Viver segundo a Idéia de Natureza

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  • THEOPHILOSRevista de Teologia e Filosofia ULBRA

    A Journal of Theology and Philosophy

    Vol. 4 - Nmero 1/2 - jan./dez. 2004ISSN 1676-1332

    COMUNIDADE EVANGLICA LUTERANA SO PAULO

    PresidenteDelmar StahnkeVice-PresidenteJoo Rosado Maldonado

    ReitorRuben Eugen BeckerVice-ReitorLeandro Eugnio Becker

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    Capelo GeralGerhard Grasel

    Ouvidor GeralEurilda Dias Roman

    Revista TheophilosRevista de Teologia e Filosofia ULBRA

    EditorProf. Dr. Manfred ZeuchEditor AssociadoProf. Ms. Paulo Augusto Seifert

    CORRESPONDNCIA/ADDRESSUniversidade Luterana do BrasilPROGRAD/Revista TheophilosProf. Paulo Seifert, Editor AssociadoAv. Farroupilha, 8001 - Prdio 11, sala 12792425-900 - Canoas/RS - BrasilE-mail: [email protected]

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    Cursos de Teologia e FilosofiaDiretor: Prof. Dr.h.c. Leopoldo Heimann, DD

    EDITORA DA ULBRADiretor: Valter KuchenbeckerCoord. de peridicos: Roger Kessler GomesCapa: Everaldo Manica FicanhaProjeto grfico e editorao: Isabel Kubaski

  • Artigos

    3 - Valerio Rohden. Viver segundo a Idia de Natureza

    19 - Edvino A. Rabuske. Imanncia e Transcendncia

    33 - Juan A. Bonaccini. A Estratgia Cartesiana nas Meditationes

    47 - John Warwick Montgomery, Manfred Zeuch e Paulo Augusto Seifert. Hermenutica doPonto de Vista Jurdico e Teolgico: um Exerccio de Integrao

    61 - Arno Vorpagel Scheunemann. A Ao Crist: da Honra e Privilgio em Ser Dicono aoPrazer da Aventura Destinal

    75 - Anselmo Ernesto Graff. A Santa Ceia em um Contexto Missionrio

    99 - Andr Constantino Yazbek. O Hegelianismo de Jean-Paul Sartre em Ltre et le nant

    117 - Martim Carlos Warth e Acir Raymann. Pstis Isou Xristou: uma Releitura

    Comunicao

    135 - Paulo Augusto Seifert. Leibniz sobre Percepo

    145 - Normas editoriais

    Sumrio

    Setor de Processamento Tcnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas

    T394 Theophilos : revista de teologia e filosofia / UniversidadeLuterana do Brasil. Vol. 1, n. 1 (jan../jun. 2001)- . Canoas : Ed. ULBRA, 2001.v. ; 23 cm.

    Semestral.ISSN 1676-1332

    1. Teologia peridicos. 2. Filosofia peridicos. I.Universidade Luterana do Brasil.

    CDU 2:1(05)

  • Artigos

    Viver segundo a Idia deNaturezaTo Live according to the Idea of Nature

    VALERIO ROHDENDoutor em Filosofia (UFRGS). Professor de Filosofia na Universidade Luterana do Brasil. Pesquisador do CNPq.

    Tudo no universo marcha, e marcha para esperarNossa existncia uma vasta expectaoOnde se tocam o comeo e o fim.A terra ter que ser retalhada entre todosE restituda em tempo sua antiga harmonia.Tudo marcha para a arquitetura perfeita:A aurora coletiva.(Murilo Mendes, 1979, p.104)

    RESUMO

    No presente trabalho, analisado o significado da interpretao kantiana dafrmula estica: Viver em conformidade com a natureza. Essa interpretao, basea-da numa Reflexo de Kant, resume-se ao seu acrscimo do termo idia referida

    O presente trabalho foi escrito para o Colquio Kant Natureza e Liberdade, ocorrido na Universi-dade Federal de Santa Catarina, entre 31 de maio e 02 de junho de 2004, sob a coordenao daProfa. Dra. Maria de Lourdes Borges. Ser tambm publicado como captulo de livro a serorganizado por ela e pelo Prof. Dr. Jos Heck

    Theophilos Canoas v.4, n.1/2 jan./dez. 2004 p.3-17

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    4 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    frmula. As presentes reflexes limitam-se a verificar o sentido desse pequeno acrs-cimo, que permite compreender mediante o conceito de idia a a visada unidade denatureza e razo, desde a perspectiva desta. A reflexo complementada por refern-cias s contribuies de Ccero e Seneca ao tema.

    Palavras-chave: estoicismo, tica, natureza, razo, idia.

    ABSTRACT

    The paper analyzes the meaning of the Kantian interpretation of the stoic formula:to live according to nature. This interpretation, based on a Kant reflection, isepitomized at his addition of the term idea to the mentioned formula. The presentconsiderations are limited to verify the meaning of such addition, which allows tounderstand through the concept of idea the purposed unity of nature and reason, fromthe perspective of the latter. The reflection is complemented by references to thecontributions of Ccero and Seneca.

    Key words: stoicism, ethics, nature, idea, reason.

    1 IDIA DE VIDAO tema sobre o qual deverei falar-lhes - a interpretao kantiana da fr-

    mula estica, Viver conformemente natureza originou-se da leitura deuma reflexo que consta na antologia elaborada por Jens Kulenkampff: ImmanuelKant. Kche ohne Zunge (1997). A frase a seguinte: Der Natur gemss leben heisst:nicht den Trieben der Natur, sonder der Idee, welche der Natur zum Grunde liegt, gemssleben (Viver em conformidade com a natureza no significa viver segundo osimpulsos da natureza mas segundo a idia que se encontra a fundamento danatureza).1 A frase procede da Reflexo 6658, da poca de 1769 (Ak XIX, p.125-126). A continuao da frase, na Reflexo, no muito esclarecedora, por issome dispenso de fornec-la. Na antologia de Kulenkampff ela situa-se numaseo por ele intitulada Do amor vida.

    Entre as frases dessa seo, colabora para a nossa compreenso a fraseda Reflexo 2398, da mesma poca: Ns s concebemos o que ns mesmospodemos fazer (Kant, 1997, p. 66). Ou seja, ento o significado de viver se-gundo a idia de natureza tem uma implicao operacional ou pratica. Viversegundo uma idia significa viver de acordo com a razo prtica.

    1 Kant, 1997, p.81. O destaque em negrito meu.

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    5Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    Mas essa concepo do viver segundo a idia de natureza apresenta naReflexo 4857, mais tardia e datada de 1776-1778, uma outra dificuldade aoconceito de vida a desenvolvido: Unicamente prazer e desprazer constituemo absoluto, porque eles so a prpria vida (Ak v.18, p.11). Esta identificaode prazer e vida , na Crtica da faculdade do juzo, a essncia da conceporeflexiva da beleza. Somente na beleza o homem sente-se inteiramente ho-mem, porque ela reintegra alma e corpo, animal e racional, s nela o homemsente-se bem no mundo. Na terceira Crtica, tanto quanto na concepo lgi-ca da Crtica da razo pura, Kant revela-se epicurista. Isto se mostra especial-mente no final da Observao geral sobre a exposio dos juzos reflexivosestticos, da terceira Crtica, onde ele explicitamente se declara concorde comEpicuro, ao escrever:

    No se pode sequer negar, como Epicuro afirmava, quedeleite e dor sejam sempre em ltima anlise corporais,quer comecem da imaginao ou at de representaesdo entendimento, porque a vida sem o sentimento doorganismo corporal simplesmente conscincia de suaexistncia, mas nenhum sentimento de bem-estar, isto ,da promoo ou inibio das foras vitais; porque o ni-mo por si s inteiramente vida (o prprio princpioda vida), e obstculos ou promoes tm que ser procu-rados fora dele, e contudo no prprio homem, por conse-guinte na ligao com o seu corpo.2

    Alis, tambm na Metafsica dos costumes, no primeiro pargrafo de sua In-troduo, Kant define a faculdade de apetio como faculdade da vida: Facul-dade de apetio a faculdade de ser, mediante suas representaes, causa dosobjetos dessas representaes. A faculdade de um ente de agir conformementes suas representaes chama-se vida.3 Por isso Kant acrescentar logo a se-guir que apetio e prazer esto sempre necessariamente vinculados, ou comocausa ou como conseqncia. O prazer conectado com essa faculdade prticapor excelncia chama-se prazer prtico (cf. AB 3, Ak 212).

    2 Kant 1993, B 129, p. 124. A parte da citao que se encontra entre parntese e que destaqueiem negrito foi por um lapso esquecida na traduo, tanto na editada em Portugal (Lisboa: Casada Moeda/Imprensa Nacional, 1992) quanto na editada no Brasil. Ser acrescentada numa pr-xima edio.

    3 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten (MS), AB 1, Ak v. VI p.211.

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    Com isso chegaremos a uma concluso que pode surpreender interpreta-es distorcidas da filosofia moral kantiana: a moralidade, do modo como entendida por Kant, vincula-se necessariamente com a vida e com o prazer. Masveremos que no caso da moral, viver de acordo com a idia de natureza signifi-car ter como necessria conseqncia (e no como causa) um prazer na deter-minao da razo prtica, mais precisamente, na sua autodeterminao.

    Este direcionamento inicial de nossa reflexo para o prazer justifica-sepela sua vinculao com o conceito de vida presente na frmula estica queKant interpretou. Naturalmente, veremos que o acrscimo fundamental de Kant frmula moral estica refere-se ao uso e sentido do termo idia. A idia uma representao por excelncia da razo,4 de modo que, se a interpretaode Kant estiver certa, ou seja, que viver de acordo com a natureza quer dizerviver segundo uma idia que serve de fundamento natureza, ento Kant re-presenta a prtica moral estica como racional. Natureza e razo tero de serpensadas a unitariamente.

    2 UNIDADE DE NATUREZA E RAZO EMSENECAEssa concepo provm de Zeno (490-430 a.C.) e Crisipo (280-aprox.208

    a.C.), mas comecemo-la por Seneca (4 a.C.-65 d.C), com quem, especialmentecom as Cartas a Luclio, Kant mantinha uma relao privilegiada.5 Pois bem, naCarta 124, alnea 14, Seneca afirma que a natureza no seu todo determinadapela razo. Citemo-lo: Ou seja, perfeito enfim aquilo que em comparaocom a natureza toda perfeito, mas a natureza considerada no seu todo determinada pela razo: o restante s pode ser perfeito dentro de seu gne-ro. (Sneca, 1991, p. 701).

    4 A Reflexo 3917 muito elucidativa do sentido das idias puras da razo. Segundo ela, idiaspuras so reflexivas, ou seja, discursivas e no intuitivas, como supunha Plato. Isto significaque elas no representam objetos mas leis para comparar conceitos empricos. Logo, enquan-to fundam juzos comparativos ou reflexivos so leis de juzos. Cf. ed. Ak v. 17, p.342.

    5 Por exemplo, Maximilian Forschner, em seu livro ber das Handeln im Einklang mit der Natur,Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998, p.104, revelou - e pude confirm-lo emSeneca que uma noo essencial na tica de Kant, a diferena entre preo e dignidade, pro-vm literalmente de Seneca, da Carta 71, linha 33.

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    O que Seneca afirma est de acordo com o conceito de idia de Kant: aidia representa um todo, no caso, o todo da natureza. A idia de naturezasignifica, pois, a natureza pensada no seu todo e no em suas especificaesou em seus impulsos. Essa forma de representao prpria da razo: a ra-zo, na prtica, pensa principalmente o todo da vida, o todo dos homens, ahumanidade. Por isso o conceito de mxima tem de ser entendido (conformeum artigo de Rdiger Bittner, 2003, que saiu na Studia Kantiana) como o de umprincpio de vida, por isso em um sentido universal (como tambm fiz constarem uma nota ao 1 da traduo da Crtica da razo prtica; ver Kant 2002, p. 31-32, 2003, p. 581). Os princpios prticos so universais, embora em sentidodiferente quando se trata de lei ou de mxima, mas so universais porque nosdois casos se trata de idias da razo segundo as quais queremos viver. Trata-se de idias relacionadas com o todo da vida. Por isso querer viver segundo aidia de natureza no significa querer viver segundo os sentidos como os im-pulsos ou inclinaes, mas segundo a representao do todo da natureza. Otodo da natureza corresponde a uma representao a priori dela, uma repre-sentao prtica do sentido do mundo e da vida (veremos que esse todo estligado idia de perfeio e desenvolvimento pleno).

    Vejamos a esse respeito mais alguns aspectos dessa relao entre natu-reza e razo, na Carta 124 de Seneca (a ltima dessa sua obra-prima). Senecaprope a como questo, se bom e mau so apreendidos pelos sentidos oupelo entendimento. Ele mostra que so discernidos pelo segundo ou pela ra-zo, porque, se a razo tem por tarefa decidir sobre a vida feliz, sobre a virtudee a honestidade, ento tambm sobre o bom e mau, ou seja, sobre o queconcorda ou no com a natureza. S que no incio da vida, por exemplo nonascimento, a concordncia com a natureza no ainda o bom, mas apenas oincio do bom. Uma criana ainda incapaz de linguagem e de razo incapaz daprtica do que bom. Ela apta ao mesmo quando alcana o uso da razo.Por isso Seneca prope uma escala entre seres vivos privados de razo e seresvivos dotados de razo mas ainda imperfeitos. Primeiro, em entes privados derazo jamais poder verificar-se o bem; segundo, em entes ainda sem razono pode neste momento verificar-se o bem; e, terceiro, naqueles que possu-em razo mas no de um modo perfeito, pode vir a ocorrer o bem mas atual-mente no existe. A natureza, a semente, a rvore, igualmente, possui algo debom, principalmente a fruta ou o trigo maduro. Por conseguinte, o bem sexiste na natureza totalmente desenvolvida: Ele envolve uma relao do indi-vduo com o todo. O bom indivduo cuida do todo esta poderia ser uma teseecologista, mas que envolve primariamente uma relao do indivduo bom com

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    a humanidade inteira e, assim, reciprocamente. Como toda natureza s reali-za o bem que lhe prprio quando consumada, assim no homem s existe obem quando a razo est nele completamente desenvolvida (alnea 11). Logo,em todos os seres vivos ou animais aos quais faltam linguagem e razo, tam-bm no existe o bem. Porque aqueles s podem apefeioar-se em suaespecificidade, mas no em relao ao todo. Seneca demonstra-o mediante arelao com o tempo: um animal s tem conscincia do presente; o passadoele s recorda quando este volta a ato, por exemplo, quando o animal reencetao incio de um caminho. O animal, principalmente, no tem nenhuma relaocom o futuro, enquanto em relao a ele o homem vive sob a forma da preocu-pao. Ento, pergunta-se Seneca, como um ente pode ter uma natureza per-feita se carece de uma familiaridade com o tempo, ou seja com o tempo emseu todo? A um animal sem linguagem faltam tambm ordem e plano. Mesmoque ele possua alguma perfeio de sua natureza, no possui o bem em senti-do absoluto, que s seres vivos dotados de razo possuem.

    Mas o homem se ilude ao supor que alcana esse desenvolvimento pelomero desenvolvimento ou adornamento de seu corpo, em que os animais [eno s eles, lembremos a frase evanglica: olhai os lrios do campo!) seavantajam sobre ele em todos os sentidos. O desenvolvimento prprio dohomem d-se ao nvel da razo, portanto, de uma razo ativa como em Kant.Tu s um ente dotado de razo. Que bem ento se encontra em ti? A razoperfeita (alnea 23). Assim, em parcial afinidade com Kant, para Seneca ohomem considera-se feliz quanto todo o contentamento brota da razo.

    Dessas observaes de Seneca deduz-se que a felicidade do homemno reside em viver apenas segundo a sua natureza especfica, mas no desen-volvimento de um acordo com a natureza no seu todo, isto , com a idia denatureza, ou seja, com a razo.

    3 UMA RAZO SEMINALMaximilian Forschner, em seu livro Die stoische Ethik (2. ed. 1995) analisa

    os dois conceitos de natureza envolvidos na frmula estica: primeiro de umanatureza universal (koine physis)), no sentido de um todo orgnico do mundo e,segundo, da natureza como estrutura especfica de coisas singulares. Nestanatureza especfica, considerada isoladamente, podemos encontrar estadosdeficientes, circunstncias desfavorveis e males. Mas do ponto de vista do

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    todo, todas essas coisas esto de acordo com a natureza, antes, um certograu de deficincia no particular necessrio economia e bem-estar do todo(Forschner, 1995, p. 161). Portanto, o moralmente mau, o contrrio naturezapode existir, de um lado, como elemento de um todo dotado de sentido e, deoutro, como disposio e ao responsvel. Porque a harmonia do todo for-ma-se de oposies, no possvel a virtude, segundo Crisipo, se no existe ovcio. O problema desta concepo que se a ao moral se desenvolve emliberdade e, portanto, independentemente da ordem objetiva do todo, ela correo risco de ser jogada a uma esfera subjetiva. Todavia, enquanto a natureza uma providncia que planeja e executa o destino, tambm a razo moral ativa, individualizada. Desta atividade do logos humano depende se ele alcanaa consumao, sua felicidade ou eudaimonia proposta pelo logos do universo sua natureza especfica. Escreve Forschner (1995, p. 164): O logos humano imperfeito enquanto suas atividades no formarem uma unidade sistemtica,ou enquanto ele limita a sua aspirao ao particular, estados e coisas, cujodomnio no esteja em seu poder.

    Ludwig Edelstein, no seu livro sobre tica estica, fala de uma razoseminal como princpio ativo atuando em todas as coisas particulares, unifi-cando-as e organizando-as. Esse princpio ativo, como energia ou fora, averdadeira natureza das coisas, ou seja, um elemento divino que como princ-pio vivo presente nelas atua tambm no mundo como um todo. Assim a or-dem no imposta desde fora, mas se encontra em sua prpria fora interna.Essa fora interna o logos, como poder de moldar as coisas em sua formacorreta, como o princpio de seu crescimento. A razo s quer realizar-se, este seu objetivo inerente s coisas e que, como desenvolvimento, s se completae razo em relao ao desenvolvimento do todo.

    Mas como que a moralidade pode concordar com a natureza? Nomediante um amour propre no sentido de philautia, mas no sentido de um amorde si enquanto autopreservao. Este cuidado pela autoconservao racio-nal. Como racional o homem desenvolve um plano de autopreservao, a razoprtica natural. O dever do homem, a essncia do humano, seguir em suavida esse princpio organizador. A nossa natureza ser racional. O altrusmosurge da mesma maneira como quando o homem, para poder seguir a nature-za do mundo, isto , do todo, tem de ser livre de paixes e s aceitar as emo-es geradas pela razo. A paixo no natural, o que natural a aoracional. O sbio vive de acordo com a razo e, nesta medida, tem todas ascoisas boas em comum; e assim, fazendo o bem aos outros, o faz tambm a si

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    mesmo. S os que no seguem a razo acreditam que o seu bem ope-se aobem de outros ou que, estritamente, uns so inimigos dos outros e que cadaum se isola na existncia pessoal. (Edelstein, 1980, p. 42). Por isso a razopresente nos indivduos a mesma em todos: Quando o homem mais elemesmo, menos ele mesmo e mais como todos os outros, de modo que acoisa mais individual, aquela que mais realiza o indivduo, a razo, a maisuniversal. (idem, ibidem). Por isso Edelstein v nos deveres esticos a verda-de do imperativo categrico de Kant. Trata-se de uma tica que a fundaode todo o humanismo posterior, e que encontra na existncia dos outros ademonstrao da irmandade comum de todos os homens (idem, p. 43). Enfim,segundo esse autor, a tica estica pode ser melhor explicada mediante suareferncia tica de Kant.

    4 CCERO E A FRMULA ESTICAEsta relao da tica de Kant com a tica estica mostra-se de modo

    eminente em Ccero, em cujo livro De finibus, livros III e IV, me basearei paraverificar essa relao entre natureza e razo proposta na frase de Kant. Numprimeiro momento esta relao quase no explicitada, em prol de um apa-rente naturalismo. Mas tudo na obra, principalmente no livro III, concorre paraexplicitar a relao de sua concepo do sumo bem com a frmula esticabsica.

    Ccero aponta duas formas de conformidade com a natureza, uma queno aspirvel por si mesma e de algum modo moralmente neutra, e umasegunda, identificada com o sumo bem, como uma forma de vida escolhidapela alma e que ele chama de concordante, com um fim que no externo sua prpria realizao, a realizao do que reto. A concordncia com anatureza tem como ponto de partida, vinculado prpria autoconscincia, oamor a si mesmo, sua autoproteo e conservao. Este nvel daautoconservao que domina a tica estica ser criticado por Kant comoinsuficiente do ponto de vista da razo prtica. Mas Ccero situa a concor-dncia com a natureza em vrios nveis: primeiro, concordante com a natu-reza que os pais amem os filhos. Este amor paterno o ponto de partidapara a abrangente comunidade do gnero humano: Disso resulta tambmque existe uma familiaridade natural de todos os homens entre si, de talmodo que um homem, porque um homem, no parece estranho a um ou-

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    11Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    tro homem. 6 Que a natureza humana se distinga de uma natureza instintiva evidenciado pelo pensamento de que o vnculo dos homens entre si superade longe o dos animais em prol de sua prpria espcie. Os homens so pornatureza destinados vida em comum, socializao e formao de Esta-dos (De fin., III 64). O homem chamado para uma cidadania mundial, pr-pria de sua natureza, onde o bem de todos precede o bem particular e ondeo que em proveito prprio age em prejuzo dos demais to culpado quantoum traidor da ptria.

    Esse carter aparentemente natural da adequao do homem a ummundo humano torna-se obviamente mais equvoco quando Ccero, apoian-do-se no argumento de que, do mesmo modo como nossos membros agemadequadamente ao seu fim ainda antes de concebermos esse fato, tambm anatureza vinculou e uniu os homens numa sociedade poltica antes que elesconcebessem sua utilidade, e assim tambm defendemos uma ordem jurdicanas relaes dos homens entre si, que negamos na relao dos homens comos animais. Se a presena de uma ordem jurdica nas relaes entre os ho-mens inexiste nas relaes entre homens e animais, isto significa que a confor-midade a uma ordem humana tem um sentido maior do que o de uma simplesconformidade a uma natureza animal (cf. De fin., III 67). Mas Ccero extrapolaessa relao de direito humanidade: da natureza do homem estabelecerrelaes de direito com todo gnero humano. O homem nasceu para cuidardos homens e proteg-los (III 68). A prtica da justia e injustia tem comoparmetro este direito humano universal a ser tratado simplesmente comohomem.

    Assim, querer viver em concordncia com a natureza significa necessa-riamente ter em vista o cosmos no seu todo e seu governo (cf.De fin., III 73). Arecuperao desse sentido global do sumo bem o essencial do livro IV do Definibus. A ele se ocupa enfim com Zeno, a quem se atribui a frmula ticaestica do viver em conformidade com a natureza. Antes se atribua a Zenoalgo semelhante ao que de Kant dissera Tittel, em sua crtica Fundamentaoda metafsica dos costumes, e comentado anonimamente por Kant na Crtica darazo prtica, de que ele no havia introduzido nenhum princpio novo na mo-ral, apenas uma nova frmula. De Zeno tambm se dizia que no introduziranada de novo na tica, alm de uma nova terminologia. Ccero agora querverificar que que Zeno trouxe de novo. Pois j antecessores dele, especial-

    6 Ccero, 1988, p.63. Nas pginas seguintes, citado como De fin., indicando-se o captulo emnmeros romanos e a pgina em nmeros arbicos.

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    mente Polemon (ca.315-265 a.C.), filho de Philostrato, chefe da Academia, se-ria o autor da frmula estica, de que viver de acordo com a virtude (katarete)significa ao mesmo tempo tempo viver de acordo com a natureza (kata physin).Zeno foi discpulo de Polemo (Polemo), que porm no vislumbrou nem de-senvolveu o potencial da frmula para os esticos.

    Segundo Ccero a frmula tem trs sentidos: primeiro, viver segundo osaber que se tem das coisas que ocorrem por natureza (cf. De fin., IV 15). Estaverso seria de Zeno, referindo-se ao reta (katrtoma), restrita aos sbios.Segundo, viver na observncia dos deveres mdios, sendo este um dever apro-ximativo, no perfeito, de que so capazes inclusive os tolos. Terceiro, viver nogozo das coisas que no naturais. Este foge do nosso alcance. A base dafrmula que toda natureza visa conservar-se, e a arte de viver consiste emconservar o que a natureza nos deu.

    Mas a natureza no produziu o homem, apenas esboou o seu incio,como uma esttua, que precisa ser acabada (cf. De fin., IV 35). Sabemos que ofim da razo a virtude, mas Ccero pergunta qual o sumo bem do homemtodo. Se no homem no houvesse outra coisa que precisasse ser acabado, ano ser um determinado movimento do esprito, portanto a no ser a razo,ento ele no teria outro objetivo que agir de acordo com a virtude, pois aconsumao da razo a virtude (cf. De fin., IV 35). Em que consiste o sumobem do homem todo? Primeiro, no bem de um corpo sem alma? Irrealizvel.Segundo, no bem de uma alma sem corpo? Ambas as posies so unilaterais.Terceiro, ambas as partes da alma e do corpo exigem cuidado. Todo ser vivotem um sumo bem prprio. No caso do homem, a natureza deixou-o desenvol-ver-se at a razo: Ela d sempre algo mais, de modo tal que aquilo com queela comeou ela jamais abandona (De fin., IV 37). Assim, p. ex., ela acrescen-tou a razo aos sentidos, mas sem abandonar a estes. Assim tambm a virtudeno pode se fundamentar se ela se refere s alma e desconsidera o todo, aoqual a conformidade natureza se refere e para o qual contribui (cf. De fin., IV41). Se a natureza s abarca a razo, ento o sumo bem apenas a virtude. Eo viver segundo a natureza implica, ento, afastar-se dela. Assim errneo pro sumo bem apenas na virtude.

    A virada na crtica aos esticos d-se quando Ccero argumenta que nose trata de aspirar ao conforme natureza, mas inversamente o conforme natureza - isto significa, em concordncia com a interpretao de Kant, o con-forme idia de natureza - que pe em movimento o aspirar e agir (cf. De fin.,IV 48). Ccero defende um progresso para a virtude anlogo paulatina aproxi-

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    mao kantiana, mas sem que ela inclua um progresso a partir do mal. Paracoroar esta parte, permito-me ler uma longa passagem do II livro do De finibus,em que a razo toma a primazia desse desenvolvimento:

    Logo, ns entendemos por virtude aquilo que constitu-do de tal modo que, com prescindncia de toda utilidadee sem nenhum prmio ou proveito, por si mesmo louv-vel. Do que a se trata deixa-se menos ler na definioque empreguei, conquanto isto j em certo grau seja pos-svel, do que, muito antes, no juzo concordante de todosos homens e nas aspiraes e realizaes dos melhores,que fazem muito a partir deste nico fundamento, de queconvm, de que certo e virtuoso, mesmo quando elesvem que eles no obtero nenhum ganho disso. Os ho-mens distinguem-se em muitas coisas dos animais, masprincipalmente em um ponto, de que eles possuem comodom da natureza a razo, um esprito aguado e vigilante,que com mxima velocidade pode tratar simultaneamen-te de vrias coisas e que de certo modo astuto; ele capaz de conhecer as causas e conseqncias dos fen-menos, produzir semelhanas, vincular o separado, vin-cular com o presente o futuro e finalmente projetar a es-trutura completa de uma vida em si conseqente. A mes-ma razo moldou o homem de tal modo, que o indivduoprocura a convivncia com os outros e concorda com elesmediante natureza, linguagem e costumes. Ele comeacom o amor famlia e aos seus, vai ento adiante e criaprimeiro uma comunidade com seus concidados, e en-to com todos os mortais: ele recorda-se, como Platoescreveu a Archita, que ele vo veio ao mundo para sis... (De fin., II 45)

    5 CONCLUSES KANTIANASA considerao da frmula estica desde a perspectiva kantiana da idia

    leva, se no a uma transformao, pelo menos a uma limitao do naturalismotico antigo. A tese de Kant, na Idia de uma histria universal desde um ponto de vistacosmopolita, de que a natureza, entendida a em dois sentidos, um emprico, em

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    14 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    que apresenta regularidades curiosas, como as dos casamentos, no entantofundvel cientificamente segundo princpios da razo pura, e uma naturezacomo Providncia, a natureza assim entendida guiada por uma idia: de quea natureza promove o desenvolvimento do homem na direo de uma socie-dade cosmopolita, baseada no Direito. A elaborao mais acabada desta pers-pectiva encontra-se elaborado em paz perptua e coroada na concluso daDoutrina do Direito, onde a paz declarada o sumo bem poltico. Trata-se deuma idia de cunho regulativo, mas praticamente constitutiva: ou seja, como agente pode em princpio realiz-la, se tem a obrigao de lutar por ela, inde-pendentemente do grau de aproximao que em relao a ela conseguiremosconquistar. O futuro da humanidade a paz, estruturada juridicamente.

    Procurei demonstrar em trabalho anterior que a razo kantiana coincidecom o conceito de humanidade, sendo por isso essencialmente socivel ecosmopolita. Nesse estudo chamei a ateno para a fundamentao racional,em Kant, da tendncia do homem sociedade, numa espcie de inverso daperspectiva antiga, baseada numa inclinao natural mesma. Nele escrevi:

    O homem no originariamente social, mas socivel: graas sua capacidade de impor-se uma obrigao ra-cional que o homem capaz de sociedade. A racionalidade uma capacidade de sociedade e idntica sociabili-dade. Pela capacidade de obrigar-se, responsabilizar-se,ser cidado, o homem tem condies de vida coletiva. Acapacidade de vida em sociedade fundada no Direito acapacidade de agir segundo regras e princpios de convi-vncia. Sem essa capacidade e disposio de deixar-seguiar por eles, a sociedade impossvel. Com isso ficaclaro o sentido da sociabilidade legal: ela a capacidadee disposio a deixar-se guiar por princpios do Direito.(Rohden, 1994, p.104)

    Em relao a um outro texto, Presumvel incio da histria humana (1786), deKant, destaquei a origem moral da instituio da sociedade:

    O ltimo passo da razo o passo anterior referiu-se aosentido da folha de parreira, de recusa, de idealizao, depassagem do apetite animal ao amor, e do agradvel ao

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    15Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    belo [passo] que elevou o homem totalmente acima deuma sociedade de animais e, portanto, a uma sociedadeentre homens, deu-se quando o homem concebeu-secomo fim e no como simples meio (natural), a partir doque cada homem pde reconhecer-se em relao ao ou-tro como igual participante dos dons da natureza. Estalimitao que a razo introduziu na vontade de cada umcom respeito aos outros homens, [escreve Kant] foi, muitomais que a inclinao e o amor, necessria instituioda sociedade.7 Uma limitao da razo de um homemno utilizar o outro como meio ou como simples natureza , com vistas igualdade de direitos de cada um, condi-o necessria da instituio da sociedade. Portanto, aigualdade entre os homens e a possibilidade da socieda-de assentam no sobre uma razo pragmtica, mas sobreuma razo prtica, que v cada um na perspectiva do fimterminal da liberdade, e a partir da qual nenhum tem odireito de dispor do outro a seu bel prazer. pela razoque o homem deixa o suposto paraso terrestre, passan-do da rudeza humanidade, trocando o guia do instintopelo da razo, o tutoramento da natureza pelo estado deliberdade. (Rohden, 1994, p. 104-105)

    Em resumo, o pleno desenvolvimento das disposies humanas numestado cosmopoltico uma idia.

    Esta idia foi o acrscimo kantiano necessrio explicao do sentidoda frmula estica, porque o viver em conformidade com a natureza significa-va uma forma de conviver no todo do mundo, o mundo correspondente aologos greco-romano. O humanismo estico, cuja tica partia do reconhecimen-to de todo outro simplesmente por ser homem, desenvolveu-se numa pers-pectiva tico-poltica, que concentrou a sua formulao acabada no humanismotico-poltico de Kant. Por duas razes: primeiro, porque segundo PeterCoulmas, em Weltbrger. Geschichte einer Menschheitssehnsucht (1990), no se pro-duziu at hoje nenhum acrscimo notvel concepo cosmopolitica estica;segundo, porque a criao das Naes Unidas, construda aps a ltima gran-de guerra pelo conjunto das naes da terra por uma humanidade ansiosa depaz, uma aplicao quase literal do texto kantiano de 1795. O Estoicismo

    7 KANT, i. Mutmasslicher Anfang der Menschengeschichte, A 11, Ak v.VIII, p.114.

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    16 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    formulou um conceito de cosmopolitismo que se tornou determinante [ouparadigmtico] para os sculos helensticos e o Imprio Romano. Fundamen-talmente novos elementos de pensamento, capazes de transformar a estrutu-ra interna ou a conseqncia postulativa, jamais foram depois acrescenta-dos. (Coulmas, 1990, p. 113). Ele cita a seguir um pensamento do imperadorromano (161-180) e filsofo estico Marco Aurlio, em nada diferente das for-mulaes de Plato e Ccero, mas de forte apelo intuitivo: Ns homens fomoscriados para a cooperao como os ps, as mos, as plpebras e as arcadasdentrias superior e inferior (apud Coulmas, p. 118). O apelo intuitivo do textofavorece-nos a compreenso de que a cooperao humana, a que a tica nosobriga, uma necessidade to forte como a da cooperao dos ps, das mos,das plpebras, dos dentes e, enfim, podemos acrescentar, da natureza e darazo entre si.

    O texto da Idia de uma histria universal, de Kant (2003, p. 6), afirma, emsua terceira proposio, que a natureza quis que no homem tudo dependessede sua razo, inclusive sua felicidade. A razo , pois, a base tanto do desen-volvimento de sua natureza como da sociedade e da felicidade. E graas aessa base racional, o homem precisa do Direito tanto quanto precisa do outro. diferena da razo estica, a razo kantiana no se reduz a meio daautoconservao humana, mas se eleva a princpio de julgamento do que bom ou mau para ela. O que com isso nos interessa ressaltar que a interpre-tao da frmula estica, viver em conformidade com a natureza, enquanto entendida pelos esticos no sentido de conceber-se num cosmos como formade vida tico-poltica, presume a idia platnica em sua verso kantiana. Porisso repito a frase de Kant: Viver em conformidade com a natureza significaviver no em conformidade com os instintos da natureza, mas segundo a idiaque se encontra no fundamento da natureza. Significa, enfim, pensar a natu-reza como logos. O cosmos antigo era um mundo humano, esttico. Ccero eKant pensaram-no como mundo moral, ou seja, como tarefa de todos ns emconjunto, expressa pela idia prtica.

    REFERNCIASBITTNER, Rdiger. Mximas. Studia Kantiana. Rio de Janeiro: Sociedade Kant Bra-sileira, n 5, p.7-25, nov. 2003.

    CCERO, Marcus Tullius. ber die Ziele des menschlichen Handelns. De finibus bonorum

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    17Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

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    Endereo/AddressProf. Dr. Valerio Rohden

    Universidade Luterana do Brasil/ Curso de FilosofiaAv. Farroupilha, 8001 Prdio 11, Sala 27

    92425-900 Canoas/RS BrasilE-mail: [email protected]

  • Texto revisado para publicao, em razo de doena do autor, pelo prof. Ms. Fausto dos SantosAmaral, do Curso de Filosofia da Universidade Luterana do Brasil. Agradecemos a gentileza doautor em permitir tal trabalho.

    Imanncia e TranscendnciaImmanence and Transcendence

    EDVINO A. RABUSKEDoutor em Filosofia. Professor na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

    RESUMO

    Sob o ttulo Imanncia e Transcendncia, inspirado em Bla Weissmahr, so expostos,antes, alguns pressupostos filosficos (lgicos e ontolgicos) do conhecimento de Deus. Apartir dos quais, diante do debate da tradio, indicando os problemas que a questo apre-sentada envolve, o autor pretende mostrar de que maneira podemos falar do inefvel.

    Palavras-chave: Filosofia e Teologia, lgica, linguagem, imanncia,transcendncia.

    ABSTRACT

    With the purpose to discuss some issues related to the ideas of immanence andtranscendence, the author first presents some philosophical presuppositions (logicaland ontological) of the knowledge of God. From that, considering the traditionalapproaches and pointing to the problems involve in the question, the author tries toshow how we may speak of the ineffable.

    Key words: Philosophy and Theology, logic, language, immanence,transcendence.

    Theophilos Canoas v.4, n.1/2 jan./dez. 2004 p.19-31

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    1 INTRODUO1

    Durante toda a Histria da Filosofia, at o comeo do sculo XX, a reli-gio era um dos seus temas mais discutidos. Pode-se mesmo dizer que a exis-tncia e a natureza de deus era a questo central. Filosofia e religio eramirms rivais; rivais, mas inseparveis. No se entende, por exemplo, Kant eHegel, sem a luta contra as concepes religiosas vulgares, consideradas su-persties, e contra as teologias oficiais, consideradas dogmticas.

    No sculo XX a rivalidade se tornou velada e indireta. No h mais atu-almente ateus militantes o ltimo foi Sartre. Nos livros e nas aulas de Filoso-fia se elimina o problema de Deus: se queres ouvir falar de Deus, v a umaigreja e assista a uma missa!. Muitos professores, mesmo catlicos, enquantofilsofos se dizem agnsticos.

    O desconhecimento mtuo de Filosofia e de Religio prejudicial a ambas.A filosofia ou se reduz a uma Teoria das Cincias e da Linguagem, que alis osprprios cientistas dispensam, porque j tm o seu mtodo; ou se reduz tica, com interminveis discusses acerca da fundamentao ltima. A reli-gio, por sua vez, se torna dogmtica e cada vez mais fantica. Doutro lado, inegvel, por exemplo em Carnap e em Popper, o ataque indireto Religio,sob o ttulo de Metafsica. Mas ento, conheam melhor o seu adversriopara no combater uma caricatura!

    A Filosofia um assunto muito difcil, e que s se penetra com muitoesforo e longo flego, sem nunca chegar a resultados definitivos. uma mar-cha pelo deserto, com pequenos osis, mas sem nunca chegar terra prome-tida.

    A principal dificuldade reside nisto; que sempre est em jogo o todo. Oprocedimento no linear, mas circular. O discurso filosfico no propria-mente um encadeamento de idias(Descartes), mas uma rede, um tecido.Ou se compreende tudo, ou nada.

    Antes de expor as minhas idias sobre imanncia e transcendncia, vouacenar a alguns pressupostos filosficos do conhecimento de Deus. A ques-to da existncia ou no existncia de Deus se decide antes de ser colocadaexplicitamente. Com isto tambm ficam marcados alguns fatores do atesmo e

    1 Este artigo inspirado em : WEISSMAHR, Bla. Teologia Natural. Barcelona: Herder, 1986.

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    do indiferentismo religioso. Vou acenar a quatro pressupostos, que secomplementam mutuamente, circularmente.

    1 A experincia transcendentalA experincia a forma de conhecimento em que a realidade est ime-

    diatamente presente conscincia. Para muitos, s a experincia sensvel temimportncia para o conhecimento, seja como fonte (empirismo), seja comocritrio de verificao ou comprovao de enunciados (neopositivismo). A ex-perincia sensvel imediata, explcita e voltada a um objeto particular. Mas,por ocasio da experincia sensvel, necessariamente fao uma experincia im-plcita, atemtica, do ser, do absoluto, que denomino experincia transcendental(o termo de Karl Rahner, com evidente ponta antikantiana). uma experin-cia imediata-mediata: imediata, porque atinge realmente o absoluto; mediata,porque isto s ocorre por ocasio da experincia sensvel de objetos contin-gentes. A base antropolgica do com(com-experienciar) a constatao deque os sentidos, o entendimento (Verstand) e a razo (Vernunft) sempre ope-ram conjuntamente a separao abstrata.

    Contra Kant: a distino entre o a priori e o a posteriori deve ser matizada.Tambm os primeiros princpios do ser e do pensar se experimentam ou com-experimentam de alguma forma. No construmos o real, este se mostra.Tambm o concludo por raciocnio, quando se trata do real (enunciados exis-tenciais) pertence ao contedo da nossa experincia.

    Antes de falar expressamente de Deus, deve-se descobrir o absolu-to ou o incondicionado da verdade, do valor, do sentido da vida, etc. Aoafirmar algo, suponho que o dito seja verdade e, ao sup-lo, suponhoalgo incondicionado. As asseres explcitas certamente so relativas,falveis. Mas o fato de que ns podemos saber prova a presena do abso-luto no nosso conhecimento. A liberdade supe apreender qualquer ob-jeto particular como um valor relativo; ora, apreender o relativo comorelativo supe a abertura ao incondicionado, fundamento de qualquervalor e da responsabilidade moral. Buscamos o sentido da vida. Ora, asatuaes particulares s tm sentido quando o todo a que pertencemtem um sentido, quando participam dum sentido ltimo, que garante har-monia e plenitude.

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    Isto importante para o nosso tema. Todo o conhecimento de deus seefetiva sobre a experincia de Deus. Mas esta no direta, a modo duma intuiointelectual, mas por ocasio do conhecimento dos entes mundanos, trans-cendendo-os. O conhecimento de Deus o desenvolvimento metdico daexperincia transcendental. Muitos, ateus e crentes, julgam que se chega fem Deus por influncia de fora (bom exemplo, educao, etc.), ou atravsduma experincia religiosa, carregada de emoo (carismtica). Como mui-tos no fazem tal experincia, no se interessam por Deus; dizem que, se Deusmorre(na sua vida), no deixa saudades.

    2 Argumento bsico: o princpio da no-contradio performativaO princpio da no-contradio performativa (no semntica ou lgi-

    ca, mas pragmtica) probe que haja uma contradio entre o ato de afir-mar e o contedo proposicional. Enunciados metafsicos so aqueles queno posso negar sem me contradizer performativamente. Sei algo, exis-te o absoluto, conheo a realidade em si mesma: quando nego um des-ses enunciados, ainda o estou afirmando tacitamente. Que enunciado ver-dadeiro aquele que tambm poderia ser falso, s vale do contingente.Scrates est sentado pode ser verdadeiro ou falso. Mas h enunciadosque nunca podem ser falsos. Nadamos no absoluto, embora isto nodeve ser esquecido a sua explicitao sempre relativa, contingente emesmo falvel.

    Um dos fatores do atesmo o relativismo, que est amplamente di-fundido. Diz-se o seguinte: quando samos dos limites metodologicamentetraados das Cincias particulares, e tentamos construir uma teoria globalsobre o todo da realidade, da histria, da vida humana, camos necessaria-mente no relativismo, no ceticismo, ou ento no irracionalismo, noemotivismo.

    Esquece-se que o sujeito s pode conhecer o relativo como relativo, ocontextual como contextual, o subjetivo como subjetivo, sobre o pano de fundo dumconhecimento implcito do absoluto, do vlido universal e necessariamente.

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    3 Articulao lgico-lingustica: dialticaimplcito-explcitoComo j foi insinuado no item anterior, o nosso conhecimento e a nossa

    linguagem se movem em dois nveis: o explcito o claro, o distinto, o objetivvel,o abstrato. Implcito o apenas com-experienciado, o comconhecido, masque se refere ao real em toda a sua concretude, ao incondicionado que conhecido simultaneamente em cada conhecimento, ao horizonte. Entre am-bos os nveis h uma dialtica, no sentido de complementaridade. O indizvelexplicitamente tende a dizer-se, sem nunca consegui-lo de todo, mediante aaluso, a metfora, o smbolo, a analogia. O Positivismo, o Neo-Positivismo, aFilosofia Analtica s reconhecem um nico nvel do conhecimento e da lin-guagem como cognitivamente relevante. Clebre a afirmao de Wittgenstein:O que se pode dizer se pode dizer claramente; acerca do que no se podedizer claramente se deve calar. Mas ele mesmo fala do mstico que oesttico, o tico e o religioso. O positivismo leva ao secularismo, portanto aoatesmo. Mas o fator principal do atesmo no so as teses de Feuerbach, deNietzsche, de Freud, de Sartre e outros, que poucos conhecem a fundo, mas amentalidade cientificista: que somente as Cincias e a Tecnologia fornecem clare-za, certeza, segurana e salvao.

    Portanto, um dos pressupostos do conhecimento racional de Deus umaconcepo ampla e profunda da razo. A razo mais do que a capacidadedum conhecimento exato e expresso com claridade conceitual. Devo trabalharem dois nveis: procurar o mximo de clareza e, ao mesmo tempo, alimentar aminha conscincia com os contedos mais ricos, profundos e mesmo tene-brosos, inspirando-se na Mitologia, no Romantismo, no Existencialismo, naFenomenologia da Religio, etc. At a Psicanlise, com sua semntica de pro-fundidade, d que pensar...

    4 Princpio lgico-ontolgico: a analogia do serAqui chegamos ao pressuposto filosfico mais importante do conheci-

    mento racional de Deus, resumo dos pressupostos precedentes. decisivopara o nosso tema: imanncia e transcendncia.

    O conceito de ser o mais vazio ou o mais pleno: segundo Hegel, nem mais nem menos do que nada. Para Toms de Aquino, o conceito

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    mais pleno: o ser a perfeio fundamental. Ambos tm razo. No plano doexplcito, ser o conceito mais pobre, pois explicitamente no diz se realou possvel, se material ou espiritual, se todo ou parte, se vivo ou morto,etc.; implicitamente, porm, abrange tudo, pois tudo ser, como sugere aexperincia transcendental e confirma o princpio da no-contradioperformativa.

    Se levo a srio a minha experincia, em toda a sua extenso e profundi-dade, devo dizer que h graus de ser: anorgnico, orgnico, espiritual, contin-gente, absoluto, etc. Para as Cincias objetivantes e neutras, fato fato; noh mais fato ou menos fato. Na viso filosfica, posso crescer no ser,autosuperar-me, aproximar-me da perfeio infinita no ser.

    Os graus de ser, em certo sentido, so quantitativos, o que se exprimepela idia de participao o finito participa do infinito. Mas, doutro lado,entre um grau menor e um grau maior h um salto qualitativo e mesmo umsalto substancial. isto que se exprime pela analogia.

    A analogia se refere ao conhecimento. Se a diferena de graus fossesomente quantitativa, estaramos no conhecimento unvoco; se fosse somen-te qualitativa, estaramos no conhecimento equvoco. O conhecimento anlo-go une o quantitativo e o qualitativo.

    Na base do conhecimento analgico est a analogia do ser. Os entes soanlogos. Aristteles, no Tratado das Categorias, fala de coisas sinnimas,homnimas e parnimas. Coisas sinnimas tm o mesmo nome e a mesmaessncia, por exemplo, animal tanto o irracional como o racional, no mes-mo sentido de essncia genrica. Coisas homnimas tm apenas o mesmonome, mas essncia diferente, por exemplo, co, dito do animal e da conste-lao. Coisas parnimas tm uma essncia (e um nome) em parte coincidente,em parte diferente, por exemplo, gramtica e gramtico. Mas Aristtelesno chegou ao conceito mais profundo de analogia, porque, segundo ele, en-tre o mundo e deus h uma ruptura total (chorisms).

    2 IMANNCIA E TRANSCENDNCIADeus transcendente e imanente ao mundo. transcendente porque tem

    propriedades radicalmente contrapostas aos seres mundanos. Deus o fun-

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    damento do seu ser, infinito, simples, imutvel, nico... causa primeira detudo quanto existe, o criador de todas as coisas pela comunicao do ser.Mas tambm imanente, porque entre quem comunica o ser e quem o recebe,entre causa e efeito, entendidos metafisicamente, deve haver uma ntima co-munho do ser, at uma identidade, mas sem negar a diversidade radical. Dis-se S. Agostinho: Espero que quem pensa espiritualmente j ter visto claroque nenhuma s natureza pode ser oposta a Deus (De Fide et Symbolo 7; PL40, 185). E Toms de Aquino escreveu: Enquanto a coisa tem ser, Deus temque estar presente nela (...) e certamente do modo mais ntimo (SumaTheologica I q. 8 a.1).

    Usando termos mais rigorosos, vamos colocar o nosso problema emtoda a sua agudeza: Deus totalmente distinto do mundo e, por isto mesmo, onipresente a este mundo. Deus no se distingue do mundo como uma coisase distingue da outra. Mas o que S. Agostinho entende por pensar espiritual-mente. Em todo caso, o pensamento humano dificilmente suporta a unidadedos contrrios, a coincidentia oppositorum(na expresso de Nicolau de Cusa).Por isto, na histria do pensamento, ou se acentua a transcendncia ou aimanncia. O desmo e o pantesmo aparecem continuamente.

    1 Desmo e pantesmoO desmo foi defendido explicitamente por um grupo de iluministas ingle-

    ses e franceses, nos sculos XVII e XVIII. Simplificando, esta a concepo:Deus criou o mundo e depois se retirou. O que negado a Revelao divina(Bblia), a Providncia divina, a onipresena de Deus, enfim, a imanncia. Deus transcendente, e acabou; o mundo mesmo deve resolver os seus problemas.Deus imaginado segundo o modelo dos entes mundanos, com a nica dife-rena de ser o ente supremo. A transcendncia entendida, mais ou menos,como separao espacial.

    Apesar das crticas (telogos cristos, Kant, Hegel e outros), esta repre-sentao ainda hoje est amplamente difundida; a concepo vulgar, aceitatacitamente por muitos crentes. o primeiro passo para o atesmo, passo quemuitos no do abertamente, por razes extra-filosficas e extra-teolgicas:insegurana psicolgica, medo de decepcionar parentes e amigos, medo deperder o emprego (de professor, de proco, etc.).

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    O pantesmo um erro mais filosfico. A realidade, na sua essncia, deveformar uma unidade, e todo sistema filosfico , duma forma ou doutra, ummonismo, de que o pantesmo a expresso religiosa. O universo se identificacom Deus ou flui necessariamente dele. Deus deve ser impessoal. Um pantestaassumido SPINOZA: Deus a nica substncia absoluta e o mundo e osentes particulares so meras modificaes.

    O politesmo (atualmente professado em vrias correntes do Espiritis-mo) uma mistura ambgua de desmo e de pantesmo. Os deuses, no plural,dum lado, so entes supramundanos elemento desta. Doutro lado, neles semanifesta uma nica realidade misteriosa elemento pantesta.

    2 Pressupostos ontolgicosComo pensar isto: um ente pode ser imanente e transcendente a outro,

    se se leva a srio os conceitos imanente e transcendente? Para o nossoproblema, devemos radicalizar a pergunta: possvel pensar isto: quanto maisidntico, tanto mais diferente? Parece ocorrer um delito flagrante contra oprincpio da no-contradio, regra de todo pensar lgico.

    Como vimos acima, o pensamento humano se move em dois nveis: oabstrato ou unvoco e o ontolgico ou analgico. Quando se pensa a unidadee a diversidade segundo o seu conceito abstrato, ento elas se excluem. Ou idntico, ou diferente. Quanto mais iguais so dois entes, menos diferentese vice-versa. Isto vale do conhecimento das coisas, coisista. Como os antigose os medievais tomavam, sem se dar plena conta, o conhecimento das coisasmateriais por modelo de todo conhecimento, no conseguiram resolver o pro-blema central da Ontologia, o problema do uno e do mltiplo. Mas no campoespiritual e intersubjetivo, unidade e diversidade se condicionam mutuamente. Veja-mos quatro pontos, que s vamos circunscrever, sem descrever e analisar.

    1) O corpo prprio: Tenho um corpo e sou o meu corpo. O corpo objeto de conhecimento e faz parte do sujeito do conhecimen-to. o elo de ligao entre o eu e o mundo, faz que eu seja ser-no-mundo. Vivo o meu corpo como unidade e, ao mesmo tem-po, como distinto do eu: a mim que doem os ps, a cabea...embora ps e cabea sejam membros diferentes.

    2) O conhecimento identidade e diferena. Quando conheo uma

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    rvore, torno-me rvore, mas sem mesclagem fsica. Pelo con-trrio, quanto mais me uno ao objeto, tanto mais me diferen-cio dele. A identidade em ato supe a diferena do sujeito emsi e do objeto em si. Aristteles vislumbrava isto, ao dizer: Aalma , de alguma maneira, tudo.

    3) O amor identidade e diferena. Quanto mais me do ao outro,procuro o seu bem e me identifico com ele, tanto mais descu-bro a minha identidade, diferente da identidade do outro. Iden-tidade no homogeneidade; diferena no heterogeneidade.A sabedoria da lngua latina, distingue entre idem e ipse, entremesmidade e ipseidade. A unio diferenciadora do amor no umaidia potica(no sentido, vulgarmente errado, de pura fico),mas uma realidade que todos podem experimentar e que al-guns pensadores tentaram descrever (Husserl, George H. Mead,Teilhard de Chardin e outros)2 .

    4) Para a f crist a SS. Trindade a identidade absoluta (natureza)dos absolutamente diferentes (pessoas) oposio absolutados absolutamente idnticos. Este dogma cristo no teve in-fluncia na Filosofia, porque se julgava ser assunto exclusivoda Revelao bblica com exceo de Nicolau de Cusa.

    O mtuo condicionamento de unidade e diferena no somente umassunto da experincia ou da f, mas tambm assunto do conhecimentofilosfico. Para isto basta manter firmes as duas intuies de Aristteles: a) Oser o comum a todas as coisas; b) o ser se diz de muitas maneiras. Os entesse identificam e se diferenciam no ser. Cada ente bipolar; nenhum elemento sepode subordinar ao outro, pois se condicionam mutuamente.

    A bipolaridade interna do ser dos entes cresce com o seu grau de ser.Quanto mais perfeito um ente, tanto mais participa do que comum atodos os entes; portanto, tanto mais se identifica com os outros, tanto mais imanente em todos os outros. E, ao mesmo tempo, tanto mais ele mesmode modo prprio, tanto mais se distingue dos outros e os transcende e transcendido por eles.

    2 A exposio mais completa desta temtica encontra-se em Paul Ricoeur. O si-mesmo como um outro.Campinas: Papirus Editora, 1991.

  • THEOPHILOS - REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA

    28 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    Mas preciso distinguir. H uma identidade que uma perfeio: iden-tidade em virtude do ser comum; e uma identidade que imperfeio: a iden-tidade por falta do modo individual de ser ser mera repetio de outro.Correlativamente, h uma diferena que uma perfeio: a diferena em virtu-de do modo individual de ser; e uma diferena que uma imperfeio: por faltado ser comum. Para os antigos e os medievais, afora o dogma da SS. Trindade,a diferena, a multiplicidade sempre era considerada como imperfeio. O idealseria que tudo fosse idntico o monismo, de que Parmnides foi o maiordefensor.

    3 Imanncia e transcendnciaDeus est imanente em tudo, at a identidade com aquilo que dele rece-

    be o ser. A criao a comunicao do ser: Deus comunica o seu ser, mas demodo parcial (fora da SS. Trindade); ao mesmo tempo, transcende da manei-ra mais perfeita tudo quanto existe por participao.

    Mas h aqui dificuldades quase insuperveis. Isto porque a tenso infi-nita e a unidade mais ntima so absolutamente singulares e nicas. A relaodos entes mundanos com deus no algo posterior sua existncia j consti-tuda, mas posta por Deus; uma relao transcendental (omnens est relatum).

    A identidade de Deus com a criatura significa que Deus, sua maneiradivina, criatura. A identidade da criatura com Deus significa que ela divina,mas de modo limitado. O mundo tem uma transcendncia face a Deus nestesentido: o ser do mundo, recebido de deus, realmente o ser prprio do mun-do. Deus quando d, d mesmo.

    Tudo isto pode ser interpretado de modo pantesta, se no se atende aoprincpio fundamental de que quanto maior a unidade, tanto maior a diver-sidade. Dependncia de Deus e autonomia face a ele crescem na mesma medida.Portanto, nem pantesmo, nem desmo.

    4 CONSIDERAES FINAISDe tudo que acabamos de dizer, de modo mais sugestivo do que

    discursivo, podemos tirar duas concluses.

  • IMANNCIA E TRANSCENDNCIA

    29Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    1 O paradoxo fundamental e sua fecundidadeSegundo a concepo aqui proposta, todos os paradoxos da Filosofia

    remetem a um paradoxo fundamental: Que no ser os entes coincidem e sediferenciam. E no posso separar os aspectos, como se os entes em partefossem idnticos e em parte diferentes. So totalmente idnticos e totalmentediferentes.

    Deve-se acentuar com toda a energia: Isto no pensvel, se pensar formar idias claras e distintas, objetivas e unvocas. Mas no se pode tirar aconcluso de Habermas (1990): devemos desenvolver um pensamento ps-metafsico, porque a Metafsica, depois de dois e meio milnios, no conse-guiu resolver o seu problema central, o do uno e do mltiplo. O pensamentocategorial e unvoco no o nico nvel da racionalidade. Alis, o prprioHabermas afirma a necessidade de uma razo mais ampla, mais abrangente,que envolve a subjetividade, a tica, a pretenso da verdade, de correonormativa e de sinceridade. Eu acrescentaria: uma razo que procura dar con-ta da experincia humana em toda a sua profundidade. Se com isto a razo seaproxima da poesia e da Religio, que mal faz isto? Infelizmente, esta a nossalimitao: o que se ganha na preciso, se perde na profundidade. Isto no um convite para a preguia intelectual. preciso procurar o mximo de rigor,contanto que no seja s custas do contedo.

    Se se aceita o paradoxo fundamental, ento possvel dar uma respostarazovel a muitos problemas, que retornam contnua e teimosamente no cur-so da histria. No plano filosfico: o problema do uno e do mltiplo, daimanncia e transcendncia; nos tempos modernos, a disputa autonomia-heteronomia, o conceito de intersubjetividade, a possibilidade da evoluocomo auto-superao e outros. No plano teolgico: a compreenso da SS.Trindade, o conceito de criao; nos tempos modernos, a disputa razo natu-ral sola fide, a relao entre liberdade e graa; atualmente a disputahorizontalismo do engajamento tico verticalismo duma espiritualidade ms-tica, e outros, sem falar da controvrsia desmo-pantesmo.

    2 Podemos falar do inefvelAqui h problemas muito srios. Quem no os reconhece e continua

    ensinando o catecismo para crianas, ou continua preso a certos manuais deTeologia Natural, est, sem o querer, fomentando o atesmo. Mas tambm

  • THEOPHILOS - REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA

    30 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    peca quem insiste tanto na inefabilidade de Deus, quem repete, tanto sei queno sei nada, que o ouvinte ou leitor acaba dizendo: Se no sabemos nada deDeus, vai ver que Ele nem existe!

    Todas as afirmaes sobre Deus so falsas para quem somente conside-ra vlida e confivel a linguagem objetiva e exata. O fundamento da linguagemsobre Deus, origem e fim ltimo. Deste fato deriva o carter dialtico da lin-guagem sobre Deus. Toms de Aquino fala duma trplice via: da afirmao,da negao e da superao ou elevao.

    Afirmao: De Deus posso predicar tudo que positivo, que valor ouperfeio, porque entre causa e efeito necessariamente h uma certa identida-de.

    Negao: No discurso teolgico devo excluir: a) Tudo que um mal (p.ex. a cegueira); b) todas as perfeies que incluem essencialmente a finitude(p. ex. o corpo); c) a maneira finita como as perfeies, em si mesmas puras, serealizam no finito (p. ex. o nosso modo de ser, de conhecer, de amar).

    Superao: Ao negar a forma finita da perfeio, esta se transforma des-de o mais ntimo. Cada predicado aplicado a Deus conserva, e ao mesmotempo, muda a sua significao originria, j que identidade e diferena no sepodem separar. Portanto, nem a univocidade da afirmao, nem a equivocidadeda negao, mas o salto dialtico para a sntese da analogia. A negao noempurra ao indeterminado, mas desperta o conhecimento atemtico da pleni-tude do ser.

    Mas a linguagem especulativa da Filosofia e da Teologia insuficiente.Ela deve ser entrecruzada com a linguagem simblica, para que se interanimem.A metfora a analogia do poeta, a analogia metfora do filsofo e do te-logo. Escrevi em outro lugar: A Ontologia, empregada na Teologia, assenta napredicao de termos transcendentais: Deus o ser subsistente, a verdade, obem, a inteligncia infinita, etc. A metfora assenta na predicao de significa-es que trazem consigo o seu contedo material: Deus o meu rochedo,o poder do seu brao, Eu sou o caminho, .... So dois discursos diferentes,duas linguagens. Se a Teologia quer ser Cincia, deve usar conceitosespeculativos, que exprimem perfeies puras. De outro lado, se no quer serum discurso abstrato, alheio experincia humana, deve debruar-se incansa-velmente sobre a linguagem metafrica da Bblia (Rabuske, 1994).

    Isto se justifica pela unidade interna do conhecimento dos sentidos, do

  • IMANNCIA E TRANSCENDNCIA

    31Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    entendimento e da razo. Mas ambas, a linguagem especulativa e a simblica,s tm poder na medida em que se baseiam sobre e experincia; tratando-sede Deus, sobre a experincia transcendental.

    REFERNCIASHABERMAS, Jrgen. Pensamento Ps-Metafsico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1990.

    RABUSKE, Edivino. Filosofia da Linguagem e Religio. Porto Alegre: Edipucrs, 1994.

    RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus Editora, 1991.

    WEISSMAHR, Bla. Teologia Natural. Barcelona: Herder, 1986.

    Endereo/ Address:Universidade Luterana do Brasil

    Curso de FilosofiaAv. Farroupilha, 8001 Prdio 11 Sala 27

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  • A Estratgia Cartesiana nasMeditationes1

    The Cartesian Strategy on the Meditationes

    JUAN A. BONACCINI Doutor em Filosofia (UFRJ/Freiburg i. Br.), Professor do Departamento de Filosofia e Vice-Coordenador do

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia da UFRN.

    RESUMO

    O propsito do trabalho consiste em esclarecer minimamente a relao queexiste entre os aspectos histricos, teolgicos e epistemolgicos que norteiam o pro-jeto cartesiano de fundar a cincia na metafsica. Em primeiro lugar, apresenta-se umainterpretao histrica das razes que levam Descartes a encetar sua empresa a partirdo mtodo da dvida e da hiptese de um gnio maligno que me engana. A seguir, osprincipais passos da estratgia cartesiana so descritos e analisados. A tese defendida a de que Descartes procura a certeza da verdade do conhecimento a partir da hip-tese de uma incerteza absoluta. Sugere-se que tomando como base a possibilidade doDemnio me enganar o tempo todo Descartes mostra a necessidade de uma verdadefundada ontologicamente em Deus (ordem do ser) mas justificada epistemologicamentea partir do Cogito (ordem do conhecer).

    Palavras-chave: Descartes, metafsica, certeza.

    1 Texto lido em Natal no Caf Filosfico/II. O trabalho vai dedicado a Raul Landim, que me ensi-nou a ler Descartes, e certamente vai dizer que no aprendi o suficiente quando o ler.

    Theophilos Canoas v.4, n.1/2 jan./dez. 2004 p.33-46

  • THEOPHILOS - REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA

    34 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    ABSTRACT

    The purpose of this work is to clarify minimally at least the relation between thehistorical, theological and epistemological aspects which guide the Cartesian projectof founding science on metaphysics. First, it is presented a historical interpretation ofthe motives that lead Descartes to conduct his undertaking from the method of doubtand from the hypothesis of a deceiving malignant Genius. Second, the main steps ofthe Cartesian strategy are described and analyzed. The thesis here defended is thatDescartes search for knowledge certainty from the hypothesis of an absolute uncertainty.It is suggested that, taking as foundation the possibility of the Demon deceive me allthe time, Descartes shows the necessity of a truth founded ontologically on God (theorder of being), but justified epistemologically on the Cogito (the order of knowing).

    Key words: Descartes, metaphysics, certainty.

    GUISA DE INTRODUOMuita gente conhece os textos de Descartes, pelo menos os mais lidos,

    o Discours de la Mthode, as Meditationes de prima philosophia, os Principia philosophiae,asRegulae ad directionem ingenii. Mas poucas vezes se atenta para o fato de que umhomem de cincia como Descartes esteja preocupado em erigir uma metafsicae fundament-la de modo ltimo como a base necessria de todas as cincias.Ignora-se por que um cientista como Descartes cr ser imperioso demonstrara existncia de Deus, a distino essencial entre corpo (divisvel) e a alma(indivisvel) e a possibilidade real de um conhecimento certo e indubitvel acercados corpos e suas relaes. Dois problemas, relacionados entre si, so res-ponsveis por essa preocupao de Descartes: a condenao e subseqenteretratao de Galileu, que despertou o horror cartesiano perante o risco de sercondenado pela Inquisio e pela Ortodoxia da Igreja (Gaukroger, 1999, p.358-359), e o desafio ctico, em voga depois da traduo de Sexto Empricopor Henri Estienne e sua conhecida re-apropriao por Montaigne e Charron(Ricken, 1994, p. 9-10). Por um lado, Descartes precisa mostrar que no umherege e que a cincia que est a construir compatvel com os dogmas daIgreja; mais ainda, que essa cincia deve ser fundada metafisicamente em tais dogmas2 .

    2 De acordo com a conhecida distino entre a ordem do conhecer e a ordem do ser, cabelembrar que o Deus bom e veraz que o fundamento de todo conhecer na ordem do ser, muitoembora isto precise ser demonstrado partindo de um princpio indubitvel - eu sou, eu existo -, imune ao desafio ctico, na ordem do conhecer, num procedimento mais ou menos anlogo ao dageometria, onde se demonstram passo a passo teoremas a partir de axiomas evidentes.

  • A ESTRATGIA CARTESIANA NAS MEDITATIONES

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    Com isso ele atinge tanto a ortodoxia tradicional que renega e persegue a novacincia (por ser incompatvel com os dogmas), como as vrias formas defidesmo que se utilizam do arsenal ctico, ora para atacar a revoluo cient-fica, ora para atacar a Reforma, ora para defend-la3 . Por outro, Descartesprecisa refutar os cticos, neopirrnicos ou no, que defendem a impossibili-dade do conhecimento indubitvel na cincia humana4 .

    Assim, do lado fidesta, ao erguer a tese de que nada pode ser conheci-do, porque no pode ser demonstrado com certeza, e por isso a revelao anica certeza que podemos aceitar, o desafio cartesiano duplo: primeiro,mostrar com argumentos racionais que podemos conhecer com certeza, e se-gundo que esta certeza no s no incompatvel com os dogmas da revela-o, mas ainda se funda racionalmente sobre alguns deles (por exemplo, aexistncia de um criador perfeito, do livre arbtrio no homem, da alma imaterial,etc.). Face ao outro lado que Descartes enfrenta, trata-se de utilizar e inclusiveaprimorar as armas dos cticos. Trata-se de enfrent-los e venc-los na arenade sua prpria suspeio. O famoso mtodo da dvida funciona como o fiocondutor atravs do qual Descartes conduz o leitor da incerteza certeza daverdade, quer este seja ctico acerca da possibilidade de um conhecimento(metafsico ou matemtico) indubitvel e infalvel na esfera humana, quer sejactico acerca do alcance do conhecimento sensvel dos corpos fsicos e desuas relaes entre si.

    SOBRE A ESTRATGIA CARTESIANAPor isso o ponto de partida somente pode ser uma dvida que abarque

    a falta de certeza tanto do conhecimento sensvel quanto do racional, a qualse concretiza na hiptese de uma ignorncia e uma incerteza absolutas, grau zero decerteza e conhecimento, plasmada na suposio de um gnio maligno que meengana o tempo todo (Primeira Meditao, 12). A passagem da suspenso dojuzo acerca de crenas sobre a existncia e as propriedades dos objetos denossas idias sensveis e sobre a evidncia das naturezas simples que so

    3 Fidesmo, num sentido geral, consiste numa postura filosfica presente em autores renascentistase ps-renascentistas que se caracteriza grosso modo pela negao ou limitao dos poderesda razo em detrimento da revelao, da f ou da simples crena em certas verdades. Sobreisso veja-se Popkin, 2000, pp. 19ss. Cf. Rosenfield, 1996, pp. 44ss.

    4 Ibidem, pp. 271ss, 301ss.

  • THEOPHILOS - REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA

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    objeto das matemticas (atravs do argumento do sonho e da hiptese doDeus enganador, respectivamente), para a certeza absoluta acerca da existn-cia de um Deus que no nos engana e valida nossas crenas na evidnciainfalvel das matemticas e na existncia dos corpos e das suas propriedadesfora das nossas idias (bem como na existncia de uma alma diferente denosso corpo), ocorre por ocasio de uma hiptese extremamente sugestiva.Esta tem por funo fazer com que eu me lembre, para no incorrer em erro, de que nodevo confiar cegamente nos sentidos (visto que eles no me permitem determinar seestou acordado ou dormindo quando penso que vejo coisas fora de mim), nemna razo (porque se Deus me enganasse 2 mais 2 poderia no ser igual a 4; emesmo que eu no acreditasse em Deus, deveria admitir que minha naturezadeve-se a uma ou mais causas menos perfeitas do que Deus seria, se Ele exis-tisse, e nesse caso seria assaz provvel que me enganasse, pois quanto menosperfeita fosse a causa da minha existncia, maior seria a possibilidade de queeu me enganasse!). A hiptese serve fundamentalmente como uma estratgiapara conquistar algum conhecimento, se por ventura isto for possvel, ou aomenos para que tome cincia da minha absoluta ignorncia, entregando ospontos ao ceticismo: a idia que partindo da hiptese da incerteza absoluta (namedida em que existiria no um Deus, mas o Diabo, a saber, um malin gnieresponsvel pela minha existncia e pelo meu modo falvel de ser, o qual fariauso de todo o seu poder e de toda a sua indstria para que eu me enganasse,mesmo nas coisas que acredito serem mais indubitveis e evidentes), talvez eupossa conquistar alguma certeza: basta para tanto que pelo menos algo possa re-sistir ao teste da dvida em que o demnio me faz afundar. Basta que eu possaexperimentar algo acerca do qual o gnio maldoso no possa me enganar,mesmo utilizando toda a sua indstria e todo seu poder. Se isso for possvel,terei uma primeira certeza inabalvel, como que a pedra fundamental de umpossvel edifcio de conhecimentos.

    Agora bem, geralmente se admite que a preocupao de Descartes no tanto pr em dvida o poder da razo como reafirm-lo, e que como bomracionalista s est preocupado em questionar o conhecimento sensvel5 . Ascoisas no so bem assim, porque nesse caso no se explicaria por que Des-cartes no parou de duvidar no momento em que as naturezas simples resis-tem ao argumento do sonho, que justamente por isso no atinge a evidnciadas matemticas. verdade que o modelo ideal de conhecimento cientfico e

    5 Frankfurt, pp. 61ss. Apud Plnio J. Smith, 2000, pp. 114-115, quem, como ns, tambm parecesustentar que Descartes questiona no s o conhecimento sensvel, mas tambm o racional.

  • A ESTRATGIA CARTESIANA NAS MEDITATIONES

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    de certeza que Descartes tem em mente racional, e que por excelncia oconhecimento matemtico. E tambm verdade que a certeza do conheci-mento sensvel se funda metafisicamente em Deus, mas epistemologicamentena geometria, no sendo, portanto, to certo quanto o racional. Todavia, seDescartes chega a questionar o critrio epistmico da evidncia matemtica, ejustamente atravs de uma opinio acerca da onipotncia divina (e de nossafalibilidade finita), porque pe tambm em dvida o conhecimento racional6 .E por qu? Por que Descartes, que um homem de cincia, um fsico e ummatemtico, duvidaria do poder da razo? A resposta no pode ser simples. preciso compreender o contexto da discusso para entender a eficcia e olugar das alegaes cartesianas.

    Num sentido geral, se Descartes leva a srio o desafio ctico, pode dizer-se grosso modo que deve seguir risca sua estratgia de vencer os cticos comas prprias armas. Se os cticos questionam o poder da razo tanto quanto opoder dos sentidos, para poder demonstrar a possibilidade de um conhecimen-to racional preciso refutar o argumento ctico contra a possibilidade de umconhecimento racional. Para refut-la, porm, preciso apresent-la, saber qualo seu ponto alto e qual o seu ponto fraco. Assim, Descartes reconstri o argu-mento ctico e finge defend-lo para depois poder refut-lo. Mas a que est oquid: por que reconstru-lo tal como o reconstri na Primeira Meditao? Por queduvidar do poder da razo humana a partir de uma dvida sobre a evidncia dasnaturezas simples que so objetos das cincias de coisas simples como a geo-metria e a aritmtica? Eis em todo caso uma boa questo.

    A resposta tem a ver com algo apontado no incio: Descartes precisademonstrar que a sua cincia a de um bom cristo; que ainda que concordeem parte com a nova cincia em ascenso (coprnico-galileana) no se trata deuma heresia. Duvidar do poder da razo, de um lado, implica reconhecer coma Igreja (ou admitir reconhecer em princpio, ex hypothesis) que o poder da razohumana no ilimitado, que ela falvel; que ela no fim de contas no podedispensar o auxlio divino. Que a matemtica no veio substituir a Providncia!Mas, curiosamente, Descartes faz isto, de incio, com um argumento muitoforte, que retira da prpria Igreja, e que reenvia uma objeo aos telogos docrculo de Mersenne: se Descartes duvida do poder da razo, pondo em ques-

    6 A nica coisa que ele confessa no poder colocar em questo so os primeiros princpios, asaber, as noes comuns como o princpio de identidade ou o de que do nada nada se produz,por exemplo, uma vez que ningum poderia coloc-las em questo sem incorrer em absurdo, eportanto o prprio ceticismo deve admiti-las para poder duvidar.

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    to a evidncia matemtica, o caso que somente faz isso apelando para umaconseqncia direta de um atributo divino. Se Deus tudo pode, o que meimpede de pensar que ele possa estar a me enganar? Com isso, se bem quereconstrua a seu modo uma dvida acerca do conhecimento racional, comoos cticos, medida que se apia numa formulao teolgica opta por dar-lheuma vertente fidesta: ao duvidar da certeza das matemticas pe em suspenso aum s tempo o conhecimento racional, como o ceticismo tradicional, e concorda com a Igrejasobre o carter falvel da nossa razo, fingindo opor-se moderna tese da matematizao douniverso. O seu fim, porm, justamente a fundamentao metafsica do proje-to moderno desta matematizao, a justificao de sua fsica e de sua geome-tria (Arango, 1995, pp. 47ss; Cottingham, 1989, p. 114).

    A estratgia tem em vista, como foi dito, demonstrar contra os cticosque existe um mundo externo de corpos extensos em movimento governadospor leis matemticas, e que existe uma cincia humana capaz de conhec-loscom sucesso; e contra a Igreja que se utiliza do arsenal ctico para negar eatacar a cincia moderna, Descartes argumenta que uma cincia destes cor-pos, ainda que fundada na razo, no uma heresia; porque a razo retira asua garantia de legitimidade precisamente do auxilio divino. Como?

    DESCARTES ENTRE DEUS E O DIABOA resposta a esta questo exigiria uma anlise detalhada das Meditaes,

    e de outros aspectos da obra matemtica e cientfica de Descartes. Aqui, po-rm, no se pode realizar tamanha tarefa. O que eu ento posso fazer esquematizar com grandes pinceladas o quadro da estratgia argumentativade Descartes em seu caminho para a certeza, ou seja, explicar os passos quevo da posio metodolgica da incerteza na aplicao do mtodo da dvidaat a demonstrao de tudo que tinha sido posto em dvida a partir da primei-ra certeza conquistada por resistir dvida. o que fao brevemente a seguir,para concluir mostrando como Descartes finge metodologicamente sucumbir in-certeza demonaca para chegar cincia atravs de Deus.

    Aps culminar a Primeira Meditao, Descartes no deixou mais nadaem p. Duvidou do conhecimento racional pondo em questo a minha evidn-cia de que 2 mais 2 igual a 4, se Deus me engana, ou se sou falvel pornatureza, e duvidou do conhecimento sensvel pondo em questo o estatutoontolgico dos corpos e de seus atributos atravs da constatao de que no

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    tenho como saber se sonho ou durmo quando os vejo. A hiptese do gniomaligno reforou a dvida fazendo com que eu me lembre da dubitabilidade detodas as minhas crenas, a fim de no confundir sua mera probabilidade comuma certeza inabalvel (I, 11). Na Segunda Meditao, Descartes comea entopor relembrar tudo que ps em dvida e refletir se h algo que seja certo. Apercebe que para duvidar, pensa, e que para que o gnio maligno o engane, preciso que pense. Mas como para pensar preciso existir, preciso que sejaindubitvel que ele exista: se ele no existisse, o gnio no poderia engan-lo. Afinal,como poderia enganar algum que sequer algo ou algum, que no existe?Impossvel at para o gnio. Logo, eu sou, eu existo, diz Descartes nas Meditaes.Ou: Penso, logo existo, segundo a famosa e incompreendida frase do Discurso doMtodo. Com isso conquista uma certeza inabalvel, porque indubitvel, masque ainda no uma verdade, porque ainda no se demonstrou que a verdade poss-vel, nem que pode ser identificada certeza, uma vez que a hiptese do gniomaligno ps em questo toda certeza e, portanto, toda vez que eu parar de pensarem que se penso preciso que exista, e que se me engano penso, e por isso se o gniome engana porque existo, toda vez que - por exemplo - eu me esquecer disso e meentregar ao devaneio de qualquer pensamento, como que tenho calor ou frio, que meio-dia, que minha perna di ou que est chovendo, o gnio maligno ainda podeestar a me enganar e eu no tenho como saber se o que penso certo ou no, se os objetos dasminhas idias existem fora delas ou no etc. Portanto, essa primeira certeza muitotnue, tanto que alguns comentadores a chamam de persuaso, mas delaDescartes pode no obstante extrair algumas concluses (cfe. Landim, 1994).

    A primeira que observando minha nica certeza eu posso refletir sobresuas propriedades essenciais e aventurar uma anlise de minha essncia, umaclassificao do que pertence a meu esprito e do que a ele no pertence.Posto que no Cogito - Eu sou, eu existo - conquistei a certeza de minha existn-cia, mas ainda no a certeza sobre minha essncia, eu, que sou, ainda no seio que sou; no at descobrir, depois, analisando o contedo da certeza doCogito, que sou uma coisa pensante, uma coisa que pensa, i.e. que afirma,que nega, que duvida, etc. Da porque no to fcil conhecer o meu corpocomo o meu esprito: porque imediatamente sei com clareza e distino quaisos atributos da minha essncia pensante, mas no acontece isso com o meucorpo, mergulhado na incerteza desde o argumento do sonho, o qual foi refor-ado com a hiptese do gnio maligno que sempre me engana.

    A segunda que observando minha nica certeza eu posso refletir sobresuas propriedades essenciais e aventurar uma definio provisria das condi-

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    40 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

    es de toda certeza. Da posso extrair uma regra geral. Essa regra consistir naclareza e na distino que eu observo em minha certeza de que se o gnio me enganaeu existo. Contudo, como minha certeza s vale enquanto nela penso atual-mente, ela no pode ser considerada verdadeira. Assim a regra dela extradas ser validada ao provar que a certeza do Cogito verdadeira, e no umamera certeza subjetiva (i. , que s vale enquanto a penso atualmente). Assim,para que essa regra geral da certeza se torne uma regra geral da verdade preciso demonstrar a realidade objetiva das idias claras e distintas, quer di-zer, demonstrar que os objetos aos quais elas se referem existem verdadeira-mente. O que redunda em eliminar a hiptese do gnio maligno que me enga-na e rui os alicerces objetivos de minhas idias7 .

    De modo que o problema maior que Descartes enfrentar a partir daTerceira Meditao o de eliminar a hiptese da incerteza absoluta, a saber, ahiptese do gnio maligno; e o nico modo de faz-lo ser demonstrando queno existe; que bem antes existe um Deus, Ser Perfeito, que por isso mesmono pode me enganar, porque o erro e o engano maculariam sua perfeio. NaQuarta, Descartes ir ento demonstrar que esse Deus no pode ser causa demeus erros nem de meus enganos, os quais so antes provocados pela minhafinitude, a saber, pelo conflito gerado entre a ambio infinita de minha vonta-de de conhecer e o limite cognitivo do meu entendimento, fazendo com queem meus juzos afirme (ou negue) mais do que posso conhecer.

    A Terceira Meditao, porm, mediante uma anlise das representaestinha chegado ao fato de que somente proposies ou juzos so passveis deverdade ou falsidade, e portanto, se o gnio maligno me engana s poderfaz-lo toda vez que afirmo (ou nego) uma proposio como verdadeira oufalsa, e no enquanto tenho uma mera idia, uma volio, um sentimento, ouimagino qualquer coisa. Dentre os juzos, Descartes mostra que aqueles nos

    7 Daqui parte a famosa objeo acerca do crculo cartesiano. O problema surge porque eu extraioa regra geral da anlise do Cogito (da proposio: eu sou, eu existo), mas como este no umaverdade, pois s certo enquanto penso nele, a prpria regra geral no pode ser verdadeira, ainda,a no ser momentaneamente, como o Cogito, e s poder ser validada ao refutar a hiptese dognio maligno e provar a existncia de um Deus bom e veraz. Mas eis que o problema aparece,porque todos os passos que me levam a esta prova de Deus e de sua garantia da verdade sofeitos com base na suposio da validade da regra geral. Numa palavra: provo que Deus existecom base na regra geral de que s verdadeiro o que claro e distinto, mas a demonstrao deque s verdadeiro o que claro e distinto se funda na demonstrao de que Deus existe, e bom e veraz! Sobre isso veja-se: Landim, 1994, pp. 21ss; Rodis-Lewis, s/d, pp. 47-51; Cottingham,1989, pp. 97ss., e 1995, pp. 34-5; Beyssade, 1997. Vide tambm Andrade, 2001.

  • A ESTRATGIA CARTESIANA NAS MEDITATIONES

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    quais parece que me engano com mais facilidade so os que se referem eparecem corresponder s coisas que penso como objetos extramentais deminhas idias sensveis. De fato, conforme a Primeira Meditao, o argumentodo sonho no me permite decidir com certeza se existem os objetos das mi-nhas idias sensveis para alm das mesmas (j quanto incerteza das idiasmatemticas, a sua recuperao, prvia demonstrao da existncia de umDeus Bom e Veraz nas Meditaes Terceira e Quinta, s ocorrer nesta ltima).Mas a demonstrao da existncia de Deus na primeira parte da prova daTerceira Meditao diz respeito prova da objetividade. Pela primeira vez, ten-do demonstrado que a nica causa da minha idia de Deus como um ser infini-to, dotado de infinitas perfeies, s pode ser a existncia objetiva (extramental)de Deus, dado que eu, finito, no poderia ser a causa dessa idia (em virtudedo princpio segundo o qual o efeito no pode conter mais realidade do que acausa); pela primeira vez, assim, fica demonstrado o valor objetivo de umaidia clara e distinta - da idia clara e distinta do infinito.

    A partir da esto dadas as condies para que a regra de certeza deduzidado Cogito e enunciada no incio da Terceira Meditao se torne, agora sim, aregra geral da verdade. E as evidncias que antes valiam apenas no presente,agora valero tambm no passado, quando apenas me lembrar delas, e suacerteza se estender ao futuro, posto que o que verdadeiro permanece igual.A oscilao (III, 4) que se dava entre a certeza de uma evidncia clara e distin-ta, que era posta em questo ao deixar de ser atual e passar memria, e acerteza que eu experimentava quando pensava que o gnio maligno me enga-na, ser finalmente suprimida. Se no existe o gnio do mal, mas um Deus, eeste no me engana, tudo que valia apenas enquanto eu pensava atualmente,a saber a clareza e distino, agora valer para sempre.

    No entanto, as idias sensveis de corpos e suas propriedades no seapresentam com tanta clareza e distino. E a segunda parte da prova daexistncia de Deus na Terceira Meditao8 (que para alguns uma outra pro-va)9 , s vem reforar a primeira parte: se Deus no fosse causa da minha idiaDele, o problema no seria apenas no poder explicar o fato da minha idia deinfinito (malgrado a objeo de Hobbes!), o problema ter de admitir umaoutra causa que no Ele, a saber, uma causa finita e imperfeita para minha

    8 Vide a Carta a Mesland de 2 de maio de 1644. Apud Beyssade, 1991, pp. 87-88. Cf. Rodis-Lewis,op. cit., p. 39.

    9 Por exemplo, para os editores que fizeram as notas explicativas da traduo brasileira da Medi-taes (Coleo Os Pensadores, 2edio, So Paulo, Abril, 1979, pp.pp. 99ss), que aqui usamos.

  • THEOPHILOS - REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA

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    existncia. Assim as duas partes da prova da existncia de Deus nesta Medita-o nada resolvem alm da preparao para a validao da regra da verdade,uma vez que eliminam a hiptese de um Deus que pudesse me enganar, asaber, de um gnio maligno, demonaco, que teria me criado para se divertircom meus erros10 . Mas com isso ainda nada se resolve da dvida acerca daexistncia dos corpos extensos e de suas propriedades enquanto objetos deminhas idias sensveis, nem tampouco acerca da dvida que recai sobre asentidades matemticas, ambas objeto das Meditaes Quinta e Sexta.

    Todavia, se a Quarta Meditao explica que o erro no se deve a Deus,como foi anunciado acima, mas ao homem, o que uma conseqncia dademonstrao da existncia de Deus, ela acaba por levar a cabo de maneiraexplcita aquilo que a Meditao Terceira fizera de modo implcito, a saber, avalidao da regra geral da verdade: porque Deus no responsvel pelo er