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Vingança

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Este livro apresenta texto, fotos e partituras originais do espetáculo Vingança. Trata-se de uma iniciativa pioneira em teatro musical, que oferece a um público mais amplo o contato com este inebriante jogo de paixões criado por Anna Toledo a partir da obra de Lupicínio Rodrigues.

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AUTO

RES

NACIO

NAIS

Co leção Dramaturg ia

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Impresso no Brasil, março de 2014

Copyright do texto © Anna Toledo

Copyright dos arranjos © Guilherme Terra

Copyright dos croquis © Fabio Namatame

Copyright das fotos © João Caldas

Os direitos desta edição pertencem a

É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.

Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP

Telefax: (5511) 5572 5363

[email protected] · www.erealizacoes.com.br

Editor

Edson Manoel de Oliveira Filho

Gerente editorial

Sonnini Ruiz

Produção editorial e revisão

Liliana Cruz

Preparação

Marcio Honorio de Godoy

Capa

Cassiano Pires / LAUSAC e Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É

Projeto gráfico

Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É

Diagramação

André Cavalcante Gimenez / Estúdio É

Pré-impressão e impressão

Edições Loyola

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer

reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela

eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio

de reprodução, sem permissão expressa do editor.

A utilização no todo ou em parte do texto, dos arranjos, dos croquis ou

das fotos, sob qualquer forma ou modalidade, depende de autorização

prévia e expressa de seus titulares.

Interessados no licenciamento do texto, dos arranjos, dos croquis ou

das fotos para montagem, adaptação ou representação deverão entrar

em contato com Guandama Produções Artísticas Ltda., aos cuidados

de Marcel Nadal Michelman ([email protected]), para

mais informações.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Toledo, Anna Vingança / Anna Toledo. – São Paulo: É Realizações, 2014. (Biblioteca teatral - Coleção dramaturgia)

ISBN 978-85-8033-160-8

1. Teatro brasileiro I. Título. II. Série.

14-02165 CDD-869.92

Índices para catálogo sistemático:1. Teatro : Literatura brasileira 869.92

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Coleção Dramaturg ia

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SUM

ÁRIO

Agradecimentos | 7

Notas do diretor | 9

Personagens | 11

Ato 1 | 13

Ato 2 | 37

Ficha técnica | 55

Croquis | 57

Fotografias | 61

Partituras | 73

Maria Rosa [Prólogo] | 73

Se Acaso Você Chegasse | 75

Você Não Sabe | 79

Medley – Esses Moços | 83

Há um Deus | 92

Não Conte pra Ninguém | 94

Eu e Meu Coração | 98

Rainha do Show | 102

Foi Assim | 107

Volta | 116

Nervos de Aço | 119

As Aparências Enganam | 126

Finale Ato I | 130

Nunca | 136

Quem Há de Dizer | 144

Os Óculos do Vovô | 150

Vingança | 153

Felicidade | 159

Maria Rosa | 164

Cadeira Vazia | 170

Judiaria | 176

Morte de Maria Rosa | 180

Ela Disse-me Assim | 185

Maria Rosa [Epílogo] | 189

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agradecimentos | 7 | vingança

A tarefa de escrever um agradecimento para a edição do meu primeiro texto teatral – e primeiro livro – me encheu de angústia e, por um momento, senti vontade de pu-blicar apenas o texto, sem nenhuma palavra a mais. No momento seguinte me dei conta de que, se não houvesse estas pessoas me ajudando, não estaria escrevendo este agradecimento: não haveria texto, nem peça, nem livro.

Muito obrigada, portanto:

Aos amigos queridos que leram pacientemente a sinopse, a escaleta, o primeiro rascunho ou a versão final: Guto Barra, Cristovam Freitas, Marcio Mattana. Ao meu pai, Odilon Vargas Toledo, que leu e revisou. A André Dias, que me encheu de perguntas para que eu encontrasse as respostas. A Gisele Jordão, pelo empurrão inicial.

A Célia Forte, a melhor incentivadora e apoiadora que eu poderia desejar. O seu apoio e confiança vieram no momento decisivo. Este trabalho só aconteceu porque você acreditou também.

A Guilherme Terra, Kátia Barros e, novamente, a André Dias, que embarcaram junto comigo nesta jangada ima-ginária. Ao elenco da primeira leitura no Masp – Amanda Acosta, Carol Bezerra, Roberto Rocha, Jonathas Joba, Serginho Rufino –, ao elenco que estreou a peça no

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CCBB/SP – Ana Carolina Machado, Andrea Marquee, Luciano Andrey – e aos que embarcam agora na aven-tura da nossa segunda temporada (Amandinha Acosta, Leandro Luna). A toda a “família” Morente Forte, em especial Célia, Selma e Egberto, que abraçaram o projeto e o tornaram possível. A João Caldas, que traduziu nos-so espetáculo em fotos lindas. A Edson Filho, da Editora É Realizações, que também apostou nesta ideia.

A minha família, Kusum Verônica Toledo, Guilherme Dias, Odilon Vargas Toledo, Cristina e Nina Bicalho, Silvio e Ivamara Michelman, pelo apoio e pela confiança.

A meu marido, Marcel Nadal Michelman, pelo apoio em forma de amor e alegria, em todos os momentos, além das fundamentais injeções de coragem. E, claro, pelo tra-balho dedicado à concretização deste projeto.

Vingança se passa em um universo de paixões amplifica-das, em que os desejos comandam e se justificam como lei. Ninguém descreveu esse universo tão bem como Lupicínio Rodrigues em suas canções. Espero ter honrado sua obra.

Esta peça é dedicada a Léa Vargas Toledo (in memoriam) e a Dóris Eloah Rodrigues de Oliveira, minhas avós.

Anna Toledo

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notas do diretor | 9 | vingança

Ano 2000. Num teatro da praça Roosevelt, uma voz ecoava cantando “Amendoim Torradinho” à la Janis Joplin. Foi assim que conheci Anna Toledo.

Quando a vida nos reuniu novamente, anos mais tar-de, a empatia foi imediata, o que resultou numa par-ticipação em seu show Disfarça e Chora. Cantávamos Cartola, Chico Buarque, Lupicínio Rodrigues... Éramos acompanhados pelo jovem pianista Guilherme Terra. Formava-se ali a equipe de criação de Vingança, que en-tão se chamava Dramalhão, e era um projeto de dança e música especialmente criado para um Festival de Teatro Musical na Antuérpia.

Veio a crise econômica de 2008, o festival foi cancela-do. Nosso projeto estava vivo. Começamos a saga de encaminhamento do trabalho a leis de incentivo e en-tendemos que ele era teatro. Começamos a desenvolver uma dramaturgia. As canções de Lupicínio Rodrigues soavam como cenas prontas.

Sul do Brasil. Três triângulos amorosos se confundem numa história de corpos entrelaçados. A obra do compo-sitor flerta com uma tragédia anunciada. Seis atores, pro-tagonistas e narradores de uma dramaturgia num limiar entre o melodrama e a tragédia. Herança expressionista rodrigueana, tendo a música como única testemunha.

A partir da obra de Lupicínio Rodrigues, Anna Toledo retrata uma época de maneira tão cruelmente real, que as letras se fundem ao contexto, não apenas ilustrando a história, mas movendo a ação dramática, enquanto as melodias e os arranjos criam um gráfico emocional perfeitamente inserido às situações propostas pelo texto, atribuindo polaridade a cada personagem. A música é o combustível para o desfile da nossa própria humanida-de, que nos aterroriza e fascina. Somos todos grotescos e sublimes. Desejo, ódio, paixão, traição, morte, vingança. Clichês melodramáticos que denotam estreita relação com o universo de Nelson Rodrigues.

A encenação parte de elementos descritos na obra do com-positor: cadeiras vazias, nervos (cabos) de aço. A capa de re-talhos feita com vestidos antigos de Maria Rosa permeia e inspira a fragmentação da narrativa cênica. Em referência a essa fragmentação, faço uso do fotograma do cinema mudo para gerar o congelamento e a repetição de cenas e de gestos essenciais, criando imagens e deslocamentos não cotidianos. É concebido um abismo entre realismo e expressionismo; uma corda bamba, em que os atores criam os personagens buscando uma interpretação orgânica, rompendo, sem con-cessões, com a forma que o musical nos impinge.

A Direção de Movimento de Kátia Barros prioriza a construção do corpo físico do personagem e a sua

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demanda particular de movimento. Assim, nada é im-posto ou marcado, mas sugerido e digerido pelo ator, para finalmente tornar-se elemento coreográfico. Fica, portanto, em cena apenas aquilo que é essencial, verda-deiro. Tudo o que é falso e vazio se revela.

Apenas um elenco corajoso e disponível seria capaz de endossar essa proposta de dimensão humana, expondo suas “almas em carne viva” todas as noites, compreen-dendo os personagens sem idealizá-los. A Amanda Acosta e Ana Carolina Machado (Maria Rosa), a Andrea Marquee (Linda), a Anna Toledo (Luzita), a Leandro Luna e Luciano Andrey (Alves), a Sergio Rufino (Orlando) e a Jonathas Joba (Liduíno), minha eterna gratidão, e que eu seja digno do talento sagrado e monstruoso de cada um de vocês.

Assim se configura a nossa Vingança. Algo tão impre-visível quanto as melodias que a constituem. A cada ensaio, uma surpresa, um recomeço, uma dor a mais... Um abismo incomensurável e sedutor... Uma certeza fincada de um teatro sem concessões, em que a música é o combustível para uma jornada rumo à verdade. “Às vezes um homem precisa errar, até acertar o caminho de casa.” Que sejamos dignos do exercício da tentativa e do erro; atravessando agonias de pesquisa, arruinan-do nossas certezas, até encontrarmos a órbita natural da simplicidade...

A Carla Masumoto por ser meu equilíbrio e minha cons-ciência; não conseguiria sem você. A Kátia Barros por me obrigar a expandir meus limites. A Fabio Namatame pela simplicidade do luxo. A Wagner Freire por sua se-renidade inabalável e sua luz estupenda. A Fernando Fortes pela minha paz de espírito. A Consuelo de Cássia, Celso Dornellas, Dug Monteiro, Janice Rodrigues e a todos os nossos técnicos, não somos NADA sem vocês.

Aos músicos Jonatan Harold, Jef de Lima e Ricardo Berti pelo comprometimento. A Marcel Nadal, pela assessoria jurídica e “psicológica”. A Selma Morente, Célia Forte, Egberto Simões, Jady Forte e toda a equipe da Morente Forte, incansáveis na batalha! Ao CCBB por viabilizar um projeto que acalentamos por mais de cinco anos.

A Guilherme Terra, pela parceria e sensibilidade!

A Anna Toledo... bem... a Anna Toledo pela generosi-dade e confiança. Por me ofertar a oportunidade que eu não pude dar a mim mesmo...

Estreamos Vingança no dia 30 de abril de 2013, ani-versário de um ano da morte de meu pai, José Delton Moreira Dias, a primeira pessoa a me apresentar Lupicínio Rodrigues e a me ensinar que a simplicidade é a qualidade que torna os homens grandiosos e nobres. Minha gratidão pelo que ele me permitiu ser e por todos aqueles que ainda me permitem errar e recomeçar.

Viva Lupicínio Rodrigues!!! Viva o Teatro Brasileiro!!!

André Dias

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personagens | 11 | vingançaPe

RSOn

agen

S

LIdUínO (SeU LIdU), boêmio, funcionário público

aLveS, contraventor e boêmio

ORLandO, proprietário do Cabaré Melodrama

MaRIa ROSa, dançarina do Cabaré

LInda, cantora do Cabaré e empregada doméstica

LUzIta (MaRIa da LUz), esposa de Liduíno

SeU MaeStRO, músico da Boate (em cena)

A peça se passa em três ambientes: um quarto de pen-são, uma sala de estar de uma casa de família e uma boate popular (cabaré) em Porto Alegre, sul do Brasil, anos de 1950.

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ato 1 | 13 | vingança

Pró logo

SeU MaeStRO (canta “Maria Rosa”):

B Vocês estão vendo Aquela mulher de cabelos brancos, Vestindo farrapos, calçando tamancos, Pedindo nas portas pedaços de pão? A conheci quando moça, Era um anjo de formosa. Seu nome...

(A música cresce.)

Cena 1 : D ia . F ina l da tarde – Quarto da Pensão de Mar ia Rosa.

Na cama de Maria Rosa. Maria Rosa e

Liduíno acabaram de fazer amor.

MaRIa ROSa: Melhor você ir.

LIdUínO: Ainda não. (Beijos.)

MaRIa ROSa: É tarde. Já passou da hora.

LIdUínO: Amor não usa relógio.

(Mais beijos e abraços.)

MaRIa ROSa (desvencilhando-se): Por favor. Vá embora!

LIdUínO (levantando-se e pegando suas roupas): Mas o que é isso, meu bem?

MaRIa ROSa: Ele pode chegar.

LIdUínO: Se você deixasse eu cuidar de você, não ia precisar se preocupar. Você ia ser só minha.

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O 1

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MaRIa ROSa: É? E eu ia morar onde? Com a sua mulher, no quarto de hóspedes?

(Alves fala com alguém fora de cena.)

aLveS (fora de cena): Isso não é problema meu, resolva você com o seu apontador. Tá dizendo que jogou, cadê o recibo? Pois é.

MaRIa ROSa: É ele! Pelo amor de Deus! Vai embora! Não deixa ele te encontrar aqui!

(Liduíno agarra as roupas rapidamente.)

aLveS (fora de cena): Amigo, se eu fosse pagar cada jogo que alguém jura que fez, eu tava quebrado (ri). Passar bem.

(Maria Rosa joga Liduíno para fora. Alves aponta na rua. Os dois passam um pelo outro, sem se olhar.)

(Alves entra no quarto. Destranca a porta com a sua chave.)

aLveS (entra relaxado e alegre): Rosa? (Rosa fica imóvel, sentada na cama, olhando para frente.) Por que é que você não tá vestida? (Progressivamente desconfiado.) Olha para mim. Mulher, o que é que você fez? (Nervoso.) Você trouxe outro homem aqui? Fala, Rosa. É assim que você me agradece por te tirar da rua? Responde, Rosa (ele pega em seu braço com força). Responde, ingrata!

(Liduíno fica na rua, fumando um cigarro. Assobia len-tamente a melodia de “Se Acaso Você Chegasse” ao lon-go da cena que segue.)

MaRIa ROSa: Não tinha ninguém aqui, seu maluco. (Pausa.) Eu fiquei nervosa.

aLveS: Ficou nervosa, tirou a roupa e jogou tudo no chão?

MaRIa ROSa: Foi.

aLveS (menos nervoso, desconfiado): Agora esta. Quer me dizer por que fez isto?

MaRIa ROSa: Você me deixa aqui dentro, sozinha. O dia inteiro. Sai por aí, sabe deus com quem. Eu vou ficando louca.

aLveS (pausa): E joga fora o que eu te dei? Pensa que veio tudo de graça?

(Rosa fica calada, sem olhá-lo. Dá um profundo suspiro.)

aLveS: Ficou nervosa... (Ele a segura pelo braço.) Ficou nervosinha, é? Vem cá.

(Ele a puxa com força. Ela resiste e ele a agarra com mais violência.)

(Na rua, Liduíno dá uma gargalhada.)

LIdUínO (cantando “Se Acaso Você Chegasse”):

B Eu falo porque esta dona já mora no meu barraco à beira de um regato, num bosque em florDe dia me lava a roupaDe noite me beija a bocaE assim nós vamos vivendo de amor!

(A música cresce e se transforma em um samba alegre, tocado pela banda. O Cabaré Melodrama se acende, com risos.)

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Cena 2 : A Mesma Noi te – Cabaré Melodrama.

Um salão de dança com piso decorado.

Ao centro, um pequeno palco onde Linda,

a cantora, se apresenta com um pequeno

conjunto de músicos liderado por Seu Maestro.

Um balcão de bar. No bar, sentado num banco,

está Orlando, o proprietário.

A banda toca alegremente “Se Acaso Você

Chegasse”.

LInda:

B Se acaso você chegasseNo meu chateau encontrasseAquela mulher que você gostou

(Alves entra na boate, sozinho. Linda reage à sua che-gada com excitação, desce do palco e se oferece para dançar com ele.)

LInda:

B Será que tinha a coragemDe trocar nossa amizadePor ela que já lhe abandonou?

(Maria Rosa entra na boate.)

LIdUínO (cantando junto, dirigindo-se a Orlando, insi-nuando seu caso):

B Eu falo porque essa dona já mora no meu...

SeU MaeStRO:

B BarracoA beira de um regato Em um bosque em florDe dia...

(A banda faz um breque.)

LIdUínO (malicioso): A-ham

SeU MaeStRO:

B De noite...

(A banda faz outro breque.)

LIdUínO: A-ha-ham!

LInda / SeU MaeStRO:

B E assim nós vamos vivendo de amor!

(Alves deixa Linda e sai atrás de Maria Rosa.)

(Sentados no balcão, Orlando e Liduíno observam e conversam.)

ORLandO (indicando Maria Rosa): É, seu Lidu... Essa aí leva qualquer um à perdição.

LIdUínO: Como a luz atrai o mosquito. E depois queima.

ORLandO: E por falar em luz, como vai dona Luzita?

LIdUínO (um pouco contrariado): Minha esposa. Onde poderia estar?

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ORLandO: Perguntei como ela vai.

LIdUínO: Ela deve estar feliz, pois tem um homem que volta pra casa todas as noites.

ORLandO: Nem sempre é noite quando o senhor volta...

LIdUínO (olhando para Maria Rosa): Eu sou um homem ocupado.

(Liduíno tira Maria Rosa para dançar. Alves corta a dan-ça. Liduíno se afasta.)

LInda (para Orlando): “Quando a mulher tem dono, todo mundo quer.”1

ORLandO: “Quando ela está sozinha, é só mais uma mulher.”2

(Linda tenta alcançar a garrafa de Orlando.)

ORLandO (negando-lhe a garrafa de bebida): Vai traba-lhar, vai, Linda.

LInda (afasta-se): Não é só o que eu faço? (Passa por Liduíno.) Seu Lidu...

(Linda inclina-se e aceita uma gorjeta de Liduíno. Vê Alves e Maria Rosa dançando.)

LInda (sem disfarçar a contrariedade e o ciúme, canta “Você Não Sabe” olhando para Alves):

1 Trecho do livro Foi Assim, de autoria de Lupicínio Rodrigues Filho,

originalmente editado pela L&PM Editores, Porto Alegre, 1995

(Copyright © Lupicinio Jorge Quevedo Rodrigues).2 Ibidem.

B Você não sabe o que é ter um amorVocê não sabe o que é ter amizadeVocê não sabe falar com carinhoVocê não sabe a dor de uma saudadeVocê só sabe zombar de quem amaVocê só sabe esmagar coraçõesVocê só sabe sorrir de quem sofreVocê só sabe plantar ilusõesPeço aos santos pra lhe perdoarVocê não sabe o que está fazendoPeço a Deus pra você não sofrer O que eu estou sofrendo

(Maria Rosa afasta-se de Alves. Ela pega um espelho na bolsa e começa a ajeitar o batom, olhando em vol-ta. Levanta-se, troca olhares com Liduíno. Orlando aproxima-se de Liduíno, que estava prestes a seguir Maria Rosa.)

ORLandO: Seu Lidu, essa mulher é perigosa...

LIdUínO: Orlando, presta atenção: “na minha vida boê-mia, eu tive mulheres que me fizeram bem e mulheres que me fizeram mal. As que me fizeram bem, eu esqueci”.3

ORLandO: O senhor já tem uma mulher só sua.

LIdUínO: A de casa não conta, Orlando. Nem entra aqui dentro. Eu sou um boêmio de respeito. Boêmio que se preza casa e guarda a mulher em casa!

ORLandO: Assim fica bom demais.

LIdUínO: Você sabe disso: “um boêmio precisa de uma mulherzinha em casa, senão ele passa a fazer o que bem

3 Ibidem.

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entende”.4 Olha para você, Orlando. Você vive totalmente livre: dorme tarde, come fora de hora, bebe sem contro-le... e outras extravagâncias que eu não quero saber. “Se olhar em volta e fizer uma média, vai ver que um boêmio solteiro como você raramente chega nos quarenta anos. Acaba antes!”5 Agora... “Se um boêmio tem a sorte de encontrar no casamento a sua segunda mãe, você vai ver que ele morre de velho! A mulher vai esperar com o cha-zinho, vai fazer sopinha pra curar a ressaca... Boêmio tem que casar”,6 Orlando. O resto são pecadilhos sem conse-quências, isso aí... (aponta Maria Rosa) é só um romance vulgar. Nada que afete a minha casa, nem a minha família.

ORLandO: É. Alguns têm essa sorte.

LIdUínO (observando Alves e Maria Rosa): Não é sorte. É experiência. Eu sei “mergulhar no mel e evitar as abelhas”.7

(Liduíno afasta-se carregando seu copo. Linda volta, tra-zendo um copo na mão. Aproxima-se de Orlando, que está apoiado no balcão. A banda toca o instrumental de “Esses Moços”.)

LInda: Seu Orlando... Às vezes parece que o senhor vai ficar com dor no cotovelo, de tanto apoiar neste balcão. Que mulher vai enxergar o senhor aí enterrado?

ORLandO: Quem está pensando em mulher, Linda? Que ideia. Eu estou trabalhando. E depois, a mulher que eu quero nunca vai aparecer aqui.

LInda: Ué. Ela morreu?

4 Ibidem.5 Ibidem.6 Ibidem.7 Ibidem.

(Orlando não responde.)

LInda (servindo-se da garrafa de Orlando): Xi, seu Orlando. O senhor está pior do que eu. Eu ainda tenho esperança

(Linda indica o casal Rosa e Alves.)

ORLandO: O Alves, Linda?

LInda: Ele ainda vai voltar pra mim.

ORLandO (canta “Esses Moços”):

B Esses moçosPobres moçosAh, se soubessem o que eu seiNão amavamNão passavamAquilo que eu já passeiPor meus olhosPor meus sonhosPor meu sangueTudo enfimÉ que eu peço a estes moçosQue acreditem em mim.

LInda: Ai, credo, seu Orlando. O senhor falando até pa-rece um velho.

(Orlando ri, tristemente.)

LInda: O senhor tem que ser como o seu Liduíno. Como é que ele fala? “Mergulhar no mel...”

ORLandO: “... e evitar as abelhas”. Sei. Olha pra ele. (Indica Liduíno, que olha fixamente para Maria Rosa.) Aquele ali levou uma ferroada que está até atordoado.

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LInda: Essa mulher não tem alma...

ORLandO: Não é perfeita para o seu Lidu? (Canta.)

B Se eles julgam que é um lindo futuroSó o amor nesta vida conduzSaibam que deixam o céu por ser escuroE vão ao inferno à procura de luzEu também tive nos meus belos diasEsta mania que muito me custouPois só as marcas que eu trago hoje em diaE estas rugas o amor me deixou

(Maria Rosa e Alves estão num bolero apaixonado. Liduíno observa o casal. Orlando, Liduíno e Linda can-tam em trio.)

ORLandO (canta):

B Esses moçosPobres moçosAh, se soubessem o que eu seiNão amavamNão passavamAquilo que eu já passeiPor meus olhosPor meus sonhosPor meu sangueTudo enfimÉ que eu peço a estes moçosQue acreditem em mim.

LInda (para Alves):

B Você só sabe zombar de quem amaVocê só sabe esmagar coraçõesVocê só sabe sorrir de quem sofre

Você só sabe plantar ilusões Peço aos santos pra lhe perdoarVocê não sabe o que está fazendo...Peço a Deus pra você não sofrer O que eu estou sofrendo

LIdUínO (para Rosa):

B Eu falo porque esta dona já mora no meu... barraco à beira de um regato, num bosque em flor... E assim nós vamos vivendo de amor

(A luz da boate se apaga ao final da música. Música de transição.)

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Cena 3 : D ia – Sa la de Estar da Casa de Luz i ta e L idu íno.

Uma mesa de jantar e uma cadeira. Sobre a

cadeira, uma manta de retalhos inacabada.

Luzita está diante da Santa, rezando.

LUzIta (canta “Há um Deus”):

B A minha dor é enormeMas sei que não dormeQuem vela por nósHá um Deus, simHá um DeusE este Deus lá no céu há de ouvir minha voz

(Pela porta da frente, entra Linda, com um ar cansado.)

LInda: Bom dia, dona Luzita. Acordou cedo.

LUzIta: Bom dia, Linda. Eu não durmo mais.

LInda: Preocupação?

LUzIta: Tudo igual ao de sempre, Linda.

(Linda veste um avental, amarra um lenço na cabeça.)

LInda: Faço o café?

LUzIta: Por favor. (Linda começa a arrumar a mesa.) Vestido bonito.

LInda (arrumando a mesa do café): Imagine. Obrigada. Foi presente de muitos anos. Agora está velho.

LUzIta: Não me lembro da última vez que ganhei um vesti-do de presente. Meu marido... (Muda de assunto.) Quando eu era mocinha, as coisas eram muito severas na minha casa, meu pai não gostava que a gente se exibisse muito.

LInda: Mas a senhora ainda é bonita. Digo, a senhora é bonita...

LUzIta (interrompendo): Eu nunca fui a mais bonita de casa.

LInda: Quero dizer que agora a senhora podia fazer um vestido novo para sair. Vive costurando.

LUzIta: Vou sair pra onde?

LInda: O seu Lidu...

LUzIta (interrompendo): Meu marido não gosta de sair.

LInda: Dona Luzita... (Pausa.) A senhora quer o leite frio ou quente?

(Luzita dá de ombros. Linda sai para a cozinha.)

LUzIta (cantando):

B Há um Deus, simHá um deus...

(Luzita sai de cena. A música para. Liduíno aparece com a mesma roupa da noite anterior. Linda o surpreende.)

LInda: Seu Lidu.

LIdUínO: Linda, meu amor. Quanto tempo.

LInda (sussurrando): A dona Luzita está acordada e não está contente.

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LIdUínO: O que você disse?

LInda: Não disse nada! O que eu ia dizer? (Cochicha.) Que eu trabalho à noite num cabaré? Que eu encontrei o senhor agorinha há pouco?

LIdUínO: Podia dizer que fui eu que te dei este vestido. Ela ia ver que eu tenho bom gosto.

LInda: Pelo amor de Deus, seu Lidu. Eu preciso deste tra-balho, não é que eu goste. Eu preciso. Não brinca com isso não.

LIdUínO: Então a gente faz um acordo. Você não fala nada. Eu não falo nada.

LInda (cantando “Não Conte pra Ninguém”):

B Não conte pra ninguém que eu entrei naquele bar

LIdUínO:

B Não conte pra ninguém que eu procurei minha mágoa afogar

LInda:

B Não conte, seja bom não seja mau

LIdUínO:

B Não quero ver meu nome em manchetes de jornal

LInda / LIdUínO:

B Não conte pra ninguém o meu segredoNão conte por favor, porque tenho medo

Não conte pra ninguém que eu entrei naquele barNão conte pra ninguém que eu procurei minha mágoa afogarNão conte, seja bom, não seja mauNão quero ver meu nome em manchetes de jornalNão conte pra ninguémNão conte pra ninguémNão conte pra ninguémQue eu bebi / Que eu meu perdi

(Luzita reaparece, com aspecto triste. Linda sai rápido de cena. Liduíno sorri, avança na direção de Luzita, que se afasta.)

LUzIta: Bom dia, Liduíno.

LIdUínO: Ainda é madrugada, meu bem. Esse seu relógio anda depressa demais. “Não sei por que esse relógio não se dá comigo.”8

(Ele tenta beijá-la, mas ela o repele. Liduíno não insiste, senta-se à mesa de café e começa a comer, tranquilamen-te. Luzita senta-se na cadeira e começa a costurar sua manta, freneticamente. Liduíno cantarola.)

LUzIta: Ao menos podia tomar um banho. Traz o cheiro da rua para casa.

LIdUínO: Cheiro da vida, Luzita. Melhor que este aqui.

LUzIta: Cara de pau, sem vergonha!

(Liduíno pega novamente o chapéu e vai saindo de casa.)

LIdUínO (calmo): Se vai ficar sururu e não vai me deixar em paz, eu vou dormir na repartição.

8 Ibidem.

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(Liduíno sai.)

LInda: A senhora quer um copo d’água, dona Luzita?

LUzIta: Traz a minha Bíblia, Linda.

LInda (sai resmungando): Que Baixo! Que Baixo!

(Linda volta trazendo uma Bíblia. Luzita pega o livro e pede privacidade, com o olhar. Linda se afasta, mas ob-serva. Luzita abre o livro e tira uma carta de dentro das suas páginas. Lê a carta.)

(Liduíno sai de casa, mas não vai longe. Fica do lado de fora, com os próprios pensamentos.)

LIdUínO (canta “Eu e Meu Coração”):

B Quando o coração tem a maniaDe mandar na gentePouco lhe interessa a agonia Que a pessoa sente Eu por exemplo sou um desses infelizesNem direito tenho tido de pensarPois meu coração tem a mania de me governar.

LInda (olhando por cima do ombro de Luzita): Dona Luzita, que papel é esse? É carta de amor?

LUzIta: Desde quando você sabe ler, Linda?

LInda: Desculpe, dona Luzita. Eu sei o meu lugar, eu sou uma burra que não lê nem o próprio nome.

LUzIta: Desculpe. Isto não é nada. É uma lembrança, uma carta antiga que eu guardo. (Falando para si.) É bom pensar que alguém neste mundo já me amou.

LInda: Dona Luzita...

LUzIta: Linda, me deixa sozinha, eu preciso... (Linda sai.)

(Em outro plano, surge a imagem de Maria Rosa, dan-çando.)

LIdUínO (canta):

B Eu preciso esquecer a mulherQue me fez tanto malTanto mal que me fezE ele insiste em dizer que lhe querE que eu devo lhe procurar outra vezE por isto vivemos brigandoToda a vida, eu e meu coraçãoEle dizendo que sim, eu dizendo que não.

(Em outro plano, Orlando aparece fumando, sentado numa cama e olhando fotos e cartas antigas.)

LIdUínO / LUzIta (cantam):

B E por isto vivemos brigandoToda a vida, eu e meu coraçãoEle dizendo que sim, eu dizendo que não.

(Transição – passagem instrumental.)

(Liduíno sai. Luzita guarda a carta novamente dentro da Bíblia e vai para o seu quarto. Linda entra na sala, apanha a Bíblia, abre a carta, com interesse crescente.)

LInda (sussurrando, para si): Ah, que baixo! Que baixo!

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Cena 4 : A Mesma Manhã – Quar to de Pensão de Rosa.

Rosa entra no quarto escuro sem fazer ruído

e começa a despir-se para dormir. Alves, que a

esperava, acende a luz e a surpreende.

aLveS: Luz!

MaRIa ROSa (grita assustada): Ah!

aLveS: Sobe o pano e apareces: Rosa! (Canta “Rainha do Show”.)

B Teu corpo lindo oferecesÀ plateia a te saudar

(Alves faz sinal para que Maria Rosa continue a se des-pir. Maria Rosa fica paralisada.)

aLveS (canta):

B Os homens loucos vibrandoParecem lobos uivandoFamintos pra te abraçar

(Ele puxa Maria Rosa pelo braço, ela resiste, um pouco assustada.)

MaRIa ROSa: Para, Alves. Eu tô cansada.

aLveS (canta):

B Mulheres já desprezadasContemplam enciumadasSeus homens a te adorar

(Lentamente, Alves vai despindo Maria Rosa. Ela fica imóvel, sem saber como reagir.)

aLveS (canta):

B Só eu fico imaginandoSó eu estou calmo, pensandoComo tu foste mudarAssisto espantado e mudoEste festival de carneDo qual a estrela és tuE à delirante plateiaTudo tu oferecesno show do teu corpo nu.

MaRIa ROSa (interrompe): Chega, Alves. Você está me assustando.

aLveS (canta):

B Mas nesta mulher divinaQue aos homens tanto alucinaQuando o pano vai baixarSó eu revejo a meninaQue eu tirei de uma esquinaE que ensinei a beijar

(Maria Rosa dá uma gargalhada.)

aLveS (possessivo): Só eu sei como é o gosto desta carne. (Alves agarra Rosa com avidez.) Esta mulher é minha!

MaRIa ROSa (diverte-se): Eu não sou de ninguém, não (desembaraça-se). Já foi o tempo.

aLveS: Esquece que fui eu que te tirei do meio da rua?

MaRIa ROSa: E eu ia esquecer como, se você me lembra disso a cada cinco minutos?

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aLveS: Tava perdida, escorraçada. Parecia que tinha apa-nhado. Você nunca me contou o que aconteceu.

MaRIa ROSa: Eu prefiro assim. Você gosta mais de mim se souber menos.

aLveS: Se você me dissesse... Eu ia te proteger de todo mundo que já te fez mal.

MaRIa ROSa (rindo): E quem me protege de você?

aLveS: Você tem medo de mim, Rosa? (Sério.) Se tem medo, é porque fez alguma coisa errada.

MaRIa ROSa (dissimulada): Quando é que eu vou saber o que eu faço de certo nesta minha vida?

aLveS: Faz o que eu te digo. Isto é o certo.

MaRIa ROSa (afasta-se): Alves...

aLveS: Vem cá. Para de se esconder de mim.

(Os dois se abraçam. Por um momento, Rosa se olha no espelho.)

MaRIa ROSa (cantando “Foi Assim”, para si própria):

B Foi assimEu tinha alguém que comigo moravaMas tinha um defeito que brigavaÀs vezes com razão ou sem razão

(Enquanto Maria Rosa canta, Alves movimenta-se como um predador ao seu redor, abrindo sua bolsa, procurando nas suas coisas, como se buscasse os seus segredos.)

aLveS (olhando o vestido pendurado no cabide): Este vestido é novo?

MaRIa ROSa (cantando):

B Encontrei Um dia uma pessoa diferenteQue me tratava carinhosamenteDizendo resolver minha questãoMas não

aLveS: Mudou o perfume, por quê?

MaRIa ROSa (cantando):

B Foi assimDeixei a criatura que eu moravaPor esta criatura que eu julgavaQue fosse compreender todo o meu euMas no fimFiquei na mesma coisa em que estavaPorque a criatura que eu sonhavaNão faz aquilo que me prometeu

aLveS: Responde o que eu te pergunto, Rosa!

(Rosa tenta abraçá-lo. Ele se desvencilha dela, para con-tinuar remexendo em suas coisas.)

MaRIa ROSa (cantando):

B Será que é meu destinoSerá que é meu azar?Mas tenho que viver brigando?Todos no mundoEncontram seu parPor que só eu vivo trocando?

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aLveS: Você é cheia de segredos, Rosa.

MaRIa ROSa (cantando):

B Se deixo de alguémPor falta de carinhoPor brigas e outras coisas maisQuem aparece no meu caminhoTem os defeitos iguais.

aLveS (abrindo um porta-joias): E estas cartas todas?

MaRIa ROSa: Alves, deixa isso. É passado.

(Alves faz menção de abrir as cartas.)

MaRIa ROSa: É de família!

aLveS (interessado): Você tem família?

MaRIa ROSa: Eu não brotei no meio da rua, Alves.

(Alves abre uma das cartas.)

aLveS (lendo alto): “Minha querida filha Maria Rosa...” Ah, você é Maria de batismo? Fez bem em tirar o nome da santa... Ahahaha.

(Maria Rosa pula sobre ele. Ele a afasta e continua a ler a carta.)

aLveS (lendo em voz alta): “É com grande tristeza que te escrevo para dizer que seu pai não está mais entre nós. Ele partiu com amargura por estar afastado da filha querida. Tenho certeza de que ele, lá do céu, já perdoou os seus erros.”

MaRIa ROSa: Não perdoou enquanto estava vivo. (Tenta tirar a carta das mãos de Alves, que a empurra.)

aLveS (continua a ler): “Sua irmã vive longe daqui. Só eu vivo na nossa velha casa. Você é bem-vinda, quando quiser voltar. Peço a Deus que te ilumine e abençoe. Sua mãe.” (Pausa.) E então?

MaRIa ROSa: Meu pai me pôs pra fora de casa por causa de uma calúnia. (Pausa. Com irritação, ao ver que Alves não está satisfeito com a resposta.) Disseram para ele que eu estava saindo com um homem casado.

aLveS (irônico): Alguém inventou isso, foi?

MaRIa ROSa: Era mentira! O sujeito me perseguia. Mas alguém inventou essa história e meu pai acreditou. Nunca descobri quem foi. Meu pai me escorraçou para fora de casa.

(Alves fica em silêncio, com olhar inquiridor.)

MaRIa ROSa: Eu não sabia para onde ir. Minha família virou as costas para mim. Acabei aceitando a ajuda do tal homem casado. Ele me pôs num apartamento de luxo e vinha me visitar quase toda noite. Depois de um tempo eu juntei algumas coisas e fugi. Ele botou a polícia atrás de mim, disse que eu tinha roubado ele. Aí eu fiquei ami-ga do delegado. Ele me ajeitou num quarto barato. Mais barato que este aqui. Só que depois de um tempo ele começou a me bater. Todo dia. Então eu peguei o que eu tinha e sumi no mundo. De novo.

aLveS: Quando eu te encontrei, você parecia uma ca-chorrinha assustada. Uma cachorrinha linda.

MaRIa ROSa: Eu não quero mais ninguém mandando em mim.

aLveS: Eu sou diferente, Rosa. Eu cuido de você. Deixa eu cuidar de você e não precisa ter medo de mais ninguém.

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(Os dois se abraçam, ele a beija. Alves começa a se arru-mar para sair.)

aLveS: Já é hora de eu estar na rua. A Federal hoje corre às duas, o pessoal já está com o dinheiro na mão para apos-tar. (Veste o paletó e um chapéu.) Tomo o café na esquina. Até mais tarde, meu bem. (Ele a beija rapidamente, vai saindo, mas se detém, olhando o vestido no cabide.) Rosa, você não me respondeu: este vestido é novo?

MaRIa ROSa (pausa): Não. (Pausa.) Eu tirei ele do baú. Só parece novo.

aLveS: Eu não gosto dele (suavemente). Joga fora.

(Sai. Rosa fica imóvel e de repente atira as cartas no chão.)

MaRIa ROSa (canta):

B Será que é meu destinoSerá que é meu azar?Mas tenho que viver brigando?Todos no mundoEncontram seu parPor que só eu vivo trocando?Se deixo de alguémPor falta de carinhoPor brigas e outras coisas maisQuem aparece no meu caminhoTem os defeitos iguais.

(Alguém bate na porta. Arruma rapidamente o que jo-gou no chão, levanta-se rápido.)

MaRIa ROSa: Esqueceu sua chave?

(Abre a porta. É Liduíno, com aspecto afoito.)

MaRIa ROSa: Liduíno? O que você está fazendo aqui? Não, não, não. Vá embora. Eu não posso, eu não quero...

LIdUínO: Rosa, eu preciso de você.

MaRIa ROSa: Não, não, não. Você tem que ir para a sua casa.

LIdUínO: A minha casa... (Faz um gesto de desprezo.) Rosa, eu não consigo ficar longe de você.

MaRIa ROSa: Você não pode ficar aqui! (Pausa.) Hoje não.

LIdUínO: Quando?

MaRIa ROSa: Quarta-feira. Você sabe, é o nosso dia.

LIdUínO: Eu não aguento esperar mais uma semana! Rosa...

MaRIa ROSa (rindo): Não seja criança. Você está muito velho para ser criança.

LIdUínO: Eu? Velho? Não... “Sou apenas um rapaz de meio-uso.”9

MaRIa ROSa: Ah, é? Quantos anos você tem, rapaz?

LIdUínO: Eu não vou dizer, porque “acho muito feio as pessoas dizerem quantos anos têm, só pra humilhar as mais novas com esta mania de superioridade”.10

MaRIa ROSa (rindo): Vai embora, Liduíno!

9 Ibidem.10 Ibidem.

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LIdUínO (tirando do bolso um par de brincos e entregan-do-os a Maria Rosa): Rosa, você acordou meu coração.

MaRIa ROSa: Shhhh! Que história é essa?

LIdUínO: O amor é traiçoeiro, Rosa. Quando a gente me-nos espera, ele aparece e toma conta de nós.

MaRIa ROSa: Ih... isso não é bem querer, não. Isso é doença.

LIdUínO: Eu estou viciado. Enfeitiçado. Apaixonado.

MaRIa ROSa (sorrindo e colocando os brincos): Eu pro-meto, Liduíno. Quarta-feira à noite o Alves fica fora até tarde. Você pode vir.

LIdUínO: Eu quero você todos os dias, o tempo todo.

(Maria Rosa consegue empurrá-lo para fora e tenta fe-char a porta.)

MaRIa ROSa: Não se pode ter tudo o que quer. Vai embo-ra. Se não eu vou me cansar dessa bobagem.

LIdUínO (na soleira da porta, canta “Volta”, um pouco frágil):

B Quantas noites não durmoA rolar-me na cama...

MaRIa ROSa: Shhhhh!

LIdUínO (cantando):

B A sentir tantas coisas Que a gente não pode explicarQuando ama

MaRIa ROSa: Vai embora, pelo amor de Deus!

LIdUínO (cantando):

B O calor das cobertasNão me aquece direitoNão há nada no mundoQue possa afastarEste frio do meu peito

MaRIa ROSa: Quarta-feira, eu prometo!

LIdUínO (cantando):

B Volta!Vem viver outra vez ao meu ladoNão consigo dormir sem teus braçosPois meu corpo está acostumado

(Maria Rosa abre a porta lentamente, intrigada e emo-cionada. Ele entra no quarto e os dois se abraçam. A música cresce.)

(Transição: a luz do quarto de pensão se apaga, acende a luz do Cabaré Melodrama.)

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Cena 5 : Noi te do outro D ia – Cabaré Melodrama.

Fusão musical. Linda está no palco, cantando:

LInda (canta):

B Volta!Vem viver outra vez ao meu ladoNão consigo dormir sem teu braçoPois meu corpo está acostumado.

(Linda desce do palco e vai sentar no balcão, perto de Orlando.)

ORLandO: Dia comprido, Linda?

LInda (exausta): Ainda bem que é sábado.

ORLandO: Continua de empregada na casa de dona Luzita?

LInda: Vou largar como? Cantar neste cabaré não paga as minhas contas. (Orlando não gosta do comentário e se afasta; ela insiste.) O senhor bem podia me pagar mais um pouquinho, não é não? Quando eu ficar famosa... (Mudando de assunto bruscamente, como se se desse conta de um detalhe que escapou.) Ô, seu Orlando, o senhor conhece a esposa do seu Lidu?

ORLandO (ainda evitando a conversa): De nome. Só de nome.

LInda: Achei que ele não falasse o nome dela aqui dentro.

ORLandO: Mas isso é por respeito, Linda.

LInda: Então ele fala ou não fala?

ORLandO: Ô, Linda! Não fala! (Pausa.)

(Linda espera que ele se explique. Orlando fala devagar, com desconforto.)

ORLandO: Falou uma vez. Eu guardei o nome.

LInda: Memória, hein?

ORLandO: Como é que você acha que eu construo uma freguesia aqui? Eu lembro o nome de todo mundo, o que cada um bebe, o que gosta... Eu dou um duro danado!

LInda: Eu nunca ia dizer que não, seu Orlando!

ORLandO: Só porque eu não acordo às cinco da manhã não quer dizer que eu não ganhe a vida honestamente! Mesmo assim, eu sou humilhado e desprezado como um vagabun-do! Na hora de escolher, as mulheres preferem ficar com um tipinho sem sal que se encosta no serviço público!

(Silêncio desconfortável entre os dois.)

ORLandO (desconversando): É impressão minha ou esfriou?

LInda: É, o tempo virou.

(Maria Rosa entra no salão. Alves aproxima-se e os dois começam a dançar. A banda ataca a introdução instru-mental de “Nervos de Aço”.)

LInda (bate nas costas de Orlando): Seu Orlando, o se-nhor é um sujeito... bem apanhado. Não é possível que não tenha mulher nenhuma na sua vida.

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ORLandO: Casou com outro.

(Liduíno entra no bar. Sua expressão inicialmente ani-mada fica carregada ao enxergar Maria Rosa nos braços de Alves.)

LInda: Não sei o que é pior, se é ver aquele que você gosta sempre com outra, bem na sua frente (indica Alves, dançando com Maria Rosa)... ou se é gostar de alguém que você nunca mais vai ver. (Ri.)

ORLandO (canta “Nervos de Aço”):

B Você sabe o que é ter um amor...

LInda (recuando, surpresa): Eu, senhor?

ORLandO (canta):

B Ter loucura por uma mulher? E depois encontrar este amor...

LInda: Eu, senhor?

ORLandO (canta):

B Nos braços de um outro qualquer? Você sabe o que é ter um amor...

LInda: Não, senhor...

ORLandO (canta):

B E por ele quase morrer?E depois encontrá-lo em um braçoQue nem um pedaço do seu pode ser?

(A banda faz um interlúdio instrumental. Liduíno apro-xima-se de Alves e Maria Rosa e pede a dança.)

LIdUínO (para Maria Rosa, enquanto dançam): Rosa, eu já não durmo mais. Estou doente de paixão.

(Ela sorri e não responde.)

LIdUínO: Não consigo mais ficar longe de você, Rosa. Uma semana é tempo demais.

MaRIa ROSa (provocando): Coitadinho... E o que você pode fazer? (Olha para o lado e indica Alves.)

(A banda continua tocando “Nervos de Aço” durante toda a cena.)

LInda: Ah, seu Orlando... Pelo menos a gente pode be-ber! (Serve-se da bebida que está no balcão. Orlando tenta impedir, mas desiste.) Não é como a dona Luzita que afoga as mágoas na Bíblia.

ORLandO (surpreso): Quem?

LInda: Ué, já esqueceu o nome dela? (Rindo.) A dona Luzita, esposa do seu Liduíno. (Aponta Liduíno, dan-çando com Maria Rosa.) Aquela lá passa a vida dentro de casa, rezando. Acho que ela “só conhece a mudança da Lua pela folhinha”.11

ORLandO (interessado): Ah, é?

LInda: Se bem que eu descobri que ela guarda umas car-tas dentro daquela Bíblia. Cartas de amor. (Sussurra.) E não são do seu Liduíno!

11 Ibidem.

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ORLandO: Linda! Que absurdo! (Interessado.) Ela guar-da estas cartas, é?

LInda: Ela nem se importa que eu veja! (Diverte-se.) Ela acha que sou burra só porque não sei ler!

(Orlando olha para Linda com ar de reprovação.)

LInda: Eu não sou louca, seu Orlando! Não vou fazer nada com essas cartas! Só se a dona Luzita algum dia es-quentar pro meu lado... (Mostra que tem uma das cartas na bolsa.) Aí é sempre bom ter uma “carta” na manga! Ahaha! Entendeu? “Carta” na manga!

(Liduíno aproxima-se mais de Rosa e fala ao seu ouvido.)

LIdUínO: Não vai mais ter Alves nem nada entre nós. Você vai ser só minha. Só minha.

(Maria Rosa olha Liduíno com curiosidade. Os dois continuam dançando, sorrindo.)

(Alves se aproxima do casal Liduíno-Maria Rosa e “cor-ta” a dança, mas Liduíno resiste em largar Maria Rosa. Alves ignora-o e puxa Maria Rosa pelo braço. Ela pro-testa, ele lhe dá um tapinha no rosto. É um aviso.)

(Liduíno, um pouco embriagado, tenta interferir. Alves despreza Liduíno, empurrando-o longe.)

(Alves leva Maria Rosa embora do bar. Liduíno fica hu-milhado.)

LIdUínO (canta, embriagado):

B Há pessoas com nervos de açoSem sangue nas veias e sem coração

Mas não sei se passando o que eu passoTalvez não lhes venha qualquer reaçãoEu não sei se o que trago no peitoÉ ciúme, despeito, amizade ou horrorEu só sei é que quando eu o/a vejoMe dá um desejo de morte ou de dor.

LIdUínO / ORLandO:

B Você sabe o que é ter um amor, meu senhorTer loucura por uma mulher?E depois encontrar este amor, meu senhorNos braços de um outro qualquer?Você sabe o que é ter um amor, meu senhorE por ele quase morrer?

LInda / LIdUínO / ORLandO:

B E depois encontrá-lo em um braçoQue nem um pedaço do seu pode ser?

LIdUínO (quase um uivo de desespero): Rosa!

(A luz do bar se apaga.)

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Cena 6 : A Mesma Madrugada – Sa la de Estar de Luz i ta e L idu íno.

Liduíno entra em casa, aos tropeços e com

alguma violência. A música para.

LIdUínO (grita): Onde está a minha mulher?

(Luzita aparece correndo.)

LUzIta: Shhhh!!! Liduíno!!! Silêncio!

LIdUínO: Silêncio, não! Vem aqui!

LUzIta: Fala baixo! Sabe que horas são? (Ele avança so-bre ela, desajeitado.) Você ficou louco?

(Liduíno agarra a mulher pelo pulso, traz para perto de si, aproxima-se para beijá-la.)

LUzIta (repelindo-o): Você bebeu demais.

LIdUínO (insistente): “Um coração magoado não fala bai-xo nem bebe pouco.”12

LUzIta (começando a ceder): Liduíno, o que eu faço com você?

(Liduíno e Luzita se beijam. Ele começa a abraçá-la.)

LIdUínO: Rosa...

(Luzita fica chocada e empurra Liduíno.)

12 Ibidem.

LUzIta: Do que você me chamou?

LIdUínO: Vem cá.

LUzIta: Não!

LIdUínO: Vem cá. (Puxa-a novamente.) Você é minha. Eu te chamo como eu quiser.

(Luzita debate-se, cada vez mais fraca. Luzita fecha os olhos e se entrega ao abraço. A luz da casa se apaga. A música cresce.)

LIdUínO (embriagado): Rosa! Você é minha! Rosa!

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Cena 7 : Boate Melodrama – A Mesma Madrugada.

A boate está vazia, apenas Seu Maestro

está sentado ao piano, bebendo e fumando,

e Orlando está debruçado sobre o balcão,

remexendo em fotos antigas.

SeU MaeStRO (canta “As Aparências Enganam”):

B Vejam como as aparências enganam, Como difere a vida dos casaisNão são aqueles que mesmo se amamQue às vezes moram em lugares iguaisHá uns que casam porque se queremOutros somente por comprazerSem se lembrar que por mais que quiseremNunca mais hão de deixar de sofrer

ORLandO (para si mesmo, sem olhar para Seu Maestro):

B Com seu criado que está presenteTambém se passa uma história assimEla casou-se com outro viventeE eu tive outras mulheres pra mim Só uma coisa eu sempre reclamoQue até hoje eu não me conformeiQue quem casou com a pessoa que eu amoBeije na boca que eu tanto beijei

Cena 8 : A Manhã Seguinte / Domingo – Sa la de Estar de Luz i ta e L idu íno.

Luzita está vestida com roupas de domingo,

preparando-se para sair. Alguém bate à porta.

LUzIta: Quem é?

(Ela abre. É Orlando. Ela fica parada diante da porta, sem deixá-lo entrar.)

LUzIta: Orlando?

ORLandO: Bom dia, Maria da Luz.

LUzIta: O que você está fazendo aqui?

ORLandO: Vim ver como o seu marido chegou em casa. Ontem à noite ele me pareceu um pouco... cansado.

LUzIta: Ele está muito bem. Está dormindo. Você estava com ele, então.

ORLandO: Sim. Bem. Que bom que ele está bem. Estava preocupado.

LUzIta: Muito bem, não há motivo para preocupação. Bom dia.

ORLandO: Você não vai me convidar para entrar?

LUzIta: Eu estava saindo para a igreja.

(Ela o deixa entrar, a contragosto. Ele olha em volta.)

ORLandO: A Linda não trabalha hoje, não é?

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LUzIta: Você conhece a minha empregada?

ORLandO: Ah, sim. Fui eu que apresentei ela, digo, in-diquei, para o seu Liduíno. Ela já trabalhou para mim. É uma moça limpinha. (Luzita não dá muita atenção. Serve o café.) E você? Como está?

LUzIta: Estou mais velha, como você pode ver.

ORLandO: Você está linda, Maria da Luz.

LUzIta: Faz muito tempo que ninguém me chama assim.

ORLandO: Você ainda se lembra? (Aproxima-se dela.)

LUzIta: Orlando, isso não é conveniente. Meu marido...

ORLandO (segura as mãos de Luzita): Passei cinco anos te escrevendo, pedindo para você voltar para mim. Você ainda guarda as cartas que eu te mandei?

(Luzita fica em silêncio, solta a sua mão e passa a rear-rumar a mesa.)

ORLandO (vai atrás dela): Eu sei que você não jogou as mi-nhas cartas fora, Maria da Luz! Você ainda pensa em mim?

LUzIta: É um pouco tarde para falar disso, você não acha, Orlando? (Pausa.) Você quer o leite frio ou quente?

(Orlando puxa-a para si e beija-a apaixonadamente. Ela se recompõe rápido.)

LUzIta: Eu digo ao Liduíno que você passou por aqui. Agora eu preciso sair para a igreja.

(Liduíno surge vindo do quarto.)

LIdUínO: Isso é jeito de tratar a visita, meu amor?

LUzIta: Bom dia, querido. O seu Orlando passou para ver se você tinha chegado bem em casa.

LIdUínO: Esse é amigo de verdade. Você tem que ser mais educada, Luzita. (Empurra-a com um tapa na bunda.) Vai para a igreja, vai. Orlando e eu temos assunto a tratar.

(Luzita sai rápido. Liduíno serve-se de café.)

LIdUínO: Foi bom você aparecer, Orlando. Eu queria mesmo falar com você fora daquele cabaré.

ORLandO: Mas é claro, seu Lidu.

LIdUínO: Orlando, você é meu amigo há dez anos, pare de me chamar de senhor. (Orlando assente com a cabeça, toma mais café.) Eu quero que você me fale se aquele bicheiro é perigoso mesmo.

ORLandO: O Alves? (Coça a cabeça, nervoso.) O senhor quer se meter com o Alves? Mas todo mundo sabe que ele já matou gente por aí.

LIdUínO: Eu quero montar um apartamento para a Rosa. Vou roubar ela do bicheiro e colocá-la num lugar que só eu possa visitar.

ORLandO: E a dona Luzita?

LIdUínO: O que que tem? (Impaciente.) Orlando, não fica mudando de assunto, preste atenção. Eu preciso que você me ajude. Eu vou tirar a Rosa de circulação por uns tempos.

ORLandO: Mas isso é muita encrenca. Além do quê, é péssimo para a boate...

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LIdUínO: Eu preciso esconder ela até o bicheiro se acal-mar. Depois ele se acostuma, arruma outra e tudo fica igual. Eu prometo que te dou uma compensação.

ORLandO (pensando): Eu posso pedir para a Linda ficar de olho no Alves.

LIdUínO: Faça como achar melhor. Distraia o sujeito, dê bebida de graça, mande a Linda para a casa dele. Eu vou tirar a Rosa de lá até o fim desta semana.

ORLandO (interessado): O senhor também vai sumir por uns tempos?

LIdUínO: Eu vou continuar indo ao cabaré, para não des-pertar suspeitas. Mas de madrugada, eu vou cair nos braços da minha Rosa!

ORLandO: Seu Lidu...

LIdUínO: Você precisa me ajudar, Orlando. Vou ao banco amanhã e te adianto um dinheiro. Você vai me arrumar um apartamento fora da cidade para a Rosa e providen-ciar um carro para a mudança.

ORLandO: Eu?

LIdUínO: O Alves não pode desconfiar de mim, Orlando. Depois você contrata outra dançarina e tudo fica na san-ta paz. (Orlando está relutante.) Orlando, eu só posso pedir isso para você. Você é a única pessoa em quem eu confio. (Ri.) Quero dizer, além da minha mulher. Mas eu não posso pedir isso para ela, não é? (Gargalha.)

(Orlando ri junto. A luz apaga.)

Cena 9 : Passagem de tempo e Ações S imul tâneas.

As ações a seguir se passam em planos separados.

Alves e Maria Rosa aparecem brigando.

MaRIa ROSa: Me deixa, Alves! Eu não sou mulher de fi-car presa dentro de um quarto.

aLveS: Você acha que me engana, Maria Rosa! Você tem muito a perder. Se arrisca a acordar “com metade do corpo no mel e a outra metade na lama!”13

(Liduíno encontra Orlando, com um envelope.)

LIdUínO (a Orlando, abrindo o envelope): Está tudo aqui. Com este dinheiro você se vira. A Rosa tem que ficar escondida.

ORLandO (conta o dinheiro): Arranjei o esquema para o próximo sábado. Depois do show, eu mesmo ponho ela dentro de um carro e levo até o apartamento que providenciei.

LIdUínO: Você é um bom amigo.

(Liduíno entrega o envelope de dinheiro a Orlando e parte.)

(Orlando escreve outra carta para Luzita.)

(Luzita encontra a carta, lê, guarda-a dentro da Bíblia e vai ao encontro de Orlando.)

13 Ibidem

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(Linda apanha a carta de dentro da Bíblia e guarda-a consigo.)

(Orlando e Luzita se encontram. Ele a abraça e mostra o dinheiro.)

ORLandO: Ele não te merece. Olha aqui: me pagou para esconder a nova amante dele. Venha embora comigo. Nós podemos recomeçar longe daqui.

LUzIta: A minha felicidade não pode me custar um lar. Quem vai me dar um lar, se eu abandonar o meu?

ORLandO: Eu sempre quis te dar um lar, Luzita! Me dê essa chance.

(Luzita fica calada.)

ORLandO: Sábado à noite. Seu marido não vai voltar para casa, eu sei. Eu irei te buscar.

(Orlando entrega-lhe o envelope com o dinheiro.)

ORLandO: Está aqui a prova de que eu não vou te trair. Você fica com o dinheiro e nós vamos embora juntos. Sábado à noite.

(Luzita pega o dinheiro, sem dar resposta, e vai embora. Volta para casa, guarda o dinheiro e volta a bordar seu manto.)

(Liduíno encontra Maria Rosa. Explica o plano. Ela sor-ri e pula em seu pescoço.)

LIdUínO: Sábado à noite, depois que o cabaré fechar, o Orlando vai te levar direto para o nosso ninho de amor.

MaRIa ROSa: Você é louco. Onde foi arrumar o dinheiro para me tirar daqui?

LIdUínO: Se precisar eu tiro o pão da boca dos meus fi-lhos. Só para ter você.

(Os dois se beijam.)

(Em planos separados, todos os personagens – menos Luzita – se preparam para a noite.)

(Luzita está bordando na sala. Liduíno passa por ela, de saída para a noite.)

LUzIta: Já de saída?

LIdUínO: Hoje é sábado, minha flor. Eu sou feito o mos-quito que desperta quando a noite cai. E hoje este mos-quito vai zumbir a noite inteira! (Ri.) Não me espere.

(Sai. Luzita segue-o até a porta e o vê desaparecer na janela. Ela olha para a Santa.)

LUzIta (para a santa): Minha santa, com sua ajuda “sai-rei com glória de mais uma batalha de amor”.14 (Canta “Há um Deus”.)

B Há um Deus, simHá um DeusE este Deus lá no céuHá de ouvir minha vozSe eles estão me traindoE andam fingindoQue é só amizadeHão de pagar-me bem caroSe eu algum diaSouber a verdade

(A música cresce. A luz dos outros planos apaga-se e o cabaré-boate Melodrama acende-se.)

14 Ibidem.

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Cena 10: Cabaré Melodrama – Sábado à Noi te.

A luz da cena revela um clima festivo. Todos

estão presentes, menos Luzita. A banda toca

“Foi Assim”.

LInda (no palco, cantando “Foi Assim”):

B Será que é meu destinoSerá que é meu azarMas tenho que viver brigando?Todos no mundo encontram seu parPor que só eu vivo trocando?

(Durante a canção, Alves e Maria Rosa se desentendem e ela sai de cena.)

LInda (canta):

B Se deixo de alguémPor falta de carinhoPor brigas e outras coisas mais...Quem aparece no meu caminho...

(Luzita entra no salão. Linda interrompe a canção e a banda vai parando até o silêncio completo.)

LUzIta (desafiadora): Eu vim encontrar meu marido. (Vê Linda.) Você! Agora as coisas começam a fazer sentido.

LIdUínO: Luzita...

LUzIta: Por que é que a minha empregada tem vestidos melhores que os meus? (Liduíno avança para acalmá-la.

Ela se desvencilha dele.) Porque ela não é uma emprega-da qualquer!

LIdUínO: Luzita... vamos embora.

LUzIta (acusa Liduíno): É uma das suas vagabundas que você pôs na minha casa!

(Orlando afasta Linda. Liduíno se aproxima de Luzita.)

LUzIta: É umazinha sem moral. E você também sabia (aponta Orlando) e escondeu de mim.

ORLandO (atropeladamente): Não...

LUzIta: Este tempo todo, eu com uma ladra dentro da minha casa, comendo às minhas custas, rindo pelas mi-nhas costas.

LInda: Calma lá!

LUzIta (a Linda): Você não fala nada. Você é uma cobra.

LIdUínO (tentando abraçá-la): Calma, Luzita.

LUzIta (batendo em Liduíno): Você colocou uma cobra na minha casa para me envenenar! E você (aponta Orlando), era justamente o que você queria, não era? Destruir o meu lar!

(Liduíno fica confuso, olha para Orlando, que não se justifica.)

LInda (com raiva): A senhora está tão preocupada com o seu lar? Devia ter se preocupado antes! Sua falsa! Santinha falsa! Quer dizer que eu sou ladra, é? Olha aqui, o que eu roubei! (Abre a bolsa e tira as cartas.)

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Lê aí, seu Lidu! As cartas de amor que eu encontrei nas coisas da sua santa esposa. (Entrega as cartas a Liduíno, que arranca o papel de suas mãos, atônito.) Eu posso não saber ler, mas eu sei reconhecer uma as-sinatura. Vê se essa aí não é a mesma que aparece nas notas aqui do caixa! A dona Luzita tem um caso com o seu Orlando!

(Liduíno olha para Luzita, que está petrificada, depois olha para Orlando e avança sobre a mulher.)

LUzIta: Liduíno! É mentira!

LIdUínO: Vagabunda!

(Ele dá um tapa em Luzita. Orlando empurra Liduíno para longe.)

LIdUínO: Seu pulha! Se fazendo de amigo.

ORLandO: Você nunca mereceu ela!

LUzIta: É mentira! Tudo mentira! Não há nada entre nós!

(Alves aparta a briga. Linda, muito nervosa, olha para ele e tem mais um rompante.)

LInda: Tem mais! Não sou eu a amante do seu Liduíno! Mas se a senhora quiser conhecer, ela está logo ali! (Seu Maestro tenta afastar Linda do palco, mas ela apanha o microfone e fala, amplificada, olhando para Alves.) Rosa! Rosa!

(Maria Rosa surge, desatenta e com ar levemente ente-diado. Logo ela percebe que algo está diferente no salão e olha na direção de Luzita. As duas mulheres aproxi-mam-se uma da outra, receosas.)

LUzIta: Maria Rosa?

MaRIa ROSa: Maria da Luz?

(Pausa.)

ORLandO: Vocês se conhecem?

MaRIa ROSa: Ela é minha irmã.

(Blackout.)

(Fim do primeiro ato.)

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