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VIVER UM SONHO - Haaveilen Estou na cama. O mundo rasga-se e entro no sonho. Tiro uma guitarra debaixo dos lençóis. Tocam sons de piano. Que bom é estar aqui. Tudo no seu sítio. Ah, tão bom. (Salto no sonho deito-me e levanto-me olho para fora do sonho.) Lá fora… É complicado. Existem regras. E dinheiro. E normas sociais. E casa. E amigos inconvenientes. E distância. Milímetros, centímetros, decímetros, metros, decâmetros, hectómetros e quilómetros. E existem ruas onde deviam haver camas. E publicidade onde deviam haver rostos. E máquinas onde deviam haver corações. E rejeição onde devia haver devoção. Porque existem mentiras, falsos sorrisos, porque existe a anorexia, a bulimia, a esquizofrenia, a anemia, a apoplexia, a hidropisia, a hiperplasia, a lipotimia, a atrofia dos órgãos, dos sentimentos e da alegria. É o que chamam alguns o “peso incomportável da realidade”. Mas nem sempre foi assim. Já fomos crianças, já vivemos sem pensar em rendas, em fendas, em contas e em afrontas. Já foi o tempo em que sonhamos sempre ser assim, sonhadores. AHHHHHH! O peso incomportável de crescer é … incomportável. É turbulenta, e há vezes em que só quero paz, só quero adormecer, sair daqui, ir para outro lado, um lado mais escuro! AH!! (atiro-me para o chão) Ainda cá estou? É sinal que estou mesmo a sonhar. Não há um momento em que não pare de sonhar. Estar aqui, ali, acolá, em muitos lugares e mundos e cidades ao mesmo tempo. Mas longe daqui, longe da vida. Viver passionalmente os fragmentos que tenho aqui. Fragmentos desta realidade que só partilho com alguns do outro lado. É só juntar dois mais dois para perceber que o resultado não é bem quatro. Aqui não. Lá fora há muitas leis, muitas teorias, teoremas, operações, somas, subtracções, divisões, há muitas incógnitas. Mas aqui não. Aqui há paz, amor, aqui há dança, teatro, música, embora tonalmente desastrada. E é tão bonita assim. Tão certa da sua incerteza. Também sou eu incerto. Nunca a mesma pessoa. Sempre o mesmo desejo. Ter alguém ao meu lado. Cinco letras. As cinco letras que dominam este mundo. Nem sempre foram cinco, nem sempre são as mesmas, mas hoje vivo certo de que são as cinco letras que mais quero. Cá e lá. Um corpo indefinido que aparece e

Viver Um Sonho

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Texto Original de João Miguel Ferreira

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Page 1: Viver Um Sonho

VIVER UM SONHO - Haaveilen

Estou na cama. O mundo rasga-se e entro no sonho. Tiro uma guitarra debaixo dos lençóis. Tocam sons de piano.

Que bom é estar aqui. Tudo no seu sítio. Ah, tão bom. (Salto no sonho deito-me e levanto-me olho para fora do sonho.)

Lá fora… É complicado. Existem regras. E dinheiro. E normas sociais. E casa. E amigos inconvenientes. E distância. Milímetros, centímetros, decímetros, metros, decâmetros, hectómetros e quilómetros. E existem ruas onde deviam haver camas. E publicidade onde deviam haver rostos. E máquinas onde deviam haver corações. E rejeição onde devia haver devoção. Porque existem mentiras, falsos sorrisos, porque existe a anorexia, a bulimia, a esquizofrenia, a anemia, a apoplexia, a hidropisia, a hiperplasia, a lipotimia, a atrofia dos órgãos, dos sentimentos e da alegria. É o que chamam alguns o “peso incomportável da realidade”. Mas nem sempre foi assim. Já fomos crianças, já vivemos sem pensar em rendas, em fendas, em contas e em afrontas. Já foi o tempo em que sonhamos sempre ser assim, sonhadores. AHHHHHH! O peso incomportável de crescer é … incomportável. É turbulenta, e há vezes em que só quero paz, só quero adormecer, sair daqui, ir para outro lado, um lado mais escuro! AH!! (atiro-me para o chão) Ainda cá estou? É sinal que estou mesmo a sonhar. Não há um momento em que não pare de sonhar. Estar aqui, ali, acolá, em muitos lugares e mundos e cidades ao mesmo tempo. Mas longe daqui, longe da vida. Viver passionalmente os fragmentos que tenho aqui. Fragmentos desta realidade que só partilho com alguns do outro lado. É só juntar dois mais dois para perceber que o resultado não é bem quatro. Aqui não. Lá fora há muitas leis, muitas teorias, teoremas, operações, somas, subtracções, divisões, há muitas incógnitas. Mas aqui não. Aqui há paz, amor, aqui há dança, teatro, música, embora tonalmente desastrada. E é tão bonita assim. Tão certa da sua incerteza. Também sou eu incerto. Nunca a mesma pessoa. Sempre o mesmo desejo. Ter alguém ao meu lado. Cinco letras. As cinco letras que dominam este mundo. Nem sempre foram cinco, nem sempre são as mesmas, mas hoje vivo certo de que são as cinco letras que mais quero. Cá e lá. Um corpo indefinido que aparece e desaparece. E eu abraço, eu beijo, eu vivo este mundo. O mundo que no fundo é também ele real. Porque as letras existem e também elas me beijam e me abraçam. L A U R I . minä rakastan sinua ,Lauri. Sinto-me tão bem. (aconchego-me aos lençóis) É aqui que quero estar! Quero crescer e sempre aqui voltar. Porque o que se esquecem os outros no entretanto, cegos pela ideia real irreal de que têm uma vida, que também eles sonharam, e também podem ter sonhos. (olho para o exterior) Mas enquanto puder realizar o sonho, enquanto puder esbater a diferença entre a realidade e o sonho, vou continuar por lá. Porque há quem mereça ser feliz lá e há quem mereça entrar cá. E há quem esteja cá e que vai para lá. Enquanto isso, eu vivo.

Saio de novo para a vida real. Uma pessoa materializa-se no sonho. Entro de novo no sonho.

Ja haaveilen. (E sonho.)

Salto para a pessoa. Caem nas almofadas. Blackout.