VIVÊNCIA DA VIOLÊNCIA CONJUGAL.pdf

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    Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2007 Jan-Mar; 16(1): 26-31.

    VIVNCIA DA VIOLNCIA CONJUGAL: FATOS DO COTIDIANO1THE DOMESTIC VIOLENCE EXPERIENCE: DAILY FACTS

    VIVENCIA DE LA VIOLENCIA CONYUGAL: HECHOS DEL COTIDIANO

    Claudete Ferreira de Souza Monteiro, Ivis Emilia de Oliveira Souza

    1Trabalho extrado da tese Marcas no corpo e na alma de mulheres que vivenciam a violncia conjugal: uma compreenso pelaEnfermagem, defendida junto ao Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery (EAAN)da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

    2Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela EEAN. Professora Adjunto da Universidade Federal do Piau (UFPI).3Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Titular da EEAN.

    RESUMO:A violncia conjugal se manifesta no cotidiano de algumas mulheres como fato repetitivo,cruel, por vezes naturalizado. A violncia conjugal signicada pela mulher que a vivencia parte do seucotidiano, envolta em brigas, empurres, xingamentos, humilhaes e vergonha. Foram entrevistadas 12mulheres, vtimas de violncia conjugal, em Teresina-PI. O estudo teve como objetivo compreender osignicado da vivncia de violncia conjugal pela mulher vitimizada Usou-se o referencial da fenomenologiapara anlise, com conceitos de Martin Heidegger. O mtodo de anlise compreensiva, utilizado nesteestudo, permitiu que mulheres vitimizadas descrevessem suas vivncias. Os resultados revelam que somulheres aprisionadas no prprio lar e impedidas de participarem da convivncia com familiares e emoutros cenrios da vida em sociedade. O estudo mostra que h uma constatao factual onde as marcasfsicas so, principalmente, as mais relatadas.

    ABSTRACT:Domestic violence occurs daily for some women as a repetitive, cruel fact that at timesseems almost common. To these women, domestic violence is a part of their daily life, surrounded

    by ghts, shoves, swearing, humiliation, and shame. Twelve women who were victims of domesticviolence in Teresina, PI were interviewed. The objective of this study was to understand the experienceof domestic violence by the victimized woman. The phenomenological reference was used to analyzethe interviews based on the concepts of Martin Heidegger. The comprehensive analysis method used inthis study permitted the victimized women to describe their experiences. The results revealed that thesewomen are prisoners in their own homes and are prevented from participating in companionship withfamily members and in other areas of social life. The study shows that there is factual evidence wherethe physical marks are principally those that are more reported.

    RESUMEN:La violencia conyugal se maniesta en el cotidiano de algunas mujeres como un hechorepetitivo, cruel, y, a veces, considerado como algo natural. Para la mujer la violencia conyugal signicaque la vivencia es parte de su cotidiano, la cual se caracteriza por peleas, empujones, insultos, humillacionesy vergenza. Para la realizacin de este estudio fueron entrevistadas 12 mujeres victimas de la violenciaconyugal en Teresina-PI. El estudio tuvo como objetivo comprender el signicado de la vivencia de la

    violencia conyugal por la mujer perjudicada. Se ha usado el referencial de la fenomenologa para anlisisde conceptos de Martn Heidegger. El mtodo de anlisis comprensivo utilizado en este estudio, permitique mujeres victimas describieran sus vivencias. Los resultados revelan que son mujeres encarceladasen el propio hogar e impedidas de participar de la convivencia con sus familiares y de otros escenariosde la vida en sociedad. El estudio ensea que hay una constatacin factual donde marcas fsicas son,principalmente, las ms relatadas.

    PALAVRAS-CHAVE: Vio-lncia contra a mulher. Sadeda mulher. Enfermagem.

    KEYWORDS: Violenceagainst women. Womens

    health. Nursing.

    PALABRAS CLAVE:Violen-cia contra la mujer. Salud delas mujeres. Enfermera.

    Monteiro CFS, Souza IEO

    Endereo: Claudete Ferreira de Souza MonteiroAv. Cel. Costa Arajo, 32364.049-460 - Bairro de Ftima, Teresina, PI.Email: [email protected]

    Artigo original: PesquisaRecebido em: 15 de agosto de 2006.

    Aprovao nal: 26 de dezembro de 2006.

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    INTRODUO

    O complexo fenmeno da violncia conjugalem sua dimenso ntica

    A relao entre homens e mulheres tem mos-

    trado carter de dominao, sendo designado paraa mulher a condio de submisso, retratada emobedincia, reproduo, delidade, cuidadora dolar e da educao dos lhos. Os papis destinados mulher foram ao longo dos anos naturalizando-se, apresentando as mesmas caractersticas, de talmodo que nascer, viver e morrer em situao desubmisso tem se congurado de forma comum namaioria das sociedades.

    As primeiras tentativas de desnaturalizar essespapis surgiram a partir da segunda metade do sculo

    XX, quando as relaes entre homens e mulherespassaram a serem vistas, estudadas e compreendidascomo construes sociais, sendo rejeitada as expli-caes tradicionais biologistas, que encontram comobase um denominador comum para demonstrar v-rias formas de subordinao, entre essas o fato de quea mulher tem lhos e os homens a fora muscularsuperior. Entretanto, as relaes entre homens e mu-lheres devem ser pensadas como relaes de gnero,e gnero entendido como uma maneira de referir aospapis prprios dos homens e das mulheres, criao

    inteiramente social e no biolgica.1

    A violncia se manifesta na dimenso de de-sigualdade e uma ameaa permanente vida porsua aluso morte e ainda por se caracterizar pelapassividade e silncio da vtima. A violncia familiaratualmente considerada um problema de sadepblica dos mais srios e que precisa de mudana decomportamento na maneira de pensar e conduzir asrelaes entre as pessoas.2 essencial uma transforma-o nas relaes do sujeito com o mundo, entendidocomo experincias formadoras da primeira infncia

    e toda histria coletiva da famlia e grupo social.3:34

    Assim, mudanas nas inter-relaes na famlia,na escola e no sistema social atenuariam as desigual-dades presentes entre homens e mulheres, haja vistaque a violncia conjugal entendida como questode gnero toma por base questes culturais, educa-cionais, dominao econmica, tornando-se assimuma transgresso considerada legal. A sociedade,ao destinar papis de submisso e passividade para amulher, [...]cria espao para a dominao masculi-na, onde o processo de mutilao feminina lento,gradual e considerado legtimo.4:135

    Essa naturalizao da violncia contra a mu-lher pode ser encontrada em pesquisas realizadas empases emergentes, mostrando que as mulheres, emsua maioria, compactuam com a idia da disciplinaexercida pelo homem, concordando, inclusive, como uso da fora fsica caso seja necessrio aplic-la. Istose traduz na obedincia e submisso da mulher e nalegitimao do direito do homem sobre esta.5

    Discusses adotadas pela Assemblia Geral daOrganizao dos Estados Americanos (OEA) em09 de junho de 1994, na Conveno Interamerica-na para Prevenir e Erradicar a Violncia contra aMulher, a violncia foi ento discutida e entendidacomo fsica, sexual, psicolgica e de gnero. Houveainda o reconhecimento do direito da mulher de serlivre de todas as formas de discriminao.6

    Os atos de violao contra a mulher tambmforam alvos de reexes e propostas da IV Con-ferncia Mundial Sobre a Mulher, realizada emBeijing, na China, em 1995, e cujo relatrio nalexpe a armao de que a violncia contra a mulherconstitui obstculo a que se alcancem os objetivosda igualdade, desenvolvimento e paz. A violnciacontra a mulher impede e prejudica ou anula odesfrute por parte dela dos direitos humanos e dasliberdades fundamentais.7

    Os maus tratos inigidos mulher repercutem

    em perdas signicativas na sade fsica, sexual, psico-lgica e nos componentes sociais, este ltimo comorede de apoio para a qualidade de vida. A mulhervitimizada evita denunciar e se isola dos sistemas deapoio, o que a torna ainda mais dependente do seuagressor. Os atos de violncia representam, para asade da mulher, uma carga negativa de tamanhosemelhante ao HIV, s doenas cardiovasculares,aos cnceres e tuberculose.8

    As conseqncias dos agravos na vida da mu-lher so marcadas pela baixa da auto-estima, pelo

    medo, pelo isolamento social e at pela incorporaodo sentimento de culpa. Surge com maior freqn-cia, o sentimento de temor que paralisa e impedea mulher de buscar ajuda, bem como a atitude dediminuio do abuso na qual a mulher tende a mi-nimizar a situao de violncia em funo de fatorescomo medo, falta de informao e de conscinciasobre o que constitui realmente violncia, e aindapelo desejo de crer que o parceiro no to mau.9

    Como conduta, surge tambm o isolamento,por meio do qual a mulher se distancia das poss-

    veis redes sociais de apoio, inclusive da sua prpria

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    famlia. Essa conduta aumenta a dependncia ea limita para a possibilidade de ajuda. Por m, ainternalizao da culpa, onde a mulher se senteresponsvel e merecedora de atos de agresso e asjustica referindo-se a falhas em seu comportamen-to. Atitudes como essas contribuem ainda mais paraa baixa da auto-estima produzida na convivncia daviolncia pela mulher.9

    As implicaes da violncia conjugal na sadeda mulher ganham magnitude medida que, atravsde pesquisas, os atos de agresso comeam a sair dainvisibilidade. A diculdade de visualizao dosagravos sade da mulher passa por fatores comoo fato da violncia acontecer em mbito privado epor constituir-se em medo e vergonha, o que impedea mulher de torn-la pblica.

    Outro fator merecedor de destaque diz res-peito aos prossionais de sade, em especial aquelesdiretamente ligados rea de ateno sade damulher, onde nem os servios, nem os prossio-nais encontram-se preparados para diagnosticar,tratar e contribuir para a preveno da violncia.Os prossionais precisam de treinamentos parareconhecer sinais de violncia, principalmente osde carter mais insidiosos. O setor sade deve estarintimamente ligado a uma rede de apoio que per-passa pelas Delegacias de Ateno Mulher, Casasde Abrigo, Servio Social e outros.10

    O manual de orientaes para a prtica emservio sobre violncia familiar, do Ministrio daSade, aponta inmeras conseqncias para a sadefsica e mental das mulheres que sofrem violncia,destacando-se leses, gravidez indesejada, doenassexualmente transmissveis (DSTs), aborto espon-tneo, problemas ginecolgicos, abuso de drogas,depresso, ansiedade e outros.11

    Entretanto, a violncia uma escalada perigo-sa que tende a crescer e no geral inicia com agresses

    verbais, passando para as fsicas e/ou sexuais, atin-gindo seu ponto mximo no homicdio.12

    Algumas reexes sobre a forma como a En-fermagem busca hoje a compreenso humana sugereque os prossionais de Enfermagem, ao interagircom o ser-doente, valorizem aes como respeito,dignidade e amor ao prximo, procurando zelarpelo bem-estar daqueles que assistem. Esta reexomostra que a Enfermagem v o ser humano comoestando inserido num contexto social, educacional,econmico, cultural, para que o assistir se faa emtoda a dimenso humana. Este tambm o nosso

    pensar, o que nos faz crer que a compreenso da vi-vncia da violncia, buscando contemplar a mulhercomo sujeito e no como objeto, nos aproxime mais,mostrando que o dilogo porta de possibilidade decrescimento e ajuda para a mulher vitimizada.

    Assim, o objetivo deste estudo foi compreen-der o signicado da vivncia de violncia conjugalpela mulher vitimizada. O horizonte norteadorbaseou-se nas indagaes de como a mulher vivenciaa violncia conjugal e qual o signicado da violnciaconjugal a que submetida cotidianamente.

    METODOLOGIA

    Trata-se de um estudo qualitativo, obedecendotodos os critrios ticos da Resoluo 196/96 do CNS,que trata da pesquisa envolvendo seres humanos. Os

    sujeitos foram 12 mulheres que vivenciam a violnciaconjugal e que aps serem informadas dos objetivos doestudo aceitaram espontaneamente participar, assinan-do um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.O projeto obteve aprovao do Comit de tica emPesquisa da UFPI, sob parecer n 058/2004. As mu-lheres foram ouvidas na Delegacia Especializada doDireito da Mulher, Zona Norte, em Teresina - PI.

    Para a compreenso do signicado da vivnciade violncia conjugal pela mulher, fomos buscar,atravs do mtodo de anlise existencial de Martin

    Heidegger, a compreenso do fenmeno. O mtododesvela por meio do discurso do ente e questiona osentido do ser. Ser sempre ser de um ente [...] e ente tudo de que falamos tudo que entendemos com quenos comportamos dessa ou daquela maneira, ente tambm o que e como ns mesmos somos.13:27

    Para desvelar o signicado da violncia, algunspassos foram considerados especiais. O primeirodeles foi a nossa aproximao com as mulheres, oesclarecimento sobre a pesquisa e a concordncia emparticipar do estudo. O segundo passo iniciou com adescrio do fenmeno, dada atravs da linguagem.Para tanto, foi solicitado como horizonte norteadorque as mulheres falassem livremente como era a vidaao lado do parceiro. As falas foram gravadas em tascassetes e transcritas imediatamente aps a entrevista.O terceiro passo foi de alerta, no qual realizamosuma suspenso de juzo de valor ante o fenmenodescrito. Esta etapa chamada de epoche constitui-sena suspenso de toda carga de crenas, signicado,percepes que detnhamos sobre o fenmeno.

    Aps a suspenso ocorreu a leitura e re-leitura

    da descrio, surgindo as unidades de signicao,

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    entendidas como sendo a compreenso vaga e me-diana das mulheres sobre o signicado da vivnciada violncia. Essa compreenso, em Heidegger, re-presenta a maneira de compreenso do mundo, suarelao, como vive, como atribui signicado. Este o primeiro momento metodolgico que revela adimenso factual do fenmeno e este momentoque se buscou evidenciar neste estudo. A anlise sefez, portanto, a partir das unidades de signicao,discutidas e analisadas com base no referencial lo-sco de Heidegger. Trata-se da busca do ser, nomais como categorias meramente elaboradas, mascomo estruturas existenciais capazes de mostraremo fenmeno em si mesmo.13

    A fenomenologia uma opo de caminho napesquisa em enfermagem que possibilita conhecerum saber que no vem de fatos e nmeros, comoendereo, situao socioeconmica ou de resultadoslaboratoriais, mas um saber que vem do cliente ese encontra velado e cuja apreenso permitir umcuidar mais humanizado.14Assim a violncia, nobasta conhec-la em nmeros e nos seus vrios tipos,mas tambm a partir das necessidades contextuais eexistenciais de quem a vivencia.

    ANLISE E DISCUSSO DOS DADOS

    Partindo da leitura dos textos, nos quais o

    discurso das mulheres aponta para a compreensovaga e mediana sobre o fenmeno, surgiram estru-turas que se mantiveram determinantes em todoo modo de ser da presena, ou seja, mostra aquiloque o fenmeno representa para as mulheres noseu modo de ser cotidiano e, a partir da, foramagrupadas em unidades comuns, ditas unidades designicao. Nestas unidades, as falas expressamsignificativamente o que as mulheres pensam,percebem, sentem e se comportam em relao aopesquisado. Elas correspondem dimenso ntica

    do fenmeno, e a anlise com base nos conceitos dolsofo Martin Heidegger corresponde dimensoontolgica, ou seja, o sentido que se revela.

    Na unidade de signicao I, possvel com-preender que as mulheres expressam a vivncia deviolncia conjugal por sintomas de ordem fsica.

    [...] me espancava e s ia tireide, eu botando sangue

    no nariz e ele batendo s na minha cabea. Eu tenho cado com

    problema na minha sade, gravidez de alto risco e minha presso

    ca sempre oscilando, tudo por causa de engolir raiva (Sra. A).

    Minha primeira gestao eu perdi, no sei se foi por causa

    de um murro que ele me deu. Ele me bate at na frente dos lhos

    e olhe [mostra a mo], eu tenho este dedo aqui aleijado, ele bateu

    na frente da menina, foi numa manh de domingo de carnaval,

    eu senti depois que ele me bateu o dedo car solto, tremendo, eu

    tinha que engessar, mas eu quei com vergonha de ir e l [na

    clnica] e ter que dizer como foi (Sra. B).

    Passei oito dias internada com ameaa de parto prema-turo, acho, s vezes, que foi mesmo dos sopapos, dos gritos e das

    coisas que ele me fazia. Certa vez ele me esmurrou, quei com

    o olho escuro, passava p, botava culos, para as pessoas no

    verem e o pior que s vai no rosto da gente (Sra. E).

    Eu j peguei duas doenas sexualmente transmissveis e

    at o momento eu nunca falei isso para ningum. Passei vergonha

    no local de trabalho, pois foi l que eu me tratei (Sra. D).

    A compreenso expressa nestes depoimentosrevela que a vivncia de violncia deixa marcas des-critas como sintomas de doenas e sempre revestidas

    de um grande sofrimento moral. Estas depoentesmostram o corpo como sinalizador e revelam sin-tomas que tambm se encontram no modo de ser dacotidianidade. Estes sintomas se referem hiperten-so, alteraes da tireide, aborto, parto prematuro,membros do corpo quebrados (no caso o dedo damo) e ainda o surgimento de doenas sexualmentetransmissveis. Estes sintomas no so violncia emsi, mas podem estar velando o fenmeno da violn-cia. Para Heidegger, o que se tem em mente soocorrncias que ao se manifestarem indicam algoque em si mesmo no se mostra.3:59Para o lsofo,a marca mostra onde se est. Os sinais mostram,primordialmente, em que se vive, junto a que ocupa-o se detm, que conjuntura est em causa.13:123Nocaso destas mulheres, a violncia que se faz habituale o corpo instrumento sinalizador, nele que estos marcas do seu modo de viver humano.

    Na unidade de signicao II, as mulheresexpressam a vivncia de violncia conjugal porum cotidiano imerso em conitos constantes como parceiro, descritos por violncia fsica, sexual epsicolgica.

    Quando chegava em casa ele comeava me batendo sem

    ver pra qu. Chegava a sair sangue do meu nariz, era tapa no

    meio da rua mesmo, me arrastava pelos cabelos e todo mundo

    via. Apanhava na frente da minha lha (Sra. L).

    Na relao sexual s vezes eu cava assim com ele por uma

    questo de obrigao, eu chorava sem sentir nem prazer, o tempo

    foi passando e eu queria ter coragem de dizer no (Sra. D).

    Passava de 24 horas fora de casa, gastava e quando

    chegava como se nada tivesse acontecido, e quando era noite

    ele vinha me procurar e eu no aceitava, ele comeava a dizer que

    ele era o meu marido ou se eu no aceitasse era porque eu tinha

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    outro. Agora procuro dormir com minha lha, a ele no tenta

    muito, seno ele fora mesmo, mas antes me obrigava, s vezes ele

    cava fazendo em cima de mim e eu chorando (Sra. B).

    Quando ele vem falar comigo ele me chama de rapariga,

    sem-vergonha. Ele no tem o que fazer, quando ele pega a minha

    mixaria, ca me humilhando (Sra. I).Os relatos revelam brigas, humilhaes,

    medo e a presena tanto de violncia fsica, sexuale psicolgica. A vivncia de violncia conjugal setorna algo indecifrvel, de tal modo que essas mu-lheres nem conseguem perceber quo violentadasse encontram. O dia-a-dia de sobressalto, nuncasabem quando vo ser espancadas e nem como ser oespancamento. Na vivncia sexual, so mulheres quese mostram submissas, dependentes, que se sentemsozinhas e que se tornam profundamente magoadas

    por se verem obrigadas a submeterem-se a objetosexual do outro. O estar-s uma maneira ou mododeciente de ser-com, pois o ser essencialmenteconvivncia, o compartilhamento com o outro. Ofato de estar-s no se desfaz, porque junto a este serencontra-se um outro ser. Assim, essas mulheres,por mais que convivam com seus parceiros, sentem-se nesta disposio de estar-s, numa convivnciasilenciosa e encoberta pelo dominado.

    Na unidade de signicao III, as mulheresexpressam a vivncia de violncia conjugal porcarncia de cuidados e afeto, aprisionamento, iso-lamento, baixa da auto-estima.

    Deixa a gente sem rumo na vida, como se a gente

    tivesse um n, um grito preso na garganta, e a gente olha em

    volta, v os lhos, os pais da gente, as pessoas, os amigos, os

    vizinhos. Esses eu nem falo, morro de vergonha e a a gente

    aprende cada vez mais. No tem sada, o tempo passa, a gente

    espera melhorar e nada, parece que quando mais tempo passa

    mais vai cando ignorante (Sra. H).

    Eu no tenho direito de me divertir, eu j tentei trabalhar,

    mas ele no quer, diz que meu lugar dentro de casa, sozinha

    ao lado dele, carente de tudo (Sra A).O que adianta ser livre sem ter a minha liberdade? Sou

    livre para viver dentro de casa. Eu no tenho quem me ajude, eu

    no sei com quem falar, eu no sei me virar. As portas caram

    fechadas para o resto da minha vida (Sra. C).

    Eu tenho medo de car s, tenho medo at de entrar

    sozinha no quarto. No sei direito o que falo, o que penso, o

    que fao, s sei que sofro muito e cada dia o sofrimento aumenta

    mais, no tem m (Sra. M).

    Nos relatos dessas mulheres, possvel per-ceber que as mesmas compreendem a vivncia da

    violncia conjugal por marcas que no esto visveis,

    que no so facilmente diagnosticadas, que se mes-clam com outros sintomas, mas que so de carterto intenso e duradouro que parecem modicardesde o tom da voz, o brilho do olhar, at mesmoo gesticular das mos. Essas marcas encontram-se nadimenso subjetiva e s se tornam aparentes quandoso reveladas por quem as sentem. As mulheres desteestudo falam em sofrimento, tristeza e medo.

    A compreenso vaga e mediana revela umaprisionamento e um encobrimento em si mes-mo. So mulheres que, de certa forma, deixam-seaprisionar. Este aprisionamento se faz no espaodomstico e so relatados como no poderem maissair de casa, no visitar os familiares, amigos. Elasrevelam perda do interesse social e da con-vivnciacom os outros. O espao, alm delas mesmas, resideno espao do lar, da casa, dos lhos, do marido, da

    violncia. A indiferena com que essas mulheres sotratadas em casa contribui para que elas permaneamna inautenticidade. No dado a essas mulheres umacolhimento que possibilite ultrapassar esse mododa inautencidade. Esses so modos de [...] deci-ncia e indiferena que caracterizam a con-vivnciacotidiana e mediana um para o outro.13:173

    Reetindo ainda sobre a compreenso vagae mediana da vivncia de violncia conjugal pelasmulheres, percebe-se que existe tambm uma outraforma de aprisionamento, manifestado pela humi-lhao e vergonha que as mulheres sentem delasprprias por estarem se entregando vivncia deviolncia. O aprisionamento, to profundamenteenraizado, encobre em si mesmo sentimentos denegao, de submisso, de causa e de ocultamento,que reete em uma auto-estima fragilizada.

    CONSIDERAES FINAIS

    A partir da compreenso vaga e mediana dasmulheres deste estudo, possvel apontar sentidos

    da vivncia de violncia conjugal que se manifestamna dimenso cotidiana. Esta cotidianidade repletade conitos constantes com o parceiro, de submis-so, menosprezo, solido, humilhao e vergonha.Cotidiano ento percebido como [...] modo deser em que a pr-sena se mantm, na maior partedas vezes e antes de tudo.13:168

    A violncia conjugal parte do cotidianodas mulheres deste estudo, cotidiano esse que seencontra envolto em brigas, empurres, xingamen-tos, humilhaes e vergonha. H uma constatao

    factual de que as marcas fsicas so, principalmente,

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    as mais relatadas. Entretanto, os depoimentos dei-xam transparecer efeitos negativos na sade mentaldessas mulheres, principalmente pela humilhao,sofrimento e vergonha que afetam sua auto-estima edenem sua relao para com o outro, uma relaode um ser-com deciente.

    A mulher se revela como ser dependenteemocional e nanceiramente do seu companheiro,sem nenhuma ou com pouca perspectiva de cresci-mento, o que se congura por perdas intensas que serelacionam com a qualidade de vida tanto da mulherquanto de todos os envolvidos.

    Os dados da pesquisa indicam que apesar dosrelatos serem mais expressivos em relao s marcasfsicas, a violncia a que so submetidas no cotidianoproduz um sofrimento existencial intenso. A mu-

    lher vitimizada para sair desse contexto, necessitaampliar as suas possibilidades de escuta. Nesse sen-tido, a divulgao dos rgos como as Delegacias daMulher, Casa Abrigo, Disque Mulher deve ser me-lhor informados em linguagem que chegue at essasmulheres. Estes so rgos de denncia, entretanto osetor sade deve envolver-se mais, com prossionaistreinados que dem oportunidade para que a mulherfale livremente sobre suas relaes familiares, querseja durante a consulta ou outra atividade na qualessa mulher possa estar envolvida.

    O estudo revela um cotidiano de intensoadoecimento em conseqncia dos atos agressivose, embora violncia no seja doena, liga-se ao setorsade por ser esta a primeira porta de acesso da mu-lher na busca de cuidados e, como enfermeiras, oolhar atentivo, a escuta, o dilogo devem fazer partedo nosso cuidar, um cuidar que Heidegger apontacomo preocupao e que, para a existncia do ser,antes de tudo e no nal, o cuidar a referncia.

    REFERNCIAS

    1 Scott J. Gnero: uma categoria til para a anlisehistrica. 2a ed. Recife (PE): SOS Corpo; 1995.

    2 Waidman MAP, Decesaro MN, Marcon SS.Convivendo com a violncia familiar. In: Luz AMH,Mancia JR, Motta MGC, organizadores. As amarras

    da violncia: a famlia, as instituies e a Enfermagem.Braslia (DF): ABEN; 2004.

    3 Gomes VLO, Fonseca AD. Dimenses da violnciacontra crianas e adolescentes, apreendidas no discursode prossionais e cuidadores. Texto Contexto Enferm.2005; 14 (Esp.): 32-7.

    4 Grossi PK. Violncia contra a mulher: implicaespara os prossionais de sade. In: Lopes MJM, MeyerDE, Waldow VR, organizadoras. Gnero e sade.Riode Janeiro (RJ): Artes Mdicas; 1996.

    5 Organizao Mundial de Sade. Relatrio mundial sobreviolncia e sade. Genebra (Sua): OMS; 2002.

    6 Agende Aes em Gnero Cidadania e Desenvol-vimento. 10 anos da adoo da ConvenoInteramericana para Prevenir, Punir e Erradicar aViolncia contra a Mulher: conveno de Belm doPar. Braslia (DF): AGENDE; 2004.

    7 Organizao das Naes Unidas. Anais do 4oConferncia mundial sobre a mulher; 1995 Set 4-15;Beijing, China. Rio de Janeiro (RJ): FIOCRUZ;1996. 353p.

    8 Camargo M. Violncia e sade: ampliando polticaspblicas. Rede Sade. 2000 Nov; (22): 6-8.

    9 Larrain SY, Rodrguez T. Los orgenes y el controlde la violencia domstica en contra de la mujer. In:Organizao Pan-americana de la Saude. Gnero,mujer y salud en las Amrica. Washington (USA):Ed. Elsa Gmez Gmez/OPS; 1993.

    10 Ministrio da Sade (BR), Secretaria de Polticas de

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    11 Ministrio da Sade (BR), Secretaria de Polticasde Sade. Violncia intrafamiliar: orientaes paraa prtica em servio. Braslia (DF): Ministrio daSade; 2002.

    12 Safoti HIB, Almeida SS. Violncia de gnero: poder eimpotncia. Rio de Janeiro (RJ): REVINTER; 1995.

    13 Heidegger M. Ser e tempo. Parte I. 12a ed. So Paulo(SP): Vozes; 2002.

    14 Simes SMF, Souza IEO. O mtodo fenomenolgicoHeideggeriano como possibilidade na pesquisa emenfermagem. Texto Contexto Enferm. 1997 Set-Dez; 6 (3): 50-6.

    Vivncia da violncia conjugal: fatos do cotidiano