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APRESENTAÇÃO VISÕES DA TRANSIÇÃO: ELEMENTOS PARA A ANÁLISE DA TRAJETÓRIA POLÍTICA NO BRASIL DE 1988 A 1998 Projeto realizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea CEDEC (www.cedec.org.br) com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP e da Fundação Ford Equipe responsável pelo projeto Amélia Cohn, socióloga, professora associada do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Brasílio Sallum Jr., sociólogo, professor associado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) Ronaldo Baltar, sociólogo, professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL) A origem do projeto Neste CD encontram-se as transcrições das longas entrevistas concedidas aos pesquisadores do CEDEC por figuras da maior expressão na cena pública brasileira. Ao recuperar as entrevistas realizadas nos anos de 1987/88 e agregar a elas aquelas realizadas 10 anos depois, no segundo semestre de 1999, com um conjunto mais amplo de pessoas para além daquele grupo original, o CEDEC põe à disposição do público, acadêmico ou não, um fecundo conjunto de dados para a compreensão dos processos políticos brasileiros deste último período. Esse material, embora guarde uma consistência interna, na realidade é produto não só de dois momentos distintos da vida nacional, como de dois projetos distintos de pesquisa levados avante por equipes igualmente distintas. O primeiro deles, denominado “A Construção da Democracia no Brasil”, financiado pela Fundação Ford, foi desenvolvido entre 1987 e 1988, e fazia parte de um programa

Visões da Transição - Cedec - Centro de Estudos de ... · ... como de dois projetos distintos de pesquisa levados avante por ... CRISTOVAM BUARQUE ... C-5 Qual a sua avaliação

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APRESENTAO

VISES DA TRANSIO:

ELEMENTOS PARA A ANLISE DA TRAJETRIA POLTICA NO BRASIL DE 1988 A 1998

Projeto realizado pelo

Centro de Estudos de Cultura Contempornea CEDEC (www.cedec.org.br)

com apoio da

Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP

e da Fundao Ford

Equipe responsvel pelo projeto

Amlia Cohn, sociloga, professora associada do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (USP)

Braslio Sallum Jr., socilogo, professor associado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (USP)

Ronaldo Baltar, socilogo, professor adjunto do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL)

A origem do projeto

Neste CD encontram-se as transcries das longas entrevistas concedidas aos pesquisadores do CEDEC por figuras da maior expresso na cena pblica brasileira. Ao recuperar as entrevistas realizadas nos anos de 1987/88 e agregar a elas aquelas realizadas 10 anos depois, no segundo semestre de 1999, com um conjunto mais amplo de pessoas para alm daquele grupo original, o CEDEC pe disposio do pblico, acadmico ou no, um fecundo conjunto de dados para a compreenso dos processos polticos brasileiros deste ltimo perodo.

Esse material, embora guarde uma consistncia interna, na realidade produto no s de dois momentos distintos da vida nacional, como de dois projetos distintos de pesquisa levados avante por equipes igualmente distintas. O primeiro deles, denominado A Construo da Democracia no Brasil, financiado pela Fundao Ford, foi desenvolvido entre 1987 e 1988, e fazia parte de um programa

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mais amplo de pesquisas sobre a transio poltica brasileira. Este em especfico intitulava-se A elaborao da nova constituio brasileira pelo Congresso Constituinte, e foi coordenado pelo nosso saudoso colega Regis de Castro Andrade. Compunham a equipe de pesquisadores: Francisco Corra Weffort, Jos lvaro Moiss, Marco Aurlio Garcia, Maria Victoria de Mesquita Benevides; como assistentes de pesquisa: Paulo Srgio de Castilho Muouah e Valeriano Mendes Ferreira Costa.

Regis, com sua habilidade na utilizao da pena, reeditou os textos que resultaram das transcries, e aps um trabalho insano, publicou o conjunto das 7 entrevistas com as principais lideranas poltico-partidrias de ento em dois volumes intitulados Vises da Transio1. Inspirada nesse ttulo e inconformada com a pequena circulao desse rico material, em 1998 uma outra equipe cedequiana se prope a retomar o projeto. Com financiamento agora pela FAPESP e coordenao de Amlia Cohn e Brasilio Sallum Jr., juntamente com a coordenao tcnica de Ronaldo Baltar, foram realizadas entrevistas com 21 personalidades da vida pblica brasileira. Neste ponto especfico, de maneira inconsciente, deve ter funcionado o raciocnio da proporcionalidade no caso do Regis, 1:7, e no nosso caso, 3:21; justo!

Foi mantido o ttulo, embora o procedimento nesta segunda etapa tenha sido distinto: no se tratava mais de seminrios realizados na sede do CEDEC, com exposies dos convidados seguidas de perguntas e debates dos pesquisadores da equipe e dos convidados, mas de entrevistas seguindo um roteiro semiestruturado e previamente elaborado pela equipe. Na realizao das entrevistas contou-se tambm com a colaborao de Francisco Fonseca, Mrcia Miranda Soares e Tullo Vigevani.

Esse conjunto agora publicado sob a forma de CD-Rom ganha uma outra especificidade: como composto de informaes colhidas em dois momentos distintos, com um intervalo de tempo de 10 anos, o primeiro conjunto gira em torno de questes relativas a direitos e liberdades individuais e sociais, ordem econmica e social, regime de governo, articuladas em torno da nova ordem constitucional brasileira. J o segundo conjunto retoma essas questes destacando os temas que nos 10 anos subseqentes fizeram parte da agenda poltica do pas, agrupados em torno dos eixos da transio poltica, da relao entre poltica e economia, do sistema poltico brasileiro e a relao entre os trs poderes, das alianas polticas e das perspectivas de se formular alternativas viveis para o pas. Em comum a ambos os conjuntos persiste a preocupao nuclear do CEDEC: identificar e analisar a realidade brasileira da tica do fortalecimento da ordem democrtica no pas, e neste caso especfico, no mais da perspectiva da transio democrtica, mas dos obstculos consolidao da democracia.

Por fim, duas observaes: a ausncia de nomes expressivos da vida pblica

1 Andrade, Regis de Castro; Moiss, Jos lvaro e Weffort, Francisco Corra. Vises da transio. So Paulo:

CEDEC, 1989 (vol. I: Entrevistas com o senador Fernando Henrique Cardoso, deputado federal Guilherme Afif Domingos e senador Jarbas Passarinho, 189 p.; vol. II: Entrevistas com o deputado federal Luiz Incio Lula da Silva, senador Marco Maciel, deputado federal Roberto Freire e governador Waldir Pires, 179 p.) (Srie Documentos).

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brasileira pode ser s parcialmente creditada equipe responsvel pela pesquisa, j que ao todo foram contatadas 51 das 52 personalidades por ns identificadas, e s tivemos xito com menos da metade desse total. A segunda diz respeito ao fato de a reedio das entrevistas desse segundo conjunto, sob minha responsabilidade, no contar com algum com a habilidade de escrita de Regis; mas certamente a colaborao nessa tarefa da incansvel Marleida Borges ajuda a diminuir o desequilbrio da elegncia da forma.

Amlia Cohn Novembro de 2003

As entrevistas

A seleo das pessoas a serem entrevistadas em 1999 obedeceu a critrios

semelhantes queles adotados em 1988:

ter presena expressiva no debate poltico nacional durante a ltima dcada;

pertencer a diferentes correntes ideolgico-partidrias e a

diferentes setores sociais. Com isto, e conforme anteriormente apontado, chegou-se a 52 nomes em

1999, logrando-se contatar 51 dentre eles; destes, 21 se dispuseram de pronto a conceder a entrevista. Quanto aos demais, em que pesem nossos insistentes e sistemticos esforos, no logramos xito. Apesar disso, relevante ressaltar que, com exceo do senador Roberto Freire, todos aqueles que haviam sido entrevistados em 1988 se dispuseram a conceder entrevista em 1999, o que refora a importncia deste material como uma preciosa fonte de informaes sobre a realidade brasileira contempornea.

Entrevistados em 1988

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO GUILHERME AFIF DOMINGOS JARBAS PASSARINHO LUIZ INCIO LULA DA SILVA MARCO MACIEL ROBERTO FREIRE WALDIR PIRES

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Entrevistados em 1999

ALDO REBELO CIRO GOMES CRISTOVAM BUARQUE EDUARDO SUPLICY ESPERIDIO AMIN FERNANDO HENRIQUE CARDOSO GUILHERME AFIF DOMINGOS JADER BARBALHO JARBAS PASSARINHO JOS GENONO JOS RAINHA LUIZ INCIO LULA DA SILVA MARCO MACIEL MRIO AMATO MIRO TEIXEIRA ORESTES QURCIA OTAVIO FRIAS FILHO RUBENS RICUPERO TARSO GENRO VICENTE PAULO DA SILVA (VICENTINHO) WALDIR PIRES

As informaes contidas no CD equivalem a aproximadamente 700 pginas de texto, ou mais de 60 horas de gravao. Espera-se que o acesso a estas informaes atravs de CD-Rom permitam aos seus usurios:

encontrar elementos para confrontar a viso desses atores polticos sobre questes e problemas relativos democracia no Brasil do final das dcadas de 80 e 90;

encontrar elementos para, atravs desses depoimentos, identificar diferentes correntes e posies ideolgicas sobre os principais pontos da agenda poltica do pas;

encontrar elementos para fazer um balano da transio brasileira nas duas ltimas dcadas do sculo XX, contemplando inclusive a viso de longo prazo dos atores polticos.

Ao trazer a pblico este rico e extenso material, o CEDEC reafirma seu perfil

institucional: desenvolver pesquisas fortemente articuladas com as questes que envolvem a democracia no pas. Como contrapartida, solicita-se que eventuais reprodues integrais ou parciais deste material venham acompanhadas dos devidos crditos.

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Roteiro de entrevistas utilizado pela pesquisa

A pesquisa procurou abordar o problema dos obstculos consolidao da

democracia no Brasil atravs de um leque amplo de temas. Foram selecionados os temas que fizeram parte da agenda poltica do pas na ltima dcada e que, em alguma medida, interferiram na formulao de polticas para o Brasil.

Esta relao de temas est descrita no roteiro de entrevistas. Todas as entrevistas realizadas em 1999 seguiram este roteiro. O roteiro foi utilizado como referncia de temas e no exatamente como questionrio. Assim, para cada entrevista, as perguntas formuladas variaram de acordo com as respostas e com o interesse do entrevistado. De qualquer maneira, todas as entrevistas abordaram todos os tpicos relacionados no roteiro. Roteiro A - Balano da transio (Viso Geral): A-1 Nestes ltimos dez anos, o pas passou por trs eleies diretas. Qual o balano sobre este processo de redemocratizao? A-2 Houve algum saldo poltico, econmico ou social neste perodo? A redemocratizao implicou uma reduo na dvida social? A-3 Quais foram os principais obstculos consolidao do sistema democrtico no Brasil? B - Transio como mudana no regime militar B-1 Desde o incio da Repblica os militares tiveram um papel destacado na vida poltica do pas. Hoje, poder-se-ia afirmar que o sistema poltico possui completa independncia em relao aos militares? A questo militar est resolvida no pas? B-2 O entulho autoritrio do regime militar foi completamente desmontado? Ainda resta algum resqucio? Qual? C - Poltica e economia C-1 O debate poltico no Brasil tem sido marcado pela dicotomia entre crescimento econmico e justia social. possvel haver crescimento econmico concomitante com distribuio de renda e investimentos em polticas sociais? Como? C-2 Qual o papel do Estado na sociedade contempornea? C-3 Dficit pblico e recesso: como controlar os gastos pblicos e manter polticas sociais? C-4 Reformas so necessrias? Quais? C-5 Qual a sua avaliao sobre a estratgia econmica de desenvolvimento do governo federal? Quais seriam as alternativas? Uma avaliao do Plano Real de estabilizao econmica? Como conseguir ao mesmo tempo o fim da inflao (estabilidade), o crescimento econmico e a distribuio de renda? O Plano Real tem conseguido cumprir estas metas? C-6 Sobre a integrao regional (Mercosul) e ALCA: pode-se afirmar que a globalizao inevitvel? desejvel? Quais os interesses do pas neste

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processo? Em sua opinio, como se deve enfrent-lo? Qual a sua opinio sobre a integrao internacional sob o ponto de vista da soberania nacional? D - Sistema poltico (Executivo, Legislativo e Partidos) D-1 Qual a sua opinio sobre o Legislativo, o Executivo e o Judicirio no Brasil? Houve alguma mudana nestes ltimos dez anos? Quais? D-2 Qual a sua opinio sobre o sistema partidrio no Brasil? Qual a sua opinio sobre a reforma eleitoral e partidria? Quais deveriam ser os principais pontos a serem alterados de forma imediata? Que conseqncias estas mudanas trariam para a consolidao da democracia no Brasil? D-3 Nestes ltimos dez anos, o equilbrio na relao entre os poderes Executivo e Legislativo foi modificado? Se houve alguma modificao, qual foi o sentido? E - Alianas polticas E-1 Que tipo de alianas deveriam ser feitas para a consolidao democrtica no pas? E-2 A idia de pacto social ainda continua sendo uma proposta vlida para a construo de uma alternativa poltica para o pas? F - Mobilizaes F-1 Quais seriam os temas mobilizadores para a sociedade hoje? F-2 Existem condies propcias para uma mobilizao nacional? possvel cri-las? de interesse poltico uma mobilizao nacional? G - Perspectivas G-1 Que problemas o pas precisar resolver prioritariamente nos prximos anos? (Qual deveria ser a agenda?) G-2 Que aes esto sendo elaboradas com o objetivo de construir esta agenda? G-3 Socialismo, social-democracia, social-liberalismo, liberalismo, neoliberalismo, qual o iderio que propicia hoje alternativas viveis para o Brasil?

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SIGLAS

ABI Associao Brasileira de Imprensa ABRA Associao Brasileira de Reforma Agrria ABRACEX Associao Brasileira de Comrcio Exterior AI-5 Ato Institucional n 5 ALCA Acordo de Livre Comrcio das Amricas ANATEL Agncia Nacional de Telecomunicaes ANEEL Agncia Nacional de Energia Eltrica ARENA Aliana Renovadora Nacional ARO Antecipao de Receita Oramentria BANESPA Banco do Estado de So Paulo S/A BANRISUL Banco do Estado do Rio Grande do Sul S/A BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social BNH Banco Nacional da Habitao CADE Conselho Administrativo de Defesa Econmica CCSCS Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul CEBs Comunidades Eclesiais de Base CELESC Centrais Eltricas de Santa Catarina CESP Companhia Energtica de So Paulo CGT Confederao Geral dos Trabalhadores CIDASC Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrcola de Santa Catarina CIEP Centro Integrado de Educao Pblica CIPA Comisso Interna de Preveno de Acidentes CLT Consolidao das Leis do Trabalho CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil COBRASMA Companhia Brasileira de Material Ferrovirio CODESUL Conselho de Desenvolvimento do Extremo Sul COMGS Companhia de Gs de So Paulo CONCLAP Conferncia Nacional das Classes Produtoras CONCLAT Coordenao Nacional da Classe Trabalhadora CONFAZ Conselho Nacional de Poltica Fazendria CONSEAS Conselho Estadual de Assistncia Social CONTAG Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CONTEC Confederao Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crdito COPPE/UFRJ Instituto Alberto Luiz Coimbra de Ps-Graduao e Pesquisa em

Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro CPFL Companhia Paulista de Fora e Luz CPI Comisso Parlamentar de Inqurito CPMF Contribuio Provisria sobre Movimentao Financeira CREA Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia CUT Central nica dos Trabalhadores

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DASP Departamento Administrativo do Servio Pblico DECOM Delegacia de Defesa do Consumidor DIAP Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar DIEESE Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Scio-Econmicos ELETROPAULO Eletricidade de So Paulo S/A EMBRAER Empresa Brasileira de Aeronutica S/A EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria EMBRATEL Empresa Brasileira de Telecomunicaes S/A FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador FBI Federal Bureau of Investigation FCVS Fundo de Compensao de Variao Salarial FED Federal Bank (Banco Central norte-americano) FEF Fundo de Estabilizao Fiscal FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Servio FIESP Federao das Indstrias do Estado de So Paulo FIPE Fundao Instituto de Pesquisas Econmicas FMI Fundo Monetrio Internacional FUNCEF Fundao dos Economirios Federais FUNDEF Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de

Valorizao do Magistrio FUNRURAL Fundo de Assistncia ao Trabalhador Rural FUSESC Fundao dos Servidores do Estado de Santa Catarina GATT Acordo Geral de Tarifas e Comrcio IAB Instituto dos Arquitetos do Brasil IBGE Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica ICMS Imposto sobre Circulao de Mercadorias e Servios INAMPS Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria INMETRO Instituto Nacional de Metrologia, Normalizao e Qualidade Industrial IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada IPI Imposto sobre Produtos Industrializados ITAL Instituto de Tecnologia de Alimentos ITR Imposto Territorial Rural ITT International Telephone and Telegraph Corporation LBA Legio Brasileira de Assistncia MDB Movimento Democrtico Brasileiro MERCOSUL Mercado Comum do Sul MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra NAFTA Acordo de Livre Comrcio da Amrica do Norte OAB Ordem dos Advogados do Brasil OMC Organizao Mundial do Comrcio ONG Organizao No-Governamental ONU Organizao das Naes Unidas ORIT Organizao Regional Interamericana de Trabalhadores OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte PASEP - Programa de Formao do Patrimnio do Servidor Pblico PCI Partido Comunista Italiano

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PDS Partido Democrtico Social PETROBRS Petrleo Brasileiro S/A PETROS Fundao Petrobrs de Seguridade Social PIB Produto Interno Bruto PIS Programa de Integrao Social PND Plano Nacional de Desenvolvimento Econmico PREVI Caixa de Previdncia dos Funcionrios do Banco do Brasil PRI Partido Revolucionrio Institucional (Mxico) PROCON Fundao de Proteo e Defesa do Consumidor PROER Programa de Reestruturao do Sistema Financeiro PROEX Programa de Incentivo s Exportaes PRONAR Programa de Incentivo Atividade Rural RDE Regulamento Disciplinar do Exrcito SABESP Companhia de Saneamento Bsico do Estado de So Paulo SAE Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica SBT Sistema Brasileiro de Televiso SEADE Fundao Sistema Estadual de Anlise de Dados SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas SENAI Servio Nacional de Aprendizagem Industrial SESC Servio Social do Comrcio SESI Servio Social da Indstria SIVAM Sistema de Vigilncia da Amaznia SNI Servio Nacional de Informaes SPD Partido Social Democrata (Alemanha) STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justia STM Superior Tribunal Militar SUDAM Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia SUNAMAN Superintendncia Nacional da Marinha Mercante SUS Sistema nico de Sade TELEBRS Telecomunicaes Brasileiras S/A TELEPISA Telecomunicaes do Piau S/A TELESC Telecomunicaes de Santa Catarina S/A TST Tribunal Superior do Trabalho UDN Unio Democrtica Nacional UDR Unio Democrtica Ruralista UNCTAD Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento UNE Unio Nacional dos Estudantes UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a

Cultura UNESP Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho UNICAMP Universidade Estadual de Campinas URV Unidade Real de Valor USP Universidade de So Paulo VALIA - Fundao Vale do Rio Doce de Seguridade Social ZPE Zona de Processamento de Exportao

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1988 ENTREVISTAS

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Socilogo, eleito senador pelo Estado de So Paulo pelo MDB em 1978, reeleito pelo PMDB em 1986. Um dos fundadores do PSDB em 1988, foi ministro do

governo Itamar Franco nas pastas Relaes Exteriores (outubro de 1992 a maio de 1993) e Fazenda (maio de 1993 a maro de 1994). Presidente da Repblica no perodo 1995-1998, eleito pela aliana PSDB/PFL/PTB/PPB, foi reeleito para o

perodo 1999-2002.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Agradeo por essa oportunidade, porque assim no meio de tanta balbrdia da vida poltica, poderei ter algo que d inveja, hoje, aos polticos que tm vida acadmica, que poder encontrar um momento mais reflexivo. Acho muito til que se faa isso. Apenas vou pedir para falar hoje como acadmico. Tenho experincia nessa matria. Em um dos seminrios em que participei recentemente, em Santa Catarina, fiz uma observao analtica que me deu uma dor de cabea imensa. Disse uma obviedade que virou uma confisso na

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imprensa. Disse e todo mundo sabia que a transio tinha sido feita sob um condicionamento militar. E disso a imprensa derivou que tinha havido um pacto e eu era um dos autores e um dos denunciadores desse pacto entre o Tancredo [de Almeida Neves] e os militares. No tinha nada a ver com o sentido do que eu disse. Falara sobre coisa meramente analtica e real. Todo mundo sabe que os militares so parte do sistema de poder e que no sofreram nenhum abalo, nenhuma quebra na sua posio, na estrutura de poder, ao se fazer a transio. Ento, hoje quero falar com mais liberdade analtica e no como lder do PMDB no Senado, condio que me impe reafirmar as posies da minha bancada. Se procedesse assim, no haveria discusso acadmica e sim poltica, que no corresponde ao objetivo do seminrio.

Pelo que percebo, o interesse maior a transio poltica no ano da Constituinte. No obstante, acho que o ano da Constituinte no pode ser analisado sem um mnimo de perspectiva de como que chegamos a ele. No quero chover muito no molhado a respeito do que todos j sabem, mas acredito que as peculiaridades da transio poltica no Brasil so to fortes que precisam ser relembradas. A principal eu at j me referi a ela o fato de que essa transio se deu em um processo em que no houve propriamente a quebra da estrutura de poder preexistente. Como todos sabem, o smile mais prximo disto o que ocorreu com a Espanha. L tambm houve uma transio lenta, gradual e sob controle da antiga ordem, pelo menos na primeira fase da transio espanhola. No h como comparar com a transio portuguesa, com a argentina, com a grega, porque so processos diferentes. Nestas houve uma quebra da estrutura preexistente: ou da estrutura poltica ou da estrutura militar, ou de ambas. Mas ns no tivemos isso.

O movimento das Diretas-J foi derrotado no Congresso, na votao; embora tivesse sido majoritrio na Cmara, perdeu, no conseguiu os dois teros necessrios. Isso condicionou a ao futura. Naquele momento, a opo era clara: ou se continuaria tentando pressionar, com pouca chance de evitar que ganhasse o [Paulo Salim] Maluf, ou se procurava o caminho pelo Colgio Eleitoral, para destruir esta outra hiptese, e naturalmente o caminho que o PMDB e as foras majoritrias da oposio escolheram, foi o caminho de destruir, atravs do Colgio Eleitoral, a possibilidade da continuidade representada por Maluf.

Alm dessa peculiaridade, suficientemente conhecida, e que chamei uma vez de transformismo, uma transformao da elite de poder, mas no uma ruptura de poder, ainda h uma outra que no preciso repassar muito: que o prprio personagem principal da transio passou a ser algum que vinha do antigo sistema. Isto no estava no nosso clculo. Na hora que se decidiu ir para o Colgio Eleitoral, era com Tancredo, no com o ex-presidente do PDS que, como todo mundo sabe, tambm sofreu muitas resistncias no PMDB para ser aceito como vice-presidente da Repblica, e no era o candidato nem do PFL. Acabou sendo indicado porque ele tinha, primeiro, coragem de topar; segundo, uma condio legal que permitia s-lo porque fora eleito pela Arena e no pelo PDS, e a lei, com o seu casusmo, no obrigava a renncia do mandato de senador para aqueles que tivessem sido eleitos antes da formao dos novos partidos. O Marco Maciel, que

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era o candidato mais provvel pelo PFL, teria que renunciar condio de senador recm-eleito. No quis renunciar a esta condio. Ento, no temos aqui nem peculiaridades. So acasos. Pode-se chamar de sorte, dependendo do fim. Mas so acasos que levaram a que, de alguma maneira, tivssemos na figura que iria centralizar a posio do presidente da Repblica, que decisiva em vrios contextos, algum que vinha do antigo sistema, portanto reforando o carter de uma transio sem quebra, j no digo a quebra no caso das estruturas institucionais formais, mas nem sequer quebra do crculo de relaes entre os poderosos. O crculo de relaes continuou, na verdade, a ser o mesmo.

Isso, entretanto, no foi o nico condicionante dessa transio. Essa transio vinha sendo realizada j h muitos anos. As primeiras modificaes datam do governo [Ernesto] Geisel, sob a forma de distenso e tudo o mais; continuam depois durante todo o governo [Joo Baptista de Oliveira] Figueiredo e se espicham numa transio infinita, em que aspectos parciais da questo das liberdades pblicas vo sendo propostos alguns vo sendo conseguidos, obtidos, como a anistia, a formao do novo sistema partidrio, a questo da liberdade de imprensa etc. Tudo isso vai sendo pouco a pouco absorvido, vai sendo proposto pelo antigo regime. A disposio de acabar com a censura, por exemplo, vem desde a eleio do Geisel. A questo da liberdade partidria preexistente Constituinte. Tudo isso foi uma estratgia que, como todos sabiam tambm, tinha por objetivo quebrar continua sendo este o objetivo o bloco monoltico da oposio. Tudo isso preexistente instalao formal do governo Tancredo e [Jos] Sarney [Ribamar Ferreira de Arajo Costa]. Vai se espichando lentamente nessa transio. Muito do que poderia ter impacto, em termos de a partir deste momento temos o novo, perdeu o impacto, pois veio pouco a pouco.

E, para insistir s num argumento, o de que algo dessa transio veio como proposta dos antigos grupos de mando, a questo da anistia sintomtica. A oposio da poca votou contra porque no queria aquela anistia. Ns lutamos contra a lei que foi aprovada. E atravs da lei que foi aprovada, que ns dizamos que era muito restrita, veio uma anistia ampla. Na lei ela era restrita, mas nos jogos de poder ela foi ampliada administrativamente, e com isso se tirou o simbolismo de uma ruptura atravs da anistia. No se tratava de soltar ou no presos; tratava-se de ver quem ganharia politicamente com isso. Na hora de tomar a deciso, votamos contra a lei, que era uma lei chamada inqua, no sei o qu mais. Todos os grupos favorveis anistia ampla, geral e irrestrita se opuseram, votaram contra. Ento, v-se que esse processo vem de h muito tempo, com essas peculiaridades e com essa imensa capacidade que as elites brasileiras tm demonstrado, e continuam a demonstrar, de absorver as formas novas, de absorver as presses.

Nesse panorama poltico que vinha se formando, no existia apenas o lado do antigo que se renova, havia um outro lado. Qual o outro lado? que na verdade, embora o ncleo de poder central estivesse nas mos dos homens que tinham feito a Revoluo de 64, j tinha havido eleies de governadores e, nelas, j tinha havido uma expresso da vontade popular. J tinha havido tambm a recuperao da fora sindical. So fatos que no necessariamente coincidem mas vm formando

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essa mar de algo que, a sim, brota da sociedade e no dos laboratrios do poder. A anistia brotou no laboratrio do poder. A sociedade se juntou, se ops e deu na anistia que tivemos. A liberdade de imprensa brotou da luta, mas no foi a luta que decidiu. Foi a luta interna dos donos do poder. A liberdade de imprensa veio como uma estratgia do grupo Geisel para enfraquecer o grupo [Emlio Garrastazu] Mdici e o grupo dos que queriam transformar o Exrcito na espinha dorsal do sistema de represso. Ento, a liberdade de imprensa foi inflada, largamente, pelo Palcio do Planalto para poder controlar os excessos. Mas com as eleies no foi assim; com a luta sindical no foi assim. Isso veio de outro lado. Isso veio, realmente, da sociedade.

Ento, quando se coloca mais vivamente a possibilidade dessa transio atravs do Colgio Eleitoral, por fora o sistema de mando estava minado pela existncia de fatores enraizados na sociedade e que eram democratizadores, tanto no plano social quanto no plano poltico. Na poca, escrevi um ensaio dizendo que havia uma situao de cerco no bastio do poder, mas os que cercavam no tinham fora para fazer o assalto e os que estavam l dentro no tinham fora para romper o cerco. Criou-se uma situao de impasse durante muito tempo, e acabou havendo uma troca de energia entre os que estavam no poder e os que estavam fora. A presso que houve de fora de fora estou dizendo que o fato eleitoral, os fatos sociais, os fatos sindicais, essas lutas todas, e mesmo esta transformao havida no plano da sociedade, que se desenvolveu amplamente, se tornou muito mais complexa e fez brotar uma srie imensa de organizaes novas na sociedade civil tudo isso foi cercando os que estavam dentro dos basties do poder, que de alguma maneira acabaram por sofrer as influncias dessas presses e foram sendo modificados por elas.

Quando ocorreu a campanha das Diretas-J e, depois, a campanha das Mudanas J, houve uma modificao em alguns dos componentes do prprio miolo do poder. No importa saber se a ruptura do PDS se deu por isso, por aquilo. Acho que foi um processo geral: os homens do antigo regime estavam sufocados, no tinham mais condio de continuar mandando a no ser assumindo, pelo menos em parte, e absorvendo, parcialmente que fosse alguns at com recuperao plena , parte das propostas que vinham da sociedade e que eram democratizantes. Ento, no se trata apenas de uma transio que se deu sem quebra da ordem preexistente. Nem basta fazer-se referncia excentricidade que foi a conseqncia da morte do Tancredo e do fato de que assumiu a Presidncia algum que vinha precisamente de setores que estavam sendo atacados. preciso ressaltar tambm a existncia, em parte pelo menos, de foras democratizadoras que acabaram influenciando e obrigando a transformaes no grupo do poder.

claro que, com todas essas condicionalidades, a transio foi marcada pela ambigidade. Com a morte de Tancredo acentuou-se a indeciso, a dvida sobre os rumos que as coisas iriam tomar. O sistema preexistente e setores das Foras Armadas que dele fizeram parte deram sustentao nova ordem. Mas foi um ano de grande indeciso e, de alguma forma, este primeiro ano do governo Sarney foi um ano de tateios, em que no houve propriamente uma modificao do molde do

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Estado, tanto na organizao formal a burocracia e os mecanismos de deciso , como no Estado propriamente e nas suas foras polticas de sustentao.

No primeiro ano, houve um avano apenas no setor poltico quer dizer, na movimentao do Congresso, pois o governo no tinha mais condies de controlar as bancadas como no passado. Mas por isso, todo o processo decisrio continuou a se fazer da mesma maneira. No houve alterao nenhuma sobre quem ou como que se toma a deciso, quem influencia a deciso, os mecanismos formais para isto, as relaes entre os partidos e o Executivo, o Legislativo e o Executivo, nada!

Como houve uma situao econmica que pressionava (no vou contar em detalhes, vocs conhecem), acabou havendo a edio, j no ano passado, do Plano Cruzado [01/03/86], que foi promulgado tambm independentemente do sistema de partidos. Eu at tinha feito, trs dias antes, atravs do Jornal do Brasil, uma crtica violenta situao sobre alteraes na poltica econmica. Mas no tinha, absolutamente, nenhuma informao oficial sobre elas e nem o presidente do partido majoritrio tinha noo mais detalhada do que estava ocorrendo. Quer dizer, mudou-se o objetivo das polticas e o contedo delas, mas no a forma de tomar as decises. Para usar uma expresso do Cndido Mendes, a autenticao do novo regime continuou como no passado, igual. Ela se fazia antes pelo resultado econmico: na poca do milagre ns dizamos que o que permitia o regime ter uma certa sustentao era a sua performance. Ele tinha apoio na sociedade, era um xito no para os trabalhadores, mas para as classes mdias, que sustentaram amplamente o governo. O Plano Cruzado, formalmente, funcionou do mesmo jeito. Claro que, no caso, beneficiou a massa assalariada e os setores democrticos. Mas a legitimao se deu da mesma maneira como se dava no passado, quer dizer, pela popularidade do presidente, sem que tivesse realmente havido uma remodelao na estrutura do Estado, nos mecanismos decisrios.

Houve, entretanto, a introduo de alguns elementos que acho que so importantes e que provocariam uma transformao posterior. O principal foi a convocao da Assemblia Constituinte, que abriu um espao para que tentativas de transformao do molde estatal pudessem ser feitas. A aprovao da lei e a mensagem do presidente Sarney abrindo a questo da Assemblia Constituinte criaram uma situao que permitiu uma certa perspectiva de transio efetiva. No acarretariam mudana dos personagens que mandavam, mas na forma como mandam, no formato dos mecanismos de deciso. Claro que houve uma imensa discusso sobre se a Assemblia seria exclusiva, e tal discusso, para mim, sempre pareceu extremamente aborrecida, porque irrealista. Agora, quando se conseguiu uma Constituinte quase exclusiva, depois de vrias lutas no Congresso, descobriu-se que a Assemblia no poderia ser exclusiva porque no dia que fosse o presidente seria um ditador. No dia em que todos os parlamentares fossem discutir apenas a questo da Constituio, faltaria arena democrtica para as questes do dia-a-dia. Ento, sob presso das bases, o Congresso voltou a funcionar. Uma lei precisa ser votada, no pode ser aprovada por decreto-lei, tem que passar na Cmara, tem que passar no Senado, e se no se restabelecesse o funcionamento pelo menos parcial do Congresso, a prpria Assemblia Constituinte mergulharia no

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debate do cotidiano, como ocorre com o Plenrio da Constituinte, pois as questes constitucionais so debatidas nas Comisses.

Eu me opus tremendamente valorizao exclusiva do Plenrio, que uma coisa enraizada. O Plenrio da Constituinte passou a ser o que costuma ser o Parlamento nos momentos em que tem um papel negativo, quer dizer, o Plenrio continua sendo uma caixa de ressonncia para criticar ou defender o governo na conjuntura, sem assumir qualquer responsabilidade pelas decises. Na verdade, ao invs de resultar em uma concentrao de esforos na questo constitucional, o esvaziamento da Cmara e Senado acabou por tornar a discusso da Constituinte uma discusso mais conjuntural, na medida em que aqueles dois plenrios minguaram. Sempre fui favorvel a que houvesse o funcionamento simultneo da Cmara e do Senado, com mais clareza, e da Constituinte. inaceitvel que o presidente governe por decreto-lei. Isso foi feito no tempo do [Eurico Gaspar] Dutra.

Outra questo est em saber se o mandato de quem foi eleito para ser Constituinte s para isso e portanto, depois de promulgada a Constituio, faz-se nova eleio, ou se o Constituinte, sendo deputado ou senador, vai votar em funo dos seus interesses. Este problema real e merece uma discusso: saber se cabe a convocao de eleies para o Congresso depois da promulgao da Constituio. De qualquer maneira, no por a que se mede, realmente, a capacidade de transformao da Assemblia Nacional Constituinte. Acredito mesmo que o debate sobre a Constituinte exclusiva encobriu a falta de propostas concretas transformadoras. Ao invs de perguntar-se: que Constituio teremos? qual a poltica que vamos propor?, parte das esquerdas devotou mais tempo discusso formal sobre o carter exclusivo ou no da Assemblia Nacional Constituinte.

Mas apesar disso, o fato de que houve esse debate antes da Assemblia Constituinte mostra que as coisas tinham mudado. Tinham mudado porque qualquer pessoa que tenha alguma experincia das instituies e do peso da Constituio nas instituies sabe que, ao abrir-se a brecha constitucional e ao baixar-se o quorum para a aprovao do texto (mais ainda: que a deciso no passa pelo Executivo, no depende da aprovao pelo Executivo), devolveu-se realmente sociedade um espao grande para que ela possa acelerar ou frear, se quiser, o processo da transio. No ter sido este um gesto a demonstrar que as coisas j tinham mudado e as transformaes de atitude vieram sendo incorporadas lentamente, e muito? A liberdade de opinio hoje ampla, se comparada aos moldes democrticos, nos termos da democracia ocidental.

Aconteceu no entanto algo a que j me referi: que este processo ocorreu por conquistas parciais. Entretanto, ningum se d conta de que no houve, de fato, uma remodelao formal do Estado. Isso vale gritantemente, por exemplo, para a rea sindical, onde o fato de no haver interveno nas diretorias apenas uma deciso ministerial. O reconhecimento da organizao das centrais sindicais foi importante, mas foi um episdio lateral, que no passou a limpo, na lei, o que se fez na prtica. Houve uma transformao e houve uma transio efetiva. Vejo tanta

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gente dizer: Ah! No mudou nada!, e fico me lembrando de dez ou quinze anos [atrs], para ver que mudou, e muito. Mudou muitssimo em termos de assegurar-se um clima de liberdades pblicas, de uma ordem que se encaminha para a democracia. Falta mudar, repito, o essencial para a institucionalizao da democracia: as leis e os mecanismos formais e polticos de tomadas de decises.

Toda a gente sabe que, depois disso, nessa fase de transio, com o Cruzado feito com essas caractersticas, como carro-chefe da legitimao do governo, houve uma vitria eleitoral extraordinria do PMDB. O que no quer dizer que a manuteno do congelamento se devesse a presses do PMDB, nem que a vitria deixasse de ser expressiva se o congelamento no tivesse sido mantido. Isso uma outra questo que apresentada de uma forma extremamente simplificada em argumentos que vejo reiterados por a e que no correspondem ao que ocorreu. Quer dizer, a manuteno do congelamento no se deveu a presses dos partidos; pode ter se devido a presses de alguns interesses polticos, mas no dos partidos. Todo mundo sabe que, aqui em So Paulo, em um dado momento, na campanha eleitoral, o [Orestes] Qurcia, como candidato, efetivamente aproveitou a questo do abastecimento: queria pegar boi no lao, mandar prender e no sei o qu. Ele aproveitou bem. Em vrios outros Estados, a questo no foi nem posta.

Tenho absoluta convico de que no houve relao direta entre PMDB e Cruzado, e se vocs lerem o depoimento do [Ronaldo Mota] Sardemberg, que saiu no Jornal do Brasil, vo verificar que os mandos e desmandos com o Cruzado no tm nada a ver com as decises partidrias. Tm a ver com a dinmica da burocracia, digamos, o que refora o que acabei de dizer. Quer dizer, o modo de tomar decises continuou sendo igual a antes, s que numa direo diferente, mais favorvel, no caso, ao povo, com uma certa preocupao do social. Nessa preocupao com o social incluo o presidente da Repblica, que em momentos bastante difceis tem tendido para o lado do trabalhador, do pobre, da regio deprimida, e esse tipo de preocupao exerce uma certa influncia no processo de deciso.

De qualquer maneira, voltando ao argumento central, a legitimidade do governo pode ter sido dependente do Cruzado, embora eu no concorde que o resultado eleitoral fosse preponderantemente fruto do Cruzado. Acho que haveria de qualquer maneira vitria do PMDB, com o congelamento ou sem o congelamento, e teria sido impossvel descongelar cairia a popularidade do presidente. O presidente era o maior guardio desse interesse. Quem sabe das coisas constata que houve a um interesse direto do presidente da Repblica.

Por que, ento, o Cruzado? Porque estava tudo preso ao que eu disse no incio: por causa da peculiaridade da transio. O presidente precisava no s se batismar no PMDB, mas se crismar com a popularidade, para poder ser parte do jogo da transio. Mas, como a forma de legitimao do governo foi o desempenho no foram o poder institucionalizado e o consenso democrtico, mas o desempenho , quando este comeou a balanar, comeou tambm a se desarticular a sustentao do governo em termos sociais. E quando a Constituinte

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comeou a funcionar, foi em pleno anticlmax.

Mas houve um outro momento de tenso importante, quando da moratria, que mostra como a ausncia de modificaes nas estruturas de governo na direo da democracia tornou vulnervel o governo e o prprio sistema de transio, que passaram a depender de apelos extrapolticos. A moratria veio, primeiro, como uma deciso que tem a sua justificativa econmica. No vou repetir, vocs sabem, qual a necessidade real. No dava para continuar transferindo juros para o exterior, porque o pas ficaria sem reservas. verdade que no houve entrada de recursos de capital novo no Brasil, depois que o governo passou para as mos do Sarney. No entrou nada. Mais ainda, no ano passado [1986] saram 800 milhes de dlares. No que o governo quisesse isso, mas porque foi aprovada uma lei nos Estados Unidos para atrair de volta capitais, o que levou o capital a migrar daqui tambm. Ento, houve um declnio grande das reservas, e houve falta de controle nas importaes.

Se poderia perguntar: por que a moratria no foi feita antes? Tenho que me basear no que ouvi dizer, na Presidncia da Repblica, no dia da decretao. Sarney me chamou para tomar o caf da manh e disse que ia decretar a moratria, o que queria ter feito antes, mas que havia a expectativa de que, em dezembro, em Paris, nas negociaes que estavam sendo feitas, se teria podido conseguir alguns recursos. E que a moratria no estava sendo feita como um ato de bravata, mas como um meio para manter o crescimento da economia. Se o Clube de Paris tivesse concordado, no teria sido necessria a moratria. Essa expectativa de que os emprstimos oficiais poderiam ser retomados impediu que a moratria fosse decretada antes. Depois que o Clube de Paris fez uma aceitao formal das demandas, e no entrou com recursos efetivos, a havia que ser decretada a moratria. Isso o lado econmico.

Agora, o lado poltico. A decretao da moratria e a convocao da Assemblia Constituinte so os dois fatos fortes, um para a transio e o outro para um governo que toma decises. No obstante, a moratria no teve efeito poltico. Quer dizer, a sociedade no sentiu o que significava a sua decretao, embora ela tivesse sido bandeira de luta de muitos grupos, especialmente da esquerda. No houve, a partir da, nenhuma comoo. Por qu? Porque nessa altura, dado que no se tem um sistema decisrio participativo um pouco mais ampliado, as decises, mesmo quando com inteno popular, so tomadas pelo molde autoritrio. Elas tm inteno democrtica (inteno social ou inteno de soberania), mas isso no passa pelos canais polticos. Quando se est numa fase de baixa, pelas razes j sabidas de todos, que era o despencamento do Plano Cruzado, uma medida desta envergadura no tem efeito poltico.

Fui eu quem transmitiu aos lderes do Congresso, a pedido do Sarney, que amos decretar a moratria. Estavam todos l, do [Luiz Incio] Lula [da Silva] ao [Fidlis dos Santos] Amaral Neto. E, na verdade, todo mundo olhou um pouco perplexo. Antes de ser anunciado ao pas, chamei os lderes e transmiti a mensagem do presidente para dramatizar a importncia da deciso. E as pessoas

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ficaram pensando: qual o jogo que est a?. Isso mostra que tinha havido efetivamente um desgaste muito grande da sustentao, da credibilidade, digamos assim, do governo.

Ento, quando comeou a funcionar a Assemblia Constituinte, estvamos com a questo econmica nestes termos, j bastante aguda, embora no tivesse havido ainda o desemprego, embora, no incio, no se tivesse sentido nem os reflexos disso. A indstria cresceu 12% em fevereiro de 1987 e ainda havia bastante gs, mas j havia uma sensao, por causa do Cruzado II [15/06/87], por causa da idia de que teria havido uma fraude (e porque os grandes rgos de comunicao de direita tambm tinham comeado o desgaste, exatamente por causa da moratria) e por causa da poltica de salrios. Os grandes rgos de comunicao comearam a desgastar o governo e o PMDB. Havia um desgaste na sociedade que foi amplificado pela mdia e provocou uma reao em cadeia. Uma coisa levou outra. O leo do Imposto de Renda passou a ser uma coisa terrvel. Enfim, cada fato passou a ter uma leitura que fazia casar o interesse dos setores mais conservadores com o sentimento popular, tudo isolando o governo.

Foi nesse contexto de um governo cambaleante que se armou a Assemblia Nacional Constituinte. Um contexto, portanto, em que se tem um partido amplamente majoritrio, com 54% da Constituinte. O PDS sumiu, e ficou com trinta e poucos representantes. O PFL tem cento e poucos. Os outros partidos, do ponto de vista de quem tem poder de manobra no Congresso, no existem. Tm importncia poltica, tm importncia social, mas do ponto de vista do clculo de deciso no Congresso, no contam, ou contam muito pouco. As foras so essas. H, ademais, permanentemente, uma espcie de jogo entre a opinio pblica, as foras congressuais e a Presidncia. esse o quadro, no plano poltico, que vai marcar essa transio na hora de se fazer a Constituio; esse o jogo entre a opinio pblica, tal como ela se expressa (ela se expressa pela mdia tambm, direta e crescentemente). Quem for ao Congresso ver: um mercado persa. lobby, no sentido neutro, de todo mundo: ndio andando, grupo de negro, grupo de mulher, trabalhador, gente que quer uma vantagem corporativa, so representantes das indstrias. S no vi banqueiro. Mas o resto, est todo mundo l: fala com um, tateia com outro.

Os grupos anteriores de poder esto desconcentrados porque, com relao ao Estado, como no houve uma mudana de molde, eles sabem como fazer, com quem falar ou a quem questionar, quando questionar o ministro, como fazer uma campanha, qual o funcionrio que tem que ser procurado. Mas, como agora est surgindo um molde novo, e esse molde novo est composto da maneira que disse aqui, tem os partidos mais esquerda PT, a esquerda do PMDB , isso forma uma massa indefinida de gente, sei l quantas pessoas so. Sero 180, 150, 200? Alm disso, esta massa de constituintes annimos esquerda nova. Muita gente nova. Voc no sabe quem quem. No sabe o que eles pensam, como que eles vo agir. Ento, os grupos estabelecidos ainda esto tateando para criar uma rede de comunicao com essa massa. No sabem nem sequer quem lidera. Por qu? Porque desde o incio da Constituio a questo saber quais os passos que sero

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dados para garantir a continuidade da transio. E transio na direo do qu?

O governo no teve papel ativo neste processo, no definiu o que queria. Diga-se de passagem que isso atitude do Sarney, que uma pessoa que dialoga, mas no decide. Ento, no definiu o que quer. A nica definio preexistente era a da Comisso Arinos. A Comisso Arinos, que todo mundo dizia que era um grupo elitista, de notveis, produziu um documento que est esquerda da mdia da sociedade. Assustou. Ento, a idia inicial de alguns setores de usar um documento prvio Constituinte como paradigma para frear avanos ficou inutilizada diante da proposta Arinos. O pessoal ficou com medo. O projeto Arinos progressista, no conservador. No h nenhum projeto conservador posto sobre a mesa. O Executivo no est propondo nada. S h algumas tendncias defensivas.

Quando vocs forem ver, por exemplo, o caso especfico das Foras Armadas, tomando como exemplo a situao de vrios pases em transio, as Foras Armadas dialogaram pouco com as foras polticas. Aqui, diferentemente, passaram a ter um comportamento igual aos outros setores da sociedade. Quer dizer, tem assessores por todo canto no Congresso. Eu acho isso interessante e mesmo positivo. Contei isso na Argentina, quando estive l, e me disseram que ali isso seria impensvel. No Congresso brasileiro criou-se, formalmente, uma situao em que o Estado passou a tentar ter seus interesses representados, atravs de seus assessores, diretamente na Assemblia. Mas no o governo, o Estado, so setores da burocracia. Ento, o Itamaraty manda sugestes, as empresas estatais tm gente designada para conversar, assim como os sindicatos tm o DIAP, que est funcionando na Assemblia Nacional Constituinte. Quer dizer, um processo democratizador. Mas as Foras Armadas, elas se diferenciam, tm tticas que no so as mesmas. O Exrcito fez, talvez com uma certa ingenuidade, uma proposta. Sobre o qu? Sobre a rea dele: props para debate na Constituinte um artigo sobre a rea militar. Os outros no fizeram isso, mas esto dialogando e no se entendem tambm. No h um ponto de vista unificado. Ento, o Estado passou a olhar para o conjunto de homens que vo tomar deciso na Constituinte, tentando convenc-los de um ou de outro ponto, assim como os outros setores da sociedade.

Com a erupo dessas foras dentro da Assemblia Constituinte, os primeiros meses foram de extrema dificuldade de hierarquizao, de definio de quem quem. Alis, houve vrias exploses no Congresso com respeito s lideranas, para saber quem manda em quem. No incio, houve muitas manifestaes de rebeldia. A rebeldia no se d em termos de direita ou esquerda, mas de uma proposta do tipo ns contra eles, quando eles so os que mandam, seja quem for... muito difcil ser lder hoje, embora no Senado no. O Senado mais acomodado, h mais possibilidade de dilogo entre lderes e liderados, que so menos numerosos, d um pouco menos de trabalho. Mas na Cmara difcil ser lder... Aquilo muito instvel. Vocs viram os vrios episdios. O episdio do Luiz Henrique, um lder eleito uma semana ou quinze dias antes, perdendo para o Mrio Covas quinze dias depois, por conta do Ulysses [Guimares], na verdade a nica figura que nessa Assemblia toda tem energia, como algum que pode dar um rumo. Todas as foras, digamos, novas, no no sentido de renovadoras, mas no

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sentido de recentes no jogo, que queriam se afirmar, todos se posicionaram contra ele. Ento, esse processo de definio de quem quem dentro do Congresso levou algum tempo para decantar.

Os partidos, da mesma maneira, perderam capacidade de controle sobre o comportamento dos constituintes, salvo os pequenos partidos que tm mais capacidade de homogeneizao at mesmo porque so pequenos, e podem ter propostas claras, mas em geral no so capazes de dinamizar o debate poltico. O maior partido, que o PMDB, no apresentou nada. Nenhum programa, nenhuma questo fechada sobre nenhuma matria dentro da Constituinte. Ento, num primeiro momento, tratava-se de estabelecer quem era quem para saber como que o processo desenvolver-se-ia, como que se metabolizaria a enorme quantidade de presses que vm da sociedade, fora aquelas que os parlamentares esto gerando l dentro. Vocs se lembram daquele momento em que fui relator do Regimento Interno da Constituinte? Quase evaporo, fisicamente, de tanto trabalho... Numa noite s tive que relatar 1.500 emendas. Porque todo mundo queria fazer emendas sobre o Regimento. Regimento, sabe como : O sr. presidente abre a sesso, faz no sei o qu..., uma coisa extremamente formal. claro que tambm a se est construindo a deciso sobre como que se estabelecem as regras de mando interno na Constituinte. E todo mundo quis opinar. um pouco esse esprito de assemblesmo tipo PT-catlico que acabou entrando na Assemblia.

Deixem-me fazer uma digresso. Em face dessa discusso sobre como que se vai gerar uma nova Constituio, o tradicional voc ter uma Comisso que elabora um texto. Agora, isso foi recusado de toda forma. O Ulysses props que, atravs de uma pequena Comisso, se fizesse um esboo de como seria a Constituio, mas a proposta foi liqidada rapidamente. Em nome do qu? Da participao. Ento, ns tivemos que inventar um sistema pelo qual todos os constituintes so membros das Comisses, todo mundo tem direito igual (uns so mais iguais que outros, mas isso bem disfarado). Foi preciso fazer aquelas Comisses todas funcionarem num sistema que uma coisa de relojoaria, muito difcil de acertar. Estamos agora fazendo um sistema em que todo mundo participa, e vota-se a mesma matria um nmero infinito de vezes.

A mecnica estabelecida por mim no que fosse idia minha para fazer a coisa funcionar foi a seguinte: criamos 24 subcomisses cujos membros votam pela primeira vez. Ento: Sou favorvel (ou contra) tal matria. Votam. O relator relata. A vai para a Comisso mais ampla (no total so 8). Ento, so sessenta e tantos constituintes que votam de novo. Novamente, outro relator refaz o parecer. Esse parecer vai para a Comisso de Sistematizao que, de acordo com o Regimento, e contra a minha vontade, no pode mudar o contedo imagina que coisa! Ento, pode-se, numa Comisso, votar a favor de que o Estado tenha maior ao na economia e, em outra, dizer o contrrio. Como vai ser na Constituio, se no houver quem compatibilize isso? Mas a Comisso de Sistematizao, de acordo com o Regimento, no pode mudar o contedo. Ela manda para o Plenrio. O Plenrio vota de novo e emenda. Mas quando o Plenrio emenda, o texto volta para

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a Comisso de Sistematizao para dar o parecer. A volta para o Plenrio e o Plenrio vota duas vezes, e tem que ter a maioria de 50% mais um dos membros da Assemblia Nacional Constituinte nas duas vezes. Ento, uma mecnica altamente democrtica. Isso olheira para todos ns, cansao para aqueles que vo levar o processo, porque vai ser assim. preciso ganhar as batalhas vrias vezes. O que sair ser realmente democrtico, democrtico em termos de que ser expresso do pensamento daqueles que ali esto.

Com essa mecnica to complicada, com um comeo de definio das hierarquias, saber quais so as posies no Congresso que a est, durante os dois primeiros meses, a questo dos passos a serem dados para levar adiante a transio foi ficando para trs, e ns ficamos construindo a mecnica, que tinha que ser construda. Construda essa mecnica e, ao mesmo tempo, no havendo um texto preliminar para a nova Constituio, o rumo dessas coisas todas ficou um pouco flutuante. E neste momento de rumo flutuante, o que acontece? A conjuntura pressiona muito, ou seja, a continuidade dos obstculos na economia, a necessidade de ajustar o Ministrio s novas foras surgidas em 15 de novembro de 86 isso foi protelado; devia ter sido feito em seguida eleio e no foi feito. A Assemblia ficou margem disso e com muita vontade para ter poder.

Os partidos ou um partido, na verdade sem ter, tambm eles, modificado as suas formas, assim como o Estado no se modificou, os partidos no se modificaram e o partido principal, que o PMDB, tambm no sofreu nenhuma alterao interna de monta, deu a impresso ao pas e aos prprios constituintes de que tudo acabava sendo um jogo de xadrez entre dois personagens: o seu presidente e o presidente da Repblica. No , evidentemente, assim, mas acabou sendo criado esse clima. E produzindo um certo desgaste recproco, afetando tanto o governo quanto o partido principal. E, naturalmente, os outros partidos, inclusive o parceiro da Aliana Democrtica, que o PFL, no perderam tempo em tirar proveito. O PFL passou a ser quase de oposio, ficando com o governo, com um filo bom do governo, mas se distanciando em termos da responsabilidade pelas decises. Isto est precipitando a Constituinte para opinar sobre temas substantivos que tm a ver com a transio. Por qu? Porque a idia de que iramos fazer a Constituio e que o sistema de transio governamental, transio montada anteriormente, pudesse continuar paralelamente emergncia da nova forma constitucional, ficou abalada. Como ns no definimos com clareza que era uma transio, os personagens acreditaram que eles eram mesmo os personagens da democracia. Acreditaram que realmente no se trata de transio, se trata de um poder definido e institucionalizado e com base em no sei o qu.

o que est em jogo hoje: o presidente da Repblica quer ser presidente da Repblica, com mandato estvel, no quer ser o chefe da transio. Portanto, no aceita um horizonte mais curto, nem que vai passar para um outro tipo de regime. Ele est adotando a idia, se no ele, implicitamente as foras dominantes esto admitindo a idia de que j houve transio. S que na verdade no houve, no sentido da transformao da estrutura do Estado, das novas regras de poder. Ento, estamos agora nos aproximando de um momento em que algumas medidas

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de tipo fundamental vo ter que ser tomadas porque seno o passado recente se consolida como tendo sido a transio. Se no forem tomadas algumas medidas, ou algumas posies pelo menos, que mostrem que h um horizonte diferente, de que a transio no est completa, ficamos no que a est.

Como que se tem a conscincia disso que estou dizendo? Muitas pessoas no esto pensando dessa maneira, mas no por ardil. que, normalmente, na prpria dinmica do poder, h uma reavaliao das chances de cada um, do papel de cada um, o que significa e o que se deseja para o pas, qual o compromisso, e assim vai redefinindo tudo de uma maneira tradicional. Isso que leva a que, nesse ano da transio, seja preciso tomar algumas decises que ampliem o horizonte de mudanas no futuro. E se discute duas coisas: ampliar na direo do qu, que futuro esse, qual o time para isso. Se vocs tivessem a minha experincia (ontem participei de uma reunio da bancada do Senado), diriam que no h clareza sobre isso. E o corte esse. O corte est entre os que acham que preciso deixar claro que estamos no meio de uma transio e que, portanto, tudo vale desde que se defina o futuro, e que o futuro seja consensual ou pelo menos majoritariamente aprovado, e os que acham que no, que estamos numa situao normal, que preciso simplesmente mudar a lei, que essa lei pode mudar e conviver com a situao normal e que vamos esperar seis anos...

No meio disso, se precipita tambm a necessidade de se reorganizar as foras que tm uma viso mais conservadora da vida poltica. Essas foras esto entrincheiradas no nosso sistema de governo e de poder. No como antes, quando eram eles e ns. Agora, aqui dentro, mas dentro no s PFL, PMDB tambm, mais amplo que o PFL. Da a persistncia de setores que querem criar o partido do Sarney. No do Sarney, porque o Sarney um poltico bastante experiente e sabe que isso quebra a loua e que no pode fazer o jogo fora do PMDB. Agora, o PMDB, por sua vez, tambm sabe que, nesse novo momento de definio da continuidade da transio, ele no pode se comportar do mesmo modo como se comportou no passado porque a situao outra. Ele pode, de repente, ao esvaziar o poder do presidente, criar condies para um poder direita. No d para arriscar isto, porque ns sabemos o custo desse processo.

Ento, como dar passos que permitam uma abertura, continuidade e at maior dinamismo transio, sem que isso v ser apenas gua no moinho daqueles que no querem transio nenhuma e que esto, tambm, atacando a Presidncia hoje? Sob qualquer pretexto, mas na verdade porque no querem, realmente, que se avance mais. Ento, d a impresso de que querem mas no querem. Cria-se uma situao difcil para as decises que tm que ser tomadas nos prximos meses.

E nesse meio tempo entra uma outra questo, esta programtica: h uma forte corrente parlamentarista no Congresso. E os partidos, a no ser o PT e o PDT, que se definiram contra o parlamentarismo, no tm definio, nem o PFL, nem o PMDB. O PFL fez uma proposta presidencialista, mas fez uma proposta para controlar os votos. A grande massa de constituintes uma incgnita nessa matria.

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A questo que vamos ter que discutir, sobre a continuidade da transio, ter de passar por a, e no sabemos o que ser isso. Como no sei o que vamos propor como regime... O que propusermos vai afetar a questo da durao do mandato do presidente e portanto a fixao da data das prximas eleies, momento em que se pode ter uma dinmica maior pode puxar mais para l ou mais para c. Mas no se sabe sequer que tipo de parlamentarismo; no h clareza entre os parlamentaristas sobre que tipo de parlamentarismo querem. Existe a proposta Arinos, existem os parlamentaristas puros, e existem os presidencialistas. O parecer Fogaa parlamentarista, apesar dos meus esforos e dos esforos que sero renovados.

Mas a questo que me preocupa no esta... So duas. Qualquer tentativa de resolver o passo seguinte, no processo transicional, em termos de uma negociao entre o atual presidente e uma forma parlamentarista de poder, me parece muito negativa. tapar o sol com a peneira. Tenho visto pela imprensa a idia de que o Palcio estaria interessado no parlamentarismo e, com isso, o presidente teria mais tempo ou menos tempo. Mas isso pssimo, porque no estamos entrando, realmente, na discusso da nova forma de poder. Estamos entrando na acomodao de uma crise que transitria, que pode ser resolvida e ser, de uma ou de outra forma.

Mas, afastada esta questo do parlamentarismo como expediente, que um pouco a repetio do que aconteceu com o Jango [Joo Belchior Marques] Goulart e ter o mesmo resultado, tenho dvida de que, mesmo aceitando o parlamentarismo, venhamos a ter eleies diretas para presidente da Repblica; isso sim, inevitvel, pois a fora de um presidente eleito com 20, 25 ou 30 milhes de votos muito grande. E ele se submeter a uma Cmara que vai aprovar um primeiro-ministro com uma diferena de 30, 40 votos, e que pode eventualmente ter um programa que no seja o dele, complicadssimo; no impossvel, mas complicadssimo. O choque institucional pode ocorrer.

CEDEC - Mas, na Frana, em Portugal, tem sido assim, seus meios e problemas.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO - Na Frana, sim; Portugal est, tambm. Conversei com o Mrio Soares [presidente de Portugal, 1986-1996] sobre isso. No funciona to mal com o Mrio, mas o que saiu, era quase um rei... Funciona como um rei, com um fator imperial. Em qualquer tipo de parlamentarismo, com o Sarney, vai funcionar. Por qu? Porque ele no vem do voto direto. O regime hoje j semicongressual. Quer dizer, no momento, ser simplesmente formalizar uma coisa que est embrulhada, mas que no pode continuar embrulhada. Agora, a dvida que tenho : supondo fazer a eleio e ganhar o [Leonel] Brizola, e o regime parlamentarista. Temos a obrigao de pensar, institucionalmente, nessas coisas. Tem que ter os mecanismos, como que voc controla esse choque? um problema que temos que pensar.

O que estou querendo trazer discusso o seguinte: voc no pode pensar nessas questes em termos puramente abstratos, de melhor regime. O melhor

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regime o parlamentar, o mais avanado, o mais sofisticado, o que controla mais, o mais democrtico. Mas tem que pensar concretamente. Tem uma cultura poltica de um certo tipo. Nem vou falar dos partidos e da burocracia, que o ovo e a galinha. Se fizer parlamentarismo, tem que mudar. Ento, voc muda. Pode ter um avano a. Mas temos que pensar: uma engenharia poltica delicada e que no pode ser uma soluo de laboratrio. Infelizmente, quando voc comea a raciocinar em termos abstratos, mesmo com fora para botar em leis esse arcabouo, se for uma soluo muito artificial ela pode explodir com rapidez, e com ela explode a transio. Meu problema esse. Voc faz uma crise e arrebenta a transio.

Confesso que no sei, pessoalmente, qual seria a melhor soluo. Sinto que a maioria do Congresso quer introduzir elementos de parlamentarismo no sistema poltico brasileiro. Foram vinte anos de autoritarismo, em que o Congresso foi pisado. Agora, chegou a hora de mudar. Agora, como que faz isso? Por exemplo, se voc permitir que o Congresso destitua o primeiro-ministro e que o presidente no possa dissolver a Cmara, no que d? No sistema parlamentarista, supondo que, num dado momento, o presidente dissolva a Cmara. Voc tem 30 milhes de votos. No caso, isso pode ser uma ameaa: Dissolvo, se vocs no se comportarem direito. Prefiro no me comportar direito, voc me dissolve, depois eu venho de novo. Tudo bem. Mas se voc criar um sistema em que o presidente no pode dissolver a Cmara, mas que o presidente eleito pelo voto direto e a Cmara pode destituir ministro, ah! no dura! Voc tem muitos elementos de conflito e de incompatibilidade a. No acho que vai dar nisso. Acho que vai se chegar a um sistema e a sou favorvel com fortes elementos de controle, de estilo parlamentar congressual sobre o Executivo. Acho que vai se chegar a isso.

Mas temo, pela nossa cultura poltica, tanto o mandonismo do Executivo, quanto o clientelismo no Parlamento; temo que a combinao dos dois d um resultado muito desastroso. No uma questo que voc muda na lei. No muda na lei, muda na prtica poltica. Temos a obrigao de pensar nessa questo. Ns vamos ter que decidir, vamos ter que ter posies polticas sobre a forma do regime. E isso muito importante para se saber qual o alcance dessa abertura, no s o alcance da amplitude, mas com elementos contraditrios fortes, a durao no vai ser grande, e acho que nossa obrigao maximizar as duas coisas: encontrar um ponto de equilbrio entre a amplitude desta abertura, dessa transformao, e a durabilidade dela, durabilidade que depende da capacidade que tenhamos de enraizar as mudanas polticas no econmico, no social e no cultural. No se sabe de antemo se isso d certo; para dar certo, temos a obrigao de raciocinar e de pensar. Isso o fundamental enquanto transio poltica. Fora isso, a questo a da elaborao mesma da Constituio.

O que se pode fazer numa nova Constituio? Pode-se basicamente mexer com o direito das gentes, assegurar esses direitos, e os direitos individuais, os sociais e os coletivos. Isso uma briga imensa. Os parlamentares mais tradicionais no admitem a idia de direito coletivo porque acham que um comeo de coletivismo. Os direitos individuais, os sociais e os coletivos vo estar assegurados. Ningum tem condio, hoje, de se opor a qualquer direito dessa natureza. Vai

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passar tudo. Tanto assim que ningum quis ir para a Comisso sobre Direitos e Garantias. Fizemos uma fora terrvel para botar gente nessas Comisses porque fundamental que a Constituio coloque esse elenco de coisas, mas tudo parece to consensual que no desperta ateno. A h um risco, que o risco, a meu ver, de colocar na Constituio objetivos generosos, mas que sero desmoralizados pela impossibilidade de os cumprir, como o desejo de ter uma moradia decente, o que muito bom, mas no vai haver moradia suficiente. Se formular de uma maneira mais razovel, pode ter; polticas para chegar a, tudo bem. Enfim, so questes essenciais.

O primeiro grande grupo de problemas que a Constituio pode, deve e vai enfrentar a questo dos direitos das gentes. O segundo quem manda em quem e como. Isso a Constituio decide pela forma de governo, papel dos partidos, como que se vota, quem no vota, quem elegvel, quem no elegvel a regra dos que mandam. O direito das gentes para quem no manda; o outro o captulo de quem manda. Como que voc manda? Quem que d legitimidade ao mandato? Em que ponto voc manda? A Constituio tem de definir isso; nesta matria existem duas ou trs reas importantes: basicamente partidos, sistema eleitoral, forma de governo Executivo, Legislativo e Judicirio definindo esse quadro. Aqui podem se gerar alguns impasses. O primeiro, o parlamentarismo ou o presidencialismo, um problema. O resto, so muitos interesses corporativos. Quer dizer, os juzes querem tal coisa, os promotores no sei o qu, como que voc quebra a inrcia do Judicirio, como voc introduz a questo social no plano do Judicirio? So problemas importantes a serem resolvidos e que tm a ver com os passos seguintes da transio. Acho que temos fora para fazer alguma modificao nessa rea. Fiz uma negociao l com os outros (o Plnio de Arruda Sampaio, relator na parte do Judicirio), sabendo de antemo que ia propor coisas que vo criar embaraos. Mas para poder avanar nessa matria.

Haver outras discusses a respeito da iniciativa popular na legislao que no vai ser fcil passar. Passou no Regimento Interno das propostas populares. Quero dizer que, como relator, banquei totalmente a idia, seno no passava. Vocs no podem imaginar a dificuldade que foi isso dentro e fora do partido, em toda parte. Essa aprovao realmente foi dificlima. Ento, no vai ser fcil votar na Constituio a iniciativa popular permanente, embora o Ulysses seja favorvel. Mas mesmo assim, tenho certeza, quase simblico, a vm as foras mais conservadoras e se opem.

Nesta rea h os temas dos novos passos da democratizao que so importantes na rea do Executivo e do Legislativo. Partidos e sistema eleitoral tambm. Acho que no caso dos partidos devemos dar mais liberdade a eles. A forma de obrigar os partidos a obedecerem, na sua organizao formal, dimenso espacial, sem sentido. Voc cria, necessariamente, os diretrios pr-fabricados. No funciona. Tem que ter um nmero x de militantes para se ter um diretrio, e no uma regio ou rea. Por que um partido deve, necessariamente, existir nesse bairro? De repente, no tem ningum nesse bairro desse partido. No entanto, pode ter, em outro bairro, um nmero to grande de militantes que poderia abrigar mais

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de um diretrio. Acho que devemos dar liberdade aos partidos para se organizarem. Vai passar com dificuldade, mas acho que a tendncia esta.

Mais importante do que isso, ou to importante, a questo do sistema eleitoral. Se se introduzir o parlamentarismo, quase que necessariamente tem que se introduzir o voto distrital, para voc ter uma votao majoritria e no proporcional, para voc ter uma ligao mais direta entre o eleitor e o representante, porque o parlamentarismo fica muito longe do eleitor. Quem toma deciso fica muito longe. Essa uma das dvidas que tenho quanto ao parlamentarismo, pois o que conta, no Brasil, com o poder da massa, o voto direto para presidente, para governador e at para senador. Para deputado, no. Quer dizer, so eles. Para voc criar um sistema que so eles e ns, eles esto mandando e ns estamos aqui. O presidente, voc votou com ele, ele te traiu, ele um canalha, no sei o qu, tem uma relao afetiva. Se voc criar o parlamentarismo, voc criando o voto distrital cria tambm o majoritrio, cria essa relao que acho que d um controle maior ao sistema, no fica tanto eles e ns.

CEDEC O senhor fala do voto distrital misto, no ?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO por a que vai. Mas, mesmo assim, vai ser muito difcil passar, muito difcil, porque a massa dos constituintes foi eleita pelo voto proporcional, as bases deles so proporcionais. verdade que o voto j est distritalizado; no caso de So Paulo, por exemplo, amplamente distritalizado. E com isto voc resolve a questo dos candidatos mais ideolgicos, digamos assim. Mas, mesmo assim, esta uma discusso importante que no est clara. Junto com esta, se criarmos o parlamentarismo, h o seguinte: ou ns mudamos a proporcionalidade das bancadas, ou o parlamentarismo a confirmao do poder do Norte e do Nordeste no Brasil. Se o sistema presidencialista, o presidente depende do Centro-Sul, no tem dvida. No vai sair presidente da Repblica, dificilmente sair, daqueles Estados; pode sair, mas tem que ter certamente a aprovao do voto de So Paulo, do Paran, do Rio, de Minas etc. Se vier o parlamentarismo e o Congresso for como hoje, So Paulo perde, relativamente, o poder. Os paulistas no esto percebendo isso; muitos so parlamentaristas. Com o voto proporcional, quero ver passar isso. Quero ver o Congresso aprovar que So Paulo ter 120 deputados no passa!

CEDEC O senhor acha, ento, que a tendncia de no alterar a proporcionalidade?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Vai alterar, sim, um pouquinho. Contenta um pouco, mas no contenta...

CEDEC No pode dar presidente no Sul com bancada no Norte?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Pode dar.

CEDEC E o impasse?

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FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Pois ! Estou fazendo um levantamento dos impasses. A h um problema, e no um problema menor. Porque no uma questo de Norte e Nordeste: so os setores mais tradicionais. Ento, o parlamentarismo sem essa modificao e sem voto distrital, no d. Ento, voc imagine o trabalho que vamos ter na Comisso de Sistematizao para ordenar toda essa parte relativa ao poder, para compatibilizar essas coisas. No sei como ser, mas vamos tentar... Ento, essa outra rea importante: definir quem manda, como que manda, por que manda.

A outra rea importante que a Constituio vai enfrentar e tem a ver com o futuro diz respeito a duas Comisses: uma que define os Estados e municpios, e a outra a questo dos tributos. Nisso, a Constituio poderosa. Nos Estados no vai mexer muito; embora o Gastone Righi tenha feito uma proposta para acabar com os Estados, a base o municpio, so os prefeitos, vereadores e o resto Regio Administrativa, faz a Repblica unitria. A voc vai contra toda a tradio brasileira, no vai passar. A voc no vai ter muito que mexer, mas no tributo tem. H duas coisas: vamos ter que redefinir as funes dos Estados e municpios, quer dizer, quem se incumbe da educao, da sade, no sei o qu, essas coisas, e os tributos. Ento, uma Comisso muito importante porque tem a ver com a base do poder. Esse o miolo da questo. E isso depende da Constituio.

Hoje existe uma forte retrica municipalista. Esta retrica municipalista nos tributos, se no for repensada, insuficiente; tem que se fazer algo muito pensado sobre tudo isso, muito equilibrado. Existem reas realmente carentes de recursos, e esta matria extremamente espinhosa porque voc tem reivindicaes poderosas das prefeituras, dos municipalistas, que no esto olhando o conjunto. H a idia sempre de que voc tem que dar o que querem, mas sem olhar como isso. Se voc olhar a distribuio dos tributos eu vi e fiquei espantado vai ver que em certas regies do Brasil os tributos aumentaram quatro ou cinco vezes nos ltimos vinte anos, em termos reais. So Paulo decresceu; as grandes cidades, as regies metropolitanas, decresceram violentamente. E a est um problema dramtico. Quem for definir essa poltica, quem for mexer nisso, tem que estar muito afiado com a questo dos Estados e municpios, porque decisivo: dar recursos a quem realmente necessita.

Estas reas so as fundamentais da Constituio. H outras, claro. Entretanto, o interesse fundamental dos constituintes dirigiu-se para a Comisso Econmica e a Comisso Social onde, a meu ver, muda-se pouco. So Comisses declaratrias, no so Comisses que estipulam mecanismos. Na Comisso de Poder prope-se o mecanismo de poder. Agora, na Comisso da Ordem Social, voc vai dizer o qu? Que todos so iguais perante a lei, que a greve assegurada conforme a lei. Entretanto, no foi assim que reagiram os constituintes. A esquerda correu para ocupar espao na Comisso da Ordem Social e a direita para a Ordem Econmica. Ningum vai mudar na Constituio o regime de propriedade. No na Constituio que se muda; a Constituio no faz a revoluo.

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CEDEC Mas o [Fernando] Gasparian no vai nacionalizar os bancos?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO isso que de assustar! Mas pode ficar com o dinheiro nos bancos, que no haver nacionalizao alguma... Essas partes da Constituio tm importncia, mas no tanto quanto se imagina. Voc no tem fora para mudar essas coisas no nvel de um texto constitucional. Se fizermos um texto constitucional mudando a ordem social, vamos para a cadeia, sei l para onde. Ento, no a que est a questo. Outras questes, sim. Por exemplo: a reforma agrria. A Constituio vai simplesmente dar condies gerais, que j existem alis: permitir que voc desaproprie com bnus e no com dinheiro; no vai criar mecanismos. No est na Constituio.

CEDEC O senhor acha que faria algo no sentido de limitar o tamanho dessa massa de propriedades?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Ah! mas eu duvido que isso passe. Qual a dimenso mxima para as grandes plantaes de soja? No fcil. H muitas propostas nesse sentido. Inclusive o Plenrio Popular tem propostas para limitar a propriedade urbana, mas so propostas que no tm possibilidade. Ou, ento, tem que pedir para mudar o sistema capitalista. Sem evoluir o sistema capitalista, como que voc vai fazer isso? Voc pode dizer que a terra tem que ser produtiva, isso sim. No pode ser sesmarias, mas voc vai pegar as terras que esto plantadas com soja e dizer que no pode ter mais do que 1.000 ou 10.000 hectares? No tem fora social que faa isso. Alguma medida, algumas declaraes, digamos assim, redistribucionistas, vo existir na Constituio, ainda que com resistncia. No meu modo de entender, temos que preparar uma armao que permita que a sociedade avance. isso que temos que fazer, deixar espao para a sociedade avanar, e no propor um avano que no existe hoje, porque no d.

CEDEC Mas para a sociedade avanar, depende do captulo anterior. Voc faz isso dentro das regras de quem manda.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Ah! depende. Mas depende tambm de algumas regras. Voc pode ter um bice na Constituio, voc pode ter um bice de reforma agrria tinha mas voc no pode deixar esse bice. Voc pode ter um bice a que, eventualmente, no futuro, a distribuio de propriedade possa ser mais racional preciso tirar esse bice.

Claro, voc tem outras coisas. A questo da educao, por exemplo, tem mil sugestes, o que muito bom. O pas est vibrando com a questo. Mas quantos artigos a Constituio deve ter sobre a educao? A meu ver, pouqussimos, quatro ou cinco; o sistema atual tem isso. Por qu? Porque isso no objeto da Constituio, isso objeto da Lei de Diretrizes e Bases. O que no quer dizer que no seja importante ter as 15 mil propostas. Voc sente para que lado a sociedade est querendo ir. Vota aqueles quatro ou cinco itens apontando para esse rumo. Mas voc no pode botar l uma norma que, depois, limite as polticas. Tem que deixar uma norma que permita sociedade se mover. Por exemplo: houve um

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grande avano com a Emenda Calmon, que obriga a que os Estados e municpios aloquem 25% das suas verbas tributantes na educao, e a Unio 13%. Pois bem, mesmo essa regra, sendo a ordem poltica democrtica e havendo um Congresso livre, ela desnecessria e pode ser at prejudicial. Por qu? Conheo municpios em So Paulo onde os prefeitos no sabem o que fazer com o dinheiro da educao e no podem botar na sade, onde eles precisam, ou no esgoto, onde h carncia: Itanham, por exemplo, em matria de educao, j tem tudo; agora, como tem uma populao temporria que vai l, precisa de hospital, precisa de no sei o qu, mas no pode usar essa verba para isso. claro, essa no a regra no Brasil a mais carente do que alguns municpios de So Paulo. Porm o mais democrtico no estabelecer-se de antemo, na Constituio, qual a proporo do oramento que deve se destinar a qu. a tendncia agora, e se a tendncia corporativa, cada grupo da sociedade quer se organizar e assegurar seus direitos pecunirios na Constituio.

Se fossem atendidas todas as propostas existentes, 140% do oramento j estariam destinados; isto consumiria a receita e ainda faltariam recursos. A regra democrtica para o oramento, a meu ver, outra. O Congresso deve fixar de antemo as prioridades, e o Executivo no pode fazer o oramento sem obedecer s prioridades. Antes de fazer-se o oramento, o Congresso se manifesta sobre como que ele o quer. O Executivo tem de adequar os recursos para os objetivos propostos, e assim se definem as polticas pblicas. O Congresso pode decidir o que ele quer: valorizar a educao mais que outros setores durante vinte e cinco anos. Mas depois de vinte e cinco anos, j melhorou a educao. A pode-se privilegiar outras reas. Agora, se se estabelece na Constituio uma porcentagem fixa, no se poder, nem no futuro, alterar as polticas, o que um absurdo. Estou saindo do eixo principal da exposio e entrando em detalhes para que vocs tenham uma noo do tipo de problemas que estamos enfrentando.

Voltando ao principal, acho que os temas em que vamos poder avanar so esses. Vamos poder avanar, evidentemente, quanto a normas sobre poltica externa, quanto a alguma norma limitada sobre a reserva de mercado, mas limitada mesmo. Agora, tem gente querendo criar reserva de mercado para tudo, querem estabelecer isso na Constituio. No possvel. Enrijecer-se-ia de uma maneira extraordinria as decises futuras de poltica econmica. Sem falar de outros temas que so do iderio transformador, mas que provocam uma grande confuso na Constituio. O aborto, por exemplo; se se for colocar qualquer norma sobre o aborto na Constituio, estejam certos de que vo colocar uma norma que vai fixar por muito tempo uma poltica que deveria ser mais varivel, deveria avanar com o conhecimento cientfico, com a tendncia da sociedade. Ento, se algum quiser garantir o direito de aborto na Constituio, vai terminar por proibi-lo, pois haver presso. No tenham dvida a esse respeito. Alis, j h uma proposta nesse sentido, pelos deputados da Assemblia de Deus, que querem que se formule de tal maneira o direito vida que terminar por proibir o aborto mais do que est hoje na Constituio dos militares. Ento, preciso tomar cuidado para que muitas aspiraes, que podem ser legtimas, mas quando transformadas em bandeiras para inscrev-las na Constituio, apenas tornam a Constituio mais rgida e s

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vezes mais atrasada.

Acho que j falei demais. Espero ter apresentado um panorama sobre quais os problemas que estamos vivendo e quais os problemas especficos que, como constituintes, temos que decidir para poder avanar o processo de democratizao.

CEDEC Gostaria de colocar duas questes que talvez o senhor possa aclarar mais: na primeira parte, o senhor se concentrou bastante na caracterizao do que chamou o molde do Estado, que no mudou tanto quanto os contedos mudaram. Aqui, talvez, um ponto interessante para avanar mais: na sua avaliao, o que que mudou? No momento de tomada das decises, digamos assim, quem que decide? Quem manda no pas? No perodo anterior, era muito claro quem decidia: hierarquicamente, eram as Foras Armadas. Agora, aparentemente, a Presidncia da Repblica recupera poderes e a imprensa fala bastante das funes do Conselho Poltico. No entanto, pelas indicaes que o senhor deu, as mudanas so pequenas. Talvez o senhor pudesse analisar um pouco mais isso. Por outra parte, o senhor fez um desenho, digamos, extremamente diferenciado, mas renovado do Congresso; por caminhos os mais diferentes, muitos representantes na Constituinte so novos, por vir de outros partidos, por isso ou por aquilo, e tm uma aspirao de mudana. At que ponto esse feito vai ter um impacto sobre essas questes de contedo que o senhor mencionou ao final?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Com relao questo do que mudou, como disse aqui, acho que o objetivo das polticas mudou. Agora, o modo de tomar as decises mudou pouco. Por exemplo, hoje decreto-lei ainda se faz, mas faz-se muito menos, e o decreto passa pela aprovao do Congresso. O Sarney resiste muito a fazer decreto-lei; na rea econmica, s vezes inevitvel, mas no resto resiste muito. Ento, isso mudou. Mudou o que j descrevi aqui: as prioridades do governo mudaram bastante. Mas, sobre o como se toma deciso, a nica coisa que mudou mesmo foi que o Congresso tem mais peso, no tanto formal, quanto informal. Quer dizer, na hora de decidir, quem decide, pensa no Congresso, pensa nos partidos, na opinio pblica. Pensa. Tem medo de tomar decises que vo contra isso. Mas no foram criados os canais que ligam, por exemplo, a deciso ao partido, que deveria ser o elo nessa mecnica toda, ou entre o partido e o Executivo.

Voc falou do Conselho Poltico. O Conselho Poltico no existe formalmente; se no existe, como que funciona? Quando o Tancredo estava no hospital, depois morreu, ficou tudo muito solto. Ento, o Fernando Lyra e eu resolvemos fazer uma reunio e a chamamos de Conselho Poltico do Ministrio da Justia; para ele convidamos os lderes do PMDB e o Conselho Poltico passou a funcionar. Quando o Sarney virou presidente, com a morte do Tancredo, ele percebeu que tinha que chamar, avocar a si este Conselho, seno ficava um plo de decises do Ministrio da Justia, o Chefe da Casa Civil e, alm dos lderes no caso, naquele momento eu era lder do Congresso , o lder do PMDB no Senado, o lder do PMDB na Cmara e mais os dois lderes do PFL. Agora, no h nenhuma obrigao de esse Conselho ser ouvido para nada. Ele ouvido instrumentalmente. Quando o presidente quer dar mais pompa a uma deciso, ou quando quer fazer uma

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deferncia especial ao Congresso, ele chama o Conselho, mas se quiser chamar, no como rotina.

No primeiro ano de modificaes, algumas polticas foram analisadas no Conselho Poltico; por exemplo, o que se fazer com o BNH, com a prestao da casa prpria. Noutro caso, o da definio da Lei de Greve, o Conselho Poltico foi ouvido. Ns mudamos o regimento do Senado e da Cmara para o funcionamento da Constituinte, e no h mais grande burocracia para a apresentao de um projeto. Aproveitamos assim a Conveno 87 da OIT, que d liberdade e autonomia sindicais, que estava h 39 anos no Congresso, para, com o novo regimento, acelerar mudanas na lei de greve. Com o novo regimento bastava a minha assinatura para colocar na pauta a Conveno 87. Ento, conversei com o Sarney e com o Almir Pazzianotto, e eles acharam que era bom botar em pauta esta discusso. Posto em pauta um projeto, tem-se que distribuir para algum ser o relator. Chamei o [Jos] Richa para ser o relator e ele tinha 48 horas para dizer sim ou no. Depois de dito sim ou no pelo Senado, est aprovado ou recusado o projeto. Se disser sim, explode a estrutura sindical atual, no imediatamente, mas com uma conseqncia. Ora, a presso que ns recebemos foi brutal! De quem? Dos empresrios, dos sindicatos patronais, porque o grosso do fundo sindical est l: o SESI, o SESC, o SENAI, e a coisa toda. A estrutura de poder da FIESP depende disso. Claro que o sindicato de empregados tambm.

Ento, chamei ao Senado todos os representantes das Confederaes patronais e de empregados, CUT e CGT, todos. Eu me comprometi a tirar da pauta a Conveno 87 at o dia 18 de junho. Se at o dia 18 de junho tivssemos uma nova Lei de Greve, uma nova lei de organizao sindical, se se produzisse uma nova lei que seria negociada com os sindicatos, o governo mandaria, atravs do Congresso, a nova Lei de Greve. Se no, no dia 18 de junho punha na pauta de novo a Conveno 87 e no dia 20 estaria aprovada. Ento, temos um instrumento para forar a modernizao do sistema sindical. Pois bem, para discutir que lei enviar ao Congresso, o presidente chamou o Conselho Poltico e o Almir Pazzianotto apresentou l um projeto desta lei. Ns ponderamos uma poro de coisas, fizemos reunio para avaliar a lei, tudo isso. Ou seja, em alguns momentos chama-se o Conselho Poltico, mas no um rgo formal de deciso.

CEDEC Como que entram os militares no Conselho?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO No entram.

CEDEC E quando eles querem expressar a influncia sobre uma questo como essa, a estrutura sindical, a Lei de Greve?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO A minha experincia pessoal em relao a essa matria a seguinte: sobre o Congresso, nunca vi nenhuma manifestao direta de militar algum sobre deciso nenhuma. Chequei isso com o lder anterior do Senado. No houve nenhuma presso militar. Houve uma manifestao quanto reincorporao dos militares pela anistia em postos superiores. Claro que os

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militares no querem isso. E tem uma reao corporativa que mexe com eles. Mas deles mexerem conosco, no sofri nem direta nem indiretamente qualquer presso. O que aconteceu na rea sindical? Se aconteceu no posso te dizer foi conversa de algum ministro com o ministro do Trabalho. Se aconteceu, foi no plano do Executivo, do ministro do Trabalho com o general Ivan [de Souza Mendes], sei l com quem. Se houve, foi a no mbito do ministro do Trabalho.

CEDEC J que estamos nisso, s para esclarecer um pouco mais: nos casos, por exemplo, do Cruzado e da moratria, o Conselho Poltico no foi ouvido, aparentemente.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO No foi ouvido. Foi comunicado. O Conselho Poltico no um rgo de deciso. Ele um rgo de consulta do presidente da Repblica e de transmisso das decises do presidente da Repblica ao Congresso. simplesmente um elo. Como no havia nada, e no passado simplesmente o Congresso no tinha peso, agora se criou este elo. Agora, um elo que no rotineiro e que manipulado, evidentemente. O presidente chama ou no chama, quer ou no quer. No obrigatrio. O que, alis, correto; o Executivo no tem que estar subordinado deciso do Legislativo. simplesmente um rgo de comunicao. Outra coisa o partido. No existe nenhuma ligao formal entre o Executivo e o partido, entre os ministros e o partido.

Tomando o Cruzado, por exemplo: vejam o artigo do Carlos Sardemberg no Jornal do Brasil, brilhante, a respeito disso. Foi aquilo mesmo: como que foi feito o Cruzado? No foi nem o ministro da Fazenda; foi o presidente do Banco Central, o ministro do Planejamento, com um grupo de economistas. Depois, este grupo foi ganhando o ministro da Fazenda e por fim o presidente topou fazer. Partido, a, uma coisa indireta. Alguns dos economistas so, ou eram, do PMDB, alguns. No h uma ligao formal. Depois o PMDB paga por este estilo de deciso. O ministro ou o presidente chama o presidente do PMDB e informa a ele. Ele pode at discutir. Isso perigoso, isso no. Mas no h um fluxo real de informaes e de deciso. E o traumtico a informao.

Toda a questo da dificuldade do Congresso de ter poder efetivo de fiscalizao e de deciso porque o Congresso pior informado do que o Executivo. O Executivo se modernizou, pelo menos em certas reas, e o Legislativo ficou anacrnico. Se ns quisermos democratizar, no basta dar poder formal. Voc tem que dar os mecanismos pelos quais o Congresso saiba o que est acontecendo. Nos Estados Unidos, o Congresso forte, no ? O nosso precrio. O Senado tem um pouquinho de fora, por exemplo, quanto s Relaes Exteriores. Nossa Constituio tem que mexer nisso. atribuio do Senado controlar. Agora, o que acontece? Existe uma Comisso de Relaes Exteriores que sabatina os embaixadores quando eles vo ser nomeados. Em geral, o embaixador sabe mais do que o senador. Por exemplo, o embaixador do Cambodja. O que vocs sabem sobre o Cambodja? Mesmo no sendo o Cambodja; o Equador, que um pas prximo. O sujeito que vai ser o embaixador do Equador treinado para isto, ele estudou. Ele vai l, fala e todos ficam extasiados com tanto brilho! Ento, isso no

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adianta. Voc tinha que ter uma Comisso de Relaes Exteriores que acompanhasse as decises da poltica exterior. Quando existe, hoje, informal.

Como no Brasil todo mundo conhece e se rene com todo mundo, se conhece muita coisa, mas se voc tem a infelicidade de no pertencer ao crculo de amizades, voc no sabe nada. E quando acontece alguma coisa, voc fica desesperado para tentar saber o que ocorreu. Eu me refiro a ns, lderes. Voc imagina quem liderado! No sabe! Se voc no tem um crculo grande de informaes claro que voc telefona para o ministro, o ministro teu amigo: Vai acontecer isso, ou no vai, ele te informa; seno, no tem canal. Ento, aqui, como todos os que vieram para o governo, ou muitos, so pessoas de boas intenes, ligadas oposio democrtica; tudo melhorou nesse sentido, mas qual o canal? Se amanh ganha