Viveiros de Castro - Que temos nós com isso_

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  • 7/25/2019 Viveiros de Castro - Que temos ns com isso_

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    Que temos ns com isso?

    Eduardo Viveiros de Castro.

    Tive o prazer de conhecer Beatriz Azevedo quando ela assistiu um curso que

    Alexandre Nodari e eu demos no Museu Nacional em 2012, Do matriarcado

    primitivo sociedade contra o Estado e alm. Cartografia da hiptese antropofgica.

    Oswald de Andrade era, obviamente, o personagem principal o convidado de

    honra, digamos assim do curso.1 Beatriz nos ajudou imensamente, com seu

    conhecimento to extenso como profundo da obra e da biografia de Oswald. Sempre

    que falhava nossa memria bibliogrfica ou gaguejava nossa sapincia magisterial, ela

    estava l para nos lembrar ou esclarecer. O livro que ora apresento d uma ideia do

    tanto que ela ter contribudo para o curso, e muito mais.

    Antropofagia Palimpsesto Selvagem talvez a primeira leitura realmente

    microscpica do Manifesto Antropfago, texto fundacional para a sensibilidade

    cultural contempornea, tanto aqui dentro como, cada vez mais, l fora.O livro de

    BeatrizAzevedo umclose readingde valor histrico, didtico e analtico inestimvel.

    Em um verdadeiro trabalho arqueolgico, a autora recobra muitas das fontes

    esquecidas ou ignoradas das abundantes aluses enigmticas (sobretudo para o leitor

    de hoje) contidas no Manifesto; comenta e elucida linha a linha, aforismo a aforismo,

    esse texto extraordinariamente complexo, por baixo palimpsesto de sua conciso

    telegrfica e sua alegre ferocidade lapidar;2 destaca-lhe a arquitetura rtmica, verbal

    como visual, sua (a)gramaticalidade potica e sua radicalidade poltico-filosfica;

    persegue, na produo posterior de Oswald, os fundamentos, os desenvolvimentos, asexplicaes no sentido literal de desdobramento do que estava implicado, implcito,

    1Quem sabe um dia esse curso vire um livro, se Alexandre Nodari tomar o leme que lhecabe, por seu conhecimento muito maior que o meu da matria oswaldiana. O cursopercorreu o paideuma pr- e ps-antropofgico, partindo de Oswald mas retroagindo aBachofen e Nietzsche, a Engels e Freud, e indo de Montaigne a Mtraux e a Clastres, dasBacantesa El entenado, de Gabriel Tarde a Bataille ao Tiqqune adiante...

    2Oswald seriao rei do Twitter, hoje. E como sabemos, antecipou o copyleft, com sua famosalicena para traduzir, reproduzir e deformar em todas as lnguas seu Serafim Ponte Grande.

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    compactado e as retomadas em modo dissertativo ou conversacional das teses,

    revolucionrias ento como revolucionrias hoje e amanh, enunciadas, ou melhor,

    anunciadas no Manifesto. O livro de Beatriz Azevedo, somando-se j vastaoswaldiana, acrescenta-lhe uma camada de comentrio destinada a se tornar

    referncia obrigatria para todo estudante ou estudioso da obra deste que , sem a

    menor sombra de dvida, um dos maiores pensadores do sculo XX.

    J o disse alhures, repito aqui: Oswald de Andrade, Guimares Rosa e Clarice

    Lispector, depois de Machado de Assis, so os verdadeiros autores de uma reflexo

    filosfica propriamente brasileira, os inventores de uma linguagem esttica, metafsica

    e poltica original, capaz de trazer luz as obscuras potncias conceituais da(s)lngua(s) que falamos em nosso pas, como Borges ou Lezama Lima o fizeram para o

    espanhol americano.3 De todos os supracitados, Oswald com certeza o mais

    diretamente e subversivamente filosfico, no s por sua apropriao, ou antes,

    seu apossamento direto e brbaro, de um campo de referncias oficialmente

    identificado a esta disciplina acadmica, como sobretudo por ser o inventor e

    burilador infatigvel de um autntico conceito, um dos poucos, seno o nico,

    conceito genuinamente brasileiro, por ser uma ideia que sai do Brasil, no duplo

    sentido: se ele tem suas razes em uma reflexo sobre o fato e o fatum nacional, visaentretanto uma verdade antropolgica e metafsica (ou contra-metafisica)

    supranacional, melhor dizendo, universal cosmolgica. (Da poesia de exportao

    do Manifesto da Poesia Pau-Brasil de 1924, seus roteiros o levam filosofia de

    exportao do ManifestoAntropfago de 1928, dA psicologia antropofgica, dA

    Crise da Filosofia Messinica e outros textos tardios.) Refiro-me, bem entendido, ao

    conceito de Antropofagia. Como j disse definitivamente Augusto de Campos, citado

    neste livro, a Antropofagia a nica filosofia original brasileira e, sob alguns aspectos,o mais radical dos movimentos artsticos que produzimos. Um dos mritos de

    Antropofagia Palimpsesto Selvagem contribuir para dissolver, mesmo que isso seja,

    talvez, uma tarefa de Ssifo, o bestialgico que se foi construindo em torno da noo

    de antropofagia a partir dos anos 60 do sculo passado, que transformou a exportao

    subversiva em importao mimtica, a feroz ruminao canibal em aviltante digesto

    3A lngua brasileira ainda no [foi] trabalhada pelo pensamento (C. Lispector).

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    consumista. Com as devidas e honrosas excees de praxe, dos Irmos Campos e

    Dcio Pignatari a Jos Celso Martinez Correa e outros poucos.

    Creio ser um equvoco comum nos manuais, o qual (e os quais) se deve a todocusto evitar, a identificao sumria do nome de Oswald de Andrade ao rtulo

    modernismo. Se ele participou da Semana Modernista de 22, se foi uma das foras

    vivas do movimento homnimo, Oswald seguiu rapidamente adiante, com novos

    companheiros de viagem (Raul Bopp, Oswaldo Costa, Pagu, Jaime Adour da Cmara,

    Geraldo Ferraz). O Manifesto de 1928 e a Revista de Antropofagia marcam uma

    ruidosa ruptura com a gelia geral (ainda A. de Campos) em que logo se transformou

    a gerao modernista com seu esteticismo inconsequente, suas bandeiras polticaspara l de ambguas, seu nacionalismo de opereta. O modernismo antropofgico

    absolutamente anti-modernista e sobretudops-modernista, tanto no sentido local e

    literal, como no sentido que esse adjetivo ganhou no final do sculo XX ou mais; na

    verdade, a Antropofagia saltou por cima desse outro ps-modernismo tardio,

    devorando-o antecipadamente, dispensando de passagem, no processo, as dores

    dalma, as culpas coloniais, as crises da representao do outro e demais dengos e

    requebros acadmicos praticados ultimamente no hemisfrio norte, o hemisfrio

    messinico (dengos e requebros que, naturalmente, no deixaram de fazer seu sucessoem nossas paradas e parasitas paragens universitrias nacionais). O Manifesto

    Antropfago decolonial muito avant la lettre. E no surgiu de dentro de nenhuma

    universidade norte-americana... Oswald no conseguiu nem entrar na USP, que diria

    em Duke, Princeton ou Harvard? Esse homem sem profisso nunca foi um perifrico

    profissional, daqueles com tenure.

    No teria sentido, neste prefcio, resumir o que Beatriz Azevedo expande e

    extrai desse sumo/resumo visionrio, meteoricamente luminoso que o Manifesto

    Antropfago. Limito-me a notas breves.

    Pareceu-me muito feliz a leitura da noo de manifesto no sentido tanto

    substantivo como adjetivo. No s o manifesto como grito de guerra, chamada luta

    e, com efeito, o Manifesto Antropfagoreplica e subverte o Manifesto Comunista (o

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    que nos une no a explorao, mas a antropofagia),4mas o manifesto como o que se

    ope ao latente ou oculto. O Manifesto antropfago como o Antropfago

    manifesto, a manifestao do antropfago, sua explicitao. A descidaantropofgica proclamada pela Revista de Antropofagia teve assim como sua

    condio de possibilidade a subida do latente ao manifesto, a emergncia luz do

    dia do (in)consciente cultural humano

    no o inconsciente edipiano e patriarcal, mas

    o consciente antropofgico, dionisaco e matriarcal. O desejo anti-narcsico do

    outro, o s me interessa o que no meu como lei do homem, porque o que

    meu exclusivamente esse interesse. Do homem ao cosmos (parte do Eu): a

    devorao universal como lei do cosmos, a avidez metafsica metafsica porque

    antes fsica que reger o universo at sua auto-devorao final.

    Nietzsche, como argumenta, preuves lappui, Beatriz Azevedo, o gnio

    tutelar da antropofagia oswaldiana, o pensador que mostrou que o logos uma espcie

    degenerada do gnero phagos (falar ou comer? a questo de Alice). O esprito que

    no pode conceber o esprito sem o corpo esprito-estmago.A Genealogia da

    Moral funda a equao antropologia = antropofagia. Antropofagologia. nica forma de

    escapar do antropologocentrismo cristo, europeu, modernista. Nietzsche contra Freud

    e contra Marx, fulminados os dois magistralmente, por Oswald, como merascontrafaces, respectivamente, do cristianismo e do capitalismo. O que no os faz

    deixar de terem seus usos para Oswald. Desde que despidos por Nietzsche e pelos

    Tupinamb. Assim como Deleuze falava em imaginar-se um Hegel filosoficamente

    barbudo, Oswald imagina um Nietzsche antropofagicamentenu, de cocar e tacape,

    devorando alegremente um inimigo sagrado isto , o inimigo como positividade

    transcendental, no como mera facticidade negativa a servio da afirmao de uma

    Identidade, um no-Eu que me serve para definir-me como um Eu. Comer o inimigono como forma de assimil-lo, torn-lo igual a Mim, ou de neg-lo para afirmar a

    substncia identitria de um Eu, mas tampouco transformar-se nele como em um outro

    Eu, mimetiz-lo. Transformar-se, justo ao contrrio, por meiodele, transformar-se em

    um eu Outro, autotransfigurar-se com a ajuda do contrrio (assim os velhos cronistas

    4A explorao capitalista o prottipo do que Oswald chama de baixa antropofagia, em

    contraposio antropofagia superior, a original-matriarcal, aquela que transforma o Tabu emTotem sem esquecer a origem do totem: da o conciente antropofgico contra o inconsciente

    edipiano.

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    traduziam a palavra tupinamb para inimigo). No um ver-se no outro, mas ver o

    outro em si. 5Identidade ao contrrio, em suma o contrrio de uma identidade. A

    Antropofagia no uma ideologia da brasilidade, da identidade nacional. Ela nosurgiu no Brasil por acaso, sem dvida. Mas o Brasil surgiu por acaso e,

    infelizmente, como se sabe, em dia de chuva. Da o portugus...

    O Manifesto Antropfago um Manifesto do menos, para recordarmos

    novamente Deleuze, outro nietzscheano, ou seja, outro europeu meio louco (OA: O

    sentimento rfico , evidentemente, a dimenso louca do homem). Ns j tnhamos

    o comunismo, o surrealismo (no precisamos de vocs). Nunca tivemos a gramtica

    ou a lgica no somos pr-logicos, mas ps-lgicos. Sem ns, vocs no teriamnem sua pobre Declarao dos Direitos do Homem. Declarao, lembremos,

    universal. Ou seja, ao contrrio: somos ns que temos o universal superior, o

    universal rico,em sua generosidade csmico-antropofgica.

    Contra a Declarao Antropocntrica dos Direitos, a declarao

    antropofagolgica da vingana codificao da justia. A vingana o direito contra

    o monoplio legtimo da vingana; a vingana contra o Estado, contra o monotesmo

    (Minha a vingana, eu retribuirei, diz o Senhor Rom 12:19). Um manifesto dodes-: desvepucianizar, descolombizar, descabralizar, descatequizar, dessublimar,

    desontologizar. Um Brasil, ou um Novo Mundo do qual se retirou a Europa. A

    Antropofagia tudo menosa absoro da metafsica messinica europeia.

    Queremos, porm, a tcnica. Os povos hiperbreos so idiots savants que

    fazem l suas invenes interessantes. Oswald um primitivista, mas um

    tecnoprimitivista. Sua admirao pela Amrica do Norte (os EUA) inequvoca,

    centrando-se no cinema, o divrcio, o box, o crdito e sobretudo o apetite. E asgirls... Mas essa Amrica hipertcnica (notem-se os curiosos exemplos) ao mesmo

    tempodada como exemplo da invencibilidade do ciclo primitivista. Os americanos

    so os brbaros tecnizados. S lhes falta, e a falta crucial, a Antropofagia falta-lhes

    uma filosofia de vida compatvel com o tecnoprimitivismo. A admirao oswaldiana

    pela tcnica no-messinica, porque no est atrelada a uma escatologia do

    5Pode-se chamar de alteridade ao sentimento do outro, isto , de ver-se o outro em si [...] Aalteridade no Brasil um dos sinais remanescentes da cultura matriarcal (OA)

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    progresso radicada do cristianismo. Donde o erro de Marx.6 O famoso brbaro

    tecnizado de Keyserling uma utopia mas a utopia oswaldiana est ancorada na

    terra, em comunicao com o solo; a terrena finalidade e uma acronia, poispula do passado ao futuro por cima do presente, vendo o ndio em ambas as direes

    do crculo temporal (eterno retorno?). Somos a utopia realizada, bem ou mal, em face

    do utilitarismo mercenrio e mecnico do norte. Uma tecnofilia no utilitarista ou

    mecanicista, mas desejante, orgnica e multissensorial. A antropofagia um vitalismo.

    Tupi or not tupi, that is the question. A indeciso hamletiana se torna uma

    deciso pica/epocal, que indica a opo pelo matriarcado antropofgico contra o

    patriarcado hiperbreo de Elsinor ou aquele apolneo da Repblica platnica. Umaoutra Grcia, a arcaica, primitiva, dionisaca com a vantagem do clima. E

    sobretudo, uma deciso contra-ontolgica: o tupi cancela e inverte o to be, a

    antropofagia uma contra-ontologia, o privilgio do haver vido de alteridade s

    me interessa... contra a soberania solipsista do Ser (Gabriel Tarde). A verdadeira

    questo Tupi or to be. E a resposta j est contida na questo: tupi, claro. A

    gramtica uma metafsica: toda gramtica comea pelo ser. O ndio no tinha o

    verbo ser. Da ter escapado ao perigo metafsico que todos os dias faz do homem

    paleoltico um cristo de chupeta, um maometano, um budista, enfim um animalmoralizado. Um sabiozinho carregado de doenas. Donde a pergunta crucial: Mas o

    que temos ns com isso?

    De faro, o que temos ns com isso, agora? O que podemos fazer com esse dar

    as costas antropofgico, agora que nos curvamos servilmente diante do utilitarismo

    mercenrio e mecnico como se este fosse, enfim, a verdadeira nica lei do

    mundo? A Antropofagia fez o seu caminho desde seu inventor. Mas caminhamos,

    realmente? A generosa utopia de nossa antropofagia (A. de Campos, sempre) perdeu-se no caminho? A floresta e a escola, dizia o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Nem uma,

    nem outra. Hoje h cada vez menos floresta, e quanto escola, como diz o poeta

    Andr Vallias: agora ela se escreve esfola. Onde quer que ainda se veja mata, se diz:

    desmata. E onde escola, esfola. A Ptria Educadora uma patranha grotesca, e a

    ptria desmatadora, uma sanha assassina, uma ptria sem me. O mundo no datado

    6A ideia de um progresso humano indefinido (adotadapor mais de um intrprete de Marx) trariafinalmente o quadro proposto pela Idade Mdia. No comeo o pecado original; no fim, o cu.

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    nem rubricado com que sonhava Oswald se torna cada vez mais datado nada mais

    datado, mais anacrnico que nosso progressismo crescimentista, em face da baixa

    antropofagia praticada pelo capitalismo sobre a Terra, que perdeu toda comunicaocom o solo que no se traduza em lucro e cada vez mais rubricado, com a gula

    insacivel dos donos do Brasil em privatizar o que ainda nos resta de territrio mantido

    fora do mercado as terras indgenas, as reas de proteo ambiental, os territrios

    quilombolas, todos os regimes tradicionais de territorializao que ainda no foram

    rubricados pelo latifndio e o agronegcio. Ser esse o Brasileiro do sculo XXI?

    Ou, quem sabe, a generosa utopia de nossa antropofagia, mundializada como

    era seu destino e como anunciava Oswald, sobreviva ainda, rexista nas revoltasindgenas na Amrica Latina, nas ocupaes selvagens urbanas que retomam o

    espao pblico, no ativismo ecopoltico que quer a terra, e a Terra, de volta? Pois como

    disse Oswald em seu testamento:

    Desta terra, nesta terra, para esta terra. E j tempo.