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Visita o site: www.ulyssesmoore.it FICHA TÉCNICA Título original: I Pirati dei Mari Immaginari Uma história de Pierdomenico Baccalario Ilustrações e projeto gráfico: Iacopo Bruno Copyright © 2014 Atlantyca Dreamfarm s.r.l., Itália Projeto editorial de Atlantyca Dreamfarm s.r.l., Itália Edição original publicada por Edizioni Piemme S.p.A. International Rights © Atlantyca S.p.A., Via Leopardi, 8, 20123 Milão, Itália [email protected] — www.atlantyca.com Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016 Tradução: Filipe Guerra Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, fevereiro, 2016 Depósito legal n.º 402 899/15 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt Copyright e licença exclusiva da marca Ulysses Moore são propriedade da Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados. Direito moral do autor certi- ficado. Todos os nomes, personagens e símbolos constantes deste livro, bem como o copyright da Atlantyca Dreamfarm s.r.l., são licenças exclusivas da Atlantyca S.p.A. na sua versão original. Traduções e/ou adaptações são proprie- dade da Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados.

Visita o site S uspenso na orla do mundo, Larry Huxley espe-rava. Por baixo dele, as cataratas do mar junta-vam -se e caíam em torrentes, no vazio, dentro de um céu estrelado. Era

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FICHA TÉCNICA

Título original: I Pirati dei Mari ImmaginariUma história de Pierdomenico BaccalarioIlustrações e projeto gráfico: Iacopo BrunoCopyright © 2014 Atlantyca Dreamfarm s.r.l., ItáliaProjeto editorial de Atlantyca Dreamfarm s.r.l., ItáliaEdição original publicada por Edizioni Piemme S.p.A.International Rights © Atlantyca S.p.A., Via Leopardi, 8, 20123 Milão, Itália — [email protected] — www.atlantyca.comTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016Tradução: Filipe GuerraComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, fevereiro, 2016Depósito legal n.º 402 899/15

Reservados todos os direitospara Portugal àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 [email protected]

Copyright e licença exclusiva da marca Ulysses Moore são propriedade da Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados. Direito moral do autor certi-ficado. Todos os nomes, personagens e símbolos constantes deste livro, bem como o copyright da Atlantyca Dreamfarm s.r.l., são licenças exclusivas da Atlantyca S.p.A. na sua versão original. Traduções e/ou adaptações são proprie-dade da Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados.

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Estimada Redação,Leio e vejo histórias que nada têm a ver com os lugares

ima ginários. Fechado no escritório donde lhes escrevo, na companhia do manuscrito de Ulysses Moore que vos vou traduzindo aos poucos, consulto outros livros, alinhados naquelas estantes, que são os livros com os quais cresci.

Os meus livros falavam de aventuras no fundo do mar e da Legião Estrangeira, na qual, quando eu era criança, pensava poder alistar ‑me um dia, sobretudo porque sabia, com absoluta certeza, que nunca entraria realmente nessa organização. O sonho, contudo, ainda está aqui ao meu lado e, esse sim, é real. Do mesmo modo foi, ao ler, que criei o meu pinhal imaginário, pelo meio do qual corriam os índios Uronis e Iroqueses; ou a cidade escondida na selva do Congo, a transbordar de diamantes azuis. Tenho a minha ideia de como deveria ser a Sibéria, apesar de nunca lá ter estado. Mas vi ‑a pelos olhos cegos de Miguel Strogoff. Se não sou‑berem quem é, olhem bem à vossa volta.

Penso continuamente nestes livros, porque é destes lugares imaginários que se fala na história de Murray, Mina, Shane e Connor que está agora nas vossas mãos. Destes lugares e da viagem a bordo do Metis, o único barco que os pode alcan‑çar a todos, e a grande velocidade, beneficiando de correntes marítimas especiais, chamadas «o Azul».

Na sua primeira viagem, os jovens, depois de terem cos‑turado uma grande vela com remendos coloridos e de terem lançado o Metis ao mar com a ajuda do Professor Galippi, chegaram a Kilmore Cove, a aldeia onde vivia Ulysses

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Moore. Mas aquele já não era o lugar que muitos leitores imaginaram. Kilmore Cove era uma terra deserta. Muitos dos seus habitantes tinham desaparecido, incluindo o próprio Ulysses Moore. Os poucos que ficaram, entre eles Penelope Moore, falaram de uma guerra contra a Companhia das Índias Imaginárias, uma organização que queria controlar todas as rotas do Azul, servindo ‑se de dezenas e dezenas de navios e de milhares de marinheiros mudos, cinzentos e obedientes.

Na sua segunda viagem, Murray descobriu que con‑seguia abrir uma porta que, durante muitíssimos anos, estivera fechada: a Porta do Tempo da Vivenda Argo. E foi preci samente através dessa porta que conseguiu chegar à Ilha Tenebrosa, onde estava oculta a frota da Compa‑nhia das Índias Imaginárias e onde nunca ninguém tinha chegado, atacando ‑a de surpresa. Foi precisamente ali, naquela ilha, que Murray e os seus amigos encontraram um aliado inesperado: um velho pirata perneta, chamado Long John Silver. Sim, tal como aquele Long John Silver, o cozinheiro pirata da Ilha do Tesouro de Sir Robert Louis Stevenson.

O que fazia ele ali, na Ilha Tenebrosa, e também na his‑tória de Ulysses Moore?

A pouco e pouco, lendo e traduzindo estas páginas, com‑preendi que muitos dos protagonistas desta história são personagens saídos de outras histórias para encontrarem pessoas de carne e osso e falarem com elas. Então percebi, também, o que Ulysses Moore me estava a dizer através do

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seu manuscrito: poderíamos verdadeiramente dizer que o senhor Long John Silver é para nós menos real do que, por exemplo, Charles Darwin?

E se, pelo contrário, o que julgámos não ser real, fosse, sim‑plesmente, um lugar mais difícil de alcançar do que todos os outros? Talvez porque nós, ao contrário de Murray, Connor, Mina e Shane, não encontrámos o nosso Metis?

Acredito que vocês o vão descobrir neste livro.Ouçam ‑me, leitores de Ulysses Moore, e não percam mais

tempo.A aventura espera ‑vos.

Pierdomenico Baccalario

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Suspenso na orla do mundo, Larry Huxley espe-rava. Por baixo dele, as cataratas do mar junta-vam -se e caíam em torrentes, no vazio, dentro de

um céu estrelado.Era um mar gélido, siberiano, que gorgolejava no

ventre aveludado da escuridão, enquanto os bancos de gelo deslizavam, lentos, entre as ondas. Do céu caía uma chuva de gelo que golpeava o mar.

Larry Huxley sorriu, descobrindo uma fila de dentes branquíssimos entre os lábios finos.

— Belo espetáculo, hã, Whiskers?O coelho de pano, apertado entre o cotovelo e a cin-

tura do rapaz, limitou -se a fixar o vazio com os olhos apagados, impecável no seu colete vermelho.

Larry Huxley andava de um lado para o outro no amplo terraço do arranha -céus que se erguia sobre aquela extensão glacial. As solas dos seus sapatos de couro batiam com força no pavimento de cerâmica, dando estalidos secos, e o parapeito imaculado cintilava sob os raios metálicos de uma lua distante.

O arranha -céus surgia nos limites de uma cidade de enormes edifícios de cimento abandonados que se encavalitavam uns sobre os outros e se prolongavam até à costa. Era uma cidade imponente, mas como que petrificada em gelo e cansaço, nas margens de uma taiga igualmente gelada.

Por trás de Larry Huxley, em contraste com aquele gélido abandono, brilhavam as luzes suaves de um

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quarto luxuoso, acolhedor, com o parqué de losangos, sumptuosos divãs acolchoados de veludo, teto traba-lhado com estuques dourados, estofos de pregas longas decorados com motivos berrantes.

— Os outros estão a chegar — anunciou uma voz insinuante.

Larry Huxley desviou de má vontade os olhos daque-les gelos e voltou -os para quem, atrás dele, tinha falado.

E viu um gato. Um gatarrão negro, de pé nas patas traseiras, de pelo luzidio e barriga gorda que extravasava sobre as coxas em pequenos pneus de gordura. Os seus grandes olhos dourados fixavam o vazio, e os bigodes prateados, espetados dos lados do focinho, vibravam como agulhas de costura.

A testa de Larry descontraiu -se ligeiramente quando o gato indicou com deferência o homem de pé ao seu lado, que acabara de falar, sem dúvida o seu dono.

— Woland! — cumprimentou -o Larry Huxley. — Não te ouvi chegar.

O funcionário Woland envergava um fato de fazen-da de lã escura e um estranho laço às bolinhas, que fazia ressaltar o seu olhar com um brilho sinistro. Como se não fosse já, por si mesmo, suficientemente terrível.*

* Nota do tradutor. Encontramos uma dupla de personagens curiosamente semelhantes a Wo land e ao seu acompanhante felino no romance O Mestre e Margarita, de Mikhail Bulgákov, escrito entre 1928 e 1941 (Editorial Presença, 2015).

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Larry Huxley ficou à espera, em frente ao seu subor-dinado.

De entre os oficiais da Companhia das Índias Imaginá-rias, Woland era um dos poucos que Larry Huxley tratava com um certo respeito. Woland era cruel na dose certa, não tinha escrúpulos ou problemas morais como certos flibus-teiros seduzidos pelo passado e tinha uma capacidade de convencer o inimigo só comparável à do Diabo em pessoa.

Claro que isso não fazia dele um amigo, mas Larry Huxley não tinha amigos.

No que lhe dizia respeito, um funcionário capaz de cumprir o seu dever já era suficiente.

— O Sereia Negra? — perguntou, coçando o queixo como se estivesse coberto de barba.

Woland encolheu os ombros finos e inclinou o tronco magro.

— Teve problemas com os icebergues — explicou. — Como todos os outros.

Dirigia -se ao Superintendente em tom confidencial, isento de cerimónias. Só ele podia fazer isso; tinha auto-rização para tal. Se aquele incompetente do Bellingham alguma vez se tivesse atrevido a tratar o chefe por «tu», Larry Huxley tê -lo -ia expulso para sempre dos Lugares Imaginários.

— Está tudo sob controlo — continuou Woland. — Verás que eles hão de chegar.

Larry Huxley abanou a mão, querendo significar que o sabia muitíssimo bem. Claro que estava tudo sob

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controlo. Era ele o controlo. Eram as suas mãos que se-guravam as rédeas da Companhia, de todos os ofi ciais, de todos os Portos Escuros. Até da Porta do Tempo, uma vez...

Uma vez.Antes de aquele maldito rapazinho chegar, com a sua

cambada de palhaços, a baralhar as cartas de um jogo já vencido.

Murray.Murray o rebelde, Murray a tempestade, aquele

Murray que não tinha percebido nada do funciona-mento das coisas nos Lugares Imaginários. Ele, com a sua corja de fantoches que teimavam em sonhar quando, pelo contrário, era o pesadelo, que governava sempre os destinos do mundo.

— Não passam de uns fedelhos, não é, Whiskers? — sussurrou. — Pequeninos, inúteis, patéticos fedelhos.

O gato de Woland olhou fixamente para o coelho de pano, com uma certa curiosidade, à espera de que ele respondesse. Mas o coelho não o fez.

— Inquieto com os rebeldes? — perguntou Woland, acariciando a barbicha pontiaguda.

Larry Huxley rebentou num risinho nervoso.— Inquieto, eu? Estás a brincar. Um punhado de

rapazinhos em debandada não pode vencer a frota da Companhia.

— Mas conseguiram queimar vários navios — obser-vou Woland, perscrutando com avidez a reação de Larry

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Huxley. — E andam, sem dúvida, à procura de Ulysses Moore.

Ao ouvir pronunciar aquele nome, os olhos de Larry Huxley relampejaram.

— Não... pronuncies... esse nome... na minha pre-sença — soletrou.

Só então reparou que Woland trazia uma grande caixa debaixo do braço.

— O que tens aí?Os olhos do funcionário chisparam.— Aqui? Oh, digamos, pura e simplesmente, que

é «uma surpresa».O homem pousou a caixa em cima da mesinha

do terraço e Larry Huxley notou, então, que não se tratava de uma caixa mas de um rádio. Um grande, velho e atarracado rádio portátil, com uma grelha a tapar o altifalante e uma tampa de madeira para orien-tar o som.

Woland ligou o aparelho e, de repente, por entre o fragor dos gelos que se precipitavam entre as estrelas, uma voz crepitou.

— Aqui Rádio Livre Kilmore Cove.Larry Huxley sentiu que lhe faltava a respiração.

Entretanto, a voz começava o seu relato.— O que é isto...? — arquejou.Woland fez -lhe sinal para ouvir. A voz contava a his-

tória de um homem e de uma mulher que se dirigiam a um rei para lhe pedirem uma caravela.

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* * *

— E vós, para que fim quereis um barco, pode saber‑‑se? — perguntou o rei.

— Para irmos em busca da ilha desconhecida — respon‑deu o homem.

— Disparates! Já não há ilhas desconhecidas. As ilhas constam todas dos mapas.

— Nos mapas geográficos só estão as ilhas conhecidas — replicou o homem.

— Quem vos falou nessa ilha desconhecida? — perguntou o rei, agora mais sério.

— Ninguém.— Nesse caso, porque teimais em pensar que ela existe?— Porque é simplesmente impossível que não exista uma

ilha desconhecida.— E viestes então aqui pedir ‑me um barco.— Sim, viemos pedir ‑vos um barco.— E quem sois vós, para que eu vo ‑lo possa dar?— E quem sois vós para não mo dardes?— Sou o monarca deste reino, e os barcos do reino são

todos propriedade minha.— Talvez sejais vós que lhes pertenceis, e não eles a vós.— Que quereis dizer com isso? — perguntou o rei, in quieto.— Que vós, sem os barcos, não seríeis ninguém. Enquanto

eles, sem vós, poderiam sempre navegar.

* * *

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Larry Huxley ouviu e continuou a ouvir. No fim da narração, o homem e a mulher conseguiram a caravela, gravaram -lhe o nome Ilha Desconhecida na proa e zar-param em busca de si mesmos.*

Depois disto, o rádio calou -se.— Bela história, não achas? — perguntou Woland,

sem desligar o aparelho.A teia de aranha invisível das ondas hertzianas envol-

veu o terraço nas suas crepitações.Larry Huxley apoiou os nós dos dedos na mesa e,

irritado, fixou os olhos noutro lado.— Eu mato -os, Woland, juro -te que dou cabo deles!

O que é que... o que é que eles pensam que estão a fazer? Acham que me derrotam com as suas historie-tas, esses cobardes? Porque é que não conseguimos varrê -los daqui para fora? Onde é que estão os outros, Woland? Quando é que chegam? Quanto tempo ainda temos de esperar, pode saber -se?!

Com toda a calma, Woland estendeu o seu magro braço esquerdo e desligou o aparelho, fazendo desa-parecer do terraço os laços invisíveis e grasnados das ondas da rádio.

— Muito pouco — respondeu.

* Nota do Tradutor. Esta passagem lembrou -me, de repente, A Ilha Desconhecida, um conto de José Saramago de 1922. Veri-fiquei então a fonte e a citação e, efetivamente, correspondem, embora com algumas adaptações.

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—Nada mal. — Murray não conseguiu es-con der um sorriso ao tirar o seu velho caderno da mão larga e forte do pai.

— Nada de contactos! — advertiu -o o guarda prisio-nal que estava ao lado.

O rapaz deslizou as pontas dos dedos pela capa do caderno até ao canto inferior direito, o que estava ris-cado.

— Gostaste mesmo? — perguntou.O pai encostou -se ao espaldar ridiculamente pequeno

da cadeirinha de ferro e assentiu com a cabeça.— Nada mal, a sério. Há aqui talento.Murray olhou de esguelha para o guarda, que se

limitava a olhar fixamente para um ponto vago diante dele.

— São apenas uns contos — riu -se Murray.— Uns contos maravilhosos. Escreveste mais alguma

coisa?O rapaz coçou a têmpora e os seus cabelos escuros

ondularam como ervas finas à passagem de um grilo. Era verdade que tinha escrito outras coisas. Estava ali para isso. Inclinou -se para trás na cadeira, esfregando as solas dos ténis no pavimento de linóleo.

— Espera.Procurou na mochila e tirou um maço de folhas pre-

sas por um elástico.Um manuscrito.— Tenho isto.

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O pai debruçou -se para a frente, para dar uma vista de olhos.

— Caramba! E é sobre o quê?Os malares sardentos de Murray soergueram -se sob

o impulso de um sorriso. Sobre o quê?Via -se a si mesmo, a Mina, a Shane, a Connor e ao

Professor Galippi juntos em Kilmore Cove, através das ondas cheias como dirigíveis, nas ilhas tormentosas das escuras lendas, entre os nevoeiros sussurrantes. Na proa do Metis primeiro, no convés ventoso do Nemesis depois, entre as danças perigosas do Azul e nas profun-dezas viçosas da selva negra.

Era sobre o quê?Sobre isso tudo.Murray mantivera um diário fiel do que lhes tinha

acontecido nas últimas semanas, a partir da manhã em que haviam encontrado o Metis deitado no meio dos ramos do pântano.

— Lê e logo verás — respondeu.Sob o olhar vigilante do guarda, o senhor Clarke

pegou no manuscrito e sopesou -o. Deviam ser pelo me-nos quinhentas páginas, com uma escrita cerrada, na caligrafia inclinada para a frente que o filho adquirira desde os primeiros anos da escola.

— Vou começar a ler logo que saias — assegurou. — Agora fala -me da casa. Como está a mãe?

Murray encolheu os ombros.— Bem. Tudo como habitualmente.

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— Conta -me coisas.— O quê?— Uma coisa qualquer.Murray suspirou.— Ontem ficou fechada na rua, tinha deixado a cha-

ve dentro de casa. Teve de chamar um serralheiro. Mas também se tinha esquecido do telemóvel, então foi a casa da vizinha, sabes, aquela velha. Ora, mas ela tam-bém não tem telefone. Então teve de pedir o telemóvel emprestado à primeira pessoa que passou.

O pai riu -se.— E o que fez depois?— Nada, acho eu. Esperou.O sorriso do pai diluiu -se numa expressão absorta.

Pousou os olhos azuis e profundos nos do filho.— A mãe é boa a esperar — murmurou.Murray, pouco à vontade sempre que alguma coi-

sa na relação entre os pais lhe escapava, mudou de as-sunto.

— E... adivinhas o que encontrámos, eu e os outros?— Diz -me tu.O rapaz abriu os braços.— Uma pista de carrinhos colossal. Nem imaginas,

papá: é gigantesca. A maior do mundo.— E o que fizeram com ela?— Desmontámo -la, peça a peça.O pai assobiou, impressionado, e um velho preso,

sentado a pouca distância, olhou para ele de soslaio.

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— Só que não sabemos onde a guardar — confessou Murray.

— Para voltarem a montá -la?— Exatamente.O homem refletiu durante uns instantes, depois per-

guntou:— Tens um pedaço de papel?Murray procurou no bolso e tirou um caderninho,

do qual arrancou uma folha. Hesitou.— Também precisas de uma caneta?— Parece que sim. Aqui na prisão, os artigos de escri-

tório escasseiam.Depois escrevinhou qualquer coisa no bilhete.— Pergunta a esta pessoa. Talvez tenha espaço para

a tua pista. É de confiança, um amigo.Murray leu o nome, surpreendido. Guardou o pape-

linho.— Ah... obrigado. Com certeza, vou ter com ele e...Nesse momento, um aviso pelo altifalante colo-

cado no teto sobrepôs-se à suas palavras: «O horário da visita terminou. Pede -se aos visitantes que abandonem a sala.»

Murray olhou à sua volta. A «sala» era um compar-timento árido, com as paredes de cimento tosco, uma só janela com barras, nove mesinhas e um carcereiro. Era necessária muita coragem para se lhe chamar «sala».

— Tenho de ir — disse o pai, levantando -se. — O de-ver chama -me.

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Meteu o manuscrito debaixo do braço e deu -lhe uma palmada, antes de o guarda voltar a prender -lhe os pul-sos com as algemas regulamentares.

— Lê -o, eh! — voltou a dizer Murray.Deixou -se ficar sentado, não tinha vontade nenhuma

de sair dali.— Podes ter a certeza de que o farei.O rapaz viu a figura alta e elegante do pai a desapare-

cer do outro lado da porta de ferro, seguido por outros dois reclusos.

Depois meteu a agenda e o caderno na mochila e pousou as mãos em cima da mesinha de metal.

Estava fria.— As visitas terminaram — voltou a avisar o guarda.Era um homem alto e gordo, com ombros largos

e a barriga mole de um samurai reformado. Murray imaginou -o com o quimono e a katana. Era evidente que, em jovem, o homem tinha pisado campos de bata-lha decisivos, mas o tempo de guerra já tinha acabado, para ele, e nada mais lhe restava senão deitar -se no tatame. E render -se.

O rapaz levantou -se com uma lentidão exasperante. A mochila estava mais leve, agora que já não tinha o manuscrito lá dentro. A sua cabeça, pelo contrário, pesava o dobro.

Pensou em Shane, o seu melhor amigo, que já não estava com ele porque tinha escolhido ficar do outro lado: em Kilmore Cove.

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Sentiu que lhe tocavam no ombro.— Eh, ainda vais demorar mui...— Já vou, já vou! — gritou o rapaz, fazendo sobres-

saltar o guarda prisional. Depois recompôs -se. — Des-culpe. Ouça, há aqui uma casa de banho?

O guarda observou -o com certa desconfiança.— Tens mesmo de ir aos lavabos?— Não, é só para a ver. Olhar para as casas de banho

é o meu passatempo, sabe? — replicou Murray. Depois teve a intuição dos pensamentos do guarda e acrescen-tou: — Não se preocupe, não tenho armas escondidas no autoclismo, nem cordas para pendurar à janela (se por acaso houver alguma), nem canivetes suíços para enfiar debaixo do teflon do tubo de descarga. Só tenho de ir à casa de banho. O mais depressa possível.

O guarda abanou a mão, como a querer afugentar aquele engarrafamento de palavras, e indicou -lhe uma porta estreita coberta de verniz vermelho.

— É ali. Mas depressa.Murray, ao chegar ao primeiro lavatório, que por

acaso era também o único, apoiou os cotovelos na borda e fez correr um fio de água fria ao longo dos pulsos. A água crepitou como um ataque de tosse, depois gor-golejou através dos canos enferrujados.

Murray olhou -se ao espelho: tinha um olhar turvo, desiludido, cheio de rancor. Para se recompor, apressou--se a sorrir. Depois tirou a sweatshirt e a camisola inte-rior e pôs -se a verificar o mapa de nódoas negras que

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lhe marcavam as costas e o peito, uma recordação da sua última incursão na selva. Isso parecia -lhe a anos--luz de distância, apesar de remontar apenas ao fim de semana anterior. Baixou a cabeça no lavatório e deixou que a água fresca lhe escorresse ao longo das faces, arrastando com ela os seus pensamentos mais negros.

— Eu mato ‑os, juro ‑te que dou cabo deles!Murray sobressaltou -se e bateu com a nuca na tor-

neira do lavatório.— Mas que raio de coi...— Acham que me derrotam com as historietas deles, esses

cobardes?Aquela voz.— Onde é que estão os outros, Woland?Aquela.Voz.Que vinha da água.Picava -lhe as têmporas como o kriss de um pirata

malaio, fazia -lhe descer o coração aos pés e depois outra vez para cima, até às costelas, até à garganta.

Murray fechou bruscamente o jato de água, agarrou na sweatshirt e na camisola interior e correu para fora dali.

Não havia tempo.Já não havia tempo!

Mina tentou abrir a porta da biblioteca com a anca porque tinha os braços carregados de livros.

— Precisas de ajuda? — perguntou uma voz de rapaz.

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Caracóis despenteados, nariz comprido e importante, olhos brilhantes como fogo. Mina reconheceu Matthew, o jovem bibliotecário.

— Ah! Não, não... Ou antes, sim. Até preciso. Obri-gada — gaguejou, ao mesmo tempo que a pilha de livros baloiçava perigosamente.

Matthew pegou nos volumes mais pesados e abriu com facilidade o batente.

— Vou contigo — ofereceu -se.— Mas não há necessidade! Eu consigo sozinha,

a sério. Moro... perto. Bastante.O rapaz encolheu os ombros.— Nesse caso será uma viagem curta.Prosseguiram juntos, ela a caracolear, incerta, ele

num passo seguro.— Levas o Neuromante de Gibson — notou Mat-

thew, espreitando para as lombadas dos últimos livros da pilha. — Há meses que ninguém o requisita. E a Trilogia Cósmica de Lewis... Estás em maré de dis-topias?

A rapariga refletiu antes de responder.— Digamos que estou em maré de livros que me

transportem para um outro lado.— E porquê? Não é isso que todos os livros fazem?Mina enrugou a testa.— Tens razão. Digamos, então, que me transpor-

tem «para um outro lado onde nada é como deve-ria ser».

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