo expandiu deliberadamente seu papel na guerra, em flagrante contraste com o que declarava publicamente, revelando negociaes polticas e estratgias militares comprometedoras. 3 Fundada em 1865, The Nation a revista mais antiga dos Estados Unidos. Alm de seu perfil liberalleft, assumido explicitamente pela revista que se denomina the flaship of the left, The Nation ficou marcada tambm pelos clebres nomes que abrigou e pelas causas que promoveu. Nos anos 60, sob a direo editorial de Carey McWilliams, assumiu uma postura ainda mais radical, saindo da defesa para o ataque, associando jornalismo investigao sociolgica. Passou, ento, a atacar o complexo industrialmilitar, as corporaes, a CIA, o FBI, a cultura de consumo, a famlia suburbana, a histeria nuclear e a represso aos direitos civis, entre outros temas.

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Junto do The Bond, precursor da imprensa opositora ocupao americana na Indochina, o Vietnam GI surgira antes da Ofensiva do Tet, comumente identificada como o incio da desmoralizao das operaes militares no Vietn. A anlise do jornal em questo, que tinha Jeff Sharlet como editor, contava com a contribuio de soldados e veteranos na sua produo, desde o processo de escrita at o envio para seus assinantes no front. O jornal era composto basicamente por uma longa entrevista em sua primeira pgina, seguida de vrias cartas de soldados, que representavam diversos pontos de vista sobre tpicos como o abuso dos oficiais, a inutilidade das misses, a chacina de inocentes, a impossibilidade de compreender as razes da guerra, entre outros. Reportagens sobre o que acontecia nos Estados Unidos e artigos contrrios invaso completavam o peridico mensal, junto de fotos, muitas vezes impactantes. Dessa forma, o Vietnam GI, feito inteiramente por pessoas diretamente envolvidas na Guerra do Vietn, se mostra uma fonte riqussima de memrias ainda inexploradas na historiografia brasileira e relativamente pouco investigadas por historiadores norteamericanos. No que se refere aos motivos para a revisitao da Guerra do Vietn no sculo XXI, basta olharmos para a invaso americana no Iraque, conforme descrito acima, para percebermos que o trauma no est de forma alguma superado. Desconfiana da opinio pblica, desprestgio dos polticos, abusos de civis e de prisioneiros e a viso de uma guerra ilegtima estavam presentes nos dois conflitos citados. Enquanto a Guerra do Iraque, num primeiro momento, era sustentada pelo argumento da Guerra ao Terror de Bush sombra do 11 de setembro , a Guerra do Vietn tinha como justificava a luta contra o comunismo e pela liberdade, o que caiu por terra em 1968. O resultado negativo no Sudeste Asitico, apesar dos esforos, no foi esquecido, e passaria a assombrar as experincias militares americanas seguintes. A idia de que o Vietn era uma ferida na sociedade americana se estabeleceu. Um ndice que comumente explorou esta ferida foram os filmes sobre a Guerra do Vietn e seus veteranos. Taxi Driver, Nascido em quatro de julho, Rambo e O francoatirador so alguns exemplos que mostram ex-combatentes deslocados da sociedade em que voltaram a viver, traumatizados pelas experincias passadas, com dificuldades de se relacionar e encontrar um emprego. No meio acadmico, Keith Beattie dedicou um importante trabalho ao tema, em que a metfora da ferida relacionava-se diretamente diviso da sociedade aps a guerra. Embora os veteranos fossem os mais afetados, enquanto essa memria no fosse elaborada, toda a sociedade estaria adoecida. O Vietn 3

teria deixado os Estados Unidos impotentes4. Logo, a cura desta ferida seria fundamental para a sade da cultura americana, e a mobilizao do governo para isso no foi pequena. Um exemplo a teoria de Ronald Reagan de que os americanos teriam vencido a guerra, uma vez que tiveram sucesso na maioria das batalhas. A assero do ento presidente em tentar transformar a derrota em vitria serviria para no manchar a histria de guerras bem-sucedidas dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que facilitaria a entrada em novos confrontos. Contudo a sombra do Vietn parece ainda se projetar. Vrios paralelos negativos foram traados entre o Vietn e a recente invaso do Iraque, evidenciando o pessimismo e a existncia da ferida at os dias de hoje. Sobre a escolha do Vietnam GI para a anlise, justifica-se primeiramente pela riqueza histrica de seu contedo. O jornal The Bond, apesar de precursor na imprensa GI, tinha um vis trotskista que o tornava similar a outros da esquerda dogmtica, que no pretendemos analisar no presente trabalho. O Vietnam GI, por sua vez, estabeleceu um padro de excelncia para a poca, mesmo com os poucos recursos de seu editor e criador. Outra inovao do peridico foi o pblico-alvo formado por soldados no Vietn, e no por aqueles em solo americano 5. Alm disso, atravs da longa seo de cartas dos leitores, o jornal no era s lido, mas tambm escrito pelos GIs e veteranos, trazendo estrias de quem realmente fazia histria. A circulao do jornal, que chegou a um pico de 10 mil leitores no primeiro ano 6, tambm expressiva para o gnero, uma vez que era direcionada aos soldados. No que concerne viabilidade da pesquisa, sabemos que o jornal funcionou de janeiro de 1968 a junho de 1970, contando com duas edies mensais a partir de agosto do ano de criao, o que leva a crer que existam cerca de 50 publicaes. Pela internet, podemos acessar um pequeno nmero dessas fontes, que j permitem uma profunda anlise da estrutura e do contedo geral do jornal. Assim, optamos por fazer uma anlise qualitativa das fontes, explorando-as ao mximo, de maneira a produzir uma radiografia do jornal e de seus participantes. Buscaremos traar o perfil dos soldados se so brancos ou negros, sua escolaridade, o meio social de onde vieram, a forma de sua escrita (estilo narrativo,4

Ver BEATTIE, Keith. The Scar That Binds: American Culture and the Vietnam War. Estados Unidos: New York University Press, 1998. 5 Em agosto de 1968, todavia, o peridico crescera tanto em popularidade que uma segunda edio passou a ser veiculada para GIs nos Estados Unidos. 6 FRANKLIN, H. Bruce. Vietnam and Other American Fantasies. Estados Unidos: University of Massachussets Press, 2001. p. 106

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vocabulrio, etc.), alm do contedo de seus relatos, suas aflies, seu posicionamento diante da guerra, as impresses que tinham sobre o jornal que veiculava suas experincias, entre outros tpicos. Consideramos que esse esforo vlido pois trataremos das memrias destes combatentes no contexto da guerra, o que poucas fontes tem podido revelar. Muitos so os trabalhos sobre a memria e o trauma dos Estados Unidos com o Vietn. Como citado acima, inmeros filmes sobre o tema foram feitos, mostrando diferentes pontos de vista sobre a identidade cultural americana e os efeitos da Guerra do Vietn na sociedade. As anlises deste tipo de fonte foram igualmente amplas, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. A obra The Vietnam War and American Culture, de John Carlos Rowe e Rick Berg, segue este caminho, reunindo diversas representaes da memria da guerra na cultura americana, como os documentrios, a msica, o papel da televiso, poesia e at tatuagens de soldados e veteranos. Gary Gerstle tambm explora o tema, analisando a vietnamnesia ou seja, um esquecimento induzido da Guerra do Vietn a partir da lembrana e do enaltecimento da Segunda Guerra Mundial. Assim, tendo em vista a relevncia do tema atualmente, a viabilidade das fontes e a originalidade da pesquisa, o presente trabalho se mostra historicamente relevante. A pesquisa sobre a imprensa GI underground, ainda muito pouco explorada, apesar do valor que, como veremos, possui. Com o objetivo de dar voz a memrias silenciadas, buscamos mostrar a guerra por quem esteve l. Mais que isso, pelos absurdos retratados pelos soldados, poderemos ver os problemas da guerra e seus efeitos psicolgicos nos jovens combatentes de ento. O Vietn deixou marcas indelveis no imaginrio americano da guerra. Com a ferida aberta, as diferenas afloraram, mitos foram quebrados e a insatisfao se tornou generalizada. O posterior processo de cicatrizao foi conduzido principalmente pelo governo para melhorar sua imagem e no ter tantos empecilhos em futuras empreitadas militares e por parte dos veteranos a fim de reverter a imagem negativa que os assombrava desde o retorno do front7. Mas no se pode esquecer que cicatrizes, rastros e lembranas indesejveis. E se estas lembranas remetem ao aspecto negativo dos conflitos militares e podem dificultar intervenes futuras, essencial record-las.

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Vale destacar que, embora tratemos aqui principalmente da imagem negativa atribuda aos veteranos, as memrias destes ex-soldados so mltiplas, uma vez que variam de acordo com a experincia especfica de cada um e da forma como a elaboraram e a utilizaram depois.

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O imaginrio da guerra e as memrias silenciadas

Antes de adentrarmos pela memria escrita dos veteranos no Vietnam GI, importante mostrar como a memria da guerra foi trabalhada ao longo das dcadas pelos norteamericanos. Mais que isso, cabe reavivarmos as mltiplas memrias do Vietn, existentes em diversos veculos, por diferentes grupos de pessoas, com intenes igualmente plurais. Justamente por este motivo, escolhemos fazer, neste captulo, o resgate de algumas memrias, por vezes conflitivas entre si, e complementares em outros casos, que nos permitem ver a ampla gama de discursos sobre aquela guerra que dividiu a nao de forma somente vista antes durante a Guerra Civil. Contudo, no podemos incorrer no erro de misturar as memrias de diferentes dcadas, uma vez que preciso interpret-las de acordo com a poca em que foram feitas. Com isto em vista, optamos por analisar o momento a que se referem, seus portavozes, a inteno de seus relatos e atitudes e o impacto que tiveram na sociedade. Em meio a estes tpicos, teceremos comentrios relativos ao imaginrio da Guerra do Vietn nos Estados Unidos, de forma a demonstrar a importncia do estudo destas memrias e o lugar do Vietnam GI neste quadro. Porm, primeiramente, faremos uma anlise do imaginrio da guerra, de modo geral, para evidenciar como o conflito no Sudeste Asitico impactou uma srie de mitos que influenciavam a postura da sociedade e dos diferentes governos dos Estados Unidos com relao ao mundo.

O imaginrio da guerraDa investida de Theodore Roosevelt colina de San Juan Hill, em 1898, passando pela celebrao do peloto multitinico da II Guerra Mundial, at o patriotismo da Guerra Fria de John F. Kennedy, a guerra mostrou-se central nas mentes dos americanos que queriam forjar uma nao liberal. 8

Todos os mitos so historicamente construdos. Eles so passados de gerao em gerao por um processo no-racional que anlogo ao procedimento de transmisso da linguagem. Ao contrrio do que o significado da palavra mito parea sugerir a priori,8

GERSTLE, Gary. Na sombra do Vietn: o nacionalismo liberal e o problema da guerra. Revista Tempo, n 25, Vol. 13, Julho, 2008. p. 38

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no se deve opor mito realidade, pois todos os mitos fazem parte desta, representando eles frmulas utilizadas no mbito de uma comunidade imaginria para a organizao e entendimento do mundo real pelos membros da mesma. Por este mesmo motivo eles acabam soando atemporais, transcendentes histria. Os Estados Unidos foram fundados por mitos que possuem um trao em comum: o enaltecimento da excepcionalidade inerente s experincias desta nao. Muitos dos mitos que compem o imaginrio coletivo serviram para dar legitimidade a esse povo que comeou a construir o seu destino de forma tardia no do contexto histrico ocidental. Como muitos dos pioneiros que adentraram na Amrica pela primeira vez possuam uma religio e uma tica a ela associada, a narrativa de origem deste povo est permeada por uma concepo judaico-crist de povo escolhido9. At a Revoluo Americana, entretanto, como ressalta Edward Burns, a guerra no era vista como uma empreitada benfica. Por conta de valores morais e religiosos, puritanos e Quakers opunham-se a qualquer conflito, dado que todos os homens eram irmos. Quanto aos iluministas, estes criticavam a guerra por se tratar de algo inumano e irracional e, portanto, era indigna de homens que afirmavam seguir a natureza humana10. A situao foi revertida quando a Revoluo Francesa e a Revoluo Americana estabeleceram ser justo o derramamento de sangue para se atingir certos fins. Tornou-se honroso morrer pelo pas, ou pelos direitos de alguma classe ou at para disseminar a liberdade pelo mundo. Para Burns,() Americans have conceived of their Republic as the handmaid of Destiny, as a chosen nation with a mission to guide and instruct and even to rule savage and servile peoples. To accomplish such a mission it would be necessary for America to express her sympathy with the victims of repression, to intervene to assist them, and even to overthrow autocratic and militaristic regimes that stood as obstacles to the spread of liberty and civilization.11

Ana Paula Spini complementa, afirmando que o mito da guerra seria permeado de poesia e religiosidade, em que homens honrados, corajosos e competentes se unem em prol da liberdade e da justia. Embora a dor, o sofrimento e a morte faam parte

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Ver WEBER, Max. A tica protestante e o esprito do capitalismo. So Paulo: Editora Martin Claret, 2001. 10 BURNS, Edward McNall. The American Idea of Mission: Concepts of National Purpose and Destiny. Estados Unidos: Rutgers University Press, 1957. p. 237 11 BURNS, Edward McNall. Idem. p. 259

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desta cruzada democrtica, eles so inerentes ao conflito, o que ao invs de reduzir seu apelo, cobre-o de uma aura religiosa12. Exemplos desta aura do mito da guerra so os constantes resgates feitos da Revoluo de 1776 e da Guerra Civil a primeira por consolidar a nao liberal, independente e democrtica; a segunda por ampliar a liberdade ao acabar com a escravido. A concepo de um povo escolhido sugeria a invencibilidade e de nao que, alm de visar sempre o progresso, seria responsvel por lev-lo ao mundo. Evidentemente, o sucesso em todas as guerras que os Estados Unidos participaram at meados do sculo XX contribuiu para tal crena, sobretudo a Segunda Guerra Mundial. Nas palavras de Gary Gerstle,As guerras do sculo XX viraram ocasies para se celebrar a grandeza da Amrica, intensificando a devoo popular aos seus ideais democrticos, e abrindo a nao para grupos que tinham sido marginalizados. As guerras legitimizaram a idia de um Estado liberal, que estava autorizado a remediar as desigualdades econmicas e sociais em nome da justia e da segurana. As mobilizaes, em tempos de guerra, tambm liberaram instintos repressivos, na medida em que os liberais procuravam conter ou eliminar aqueles que rotulavam como ameaas internas. A represso e a democratizao, juntas, uniram o nacionalismo liberal ainda mais dinmica poltica da guerra.13

Da se depreende que as guerras legitimaram a idia de um estado liberal e isso acabou consolidando no imaginrio norte-americano o sentido de um destino missionrio, uma autoridade para remediar as desigualdades sociais e econmicas no mundo em nome de um ideal de justia e segurana. Em 1917 e 1941, anos em que os Estados Unidos entraram, respectivamente, na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, os governos estavam fazendo a coisa mais lgica de acordo com seu imaginrio: interferir e dar fim situao insustentvel das guerras. Como destaca Burns, se os presidentes estavam se iludindo, no estavam mais iludidos do que a grande maioria de seus cidados. O uso da fora como forma de resolver problemas mais complexos apresentava-se como um dos mitos americanos mais fortes. Afinal, se Deus escolheu este povo para regular os problemas mundiais, tal regulao seria feita atravs da fora.1412

SPINI, Ana Paula. Memria cinematogrfica da guerra do Vietn. In: VII Encontro Internacional da ANPHLAC, 2006. Campinas: VII Encontro Internacional da ANPHLAC, 2006. p. 1 13 GERSTLE, Gary. Op. Cit. p. 38 14 BURNS, Edward McNall. Op. Cit. p. 257

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A justificativa da Guerra do Vietn residia nesta premissa de levar a democracia aos pases do Terceiro Mundo e, no contexto da Guerra Fria, combater o comunismo e implantar o liberalismo. Uma das motivaes iniciais tambm foi o antigo dogma de que os oceanos e tambm os cus, aps o 11 de setembro no serviam mais como proteo ao pas, mas sim caminhos pelos quais o inimigo poderia chegar aos Estados Unidos. Sob a suposta ameaa comunista, os lderes americanos trataram de convencer a nao de que o ataque preventivo seria a melhor opo15. Entretanto, o Vietn foi um episdio que abalou toda a estrutura mitolgica da guerra nos Estados Unidos. A motivao da guerra no era convincente, nem clara; o nmero de feridos e mortos ultrapassara qualquer realidade antes vivida pelos americanos; a durao do conflito colocava em dvida o verdadeiro poder de combate das tropas; a invencibilidade acabara. Alm disso, notcias sobre absurdos cometidos pelos oficiais, bem como a destruio de vilas e assassinato de civis chegavam de forma incessante, o que negava o to celebrado carter missionrio e de pureza. Para elucidar mais especificamente esta turbulncia no mito da guerra, faremos a seguir um resgate de situaes relacionadas ao Vietn em que as memrias evidenciam esta transformao no imaginrio da guerra.

A guerra vai aos lares

De acordo com o socilogo francs Maurice Halbwachs, a estrutura social da memria seria formada substancialmente pelos indivduos e pelos grupos sociais. Embora sejam os indivduos que lembram, no sentido literal da expresso, so os grupos sociais que determinam o que memorvel e as formas pelas quais ser lembrado. Os indivduos, por outro lado, se identificam com os acontecimentos pblicos relevantes para o seu grupo16. Ou seja, esta memorizao seletiva pode determinar como um evento ser interpretado no momento e lembrado no futuro. Nas palavras de Peter Burke, os indivduos lembram muito o que no viveram diretamente. Um artigo de noticirio, por exemplo, s vezes se torna parte da vida de uma pessoa. Da, pode-se descrever a memria como uma reconstruo do passado17.

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BURNS, Edward McNall. Op. Cit. p. 269 Apud BURKE, Peter. Histria como memria social In: Variedades de histria cultural. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000. p. 68 17 BURKE, Peter. Op. Cit. p. 70

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E foi exatamente isto que Lyndon Johnson tentou fazer com a Campanha para o Progresso entre 1967 e 1968. Esta foi uma estratgia adotada pelo governo de Johnson para mostrar que os Estados Unidos estavam, na verdade, cumprindo seus objetivos no Vietn, de modo a enfrentar os jornalistas que supostamente deturpavam os acontecimentos no Sudeste Asitico. O terreno desta guerra domstica foi a televiso. Esta, embora j existisse ao final da Guerra da Coria, em 1953, s se tornou popular nas casas americanas ao longo da dcada de 1960. Isto fez com que o Vietn se tornasse a primeira guerra televisionada, levando cenas de batalha, mortes e sangue para os lares americanos. De acordo com Chester Pach, em We Need to Get a Better Story to the American People, na dcada de 60, as televises ganharam mais espao que os jornais, sendo mais crveis na proporo de 2 para 1.18 Ao invs de explicarem os motivos para a guerra com palavras escritas, exibiam documentrios e notcias sobre o que acontecia com imagens captadas diretamente do front. Como destacou Rick Berg, o jornalismo televisivo, criava uma iluso de realidade, mostrando realmente o que acontecia19. O crescimento do poder da televiso foi percebido por Lyndon Johnson. Cada vez mais, os americanos buscavam nos documentrios e matrias da televiso a explicao para uma guerra estranha e complicada. O problema para o Presidente era que, ao final de 1967, liberais e conservadores, democratas e republicanos desferiam-lhe crticas ao seu governo e conduo da guerra. Tal fato influenciava o teor dos programas televisivos sobremaneira, o que minava o seu j fraco apoio. O governo, por outro lado, acreditava que as informaes divulgadas eram distorcidas e tendenciosas, em parte pela falta de apoio dos reprteres, em parte pela ignorncia dos mesmos jornalistas e do povo americano. A desconfiana dos jornalistas, no entanto, fora construda pelo prprio governo. Enquanto em 1965 os reprteres tinham um trato com a administrao de no cobrir falhas ou perigos para os soldados em troca de transporte e entrevistas com oficiais, alm de terem acesso s informaes fornecidas por briefings de Saigon, os jornalistas no tardaram a questionar a credibilidade de tais informaes e pequenos programas questionando a guerra foram feitos. Ainda assim, em 1965 e 1966, algumas coberturas18

PACH, Chester. We Need to Get a Better Story to the American People In: Selling War in a Media Age: The Presidency and Public Opinion in the American Century. Estados Unidos: University Press of Florida, 2010. p. 172 19 BERG, Rick. Covering Vietnam in an Age of Technology. In: ROWE, John C. & BERG, Rick. The Vietnam War and American Culture. Nova York: Columbia University Press, 1991.

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da guerra possuam elementos caros a Johnson, como a demonstrao de coragem, de compaixo e da tecnologia militar. Entretanto, em meados de 1967, a guerra televisiva entre o governo e as emissoras passou a minar o pequeno apoio que Johnson tinha. Reportagens sobre os problemas e falhas do Vietn abundavam com a descrena dos jornalistas. O programa de pacificao das vilas e cidades vietnamitas era exibido como um desastre, criando, na realidade, campos de concentrao. A expresso mais utilizada pelos jornalistas e que deu a tnica do momento vivido por Johnson em relao ao Vietn era a de um beco sem sada. A censura pelo governo no era uma opo, j que seria contraditrio por ser uma medida atribuda aos comunistas, motivo mesmo da guerra do Vietn e apenas resultaria em mais crticas. A soluo mais plausvel foi o planejamento e aplicao da Campanha para o Progresso medida que visava sair do beco e promover a reeleio de Johnson. A Campanha, assim, visava criar a histria oficial do Vietn. LBJ foi ofensivo, vendendo a imagem de que os Estados Unidos estavam vencendo as batalhas, que a idia de um beco sem sada era propaganda comunista e que a cobertura da guerra pelas emissoras era parcial e vingativa. Dizia ver uma luz no fim do tnel, que o final, feliz, estaria prximo. Os programas contrrios a guerra continuavam, mas no impediram o sucesso temporrio da Campanha para o Progresso. O descontentamento com a poltica de Johnson cara de 50% no vero de 196720 para uma margem de 38-49% ao final do mesmo ano21. Embora pouco expressivos, os dados mostram que a estratgia teve relativo efeito. Entretanto, em janeiro de 1968 ocorreu a Ofensiva do Tet ataque massivo surpresa dos vietcongues que adveio de vilas remotas, cidades e chegou at a Embaixada norte-americana. Subitamente, com a cobertura dos acontecimentos pelos telejornais, ficou claro que o Vietn era mais mortal e perigoso do que se noticiava e que, obviamente, a Campanha para o Progresso fora um conjunto de mentiras. A idia do beco sem sada voltava a ser a melhor traduo da realidade. A guerra televisiva fora perdida por Johnson. Segundo o ento presidente, o motivo para que sua poltica de guerra tivesse se tornado impopular foi o fato de que a Guerra do Vietn havia sido a primeira a ser

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PACH, Chester. Op. Cit. p. 176 PACH, Chester. Op. Cit. p. 188

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televisionada22. Alm disso, culpou o sensacionalismo, as supostas distores e a ignorncia dos jornalistas e do povo pelo fracasso de sua Campanha para o Progresso. Em outras palavras, segundo Chester Pach, Johnson no conseguiu vender a guerra ao pblico americano. Retomemos a afirmativa supracitada de Peter Burke, a de que um artigo de noticirio pode vir a se tornar parte da vida de uma pessoa e definir como determinado evento ser lembrado pelo indivduo. Aplicado ao caso apresentado, o conflito entre os jornalistas e o Presidente teria fim quando um dos dois lados conseguisse vender ao pblico a interpretao considerada mais plausvel e condizente realidade da Guerra do Vietn. Embora na poca a disputa fosse determinante para definir o apoio reeleio de Johnson e o apoio guerra, um conjunto de fatores e de relatos, aliados m conduo do conflito, fizeram com que as emissoras se sassem melhor na consolidao de sua viso e da memria que a sociedade civil americana levaria como lembrana de uma guerra perdida. Um evento que pode ser pensado como decisivo para esse resultado foi o trgico episdio da aldeia de My Lai, em que soldados americanos promoveram a morte de pelo menos 347 civis desarmados, em maro de 1968. Pela sua dimenso, no poderia ser esquecido23. Alm deste genocdio, outros foram cometidos, e a mdia no tardou a public-los ou transmiti-los. Isto rompeu para sempre com a forma com que os americanos veriam a guerra e o seu envolvimento nela. Muitos dos mitos que estruturavam o seu imaginrio foram abatidos, e no era somente a imagem da guerra que precisava ser revista aps esse acontecimento, mas tambm a do norte-americano, de quem ele realmente era. Como ressaltou Spini, o investimento potico na guerra que efetuada por uma nao s possvel quando ao final do conflito ela sai vitoriosa e reconhecida pela sociedade como um confronto justo e necessrio. 24 No foi possvel essa construo nas circunstancias vividas pelos Estados Unidos aps o confronto, principalmente com todas as avaliaes negativas das aes do pas e de seus representantes no campo de batalha. A memria vencedora do massacre condenou o exrcito norte-americano. Com o Exrcito em baixa frente opinio pblica, as perspectivas de apoio a uma prxima guerra at ento com mais chances de ser vista como positiva ou mesmo22 23

PACH, Chester. Op. Cit. p. 190 No entanto, posteriormente, Nixon perdoou o oficial responsvel pelo massacre, e uma pesquisa de opinio pblica poca mostrou que a maioria da populao apoiava o perdo. 24 SPINI, Ana Paula. Op. Cit.. p. 1

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vir a ser cultuada eram muito reduzidas. Seriam necessrias quase duas dcadas o perodo denominado de sndrome do Vietn25 - e uma amnsia seletiva dos problemas desta guerra para que os Estados Unidos voltassem a atuar em um novo grande conflito: a Guerra do Golfo. Porm, esta longa reelaborao das memrias ser vista mais adiante. Por ora, analisaremos o filme Sob a nvoa da guerra filme no qual o Secretrio de Defesa dos governos Kennedy e Johnson, Robert McNamara conhecido como o arquiteto do Vietn discursa sobre eventos relacionados Guerra Fria. Dentre eles, o Vietn.

A memria culpada

Estou muito orgulhoso de minhas conquistas... e lamento muito que ao tratar de conseguir certas coisas, tenha cometido erros. No filme Sob a nvoa da guerra: onze lies da vida de Robert S. McNamara, esta uma das ltimas frases a serem proferidas pelo ex-Secretrio de Defesa. Por ter vivido ao longo de 93 anos, McNamara presenciou a maioria dos conflitos em que os Estados Unidos se envolveram no sculo XX e XXI. Como membro do governo entre 1961 e 1968, participou ativamente da Guerra do Vietn, estruturando aes, criando estratgias tornando-se responsvel por muito do que acontecia no Sudeste Asitico. Como exemplo mostrado no documentrio, podemos citar o aumento do nmero de assessores militares no Vietn de 900 a 16 mil, durante o ofcio do Secretrio. Alm disso, o episdio do Golfo de Tonkin em que navios norte-vietnamitas foram falsamente acusados de atacar navios americanos tambm foi utilizado por McNamara para mostrar ao Congresso e ao pblico a necessidade de medidas mais ofensivas. Tal fato resultou na autorizao do Congresso ao Presidente para atacar livremente, como medida preventiva ou caso existisse alguma ameaa. Por fim, podemos citar o aumento expressivo de bombardeios e da entrada de tropas americanas, que, segundo o documentrio, chegou a 535 mil homens em junho de 1968. A intensificao da guerra estava dentro dos planos de McNamara, que havia traado uma estratgia na qual o nmero de vietcongues era reduzido e a contagem dos corpos demonstraria o quo perto os Estados Unidos estavam da vitria.

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A sndrome do Vietn foi uma expresso utilizada por Ronald Reagan para designar o perodo em que o pas optou por uma poltica externa no-intervencionista aps o Vietn.

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No entanto, o quadro que se formava tornou o Secretrio de Defesa ctico quanto a se os objetivos estavam ou no sendo cumpridos. O aumento considervel do nmero de mortos americanos contribua para a desconfiana. Aps enviar uma carta a Johnson comentando sobre a busca de outros meios que no o militar para o desfecho da guerra, McNamara deixou o cargo em fevereiro de 1968. Durante a entrevista, sobretudo quando se fala do Vietn, McNamara explica o porqu de certas decises, muitas vezes cogitando o que deveria ter sido feito, mas sem se declarar diretamente culpado. Erro, responsabilidade e culpa so separados. Enquanto o entrevistado declara que errou vrias vezes na conduo de seu trabalho e segundo ele fez o mal para poder atingir o bem, a responsabilidade por tais atos caberia ao presidente que, por sua vez, fora eleito pelo povo. O caminho pensado por McNamara, assim, o exime da culpa, sem que negue seus erros. Como se referiu ao ocorrido no Vietn,[Pergunta]: At que ponto o senhor sentiu que foi o autor das coisas ou apenas o instrumento de foras fora de seu controle? [Resposta]: Eu no senti nenhuma das duas coisas. Eu s senti que estava servindo a um Presidente eleito pelo povo americano. E era minha responsabilidade tratar de ajud-lo a executar seus deveres como ele achava ser de interesse do nosso povo.26

Ainda assim, alguns erros cometidos pela administrao so apontados pelo prprio McNamara.Somos a nao mais poderosa do mundo. Mas nunca devemos aplicar esse poder militar e econmico unilateralmente. Se tivssemos observado essa regra no Vietn, no teramos estado l. Nenhum aliado nos apoiou. Nem o Japo, Alemanha, Inglaterra, Frana, ningum. Se no podemos convencer as naes com valores parecidos com os nossos, devemos reavaliar nosso raciocnio.27 (...) com os vietnamitas, no os conhecamos o suficiente para ter empatia. E os julgamos totalmente errado. Eles achavam que vnhamos para colonizar, como os franceses e que buscvamos submeter o Vietn do Sul e do Norte aos nossos interesses coloniais, o que era absurdo. Ns, por outro lado, vamos o Vietn como um elemento da Guerra Fria. Eles se viam numa guerra civil.28

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Sob a nvoa da guerra: onze lies da vida de Robert S. McNamara. Ttulo original: The Fog of War: Eleven Lessons from the Life of Robert S. McNamara. Dirigido por: Errol Morris. Distribudo por Sony Pictures Classics, 2003. De 1h 22min 40s 1h 23 min 10s. 27 Idem. De 1h 20min 48s 1h 21min 34s. 28 Idem. De 1h 17min 55s 1h 18min 26s.

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Porm, ao final do filme, McNamara questionado sobre o porqu de seu silncio sobre o Vietn, aps deixar o governo, e se ele se sentia responsvel e culpado pela guerra. O entrevistado, ento, se nega a responder ambas as questes. Qualquer resposta causaria problemas a si, s traria mais controvrsias tona. A Guerra do Vietn era to complexa que qualquer comentrio vindo dele soaria mal. Ou seja, mesmo no ano em que o documentrio foi produzido, em 2002-2003 prximo ao incio da guerra do Iraque a retomada de questes mais polmicas sobre o Vietn ainda poderia trazer problemas. A recusa de McNamara em respond-las serviu como meio de preservao de algum que teve uma participao crucial no conflito, e cuja culpa, embora silenciada, existia. Ao mesmo tempo, as onze lies aprendidas e passadas por McNamara no derrubaram o mito da guerra, por mais que esse tenha sido fortemente abalado pelo Vietn. Lies, por definio, so ensinamentos que deveriam servir como orientao para atitudes futuras. Em outras palavras, o mito da guerra, antes de ser abandonado pelo fracasso no Sudeste Asitico, consertado por McNamara. Segundo o prprio,H uma expresso maravilhosa: a nvoa da guerra. Significa que a guerra to complexa que est fora do alcance da mente humana entender todas suas variveis. Nosso juzo, nossa compreenso, no so adequados. E matamos gente sem necessidade. [Woodrow] Wilson disse: Ganhamos a guerra que ps um fim s guerras. No sou to ingnuo para crer que podemos eliminar todas as guerras. A natureza humana no mudar to cedo. No que no sejamos racionais. Sim, somos. Mas a razo tem limites.29

O que seria esta natureza humana a que McNamara se refere? A guerra realmente faria parte do ser de todos os indivduos? Seria uma necessidade inevitvel que de tempos em tempos deveria ser cumprida? Ou, por outro lado, ser que McNamara quis se referir ao mito norte-americano da guerra? Por este vis, as frases do ex-Secretrio ganham outro sentido A percepo de que os Estados Unidos no alterariam sua natureza, e portanto no cessariam de perseguir sua misso mundial de levar ou preservar a justia e a democracia se torna mais plausvel. A racionalidade, embora exista, no impede que o mpeto missionrio americano d a tnica em futuras intervenes.

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Idem. De 1h 40min 16s 1h 41min 31s. Grifo nosso.

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Veteranos e memria

As memrias sobre os veteranos da Guerra do Vietn no escaparam s divises internas aos Estados Unidos, que atravessava por um longo perodo de crise. Neste turbulento contexto, os veteranos no raro eram vistos como promotores da fragmentao, na medida em que chegavam notcias e relatos sobre atrocidades cometidas no Sudeste Asitico. Em decorrncia disso e pelo fracasso na guerra em si, criou-se uma imagem negativa dos combatentes que retornavam Amrica. Uns eram vistos como criminosos, outros como incompetentes perante o desastre e muitos como desajustados o que, aliado com o prprio trauma da guerra nos veteranos, contribuiu para a construo de seu esteretipo. Como visto em nossa introduo, o impacto da Guerra do Vietn na sociedade americana descrito por Keith Beattie como uma ferida. A cura desta, para o autor, fundamental para a sade da cultura americana. Na metfora da ferida, a integridade se refere unidade da cultura que certa ideologia refora; uma nao saudvel aquela que unida. A ferida cria uma dicotomia na sociedade, entre aqueles que seriam julgados em parte como os responsveis os veteranos e o resto da populao. Em outras palavras, a desunio e as diferenas da nao mostram seu estado doentio: a diviso no resultado da ferida, ela a ferida.30 Apesar de os veteranos serem os portadores mais bvios desta chaga, enquanto as diferenas existirem, a sociedade, como um todo, estar machucada. As diferenas expostas pela guerra teriam deixado os Estados Unidos impotentes. E no tardou para que o governo buscasse reverter esta imagem, com a inteno de recuperar o prestgio existente pr-Vietn e o apoio do povo para novas empreitadas. Durante a dcada de 1970, o governo americano tentou explicar a derrota no Vietn atravs da idia da punhalada nas costas. Os Estados Unidos pretendiam difundir a idia de que a derrota no Vietn, antes de qualquer coisa, foi uma derrota definida em casa. A imagem da punhalada nas costas alimenta a tese de que certos grupos domsticos foram responsveis pela derrota militar dos Estados Unidos no Vietn. Richard Nixon sugere que estes grupos fizeram do pas um gigante compassivo, desamparado31. Assim, o governo denegria a imagem do movimento antiguerra. A impotncia dos Estados Unidos na guerra, assim, seria resultado dessa traio.30 31

BEATTIE, Keith. Op. Cit. p. 20 BEATTIE, Keith. Op. Cit. p. 21

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De acordo com a tese da punhalada nas costas, a mdia tambm teria um papel importante na derrota americana. A direita acreditava na culpa da mdia, especialmente no papel que a televiso desempenhou, conforme visto no item anterior. Ao mesmo tempo, Nixon culpou a imprensa liberal por limitar o apoio das pessoas em guerras tipo as do Vietn, em defesa da liberdade de nosso prprio pas. Norman Podhoretz, terico americano conservador, tambm repreendeu a imprensa por assumir que quase tudo que um porta-voz americano ou qualquer lder ocidental falasse era provavelmente mentira.32 O que se viu no discurso da historiografia revisionista e de alguns lderes americanos na dcada de 1970 foi uma tentativa de deslocar a culpa da derrota daqueles que apoiavam a guerra, para aqueles que se opunham a ela. Para tentar se isentar de culpa, o governo, neste perodo, tentou denegrir o movimento antiguerra. Por outro lado, a historiografia revisionista que surge neste cenrio em resposta queles autores da Nova Esquerda permaneceu indiferente diante da morte de milhes de vietnamitas e da destruio do Vietn, mas lamentou a perda de prestigio que a guerra trouxe para a Amrica, tendo sido o primeiro conflito em que o pas foi derrotado. Para o revisionismo, explicar o fracasso da guerra a partir dos prprios erros central, j que isso ignora a vitria de um pequeno pas sobre um gigante e atribui a derrota a falhas prprias, ou seja, minimizando a perda de prestgio. Entretanto, os autores no conseguem entrar em acordo em relao a isso. Stephen Vlastos aponta que h tantas explicaes quanto autores.33 Richard Nixon defende que a derrota s veio quando o Congresso ignorou termos especficos dos Acordos de Paz de Paris e recusou enviar ajuda militar a Saigon como aquela enviada pela Unio Sovitica a Hanoi. Autores revisionistas diversos dizem que o erro fatal da administrao Johnson no que se refere ao Vietn foi ter optado pela escalada gradual de ataques areos. A derrota tambm teria vindo com a sensao de medo e insegurana no Pentgono e na Casa Branca. De acordo com Vlastos, para um povo to identificado com a iluso da onipotncia da nao, explicar a derrota em termos de mobilizao limitada do poderio militar salvaria o orgulho nacional ferido. Como j vimos e ainda veremos no prximo captulo, o movimento pacifista e anti-guerra tambm foi usado como bode-expiatrio para justificar o fracasso no Sudeste Asitico.

32 33

BEATTIE, Keith. Op. Cit. p. 22 VLASTOS, Stephen. Americas Enemy: The Absent Presence in Reviosionist Vietnam War History. In: ROWE, John C. & BERG, Rick. The Vietnam War and American Culture. Nova York: Columbia University Press, 1991. p. 68

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O processo de cura das feridas deixadas pela guerra teria como parte fundamental o esquecimento cada vez mais rpido de questes polticas, morais e sociais envolvendo a guerra e seu impacto na cultura americana. Tais questes tinham de ser esquecidas, resultando na perda da memria, definida por Beattie como Vietnamnsia isto , um esquecimento induzido.34 O governo era o principal responsvel por este apagar das memrias negativas. O presidente Ford, em abril de 1975, declarou A guerra terminou, at onde diz respeito Amrica. Esses eventos, por mais trgicos que sejam, no significam nem o fim do mundo, nem a liderana norteamericana sobre ele. Kissinger toma a mesma direo que o presidente, e instiga as pessoas a deixarem o Vietn para trs e se concentrarem apenas nos problemas futuros. Em 1989, George Bush tambm declarou em seu discurso de posse que a Amrica precisava esquecer a memria disruptiva do Vietn35. Entretanto, preciso perceber que o esquecimento proposital dessa memria extingue, gradualmente, os efeitos da guerra e pode ser traduzida em uma forma de morte simblica de todos aqueles que dela participaram. O veterano no s est morto, como tambm nunca existiu. O simples fato de caracterizar a guerra em termos de uma tragdia parte desta estratgia de esquecimento, pois, a expresso derrota, para Walter Benjamin, tem o potencial de mudar uma nao, caso ela esteja disposta a confrontar a idia da derrota o que no era a inteno do governo. Desta forma, quando do trmino da guerra e, principalmente, a partir da dcada de 1980, os Estados Unidos evitaram falar em derrota, e reescreveram os acontecimentos do Vietn sob a percepo de uma tragdia. Ronald Reagan, contudo, vai mais alm. Em 1985, o ento Presidente declara que os Estados Unidos, na verdade, venceram a guerra, pois teriam sido superiores em praticamente todos os combates diretos. O que est presente no discurso de Reagan a mesma noo j conhecida pela historiografia revisionista, a idia de que o pas poderia ter vencido a guerra se os soldados tivessem atirado um pouco mais naquele dia; se no houvesse limitaes quanto ao uso da fora, se os pacifistas no tivessem atrapalhado, etc. Essa uma maneira de ignorar certos resultados da guerra, entre eles e mais evidente de que os Estados Unidos foram derrotados. O que tambm nos interessa compreender aqui o porqu do incentivo ao esquecimento da derrota da guerra. De acordo com Keith Beattie, o esquecimento uma34 35

BEATTIE, Keith. Op. Cit. p. 28 BEATTIE, Keith. Op. Cit. p. 29

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condio imprescindvel para a perpetuao de condies e atitudes necessrias para que o pas prossiga com outras intervenes militares no futuro. A administrao Reagan, poca, estava empreendendo uma poltica de preparao militar, que envolvia a reformulao da cultura do engajamento pelas instituies militares.36 Com isso, o Presidente objetivava o resgate da unidade nacional, abalada durante a Guerra do Vietn e tambm no imediato ps-guerra. Por fim, o esquecimento induzido tambm ignorava os problemas que o Vietn teve de enfrentar aps a guerra, eximindo os Estados Unidos de qualquer responsabilidade de reconstruo do pas. Afinal, era quase impossvel estimar as conseqncias da guerra e o impacto da destruio perpetrada pelos americanos no Vietn. Paralelamente ao esforo revisionista do governo, os veteranos tambm tomaram a iniciativa para reverter o esteretipo criado sobre eles. A temporalidade, entretanto, no se apresenta to sistemtica como se percebe na historiografia sobre o assunto. Esforos podem ser vistos desde a dcada de 1970, perpassando o impulso revisionista dos anos 80 e a volta do enaltecimento do soldado com o advento da Guerra do Golfo, no incio dos anos 90. Em seguida, analisaremos mais detalhadamente tais mudanas na representao da memria dos veteranos do Vietn. Como destaca Ana Paula Spini, j em fins dos anos 1960 chegavam denncias de atrocidades cometidas no conflito. Assassinatos contra mulheres e crianas eram relatados pela mdia e por veteranos, cuja imagem de baby killers disseminava-se pela sociedade37. O trauma da guerra e a rejeio pelas pessoas tambm figuravam no esteretipo dos que voltavam do conflito: deslocados, debilitados, impotentes, insanos e incapazes de se relacionar. Tais caractersticas tambm refletiam o estado da nao, e foram retratadas de maneira recorrente, marcando a memria sobre a poca. O cinema foi um dos veculos que ajudaram na propagao da imagem problemtica do veterano, bem como dos horrores da guerra. Neste sentido, como j mencionado, Taxi Driver, Nascido em Quatro de Julho e Rambo so exemplos a se destacar, mesmo que tenham diferentes enfoques. Algumas representaes, assim, contriburam para que a imagem do veterano fosse denegrida mais acentuadamente na sociedade, pela retrica utilizada nos filmes e pela credibilidade que gozavam alguns diretores que, por terem participado do conflito,36

SPINI, Ana Paula. Combates de Memrias: detrao e resgate dos veteranos do Vietn. Revista Eletrnica da ANPHLAC, 2008. Disponvel em: http://www.anphlac.org/periodicos/revista/revista7/1Combates_de_Memorias.pdf. Acesso em: 12 de junho de 2011. p. 13 37 SPINI, Ana Paula. Idem. p. 3

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tinham suas verses do processo consideradas pelo pblico como um retrato mais prximo da verdade. Entretanto, a legitimidade concedida pela participao na guerra seria utilizada de diferentes formas, com diferentes intenes. O cinema no deixou de ser atravessado por esses conflitos. Algumas produes inseriam-se no revisionismo oficial da Guerra nos anos 1980, sem que atuassem como porta-vozes do Estado, ou compactuassem com a orientao conservadora de modo integral. Enquanto Platoon, de 1986, resgata a guerra para dela tirar lies, alm de mostrar o veterano lcido e ntegro, os trs filmes de Rambo, de 1982, 1985 e de 1988 ressaltam o esteretipo do combatente deslocado e violento. Simultaneamente, como disserta John Carlos Rowe, documentrios e docudramas foram feitos por ex-soldados, e atravessam toda a dcada de 1980 tentando defender a imagem e a perspectiva do bom veterano. Em suma, h uma pluralidade de perspectivas que coexistem, o que impede uma sistematizao temporal. H, na realidade, um processo, uma mutao cada vez mais evidente que tende cura da ferida da sociedade, atribuio de um novo significado para o fracasso da guerra, bem como unio da nao. Simultnea e gradualmente, o foco sobre o veterano perturbado d lugar ao papel da guerra em si, e a uma viso humanizada dos combatentes. Um caso bastante exemplar que coroa esta mudana na viso do soldado o filme O resgate do soldado Ryan, de 1998, dirigido por Steven Spielberg. Gary Gerstle analisou esta transformao e a apresentou de forma sucinta, mas elucidativa.(...) no carter do soldado cidado, esses liberais [cineastas] centraram a construo de um americano emblemtico que lutava movido no pelo dio ou por um mpeto de dominar, mas por um dever patritico e um compromisso com os valores republicanos. Um nacionalismo tolerante e decente, eles pareciam argumentar, podia ser alcanado por guerras feitas em nome de objetivos justos e por guerreiros altrustas. Resgatando a figura do soldado cidado e celebrando suas conquistas, esses liberais chamaram a ateno para um acontecimento crtico embora amplamente ignorado na modalidade de guerra americana que se desenvolveu no ps-Vietn: o afastamento do soldado cidado e a adoo, no seu lugar, do guerreiro profissional.38

Desta forma, Rambo, violento, agressivo, viril, que destri inteiramente uma pequena cidade fugindo para no ser pego, d lugar ao capito Miller, lder do peloto, professor de ingls, que cumpre o dever para o qual seu pas o convocou, movido por38

GERSTLE, Gary. Op. Cit. p. 41-42

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valores ticos e nacionalistas e se empenha na misso de resgatar um nico soldado durante a Segunda Guerra Mundial. H uma mudana substancial na figura do soldado e do veterano, que faz parte do longo processo de transformar memrias negativas em positivas; de fazer a sociedade aceitar novamente os soldados e relembrar os valores to caros ao imaginrio da guerra. Outro vis foi estudado por John Carlos Rowe, ao analisar os docudramas criados e narrados por veteranos do Vietn. Estes seguem a onda revisionista que visava absolver a responsabilidade dos soldados e esquecer os traumas do Vietn. Atravs de confisses pessoais e do relato detalhado das experincias nestes documentrios, os diretores buscavam criar, no espectador, um sentimento de identificao com o veterano. Este mostrado como aquele capaz de falar abertamente sobre as devastaes, sobre o que realmente teria ocorrido. Ao final, a imagem traumtica da guerra abandonada, e dela emerge uma lio. Evidentemente, tal modelo tem suas variantes, mas os objetivos da retrica e das tcnicas cinematogrficas empregadas, em geral, convergem. A narrao do documentrio por veteranos, bem como seus depoimentos, aliados ao emprego de imagens do conflito em determinada ordem tentam fazer do soldado uma personalidade, um sujeito. Os espectadores, em resposta, acabam por simpatizar com o veterano, agora visto positivamente. Por fim, segundo Rowe, o pblico aprende com a experincia dos ex-combatentes, o que um dos modos de se curar a ferida, e realiza uma mudana substancial na forma de tratar o veterano39. Um exemplo recente o documentrio de 2005, Sir! No Sir!, o qual trata do movimento antiguerra entre os GIs. Sir! No Sir!40

O filme, dirigido por David Zeiger, tem como subttulo the suppressed story of the GI movement to end the war in Vietnam. Trata-se, assim, de um esforo em reunir memrias silenciadas e utiliz-las para contar a histria de um movimento pouco conhecido. Desta forma, veteranos do seus depoimentos sobre como perceberam que havia algo errado com aquela guerra especfica e de que modo se organizaram para39

ROWE, John Carlos e BERG, Rick (org). Americas Enemy: The Absent Presence in Revisionist Vietnam War History. In: The Vietnam War and American Culture. New York: Columbia University Press, 1992. p. 170 40 Sir! No Sir!: The Suppressed Story of the GI Movement to End the War in Vietnam. Dirigido por David Zeiger. Distribudo por Balcony Releasing, 2005.

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combat-la. O ano de criao do filme, 2005, est muito ligado tambm guerra do Iraque e o documentrio faz parte do Iraq Media Action Project. Este projeto foi uma iniciativa online criada para promover o uso de documentrios informativos para chamar ateno aos problemas da guerra citada. Ou seja, ao mesmo tempo em que se tem filmes como O resgate do soldado Ryan para retomar a figura do soldado-cidado da Segunda Guerra Mundial, h outros que relembram a mobilizao de soldados para se opor a novas guerras. A grande diferena, evidentemente, que um filme possui ampla circulao em todo o mundo, enquanto o segundo sequer entra no grande circuito. Os primeiros relatos do documentrio giram em torno do pensamento dos veteranos quando do incio do conflito. Duas falas especficas resumem bem o que se passava na cabea desses jovens soldados por volta de 1965, quando o Vietn ainda no era um tema to polmico. Bill Short diz:I was certain that every male member of my family had their war, and that thered be a war for me. And I would go off and be a hero, and fight a good fight for this country. () If it had been another time and place, and another war, I might have actually been a very good soldier, because there is part of the military life that I really liked.

E Randy Rowland complementa:() My grandfather was a career officer and my father was a career officer, and I had no reason at all going into the military to think there was anything wrong with the Vietnam War. Or anything wrong with America the beautiful.

Podemos ver atravs destes relatos como o imaginrio da guerra se fazia presente na sociedade americana. De gerao a gerao, mais do que um evento isolado e imprevisto, a guerra era esperada pelos homens como um dever patritico. Se avs, pais, tios haviam lutado e voltado como heris, no havia razo para duvidar da legitimidade e da necessidade da Guerra do Vietn. E tal como um rito de passagem da inocncia maturidade, o soldados precisavam lutar para, em seguida, serem reconhecidos como heris. Contudo, no tardou para que estes veteranos percebessem os problemas da empreitada para a qual foram chamados. Tal processo ocorreu de forma variada, em que cada soldado deixava de lado o orgulho de ser um membro do Exrcito americano para

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passar a question-lo. Da mesma maneira que o movimento antiguerra civil, foi a partir da Ofensiva do Tet, em janeiro de 1968, que a mobilizao de GIs alcanou nvel nacional. De acordo com Oliver Hirsch e Keith Mather,We joined together in July, 1968. We took sanctuary in a church and chained ourselves to ministers. We essentially called the press and said to them, Were not going to Vietnam. Were refusing our orders. And in fact were resigning from the military. Come and get us. The fact that it took them three days to decide how to deal with this tactically, that was great. We had nothing to lose. And we had no idea what was gonna come. And thats a free place. Its a really free place, you know. You don't know whats gonna happen, you don't know where youre going, but you know what youre doing.

Abrigar-se num santurio local sagrado servia como uma forma de pessoas evitarem a priso. Tal premissa existia desde os tempos medievais e foi recuperada, sobretudo na dcada de 1980, quando algumas igrejas americanas passaram a decretar santurio para refugiados da Amrica Central que tentavam escapar das guerras civis em seus pases. Apesar do protesto, seus participantes foram presos e levados para o San Francisco Presidio Stockade, onde 27 pessoas realizaram um sit-down41 a fim de manifestar sua insatisfao contra as condies de vida na priso e contra a morte de um dos presos. O Presidio Mutiny, como ficou conhecido, foi um dos primeiros protestos a atrair a ateno da nao oposio dos soldados Guerra do Vietn, sobretudo aps as duras e longas condenaes de seus participantes. A memria de Randy Rowland um dos participantes do motim sobre como se tornou avesso ao conflito do Vietn e foi parar na priso citada reveladora:The moment of my epiphany, or the thing that came to me was, working in a military hospital up at Fort Lewis, in a neurology floor and it was all head and neck injuries. Guys who were so paralyzed that couldn't turn the page of a book, and they couldn't even take a poop by themselves, and they couldn't kill themselves. And every day we'd come in as the medics to take care of them and they would beg us every day to kill them, because they couldn't kill themselves. And it was such a horror, it caused me to think to myself... cause I grew up in a military family. And then there I was, faced with this situation where guys every day were asking me to kill them. And it was so horrible I had to... at a certain point I just made a vow to myself that I would never put somebody else into the hospital on those circumstances. That I wouldn't be the guy who'd squeeze

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Um protesto sit-down, como um sit-in, uma manifestao pacfica em que seus participantes sentam no cho de um estabelecimento at que suas exigncias sejam cumpridas ou ocorra sua retirada pelo uso da fora.

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the trigger that caused some human being to be in that dreadful situation. The other thing that bothered me was that those guys who could talk, the ones that would beg you to kill them, none of them felt that they'd made the sacrifice for a good reason. They all told stories of brutalizing the Vietnamese people, of being the thugs. And a single one of them felt like his sacrifice was for a good cause.

Apesar de longa, a citao mostra uma das formas pelas quais soldados lotados em bases norte-americanas se opunham guerra. O relato de veteranos feridos ou que j haviam cumprido seus turnos trazia em primeira mo a realidade do que acontecia no Vietn. O orgulho de voltar como heris aos Estados Unidos dava lugar vontade de morrer, tanto pelos graves ferimentos como pela infelicidade de ter lutado por algo que no valia a pena. Se, por um lado, os relatos sobre as atrocidades cometidas fomentaram a construo da imagem negativa do soldado do Vietn pela sociedade, por outro serviram como catalisadores da oposio guerra e conseqente unio entre os soldados. Outro testemunho, de David Cline, tambm explica o motivo de ter entrado no movimento antiguerra. Aps um ataque surpresa de vietcongues, o veterano havia desmaiado aps levar um tiro. Quando a situao se acalmou e um sargento lhe mostrou um vietnamita morto por Cline, este comeou a pensar.I wonder if he had a girlfriend and how his mother is going to find out and things like that. When you just went through an experience of that nature, and you find out that it's all lies and that they're just lying to the American people, and your silence means that you're part of keeping that lie going, I couldnt stop, I couldnt be silent. I felt that I had a responsibility to my friends and to the country in general, and to the Vietnamese. So I became involved in the movement.

Se o dever cvico dos soldados at a Guerra do Vietn era lutar uma guerra justa, levando a civilizao e a democracia aos pases necessitados, a fim de ao mesmo tempo engrandecer a nao americana, tal situao mudou com o conflito na Indochina. Pelo relato de Cline, a obrigao e responsabilidade dos soldados agora era denunciar s pessoas as mentiras que eram contadas pelo governo americano. Munido de legitimidade pela participao direta, o movimento antiguerra dos GIs ganhou nmero e fora principalmente em 1968. Com o crescimento do nmero de soldados que se voltavam contra a guerra, alguns pacifistas abriram as primeiras coffeehouses. Estas eram construdas nas cidades

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prximas s bases militares norte-americanas, e serviam como um ponto de encontro para soldados e veteranos contrrios ao conflito. Com bebidas diversas, os discos mais recentes de folk e rock e contando ainda com diversos jornais da imprensa GI underground, as coffeehouses logo se tornaram uma pea importante no movimento antiguerra. Em uma cena gravada em um destes locais, exibida uma cena em que um veterano do Vietn fala a novos soldados sobre o que acontecia no conflito e sobre o movimento GI.And they go out on ambushes. Like for a one-month period, we go out on ambushes and we kill over 50 people in the early hours of the morning and you start looking at bodies, because theyve got to get their body count42. And whos there? A majority were women and children. And what were they doing? What was their crime? They were carrying food... They were carrying food to their friends up in the hills. For anyone who thinks that they can duck out of it and hopefully be a clerk typist and not have to see any of that, hes making a mistake because hes supporting the war.

Outro assunto que foi destacado pelo documentrio e que nos interessa neste trabalho o papel da imprensa GI underground no movimento antiguerra. Considerada como a fora vital do movimento GI, existiam cerca de 300 jornais antiguerra por volta de 1968. O fenmeno no era exclusivo e restrito aos Estados Unidos: onde quer que houvesse soldados americanos, existiam peridicos dedicados exclusivamente a eles. Distribu-lo, entretanto, consistia em crime sujeito corte marcial, o que obrigava os editores a conceberem mtodos complexos de produo e envio destes jornais aos soldados. Como relatado no filme, o editor do peridico Last Harass, por exemplo, foi condenado a oito anos de priso sob o pretexto de posse de maconha, enquanto que o objetivo real era atingir suas publicaes. Por fim, podemos concluir este captulo com algumas observaes feitas no testemunho do veterano do Vietn e socilogo Jerry Lembcke, autor de The Spitting Image: Myth, Memory and the Legacy of Vietnam. Segundo Lembcke, a histria disseminada aps a guerra em que os veteranos, ao regressarem, eram alvo de pacifistas falsa. A explicao para a divulgao deste mito residia na necessidade dos Estados Unidos explicarem por que tinham perdido a guerra: a America no havia sido derrotada por uma nao subdesenvolvida, mas sim porque teria sido trada em casa apunhalada pelas costas.42

Como referido anteriormente, a contagem de corpos foi instituda por McNamara, e era o mtodo utilizado pelos Estados Unidos para mensurar o sucesso na guerra.

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Alm disso, era extremamente importante para o governo americano sobretudo na era Reagan desvincular a imagem do ativismo da imagem do soldado. Apontar a sociedade civil ativista como a culpada eximia o governo da derrota, deslegitimava a vitria do Vietn do Norte, apagava a memria do soldado ativista e supostamente reduziria o movimento antiguerra em intervenes futuras. O autor, ento, conclui que estas falsas memrias saram vitoriosas e persistem at hoje.If you went back and looked at the front pages of newspapers in 1969, 1970, what you were going to see on the front pages of newspapers was about Vietnam vets. They were in the streets. They were political activists. They're on the Capitol Mall, and giving the Nixon Administration fits. This is stuff that was in living rooms all over America. So people knew this, and this is an important piece for talking about, how memory about the war has been rewritten, has been reconstructed. This is gone. This has been erased. This has been displaced. You mention the war in Vietnam to a lot of people, and they'll say, Yeah, and what happened to those guys when they came home was sure a shame. You ask them about any of the major events of the war, and it's like people have no clue.

Apesar de todas as informaes e publicaes sobre os soldados e veteranos durante e aps a guerra, a disseminao de algumas notcias forjadas acabou por definir como aqueles combatentes seriam lembrados: no como militantes ativos, mas como vtimas passivas de hordas antipatriticas. Evidentemente, esforos como o documentrio Sir! No Sir! empenham-se em mudar tal perspectiva.

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A tradio pacifista

Embora tenhamos mostrado no captulo anterior como o imaginrio da guerra est presente na histria norte-americana desde sua formao at hoje, essencial mostrar a outra face da moeda. Afinal, por mais que a guerra se mostrasse plausvel e necessria para grande parte da sociedade, sempre esteve longe de ser um consenso entre todos. Onde quer que o conflito armado tenha acontecido, a presso de grupos contrrios a ele se fez presente. Esta relao conflitiva pode ser explicada pela existncia de uma relao dialtica no imaginrio da guerra e no mito da misso americano. Ao mesmo tempo em que, como visto anteriormente, a guerra um dos meios pelos quais a nao se afirma e confere unidade sociedade, um dos principais objetivos dela alcanar a paz. Em outras palavras, um conflito armado ocorre quando h ou pode haver uma perturbao do estado de paz, e este restabelecido aps o confronto, com a eventual vitria. Deste modo, algumas experincias blicas dos Estados Unidos, at mesmo as geradas pela doutrina Bush e sua guerra ao terror, visavam o combate direto e antecipado como forma de garantir a segurana, visando paz mundial. Em suma, na retrica da guerra, a paz est sempre presente. Como sonhou Woodrow Wilson, tal paz seria ser eterna aps a Primeira Guerra Mundial, considera pelo ento presidente como a guerra que iria acabar com todas as outras guerras. Entretanto, o movimento pacifista possua um apego maior ao significado de paz. Na verdade, possvel falar em movimentos pacifistas, tamanha a sua diversidade e perodos de atuao diferentes. Como ressalta Charles DeBenedetti, muitos se limitaram a atividades antiguerra, opondo-se ao envolvimento americano em vrias guerras por inmeras razes. Outros defendiam a causa a partir do internacionalismo, afirmando que a paz viria com a institucionalizao de procedimentos e organizaes que preveniriam disputas entre as naes43. Outros ainda se prendiam tica pacifista, variando desde a no-resistncia autoridade governante,

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Este tipo de internacionalismo de cunho liberal associado a tal perspectiva multilateralista nasceu na virada do sculo XIX para o XX, na chamada Era do Progressivismo, incentivando a criao de organizaes filantrpicas nos Estados Unidos voltadas para prevenir disputas. Esse mpeto gerencial da ordem internacional, no entanto, encontrou fortes barreiras no pas, uma vez que se temia que os organismos internacionais usurpassem parte da soberania dos Estados. Tal fato explica a derrota da proposta de adeso Liga das Naes no ps-Primeira Guerra Mundial.

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a resistncia no-violenta injustia. Havia ainda aqueles que defendiam o antimilitarismo, partido da premissa que grandes exrcitos eram uma ameaa liberdade individual44, constituio democrtica e por fim paz. Capitalistas, feministas, anarquistas e socialistas, entre outros, completam o quadro e tambm defendiam a causa como atividades paralelas s suas lutas45. Ainda segundo DeBenedetti, os reformistas da paz, como os chama, atuariam segundo duas linhas principais de ao. Em primeiro lugar, denunciavam a guerra como uma forma de comportamento coletivo que corrompia a ordem social, a tica Crist e o bem-estar dos homens. Em segundo lugar, partiriam de tais princpios para estabelecer meios alternativos de resolver os conflitos humanos, alm de buscarem modos de vida em que a paz permanecesse como fruto de uma dinmica social ativa46. Um exemplo prximo ao tema deste trabalho que ilustra o caso acima o movimento hippie. Embora o pacifismo fosse apenas um dos vrios princpios que tal segmento da contracultura pregava, essencial na caracterizao da mesma. Da mesma forma que a trama central de Hair pea da Broadway de 1968 que faz um retrato da poca e da cultura hippie o dilema moral de Claude, se deve ou no queimar seu draft card47 era a realidade de milhares de jovens por todo o pas. Recusar-se a servir o Exrcito no era apenas contrariar a lei. Recusar o servio militar era crime inafianvel nos Estados Unidos j que a defesa da ptria era extremamente valorizada pelos setores mais conservadores da sociedade. Para os hippies, por outro lado, concordar com o alistamento era compactuar com o governo e ir contra seus ideais de paz. Para a contracultura, era inconcebvel a idia de matar pessoas, muito menos em uma guerra to imoral como a do Vietn. Ao mesmo tempo, no era raro ver hippies abandonando os compromissos sociais indesejados da sociedade contempornea o chamado drop out e passando a viver uma vida em comunidades alternativas, perseguindo a harmonia, com valores prprios e que se apresentavam como o ideal para a sociedade em larga escala. Em suma, os movimentos pacifistas americanos no eram apenas opostos guerra, mas tambm propunham criar a paz, a partir de modelos alternativos de44

De Emma Goldman Dwight Eisenhower, vrias figuras polticas de diferentes matizes alertaram para o que o Presidente-general chamou de complexo industrial-militar, expresso que at hoje usada pela esquerda americana. Seu significado remete existncia de uma rede poltica e monetria entre legisladores, as Foras Armadas e o setor industrial, o qual d apoio aos dois primeiros. 45 DEBENEDETTI, Charles. The peace reform in American history. Estados Unidos: Indiana University Press, 1980. p. XI 46 DEBENEDETTI, Charles. Idem. p. XII 47 Carta de convocao militar

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sociedade que poderiam redimir a nao de seus erros. Antes de adentrarmos ao movimento pacifista especfico da dcada de 1960, que em muito se relaciona ao Vietnam GI, faremos um breve histrico dos principais momentos vividos pelos Estados Unidos em que o conflito armado suscitou ao mesmo tempo a manifestao daqueles que a ele se opunham. O objetivo mostrar como errnea a assero de que todos os americanos apiam qualquer empreitada blica na qual o governo investe. Dessa forma, o captulo gira em torno do dissenso americano que, se no foi efetivo o suficiente para acabar com a Guerra do Vietn, foi forte o bastante para reduzir sua durao, seus custos e suas perdas.

O pacifismo ao longo da histria americana De acordo com DeBenedetti48, a tradio pacfica americana como um projeto reformista acompanhou os principais acontecimentos dos Estados Unidos. J no perodo colonial, possvel ver focos dispersos, mas presentes, que se opunham s investidas inglesas na colnia. Tais grupos eram formados por seitas anabatistas e por quakers, que possuam a busca da paz como um de seus princpios fundamentais. Com a guerra de independncia americana, em 1776, a paz tomou a forma de uma reforma revolucionria, a qual se mostrava funcionalmente relacionada ao sucesso da nova nao e de seus ideais como forma de fugir aos conflitos que dominavam o Velho Continente poca e ao controle irresponsvel da metrpole49. Aps a conquista da independncia, entretanto, os conflitos continuaram a ocorrer, e os Estados Unidos sofreram invases francesas, espanholas e inglesas. Com a guerra de 1812 a 1814 contra a Gr-Bretanha, inclusive, o conflito foi de larga escala e, aps seu fim, o movimento pacifista cresceu de forma mais organizada. No mais divididos por seitas, os pacifistas agora se uniam sob o esprito evanglico e sob a crena na perfectibilidade humana. Alm disso, estas sociedades pacifistas se juntavam a fim de organizar a nao contra o pecado da guerra e em benefcio da paz crist e racional, visto que nesta poca j havia tentativas de se conciliar f e razo. Fazer a paz tinha agora a conotao de dever humanitrio. Um dos expoentes deste pacifismo do sculo XIX foi William Ladd, fundador e presidente da American Peace Society, que48

Este captulo foi baseado nas obras The Peace Reform in American History, de Charles Benedetti, e em The American Peace Movement, de Charles Chatfield. Ambos so referncias sobre o tema e nos permitem a construo de um quadro geral dos acontecimentos e grupos. 49 DEBENEDETTI, Charles. Op. Cit. p. XII

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props uma organizao mundial na qual haveria uma corte e leis internacionais para reger os embates entre pases. Elihu Burritt foi outro exemplo do pacifismo americano da poca, e rejeitava at a guerra defensiva50. Nesta primeira fase do pacifismo da mesma forma que o movimento abolicionista a maioria dos lderes era formada por cristos evanglicos homens, enquanto o grosso dos membros das sociedades era composto por mulheres da classe mdia. Durante a Guerra Civil americana, ocorrida entre 1861 e 1865, os ativistas pacifistas submeteram seu compromisso com a paz luta da nao pela sobrevivncia e pelo abolicionismo. O que se viu em seguida foi a formao dos primeiros think tanks, isto , organizaes que conduziam pesquisas para defender suas causas em setores especficos, como a poltica social, a economia, o militarismo e a tecnologia. No caso estudado, os think tanks tinham como propsito advogar pela paz, e seus membros eram advogados, homens de negcios e polticos. Sua formao provinha do crescimento dos movimentos pacifistas mundiais, bem como da industrializao do pas, que fomentara a economia e dera um impulso financeiro a estes grupos sociais. Menos apegados a valores religiosos, os think tanks valorizavam a arbitragem internacional sobre temas polmicos, a criao de formas de organizao de um mundo cada vez mais interdependente e a pesquisa cientfica sobre a guerra e suas alternativas. No perodo em que os Estados Unidos entravam no perodo que ficou conhecido como a Era do Progressivismo, grupos como o American Society of International Law, o Carnegie Endowment for International Peace e o World Peace Fundation foram criados, pregando a reforma prtica da paz. Tais agncias pretendiam transmitir o conhecimento de seus especialistas pacifistas s massas e promover a integrao entre os pases. Os think tanks teriam uma presena forte at a Primeira Guerra Mundial, quando a magnitude do conflito, indito, superou expectativas. O conflito de 1914 a 1918, assim, foi um divisor de guas na reforma pacifista. As naes mostraram definitivamente como a modernizao e os avanos da tecnologia poderiam destruir o homem. Os ativistas tentaram como puderam evitar a guerra, mas a hostilidade e a morte em massa de soldados e civis superaram qualquer protesto. Porm, a esquerda no cooperou com o esforo de guerra, e praticamente toda a liderana do Partido Socialista foi presa por objeo consciente ao conflito. Emma Goldman foi uma das vtimas da perseguio, e serve ainda hoje como smbolo da resistncia. Em seu50

CHATFIELD, Charles. The American peace movement: ideals and activism. Estados Unidos: Twayne Publishers, 1992. p. 9

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discurso Patriotismo: uma ameaa sociedade, Goldman critica a atitude do governo em usar o patriotismo como forma de cooptar a populao guerra.O argumento de que o exrcito e a marinha em prontido so a melhor forma de garantir a paz to absurda quanto a proposio de que os mais pacficos cidados so aqueles que andam com armamento pesado. O que o patriotismo: o amor ao lugar onde se nasceu, o lugar das lembranas, esperanas, sonhos e brincadeiras da infncia? Se isso fosse patriotismo, poucos Americanos hoje poderiam se considerar patriticos, porque o lugar dos jogos infantis se transformou em fbricas, moinhos e minas. () Leon Tolstoi, o grande antipatriota de nossos tempos, define patriotismo como o princpio que justifica o treinamento de assassinos. Patriotismo () a superstio artificialmente criada e mantida atravs de uma rede de mentiras e falsidades; uma superstio que rouba o auto-respeito e a dignidade e aumenta a arrogncia e a vaidade (...) Patriotismo exige fidelidade bandeira, o que significa obedincia e prontido para matar pai, me, irmo, irm.51

Grupos pacifistas passaram a atuar, desde 1915, em organizaes internacionais visando o fim da guerra e, aps o conflito, fizeram-se presentes na Liga das Naes (a despeito da no adeso dos Estados Unidos), na Corte Internacional, em tratados de desarmamento e em tratados de arbitragem. O movimento ganhava um cunho ideolgico de esquerda e buscava estabelecer a paz imediatamente. Porm, vale ressaltar que, como quase todos os movimentos sociais, havia discordncias internas. Enquanto alguns internacionalistas na Liga das Naes advogavam pela proeminncia norteamericana na manuteno da paz global, outros defendiam uma postura mais democrtica e multilateral que, aliado reconstruo internacional da economia em momentos de crise, iria acalmar os nimos belicistas. Ao mesmo tempo, pacifistas liberais pregavam o uso da ao no-violenta como forma de defender a justia, enquanto outros, mais radicais, se opunham a qualquer cumplicidade com a guerra. Porm, passada a Primeira Guerra Mundial e apesar dos esforos por diferentes vertentes, estabelecer uma paz duradoura se tornou um objetivo mais distante da realidade. Os movimentos anticolonialistas, os sucessos de Lnin na Rssia e o

surgimento do fascismo criaram uma situao de tenso que se estendeu por toda a dcada de 1930, culminando na Segunda Guerra Mundial. Novamente, os pacifistas questionavam-se e dividiam-se sobre a participao ou afastamento dos Estados Unidos daquela guerra. Contudo, aps o episdio de Pearl Harbor e as notcias sobre as51

AZEVEDO, Ceclia da Silva. Amando de olhos abertos: Emma Goldman e o dissenso poltico nos EUA. Varia Histria, v. 23, p. 350-367, 2007. p. 361

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atrocidades dos nazistas, a maioria dos pacifistas decidiu que, naquele momento, a guerra era mais necessria que a paz. Com o desfecho positivo para os Aliados, mas com o saldo de 55 milhes de mortos52 e com o a advento da bomba atmica, a reforma pacfica mostrava-se necessria mais uma vez. Com a Guerra Fria, e a conseqente disputa entre as duas superpotncias da poca, os Estados Unidos voltaram-se para a conteno do comunismo no mundo. Assim, a Doutrina Truman, de 1947 representava bem as preocupaes do governo americano. Falava-se mais de segurana do que de paz neste perodo, de forma que se tentava reprimir o poder sovitico e inibir movimentos revolucionrios de esquerda a partir da contra-insurgncia ou seja, uma forma de ao militar de baixa intensidade. A tenso do perodo e o medo da ameaa comunista nos Estados Unidos haviam crescido demasiadamente, de maneira que manifestaes pela paz poderiam ser vistas como suspeitas, ou at mesmo subversivas. O incio da Guerra Fria havia deixado o movimento pacifista na defensiva, quase impotente, agravado ainda pelo abandono pelo governo de medidas como o desarmamento, a no-interveno e a paz. No incio da dcada de 1960, mobilizaes sociais como o movimento pelos direitos civis e os protestos contra as armas nucleares trouxeram novas organizaes e novas oportunidades ao movimento pacifista. Com uma combinao de feministas, estudantes e intelectuais, o esforo para estabelecer a paz ganhou nova fora. Contudo, com a escalada da Guerra do Vietn, por volta de 1965, tais ativistas optaram por deixar suas preocupaes contra a corrida armamentista de lado para engajarem-se no ativismo antiguerra. E assim tinha incio um dos movimentos pacifistas de maior magnitude dos Estados Unidos, o qual ser analisado mais minuciosamente em seguida.

O movimento pacifista contra a Guerra do Vietn

O movimento pacifista fora reconstitudo aos poucos em meados da dcada de 1950, quando a corrida nuclear passou a assombrar o dia-a-dia dos americanos o que fez os protestos contra tais armas ganharem as ruas. Cerca de dez anos depois, com o aumento do esforo militar americano no Vietn, o volume de crticas aumentou consideravelmente. Os defensores da paz, assim, da mesma maneira que

problematizaram o uso de armas nucleares, buscaram informar e atrair o pblico nova

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DEBENEDETTI, Charles. Op. Cit. p. XV

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causa. Desafiando o governo e em meio s eleies, o movimento antiguerra foi conduzido tanto dentro do sistema poltico, quanto nas ruas, principalmente entre 1968 e 1971. Vale ressaltar, entretanto, que o movimento antecede o agravamento do conflito e, antes de 1963, j havia dissenso sobre a presena americana no Sudeste Asitico. Acadmicos, correspondentes internacionais e lderes polticos eram os principais agentes liberais da crtica e, juntos com os pacifistas avessos corrida nuclear, no tardaram a traar os argumentos contrrios Guerra do Vietn que dariam a tnica do movimento antiguerra. Segundo Charles Chatfield, seriam quatro. Primeiramente, os Estados Unidos no teriam poder econmico o suficiente para criar um governo representativo e responsvel a partir de fora. Em segundo lugar, a interveno iria enfraquecer a estabilidade regional, o que faria Ho Chi Minh dependente da China e, por fim, traria a China para uma possvel guerra contra os Estados Unidos. Uma terceira crtica girava em torno dos ideais americanos, os quais estariam sendo violados pelo apoio a um governo repressivo no Vietn do Sul. E, para finalizar, acreditava-se que uma grande guerra de guerrilha seria pior do que um governo comunista, j que lutar at o ltimo vietnamita seria imoral, por objetivar um interesse americano. O movimento antiguerra, todavia, estava longe de ser unificado e, se tais argumentos s vezes eram pontos comuns entre os grupos, a diversidade de opinies sobre o que precisava ser mudado e como faz-lo era imensa. Pequenos grupos surgiam e desapareciam de acordo com o momento da guerra, sendo muitas vezes criados justamente para combater pequenas causas. Muitas vezes, a atuao contra a guerra nem era definida por grupos, mas por atitudes individuais, como veremos mais a frente. Porm, algumas organizaes maiores que tiveram incio nos anos 1960 seriam aquelas que comandariam a maior parte das manifestaes e as que mobilizavam um maior nmero de participantes. Um desses grupos era o SANE The Committee for a SANE Nuclear Policy criado 1957. Formado principalmente por liberais internacionalistas e com vrias celebridades pacifistas em seu meio, tinha o intuito de impedir a corrida nuclear e cessar os testes com bombas atmicas pelo governo Eisenhower. Por outro lado, representando os pacifistas tradicionais, tinha-se o WILPF Womens International League for Peace and Freedom existente desde 1915. Formado por mulheres, no impunha limitaes de vises polticas e religiosas, e empenhava-se em estudar as causas da guerra e solues para a paz permanente. No que se refere aos pacifistas radicais, temos o WRL 33

War Resisters League de 1923. Criado por indivduos presos durante a Primeira Guerra Mundial por recusarem o servio militar, continuou suas atividades nas guerras seguintes, com aes mais extremadas. Um grupo que merece ateno especial o SDS Students for a Democratic Society. Formado em 1960, chamou ateno em 1962 quando, ao lanar seu manifesto, conhecido como Port Huron Statement, definiu suas propostas de reforma para criar uma America melhor. Charles Chatfield destaca ainda que o SDS era a expresso organizada da New Left. Esta era composta por autores como C. Wright Mills e Herbert Marcuse, e representava uma nova viso poltica dos Estados Unidos. Impacientes com a retrica da Old Left pautada quase que ortodoxamente nos ensinamentos de Marx mas tambm insatisfeitos com as reformas liberais as quais julgavam fomentar a injustia social no pas os autores identificados com a New Left propuseram novos caminhos. Combinando psicologia, histria e cultura, defendiam a ao sobre a teoria; incluso sobre a diviso; descentralizao institucional sobre consolidao do governo. No tardou para que estudantes radicais, indivduos envolvidos na luta pelos direitos civis e intelectuais voltados ao se sentissem atrados pela nova linha da esquerda. Entretanto, no perodo de escalada da guerra, cada grupo atuava separadamente contra assuntos variados referentes Guerra Fria e poltica interna dos Estados Unidos. Todavia, aos poucos as organizaes perceberam o aumento do interesse americano no subdesenvolvimento do Terceiro Mundo e suspeitaram da vontade do governo em realizar aes militares contra-revolucionrias. No tardou para que o Vietn viesse a confirmar tal suspeita, por volta de 1963. A partir de ento, liberais, pacifistas tradicionais e radicais tinham uma preocupao em comum para tentarem articular suas foras. At 1965, o que se viu foram aes isoladas, com o SANE clamando pela sada do Vietn; uma participante do WILPF colocando fogo em si mesma em protesto, como fizeram os budistas vietnamitas dois anos antes; e o SDS crescendo e realizando movimentaes. Ao mesmo tempo, liberais membros de universidades organizaram os primeiros teach-ins, varando a noite com aulas e debates sobre o Vietn. Ainda ao longo de 1964, liberais de outros grupos, como o Americans for Democratic Action manifestaram-se em frente Casa Branca pela negociao da paz. Pacifistas radicais fizeram tambm uma viglia fora da Conveno Nacional do Partido Democrata em Atlantic City, contra a poltica externa americana. No passar de dois anos, mltiplas frentes antiguerra foram criadas, com pessoas de diferentes origens

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e grupos, e exigncias tambm variadas. Os movimentos contrrios Guerra do Vietn estavam apenas no incio de uma luta que duraria cerca de dez anos. Assim, de 1964 a 1965, o movimento antiguerra havia assumido uma composio triangular, que definia os problemas de integrao dos trs diferentes grupos: os antiimperialistas da Velha e da Nova Esquerda; os pacifistas radicais, proponentes da no-violncia revolucionria; os liberais pacifistas, que incluam desde senadores a ativistas Quakers. Os primeiros acreditavam que a guerra se