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Vivian Alves de Assis A dimensão mítica da pureza metodológica em Kelsen: uma leitura a partir da proposta transurrealista de Luis Alberto Warat Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Orientador(a): Prof. Rosângela Lunardelli Cavallazzi Rio de Janeiro Maio de 2008

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Vivian Alves de Assis

A dimensão mítica da pureza metodológica em Kelsen: uma leitura a partir da proposta transurrealista de Luis Alberto Warat

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio.

Orientador(a): Prof. Rosângela Lunardelli

Cavallazzi

Rio de Janeiro

Maio de 2008

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Vivian Alves de Assis

A dimensão mítica da pureza metodológica em Kelsen: uma leitura a partir da proposta transurrealista de Luis Alberto Warat

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Rosângela Lunardelli Cavallazzi Orientador

Departamento de Direito – PUC-Rio

Profa. Gisele Cittadino Departamento de Direito – PUC-Rio

Profa. Juliana Neuenschwander Magalhães Faculdade de Direito – UFRJ

Profa. Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca Faculdade de Direito – Ibmec

Prof. Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de

Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 16 de maio de 2008.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Vivian Alves de Assis

Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Bolsista CNPq

Ficha catalográfica Assis, Vivian Alves de.

A dimensão mítica da pureza metodológica em Kelsen: uma leitura a partir da proposta transurrealista de Luis Alberto Warat / Vivian; orientador: Rosângela Lunardelli Cavallazzi. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2008.

94 f. ; 29 cm

1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.

Inclui referências bibliográficas. 1. Direito – Teses. 2. Senso comum teórico dos

juristas. 3. pureza metodológica. 4. obstáculo epistemológico. 5. dimensão mítica. 6. Luis Alberto Warat. 7.. I. Cavallazi, Rosângela Lunardelli. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

CDD 340

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Aos meus pais e irmã, pelo amor, confiança e incentivo

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Agradecimento À minha família, pelo amor incondicional e por me oferecerem a segurança e tranqüilidade suficientes para a motivação ao trabalho que me dedico. À minha orientadora, Rosângela Lunardelli Cavallazzi, por ser a principal responsável pela minha formação acadêmica, pela identificação profissional e pessoal, pela competência como pesquisadora e pedagoga, por ter aberto os horizontes da Epistemologia e da Linguagem na pesquisa jurídica. Principalmente pela paciência, carinho, amizade e por acreditar no meu trabalho. Ao prof. Luis Alberto Warat, pela humildade, carinho e compreensão quando considerei que seria melhor a leitura desta dissertação depois da defesa. Pelas conversas surrealistas sobre projetos, livros, filosofia, arte, qualidade de vida. A paixão por suas obras permitiu a escolha deste tema. À CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, essenciais para a realização dessa dissertação. Ao Fabio Pires Bento pelo amor, compreensão, carinho e revisão do trabalho. Ao professor Augusto Werneck que me incentivou ao ingresso no mestrado da PUC-Rio. Pelas aulas magníficas e atenção na realização da minha monografia. Aos funcionários da Secretaria do Departamento de Direito da PUC-Rio, Anderson, Carmen, Marcos e Lindinalva, pela atenção e competência. Aos colegas da turma de mestrado mais polêmica que já se ouviu falar: João Pedro, Pedro, Marcelo, Orlando, Rodrigo, pelos conselhos e debates; Ana Luisa, Joana pela amizade e aprendizado; Teresa, Flávia pela identidade acadêmica e pessoal. Aos colegas do grupo de pesquisa do CNPq, pela contribuição ao meu amadurecimento acadêmico e pelo intercâmbio transdisciplinar que me proporcionou. As professoras Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca, Liane Maria Maia Simoni e Maria Isabella Bottino do Ibmec, pela confiança e pelo aprendizado pedagógico constante.

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RESUMO

Assis, Vivian Alves de; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli . Rio de Janeiro, 2008. A dimensão mítica da pureza metodológica em Kelsen: uma leitura a partir da proposta transurrealista de Luis Alberto Warat. p. 94 Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A presente dissertação analisa o postulado da pureza metodológica como princípio da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen em sua perpetuação no senso comum teórico dos juristas, revelando as suas dimensões míticas. A releitura de Kelsen é realizada à luz das críticas à pureza metodológica desenvolvidas por Luis Alberto Warat principalmente em sua obra “A Pureza do Poder”. O estudo inclui referências conceituais de Roland Barthes, Gaston Bachelard e Antonio Negri, vinculadas a propostas de sistemas ilusórios criativos, como a modernidade imanente e o transurrealismo. O referido postulado é contextualizado no arcabouço paradigmático moderno como obstáculo epistemológico para a produção de um saber crítico que construa novos objetos de conhecimento no campo jurídico.

Palavras-chave

Senso comum teórico dos juristas; pureza metodológica; obstáculo epistemológico; dimensão mítica; Luis Alberto Warat

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Abstract

Assis, Vivian Alves de; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli The Dimension of Kelsen’s Methodological Purity: A Reading According to the Transsurealistic Proposal of Luis Alberto Warat Rio de Janeiro, 2008. p. 94 Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This dissertation examines the premise of methodological purity as a principle of Hans Kelsen’s Pure Theory of Law, in this perpetuation of the theoretical juristic common sense, revealing its mythic dimensions. A rereading of Kelsen is realized in the light of criticism of methodological purity developed by Luis Alberto Warat, principally in his work “The Purity of Power”. The study includes conceptual references of Roland Barthes, Gaston Bachelard and Antonio Negri, related to the proposals of creative illusory systems, such as immanent modernity and the transurrealism. That premise is contextualized in the modern paradigms as epistemological obstacles for the production of a critical wisdom which builds new objects of knowledge in the juridic field.

Keywords

theoretical juristic common sense; methodological purity; epistemological obstacle; mythic dimension; Luis Alberto Warat

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SUMÁRIO

1. Introdução 9

2 Constituição de sistemas ilusórios 16

2.1. O esgotamento da modernidade hegemônica 16

2.2. Modernidade imanente e o transurrealismo: sistemas ilusórios criativos 29

3. Resgatando Kelsen: para uma crítica qualificada 44

3.1. Kelsen em defesa da juridicidade 44

3.2. Crítica waratiana ao postulado da pureza metodológica 53

4. A dimensão mítica da pureza metodológica como obstáculo epistemológico 63

4.1. Processo de mitificação da pureza metodológica 63

4.2. A pureza metodológica: obstáculo epistemológico na perspectiva de um

pensamento crítico 75

5. À guisa de conclusão: rumo a perspectivas no campo jurídico que revelem

dimensões críticas na construção de objetos de conhecimento 85

6. Bibliografia 89

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1 Introdução

“É imensa a distância entre o livro impresso e o livro lido, entre o livro lido e o livro compreendido, assimilado, sabido!”1

Gaston Bachelard

As reflexões epistemológicas atuais tendem a reconhecer a complexidade

das relações sociais em constante transformação através do surgimento crescente

de perspectivas que sustentam a descontinuidade e a fragmentação contrárias à

concepção moderna.

O postulado da pureza metodológica em Hans Kelsen, como pressuposto

vertebral para o desenvolvimento do projeto da Teoria Pura do Direito, delimita o

campo temático da Ciência do Direito, que é a tarefa fundamental para a

constituição de uma “Ciência do Direito em sentido estrito.”2 Neste sentido, o

referido projeto está incluído no paradigma de conhecimento da modernidade que

apresenta uma visão epistemológica objetivista, ordenadora, homogênea e

totalizante.

Concomitantemente, identifica-se, no campo jurídico, a insuficiência do

ponto de vista normativista e semiológico do positivismo jurídico, no qual a

Teoria Pura do Direito aparece como marco representativo, para atender às

demandas sociais.

Neste contexto, é pertinente adotar a obra de Luis Alberto Warat como

marco de trabalho pelo fato da mesma enfrentar de forma crítica as questões sobre

o poder, o direito e a ciência produzidas na modernidade,3 ainda presentes nos

tempos atuais, perambulando sem respostas dentro dos muros universitários

brasileiros.

1 BACHELARD, G., A formação do espírito científico: contribuição para a psicanálise do conhecimento, p. 10. 2 WARAT, L. A., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronímia significativa. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 236. 3 PANTOJA, L. M. X. P., Fragmentos amorosos de um discurso jurídico – ou fragmento jurídico de um discurso amoroso. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 12.

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A leitura do postulado da pureza metodológica em Kelsen é realizada a

partir das críticas a sua pretensa despolitização e na sua perpetuação no “senso

comum teórico dos juristas”4, realizadas principalmente na década de 80 por Luis

Alberto Warat, utilizando como marco a obra A pureza do poder: uma análise

critica da teoria jurídica.5

Os obstáculos na trajetória de basear uma análise em obras de Warat

devem ser reconhecidos, pois o próprio autor considera sua obra indomável

“como um cavalo dos pampas”6, além da possibilidade da mesma gerar

“embaraços intelectuais”7.

Porém, este ponto de referência pode ser visto como um desafio, no qual

um “intelectual inesperado”8, que sempre se encantou pelos temas proibidos, abre

um campo de possibilidades para a reflexão sobre a postura epistemológica e

pedagógica do jurista, incitando a criação de objetos de conhecimento.

Neste ponto, compreende-se ser relevante explicar a preferência por um

autor a partir do encontro de Roland Barthes com o seu fotógrafo favorito,

encontro este explicitado quando o autor diz que “... tinha encontrado o “meu”

fotógrafo; mas não, não gosto de todo Mapplethorpe”9, da mesma forma,

certamente também não são todas as propostas e posicionamentos de Luis Alberto

Warat que serão assumidos no desenvolvimento deste trabalho.

Impossível concordar, considerando o escopo da delimitação deste

trabalho, com todos os entendimentos de um autor como Warat, que tem um

grande volume de produção acadêmica10, em que a reformulação de

posicionamentos é uma constante11, e que “navega” com naturalidade pelas mais

4 Este conceito foi desenvolvido por Warat e será esclarecido adiante. 5 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1983. 6 WARAT, L. A., Introdução. In: MONDARDO, D., 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat, p.11. 7 Barthes utiliza esta expressão na sua Aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França para expressar suas dúvidas acerca das razões que levaram a este tradicional colégio onde reinava a ciência, o rigor e a invenção disciplinada a recebê-lo. Cf. BARTHES, R., Aula, p.8. 8 Ibid., p. 12. 9 BARTHES, R., A câmara clara: nota sobre fotografia, p. 32. 10 Em busca efetuada na Plataforma Lattes do CNPq consta que Luis Alberto Warat publicou 53 artigos em periódicos e 39 livros, sem considerar as inúmeras orientações de dissertações e teses ao longo de sua carreira acadêmica. Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/index.jsp. Acesso em: 15 abr. 2008, 14:30. 11 Antonio Carlos Wolkmer analisa a obra de Warat no mesmo sentido: “Por se tratar de um pensador em constante processo de criação e recriação de suas idéias, torna-se deveras complexo demarcar com precisão, em Luis Alberto Warat, não só a extensão de seus horizontes teóricos

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diversas áreas do saber: do Direito à Psicanálise, do Ensino à Metodologia, da

Filosofia Política à Semiologia, da Arte à Filosofia do Direito.

A referência às obras de Warat na presente análise pode ser ainda

esclarecida pela compreensão de Umberto Eco sobre a relação entre o autor de um

texto e seu leitor, no sentido em que se apreende que no desenvolvimento de um

trabalho teórico a partir da leitura de um autor objetiva-se interpretar o texto e não

as intenções do autor empírico que “deve permanecer em silêncio”.12 Dentro

desta lógica de idéias, busca-se uma interpretação sustentável13, ou seja, ao se

falar de uma leitura waratiana busca-se um equilíbrio entre a intenção do autor e a

intenção do leitor, intérprete.

A escolha do tema e de Warat como marco teórico advém da perspectiva

de produção de um saber crítico no campo jurídico que se coadune ao novo

espírito científico14 proposto por Gaston Bachelard e da percepção que, para tanto,

é imprescindível uma “análise semiológica sobre as capacidades geradoras da

teoria jurídica”.15

Ademais, a maioria das controvérsias levantadas frente a obras de autores

que pretendem desenvolver um saber crítico advém em certa medida do

imaginário jurídico que se limita a pensar o campo jurídico dentro da

normatividade, de forma que qualquer pensamento fora desta referência não

poderia ser considerado jurídico.

Ao se colocar a perpetuação do normativismo no imaginário jurídico não

se deixa de reconhecer as pesquisas de juristas que trabalham fora destes limites,

conseguindo desenvolver um pensamento crítico e alternativo dentro das

universidades. 16

como, sobretudo, o início e o término dos diferentes momentos de sua produção epistêmica.” WOLKMER, A. C., Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, p. 116. 12 ECO, U., Interpretação e Superinterpretação, p. 93. 13 A interpretação sustentável é aquela realizada por um leitor sensível e responsável que respeita o pano de fundo cultural e lingüístico do autor lido. Cf. Ibid. 14 Gaston Bachelard distingue a história do pensamento científico em três etapas: a primeira é denominada de estado pré-científico (antiguidade clássica até o século XVIII); a segunda representa o estado científico (fim do século XVIII ao início do século XX); a terceira seria a era do novo espírito científico (início em 1905). O marco desta nova era para o pensamento científico seria a Teoria da Relatividade de Einstein. Cf. BACHELARD, G., A formação do espírito científico: contribuição para a psicanálise do conhecimento, p. 9. 15 WARAT, L. A., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: FALCÃO, J.(Org)., Pesquisa científica e direito, p. 82. 16 Entre os juristas brasileiros que desenvolvem um pensamento crítico podem ser citados: Antonio Carlos Wolkmer, Gisele Cittadino, Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca, Leonel Severo da Rocha, José Maria Gómez, Carlos Alberto Plastino, José Eduardo Faria, José Alcebíades de

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Outra possibilidade aberta pelas obras de Warat e outros autores de

diversos campos do saber designados críticos, como Roland Barthes, Foucault,

Deleuze e Antonio Negri, é a de se trabalhar no campo do óbvio que nunca foi

dito. Apenas o óbvio, o evidente, é capaz de estupefar, surpreender.17Assim, o

campo do óbvio deve ser entendido como a exposição do saber reprimido, “do que

negamos ver que vemos”.18

Nesta perspectiva, pretende-se refletir sobre as possibilidades de um saber

crítico como um nível de significação para o campo jurídico que questione a

“mitologia disciplinar instituída”.19Desta forma, o conhecimento crítico do direito

deve ser compreendido como um campo de revisão dos valores epistemológicos

que legitimam a produção de dogmas, ou seja, verdades jurídicas consagradas e,

portanto, inquestionáveis.20

Dogma é uma verdade a priori, é um ponto de partida para o raciocínio.

Ao se tratar sobre a questão do conhecimento deve-se interrogar sobre a

problemática da verdade. Neste sentido, ao ser analisada a história do

conhecimento científico, conclui-se que as verdades não são absolutas, elas são

transitórias ou até consensualmente aceitas.

Nesta tarefa, a crítica ao postulado da pureza metodológica de Hans

Kelsen torna-se necessária para a identificação da perpetuação deste critério

epistemológico no “senso comum teórico dos juristas” como um ponto essencial

para uma crítica sobre a imobilidade do jurista e do ensino jurídico, que

inviabiliza a pluralidade das produções científicas.

Luis Alberto Warat introduz na reflexão jurídica o conceito do “senso

comum teórico dos juristas” como “uma esfera simbólica altamente padronizada,

Oliveira Júnior, Horácio Wanderlei Rodrigues, Roberto Lyra Filho, Luis Fernando Coelho, Luis Edson Fachin, Ovídio Araújo Baptista da Silva, Edmundo Lima de Arruda Júnior, Joaquim Falcão, Lédio Rosa de Andrade, o próprio Luis Alberto Warat, entre outros. Estes nomes foram selecionados entre autores que possuem obras na área, participantes da ALMED ou que possuem grupos de pesquisa sobre o tema, cadastrados no CNPq. Disponível em: http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/. Acesso em: 15 abr. 2008, 15:30. 17 BARTHES, R., Aula, p. 46. 18 WARAT, L. A., Por quem as sereias cantam: Informe sobre Ecocidadania, gênero e Direito. In: Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 532. 19 Id., El jardim de los senderos que se bifurcam. In: WARAT, L. A. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 469. 20 Id., Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: WARAT, L. A. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 27.

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instituída e capitalizada a favor do modo de semiotização dominante”21 que seria

uma forma de instrumentalizar as obviedades do imaginário jurídico.

A categoria “senso comum teórico dos juristas” é apresentada como

instância privilegiada para que o postulado da pureza metodológica apresente sua

dimensão mítica, daí decorre a sua relevância para o presente estudo.

Deve-se esclarecer que o senso comum teórico não é um privilégio do

campo jurídico, mas está presente em qualquer “ciência”22, por isso será

contextualizado23 o imaginário jurídico dominante a partir da análise de visões

paradigmáticas e pós-paradigmáticas. Para abarcar estas duas visões de mundo e

de conhecimento ao longo do trabalho foi adotada a categoria freudiana

denominada sistemas ilusórios, pela sua abrangência.

Considerada a complexidade da abordagem, com o fim de apresentar as

características do modelo paradigmático moderno, que fundamenta a

inteligibilidade do real do postulado ora analisado, parte-se da idéia de existência

de um duelo entre duas modernidades, desenvolvida por Antonio Negri e Hardt,

como categoria analítica, em que o projeto da Teoria Pura do Direito se apresenta

incluída no projeto mais amplo da Modernidade Hegemônica.

A proposta transurrealista de Warat e a idéia de modernidade imanente

expostas por Antonio Negri e Hardt, são apresentadas como alternativas criativas

para o enfrentamento dos impasses do paradigma moderno.

Especificamente, a proposta transurrealista de Luis Alberto Warat é

apresentada como uma possibilidade para o enfrentamento do sentimento de vazio

contemporâneo. O transurrealismo é adotado como um olhar que apresenta

propostas para o desenvolvimento de um saber crítico que possibilite os devires,

ao invés do sentimento de melancolia frente à condição moderna apresentada por

algumas análises desta condição de conhecimento.

Previamente à crítica ao postulado da pureza metodológica, se desenvolve

um encontro com o projeto da Teoria Pura do Direito, principalmente do princípio

metodológico em foco, com vistas à contextualização do pensamento kelseniano

21 STRECK, L. L., A revelação das “obviedades”do sentido comum e sentido( in)comum das “obviedades” reveladas. In: OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat, p.53. 22 WARAT, L. A., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: FALCÃO, J. (Org), Pesquisa científica e direito, p. 83. 23 “O contexto de um elemento X qualquer é, em princípio tudo o que cerca este elemento.”CHARAUDEAU, P.; MANGUENEAU, D., Dicionário de análise do discurso, p.127.

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ao pensamento da sua época e às influências neokantianas da pureza

metodológica. Este resgate da obra mais famosa de Kelsen permite uma maior

qualificação da crítica que se pretende desenvolver, diminui-se assim a

possibilidade de uma crítica fora do lugar.

A análise semiológica do campo jurídico foi considerada a mais adequada

na tarefa de revelar a dimensão mítica da pureza metodológica, por se tratar do

estudo do mito como metalinguagem. Com este fim, foi adotada como referência

a obra de Roland Barthes, que considera o mito um sistema semiológico

correspondente à ideologização, ao estabelecer a deformação de sentido.

A categorização de Barthes será adotada para a articulação do sentido

lingüístico da discursividade na concretude dos signos com o transliguístico em

sua dimensão sócio-histórica. Neste sentido, o referido autor abre novas janelas

para o estudo, ao considerar o discurso como um jogo dialético do signo que está

conectado com o poder.

Assim, pretende-se demonstrar que este processo de mitificação se

apresenta no campo jurídico como o que Gaston Bachelard denominou obstáculo

epistemológico para a implementação de propostas que percebam a ciência

jurídica e o seu ensino a partir de uma perspectiva crítica.

Com isso, surge mais uma “cúmplice”24 de Warat, na tarefa de revelar o

mito da pureza metodológica. Neste contexto, o cúmplice não é aquele que

simplesmente repete um discurso do autor25, mas que compartilha da revelação e

constatação das incertezas e incompletudes como pressupostos para o saber.

Assim, pretende-se “caminar”26 enfrentando as desconstruções e propostas

do referido autor como um aprendizado para enfrentar os obstáculos acadêmicos e

olhar de outra forma os objetos de conhecimento que serão explorados no

percurso acadêmico.

24 Segundo a lógica pedagógica de Warat de não submissão na relação entre professor e aluno, o primeiro não forma discípulos, mas cúmplices. Cf. MONDARDO, Dilsa. , 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat , p. 13. 25 WARAT, L. A. O mestre: sua luz e sombras. In: OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat, p. 13. 26 Lenio Streck fala em “caminar” ao se referir a Warat, ao meu ver, como forma de demonstrar seu afinco em compreender o autor que fala castelhano. STRECK, L. L., A revelação das” obviedades” do sentido comum e o sentido (in)comum das “obviedades” reveladas. . In: OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat, p. 53.

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O encanto pela caça aos mitos é o ponto de partida para o desenvolvimento

deste trabalho, pois permite que se perambule no campo da transdisciplinaridade

— perpassa o campo da Teoria do Direito, da Filosofia da Linguagem, da

Epistemologia, da Teoria da Argumentação — e das significações normativas,

com o fim de que se construam novos lugares de fala e novas possibilidades para

a linguagem jurídica.

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2 A constituição de sistemas ilusórios

Os homens são seres de ilusão.

“Iludo-me, logo, existo!”

Luis Alberto Warat

2.1 O esgotamento da modernidade hegemônica

O postulado da pureza metodológica e a pretensão kelseniana de

constituição de uma Ciência Jurídica em sentido estrito são produtos de uma

época e de uma visão de mundo e conhecimento que se coadunam aos preceitos

do que se designa como modernidade hegemônica.

No presente capítulo, o conceito de modernidade deve ser entendido

inserido em uma construção conflitiva, a partir do marco teórico de Antonio Negri

e Michael Hardt, na perspectiva de questionar a construção unitária e pacífica das

visões de mundo em determinado espaço de tempo. Dessa forma, é possível

identificar uma visão hegemônica vitoriosa e uma proposta contra-hegemônica da

modernidade.

Portanto, neste capítulo, serão apresentadas as diferentes visões de mundo,

contextualizando a pureza metodológica no paradigma moderno hegemônico que

propagou a ideologia cientificista. Posteriormente, serão apresentadas propostas

que abrem um campo de possibilidades para olhares críticos, através da superação

de obstáculos impostos pelo referido paradigma moderno.

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O conflito como “chave de sentido”1 para a compreensão do conceito de

modernidade representa uma perspectiva dialética2 de compreensão que consiste

no modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em

permanente transformação, percepção que reflete as tarefas impossíveis dos

modernos.3 O conceito de modernidade como crise surge ainda da percepção de

que o impulso imanente inicial, ocorrido na Revolução Humanista, está presente

em diversos momentos posteriores.4

O privilégio às contradições da realidade permite que o pesquisador e o

professor, como sujeito de conhecimento, percebam que são agentes e

colaboradores do processo de transformação constante.5

Neste contexto, a visão de Negri nos permite perceber várias perspectivas

quanto à dimensão da modernidade, em que é possível identificar duas

alternativas de modernidades que duelaram entre si, principalmente entre os

séculos XV e XVII6: a modernidade transcendente e a modernidade imanente.

A modernidade superou o medioevo através da imanência7, com o advento

da Revolução Humanista, inaugurando uma idéia de tempo como potência

criadora que admite a constituição do novo e de um ser infinitamente produtivo. 8

A Revolução Humanista do século XIV produziu uma nova realidade na

qual “seres humanos se declararam donos de suas própria vida, produtores de

1 A chave de sentido se presta a iluminar o processo interpretativo de uma norma ou conceito. Cf. CAVALLAZZI, R. L., O Estatuto epistemológico do Direito Urbanístico brasileiro: Possibilidades e obstáculos na Tutela do Direito à Cidade. In: COUTINHO, R.; BONIZZATO, L. (Coord.). Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano, p. 63. 2 “(...) dialética é um vocábulo formado pelo prefixo dia (que indica reciprocidade ou intercâmbio) e pelo verbo legein ou pelo substantivo logos (o que significa que a palavra dialética tem como origem a palavra diálogo). Como nota Foulquié, o termo logos tanto significa “palavra” ou “discurso” como significa razão.” KONDER, L., A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx no Brasil até o começo dos anos trinta, p.1. 3 “ (...) aspectos essenciais do conceito hegeliano de dialética, isto é, da dialética como reconhecimento da instabilidade e da contrariedade intrínsecas do real.”Cf. Ibid., p. 4. 4 GUETTI, P., A legitimidade do direito nos horizontes da modernidade/pós-modernidade. In: Revista Direito, Estado e Sociedade, nº 25, p.93. 5 “Segundo Hegel, a realidade é intrinsecamente contraditória e existe em permanente transformação; e o modo de pensar que nos permite conhecê-la não pode deixar de ser, ele mesmo, dinâmico.” KONDER, L., op. cit., p. 4. 6 “No século XV, numerosos autores demonstraram a coerência e a originalidade revolucionária desse novo conhecimento ontológico imanente.” “No século XVII, o conceito de modernidade como crise estava definitivamente consolidado.” NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p. 89 e 95. 7 “O plano de imanência é aquele no qual os poderes de singularidade são realizados e aquele no qual a verdade da nova humanidade é determinada histórica, técnica e politicamente.”In: Ibid., p. 91. 8 GUIMARAES, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito além da modernidade hegemônica, p. 81-83.

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cidades e da história e inventores dos céus”9, com isso, o homem assume papel

central na produção de conhecimento.

As referidas alternativas de modernidade refletem o processo de

secularização das doutrinas teológicas, pois tinham em comum a substituição da

referência divina, como autoridade transcendente, por uma concepção de poder

que faz referência ao humano, entretanto apresentavam propostas opostas de visão

de mundo.

O novo conhecimento imanente, surgido nas origens da modernidade, é

considerado revolucionário por trazer para a Terra e aos homens os “poderes de

criação”10 que pertenciam aos céus.

Na disputa silenciosa entre a modernidade imanente e a modernidade

transcendente, esta modernidade reguladora e contra-revolucionária que surgiu

como resposta repressiva às imanentes afirmações de liberdade humana tornou-se

hegemônica.

O desafio deste projeto contra-revolucionário era resolver a crise da

modernidade, que se arrastava nos séculos do Iluminismo, dominando a idéia de

imanência sem reproduzir a transcendência absoluta medieval para conter,

disciplinar, os sujeitos formalmente livres.11

Este retorno da transcendência procurou administrar as forças do impulso

imanente para uma direção mais segura, sem retornar ao estado anterior de

transcendência medieval.12

O ponto principal de divergência é o que cada proposta de modernidade

compreende como fundamentação do poder. De fato, os adeptos da modernidade

hegemônica propõem uma fundamentação transcendental, na qual ocorre a

alienação de potência13 pela figura fictícia do Contrato Social.

Desta feita, a modernidade transcendente buscou equacionar a crise da

modernidade, ao tornar-se hegemônica ao recorrer a um dualismo funcional

9 NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p. 89. 10 Ibid., p. 90. 11 Ibid., p.96. 12 GUETTI, P., A legitimidade do direito nos horizontes da modernidade/pós-modernidade. In: Revista Direito, Estado e Sociedade, nº 25,p.93. 13 Cf. Verbete sobre Baruch Spinoza elaborado por Antonio Negri: “ A potentia, figura geral do Ser, sustentando a concepção do conatus como impulso de todo o ser para a produção de si e do mundo, exprime-se então como cupiditas e investe de maneira constitutiva no mundo das paixões e das relações históricas”. In: CHATELET, F.; DUHAMEL, O.; PISIER, E. Dicionário de obras políticas, p. 1132 e 1133.

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através da imposição de mecanismos adequados de mediação nas relações

humanas.14

Portanto, esta concepção adota a mediação como forma de relativização da

experiência e de pôr fim às instâncias do absoluto e imediato no mundo da vida.

Negri aponta como mecanismos de mediação da concepção em questão: o filtro

dos fenômenos, a reflexão do intelecto como única forma de conhecimento

humano e o esquematismo da razão.15

A segmentação do real em dualismos é outro instrumento utilizado pela

modernidade hegemônica: ser e dever ser, corpo e mente, entre outros. 16 Entre

estes dualismos destaca-se o binômio ordem e caos ou — como prefere Zygmunt

Bauman — “o outro da ordem”17, que não existia no mundo ordenado pelo divino

em que o mundo simplesmente era daquela forma e não se questionava sobre a

ordem. 18

René Descartes, Thomas Hobbes e Immanuel Kant são pensadores

representativos desta postura regulatória. René Descartes desenvolveu a primeira

obra de grande repercussão que atendeu à estratégia de restabelecimento de uma

ordem transcendente que caracteriza o pensamento iluminista europeu.19

A posição cartesiana de Descartes20 consolida a racionalidade lógica como

única forma de conhecimento válido, o que implica na separação entre razão e

paixão, na qual a primeira tem a função de regular e limitar o agir e sentir

humanos, pois a razão se configura como o princípio absoluto do conhecimento

14 NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p.96. 15Ibid. 16 GUIMARAES, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito além da modernidade hegemônica, p. 42. 17 BAUMAN, Z., Modernidade e ambivalência, p. 15. 18 Ibid., p. 12. 19 NEGRI, A.; HARDT, M., op.cit., p. 97 e 98. 20 René Descartes surge no mesmo século em que Galileu e Bacon traçam suas teorias que visam consolidar o método indutivo. O referido autor desenvolve o método dedutivo em seu livro Discurso sobre o método, se afasta assim do processo indutivo. Ao explicitar o método dedutivo, Descartes postula quatro regras: a da evidência, a da análise, a da síntese e da enumeração. As referidas regras estão explicitadas no segundo trecho: “O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; (...) O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir.” DESCARTES, R., Discurso do método; As paixões da alma; Meditações, p. 49-50.

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humano. Assim, o autor assume a missão de unificar os conhecimentos humanos

em bases seguras através de certezas racionais que levariam à verdade.

Apesar de pretender desenvolver um novo projeto humanista de

conhecimento, Descartes acabou reinserindo perspectivas teológicas no ato de

conhecer, pois “quando trata da centralidade do pensamento na função

transcedental de mediar, ele define uma espécie de resíduo de transcedentalidade

divina”.21

A teoria política hobbesiana é relevante neste contexto regulatório, pois ao

introduzir em seu pensamento o contratualismo para criar o Estado e legitimar o

poder e a idéia de consentimento, sinaliza para aspectos da teoria que substituiu a

tradição do direito divino dos reis.

A interpretação que prevalece considera Thomas Hobbes um secularista

que enfatiza a questão do Contrato Social em sua obra, relegando as leis da

natureza a um segundo plano, apesar de metade do Leviatã e um terço do De Cive

tratarem exclusivamente de religião, o que comprova que a obra hobbesiana

possui elementos jusnaturalistas e teológicos.22

Desta feita, adota-se uma leitura teológica da filosofia política

desenvolvida sobre as referidas obras de Hobbes por considerá-la mais apropriada

para dotar seu fundamento de obrigação política de coerência.

Constata-se, portanto, que a obra de Hobbes não rompe com a tradição do

direito divino nem com o jusnaturalismo a ponto de poder ser denominado “pai da

modernidade”, mas, como foi apontado anteriormente sua obra representa um

passo de suma relevância para o projeto de regulação da modernidade

transcendente. 23

No entanto, o ápice do projeto transcedental se realiza com a obra de

Immanuel Kant, que controla os sujeitos através das três mediações anteriormente

citadas24,apresentando-se como o “precursor epistemológico moderno.”25O

transcedental é então apresentado como único horizonte de conhecimento e

21 NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p. 97. 22 Cf. POGREBINSCHI, T. ; PLASTINO, C. A., A obediência em Thomas Hobbes, p. 1-5. 23 Ao interpretarmos o Leviatã, principal obra de Hobbes, optamos por adotar uma interpretação diversa da oficial, ou em uma linguagem waratiana uma interpretação diferente da adotada pelo senso comum teórico. 24 O filtro dos fenômenos, a reflexão do intelecto como única forma de conhecimento humano e o esquematismo da razão. NEGRI, A. ; HARDT, M., op. cit., p.96. 25CUNHA, J. R. F., Modernidade e Ciência: Algumas Posições Epistemológicas. In: Revista Direito, Estado e Sociedade, nº 16, p. 92.

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ação.26 A Crítica da Razão Pura27 kantiana também chamada de “tribunal da

razão”28 teve um importante papel na contenção da razão onipotente da metafísica

dogmática , além de legitimar a razão teorética e científica como verdade.29

Qualquer situação fora deste “mundo ordeiro”30 inserido pelo paradigma

moderno traria um grande desconforto ao homem.31 Assim, o ideal da função

nomeadora e classificadora da linguagem pode ser tratado de forma metafórica

sobre a idéia de tornar real a “Biblioteca de Babel”32 de Jorge Luis Borges33 que

por ser interminável, infinita, aponta para a utopia moderna da sabedoria infinita,

que fornece a idéia de plenitude, já que esta biblioteca imaginária possuiria os

livros com todas as combinações possíveis de palavras.

Esta metáfora se mostra esclarecedora no tratamento do ideal ordenador

moderno que é retratado por Bauman como o esforço em alcançar “uma espécie

de arquivo espaçoso que contém todas as pastas que contêm todos os itens do

mundo”34 imagem totalmente compatível com a biblioteca borgeniana.

O desconforto e angústia do homem frente ao caos (o outro da ordem) é

representado por Borges na inacessabilidade de livros preciosos ser considerado

insuportável e inadmisível pelos homens.35

Esta idéia de plenitude e segurança que está na essência do paradigma

moderno é tratada de forma metafórica por Warat através da idéia de saudades da

primeira mamada36 narrada como momento mítico primordial do homem, em que

26NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p.98 e 99. 27 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad Valério Roden e Udo Baldur Mosburger. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. 28 CUNHA, J. R. F.,op. cit, p. 113. 29 Ibid., p. 122. 30 BAUMAN, Z., Modernidade e ambivalência, p. 10. 31 Ibid., p. 9. 32 A Biblioteca de Babel é um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges que representa a idéia metafísica de plenitude, pois promete abranger todos os livros em suas galerias hexagonais. BORGES, J. L., Ficções (1944), 2007. 33 A idéia utilizar o conto Biblioteca de Babel como metáfora à condição moderna partiu de Warat em entrevista em que se adotou a técnica de entrevista semi-estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar de temas que pretende desenvolver em futuras obras. 34 BAUMAN, Z., op. cit. , p. 11. 35 A referida angústia do homem moderno está presente no seguinte trecho do conto A Biblioteca de Babel: “ A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de que estes livros preciosos eram inacessíveis, pareceu quase intolerável”. In: BORGES, Jorge Luis. Ficções (1944), p. 75. 36 Oficina Arte e Direito ministrada por Luis Alberto Warat e Martha Gama no Congresso: 180 anos do ensino do direito no Brasil e a democratização do acesso à justiça realizado pela ABEDI na Universidade Nacional de Brasília em Novembro de 2007.

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o mesmo vive uma ilusão de plenitude que supre sua situação de desamparo e

incertezas.

Com esta metáfora, Warat visa criticar os pesquisadores afetados pelo

paradigma da modernidade, que se colocam como “sábios” privilegiando as

formas abstratas de seus pensamentos à própria experiência.

Para continuarmos no campo das metáforas como forma de esclarecimento

sobre a insuficiência da perspectiva moderna, utilizaremos a obra A paixão

segundo G.H., de Clarice Lispector,37 para demonstrar o sentimento de desilusão

perante o ambíguo vivido contemporaneamente que é o reflexo do medo de não

pertencer mais a um sistema, a uma organização instituída, medo de se entregar ao

devir que faz o homem se interrogar: “ mas por que não me deixo guiar pelo que

for acontecendo?”. 38

A busca incessante por um sistema ilusório que estabeleça uma fuga das

ambigüidades pode ser compreendida ainda no seguinte trecho do livro: “ É difícil

perder- se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me

achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.” 39

Ainda no campo metafórico, Warat auxilia a compreensão do paradigma

moderno ao apresentar a metáfora advinda da tradição bíblica40 — que representa

a época pré-moderna — em que homens querem construir uma Torre de Babel

para alcançarem o Céu e acabam sendo punidos por Deus com a criação da

diferença de línguas, mas que precisam de uma língua única, um pensamento

único, verdades únicas, para continuarem a construção da torre.

De forma análoga, Warat fala ainda da segunda Torre de Babel para se

referir à proposta moderna, que no campo do direito, seria a torre do

normativismo jurídico, que precisa cumprir a tarefa da ordem e da razão abstrata

para ser erguida e possui as mesmas pretensões onipotentes da primeira torre, que

era erguida a partir da referência divina transcendental. 37 O fascínio pela obra de Clarice Lispector advém da leitura de textos de Warat em que o mesmo coloca suas impressões sobre a obra da autora, que considera ser a “grande alquimista de las palabras sus sentidos y sus silêncios”. Cf. WARAT, L. A., Materialismo Mágico XV. Disponível em: http://luisalbertowarat.blogspot.com/. Acesso em: 15 abr. 2008, 17:20. 38 LISPECTOR, C., A paixão segundo G.H, p. 13. 39 Ibid., p. 12. 40 Entrevista ao autor Luis Alberto Warat, em que se adotou a técnica de entrevista semi-estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar de temas que pretende desenvolver em futuras obras.

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A tarefa dos modernos pode ser ainda esclarecida por Bauman, ao

considerar que os mesmos buscavam uma estabilidade e previsibilidade que

caracteriza os sólidos, com este fim operaram o “derretimento dos sólidos”41 do

passado ao destronarem, deslegitimarem a concepção pré-moderna. Ao acabarem

com os sólidos, até então sagrados, visavam instituir novos sólidos aperfeiçoados,

perfeitos e, portanto inalteráveis. A durabilidade destes sólidos garantiria a

previsibilidade do mundo.

Warat delimita o projeto ordenador moderno de forma semelhante à de

Bauman ao descrevê-lo da seguinte forma:“ Una razón productora de un orden

que acaba con las ambivalencias imponiendo la claridad, la certeza, la

transparencia de lo unívoco.”42

O objetivo da modernidade transcendente era acabar com qualquer tipo de

fluidez, através de um projeto ordenador que se mostrou inviável43. No tratamento

da fluidez, Bauman utiliza a ambivalência como conceito chave para esta

percepção:

“A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar.”44 Assim, a ambivalência seria um aspecto normal da prática lingüística, que

teria como função nomear e classificar. Bauman entende que classificar seria dar

ao mundo uma estrutura, como se os comportamentos não fossem casuais e,

consequentemente, imprevisíveis.45

Além disso, os efeitos nocivos da classificação das ambivalências

realizada pelos modernos, como muito bem lembra Pierre Bourdieu, podem ser

entendidos no campo jurídico na codificação de normas ao produzir o efeito da

uniformização que viabiliza a restrição da produção de sentido:

"(...)a objetivação operada pela codificação introduz a possibilidade de um controle lógico da coerência de uma formalização. Ela possibilita a instauração de uma normatividade explícita, a (...) do direito”. 46

41 BAUMAN, Z., Modernidade Líquida, p. 9. 42 WARAT, L. A., Pálpitos Epistemológicos para el siglo XXI (segunda vuelta). In: WARAT, L. A.,Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p.16. 43BAUMAN, Z., op. cit., p. 16. 44 Ibid., p. 9. 45 Ibid. 46 BOURDIEU, P., Coisas Ditas, p. 100.

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Antes de se adentrar na tarefa de apresentar as propostas de sistemas

ilusórios criativos, dentre elas a proposta transurrealista, se identificará como

Warat assume o momento em que vivemos como “uma modernidade esgotada à

espera de outra sensibilidade (sentidos) organizadora do mundo.”47

O autor em questão descreve o momento em que vivemos recorrendo à

idéia de esgotamento dos sentidos da modernidade48para representar a

inviabilidade do projeto que Antonio Negri e Hardt denominam, de forma

apropriada, como modernidade hegemônica, momento em que se percebe que o

referido projeto não cumpriu a maioria de suas promessas. O esgotamento se

apresenta, assim, como reflexo da multiplicidade de tarefas impossíveis que a

modernidade se atribuiu, principalmente a da ordem. 49

Desta forma, a modernidade hegemônica que teria se esgotado ganha

expressão no mundo jurídico através do normativismo, que privilegiou de forma

excessiva o cognitivo racional, o seu modo de produção de conhecimento, as

simplificações e as certezas.50 O normativismo, como referência do racionalismo

jurídico, de boato tornou-se vencedor, hegemônico, apareceu como um barroco

jurídico em que o jurista fugiu para o “paraíso conceitual”que está mergulhado na

a - historicidade.51

Warat considera normativistas as seguintes teorias: dogmáticas,

sistêmicas, kelsenianas provenientes das correntes apoiadas na analítica ou nas

teorias da argumentação, que pretendem, como Alexy, controlar os usos

pragmáticos da linguagem jurídica a partir de outros dois níveis semiológicos.52

47 WARAT, L. A., Por quem cantam as sereias: Informe sobre Ecocidadania, Gênero e Direito. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 422. 48 Ibid.,p 422. 49 BAUMAN, Z., Modernidade e ambivalência, p. 12. 50 Oficina Arte e Direito ministrada por Luis Alberto Warat e Martha Gama no Congresso: 180 anos do ensino do direito no Brasil e a democratização do acesso à justiça realizado pela ABEDI na Universidade Nacional de Brasília em Novembro de 2007. 51 No seguinte trecho, Warat explicita o esforço de juristas que pretendem a fuga do referido “paraíso conceitual”: “Os migrantes do paraíso conceitualizador do mundo jurídico, uma vez renunciado ao esforço histórico, quase bíblico, do entendimento do Direito como dado natural –retificado e homogeneizado, começam a nos mostrar novas condições de entendimento baseado no caráter histórico contingente e medular do Direito nas sociedades capitalistas, qualquer que fosse a sua face.”In: WARAT, L. A., Educação, Direitos Humanos, Cidadania e Exclusão Social: Fundamentos preliminares para uma tentativa de refundação. p. 26. 52 Entrevista ao autor Luis Alberto Warat, em que se adotou a técnica de entrevista semi-estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar de temas que pretende desenvolver em futuras obras.

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O normativismo jurídico obsta a possibilidade de uma inteligência

emocional para o intérprete do direito, transformando-o em “operador do Direito”.

Nesta lógica de pensamento, qualquer tipo de sensibilidade é considerado

arbitrariedade.

Cabe, neste momento, esclarecer a diferença entre sensibilidade e

arbitrariedade, tidas como sinônimos pelos que compartilham do paradigma

moderno (entendido como modernidade hegemônica). Uma decisão arbitrária

será, necessariamente, injusta, assim como uma decisão insensível também é

arbitrária. Esta idéia parte do pressuposto de que uma decisão justa é aquela que

reaproxima vínculos, portanto, a decisão sensível é a mais adequada para a

aproximação do que é justo. 53

Cabe esclarecer que, ao atacar o normativismo, Warat critica o

racionalismo jurídico e não a razão jurídica, que indica a sensatez no ato de

conhecer. Assim, o racionalismo jurídico é considerado uma epidemia da razão

jurídica. Significa que a sensatez se tornou tóxica, cancerígena, consistindo em

um tumor maligno que faz metástase no corpo social.54Esta doença nos torna

insensíveis em nossos vínculos com o outro e na nossa forma de ver o mundo.

A sensatez no ato de conhecer como razão advém da busca do homem de

ordenar o mundo que se apresenta como uma necessidade da sua sobrevivência.

Por isso, tanto o senso comum (geral) como a ciência estão em busca da ordem.55

Os excessos do racionalismo tornam-no perverso, pois uma das

características da perversão é a falta de limites. Esta razão perversa, ao mesmo

tempo, impulsiona e justifica o agir e pensar do homem moderno.

Em uma perspectiva mais ampla que o campo jurídico Warat considera a

pós-modernidade56, terminologia disseminada entre os autores que se atém a

reflexão sobre o momento atual, como designação do sentimento de vazio na

53 Sobre a relação entre a razão e a sensibilidade Warat ensina que: “A razão é só uma forma de pensamento a sensibilidade é outra. É preciso sempre ir além do princípio da razão para acalmar um pouco a insatisfação derivada do já definitivamente estabelecido.” In: WARAT, L. A., Educação, Direitos Humanos, Cidadania e Exclusão Social: Fundamentos preliminares para uma tentativa de refundação, p. 35. 54 Ibid., p. 3. 55 ALVES, R., Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras, p. 39. 56 Não existe um consenso quanto à designação mais adequada para as mudanças políticas, sociais e epistemológicas que vivemos hoje. Teóricos como Boaventura, Freakestone, Bauman, Lyotard e Baudrillard falam respectivamente em “pós-modernidade”, “pós-modernismo”, “modernidade líquida”, “condição pós-moderna”, “regime do simulacro”.

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espera de um novo olhar. Mas o principal motivo do autor preferir o prefixo

trans57 ao de pós é que quando os autores falam em pós-modernidade estão

obcecados com a idéia do fim e, portanto, no questionamento do que estamos

sendo obrigados a abandonar. 58Como visto a partir da metáfora da Biblioteca de

Babel de Borges, o sentimento de vazio não era tolerado na condição moderna de

mundo.59

Dentro da lógica de compreender a contemporaneidade por um viés não

melancólico, o sentimento de vazio deve ser considerado, a contrario senso, como

uma plenitude de incertezas em que o homem está entregue ao risco do

imprevisível.

Baudrillard trata de uma forma adequada e esclarecedora a idéia de

plenitude moderna através da ilusão, o erro de que algo terá um fim para que

ganhe sentido, o que aponta para necessidade por finitude do ser humano.60

Este “final de”, “depois de” que carrega de significado o termo pós,

apresentado pelos autores que Warat designa de “teóricos do não adianta”61,

implica um olhar para trás, uma idéia de abandono saudosista, em que os

pesquisadores ao invés de buscarem novas soluções para os problemas

contemporâneos, buscam as soluções apenas nas propostas dos tradicionais

“ilustres filósofos”.

Warat define ainda a pós-modernidade como um dos dois sentidos da

transmodernidade62, que é entendida por um lado como saturação da modernidade

e por outro lado a fuga para novos sentidos, o outro sentido se referiria a

transmodernidade propriamente dita ou, como se prefere designar na presente

análise de transurrealismo, o que não representa o fim da modernidade.63

A inadequação do prefixo pós foi reconhecida até mesmo por Boaventura

de Sousa Santos, autor reconhecido no tratamento desta temática, ao considerar a

57 Veremos adiante que Warat trata o momento atual como transmoderno. 58 WARAT, L. A., A Ciência Jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 86. 59 BAUMAN, Z., Modernidade e ambivalência, p. 16. 60 BAUDRILLARD, J., Senhas, p. 56 e 57. 61 WARAT, L. A.,op. cit., p. 86. 62 O outro sentido seria a transmodernidade propriamente dita, que neste trabalho denomina-se transurrealismo, um novo olhar proposto por Warat. 63 Id., Por quem cantam as sereias: Informe sobre Ecocidadania, Gênero e Direito. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 422.

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produção científica na época em que vivemos “à falta de melhor designação, (...)

ciência pós-moderna”64, em que, ainda segundo o autor, vive-se em uma situação

de transição, mas a sua utilização permaneceria pela popularidade do termo.

Boaventura de Sousa Santos percebe o período atual a partir do conceito

de crise do paradigma moderno para caracterizar a pós-modernidade, que pode ser

interpretada como uma perspectiva negativa do momento atual que, como

explicitado anteriormente, apresenta mais uma idéia paralisante e melancólica, de

“final de” algo.

Apesar de Boaventura apresentar uma perspectiva que é considerada por

alguns autores como negativa ao falar de crise, sua análise é relevante na

compreensão do posicionamento ora adotado por constatar as mudanças

contemporâneas a partir de duas percepções uma mais ampla e outra mais restrita,

no momento em que delineia as condições para se estabelecer uma crise do

paradigma: a primeira denominada de “crise de crescimento”65, adotando assim

um conceito de Thomas Kuhn, consiste no acúmulo de crises no interior do

paradigma; a segunda, chamada de “crise de degenerescência”66, atravessa todas

as disciplinas, ocorre quando existem condições sociais e teóricas para que se

recupere o que se deixou de pensar por conta do paradigma, através de um

questionamento da própria inteligibilidade do real.67

Transpassando esta análise para a situação atual, a primeira condição é

preenchida pela percepção da insuficiência do paradigma moderno para atender os

questionamentos contemporâneos, já a segunda pode ser percebida na renovação

da reflexão hermenêutica que conjuga no campo cognitivo “o discurso científico,

o discurso poético e estético, o discurso político e religioso.”68

Outra referência essencial para a compreensão do tema em questão é a

obra A condição pós-moderna69 de Jean-François Lyotard, publicado na França

64 SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna, p. 11. 65 “As crises de crescimento (...) têm lugar ao nível de matriz disciplinar de um dado ramo da ciência, isto é, revelam-se na insatisfação perante métodos ou conceitos básicos até então usados sem qualquer contestação na disciplina, insatisfação que, aliás, decorre da existência, ainda que por vezes apenas pressentida, de alternativas viáveis.”In: Ibid., p. 17. 66 Ibid. 67 Ibid., p. 36. 68 Ibid. 69 “Nossa hipótese de trabalho é a de que o saber, muda de estatuto ao mesmo tempo que as sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na idade dita pós-moderna.” Cf. LYOTARD, J., A condição pós-moderna, p. 3.

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em 1979, que estabelece como marco inicial desta condição por volta dos anos 50

— não coincidentemente no pós-guerra — chamada ainda de “era pós-industrial”.

Na condição pós-moderna seria identificável a crise da ciência e da

verdade, que implicaria em uma mudança da própria ciência, produzindo reflexos

na universidade como produtora da ciência. Neste momento, iniciou-se a

invalidação do enquadramento metafísico da ciência moderna, que acarretou em

uma crise dos dogmas produzidos pela mesma e das suas pretensões

universalizantes e atemporais.70

O pós-moderno, segundo Lyotard, seria a condição da cultura nesta nova

era de vocação cibernético-informática e informacional. 71 Na presente análise,

adota-se o entendimento que apenas neste sentido pode-se falar que o momento

contemporâneo é pós-moderno, pois o mesmo não se consolidou como visão de

mundo dominante, nem pode ser percebido como uma crise.

O posicionamento ora assumido se coaduna ao de Antonio Negri e Hardt

que não se preocupam com designações para o período em que vivemos, mas

reconhecem que, apesar de ainda compartilhar muitos elementos da modernidade

hegemônica, é significativa a mudança em relação ao passado recente.72

Tanto Warat, quanto Negri e Hardt entendem a pós-modernidade como a

modernidade disfarçada de si mesmo, já que a “modernidade continua aberta e

viva hoje”.73 Nas palavras de Warat: “a pós-modernidade não é outra coisa senão

a modernidade em sua fase simulada.”74

Segundo Warat, o que mudou foi o sentimento de vazio advindo da

percepção dos excessos cometidos pela concepção moderna, já Antonio Negri e

Hardt desenvolvem uma abordagem política deste fenômeno consideram que a

mudança pode ser percebida pela dissolução da sociedade civil.75

Bauman também trata o período atual de uma forma próxima à ora

apresentada quando fala de “modernidade líquida”76, como a fluidez atual

70 BARBOSA, W. V., Tempos pós-modernos. In: Ibid., viii. 71 BARBOSA, W. V., Tempos pós-modernos. In: Ibid., viii e ix. 72 NEGRI, A.; HARDT, M., O trabalho de Dioniso: Para a crítica ao Estado pós-moderno, p. 31. 73Ibid., p 34. 74 WARAT, L., A. A condição transmoderna do desencanto com a cultura jurídica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 37. 75 Ibid. 76 “ Os líquidos, uma variedade dos fluidos, devem essas notáveis qualidades ao fato de que suas “moléculas são num arranjo ordenado que atinge apenas poucos diâmetros moleculares.”Cf. BAUMAN, Z., Modernidade Líquida, p. 7.

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representada pela dificuldade da modernidade de manter a sua forma com

facilidade, pela imobilidade e inconstância da “política-vida”77.

A síntese dos posicionamentos apresentados neste momento sobre a

condição contemporânea de visão de mundo, que inexoravelmente afeta a forma

de produção científica, encontramos na lição de Leandro Konder que cita uma

frase atribuída à Baudelaire que parece primordial para a compreensão do

questionamento ora levantado: “On ne détruit réelement ce qu’on remplace”, ou

seja, só se destrói, realmente, aquilo que se substitui.78

Deste ensinamento, compreende-se que apesar da negação da modernidade

como visão de mundo realizada contemporaneamente não houve uma substituição

por outra forma de olhar, um novo quadro, uma nova realidade, permanece “uma

certa abstratividade na negação”79, em que nenhum projeto se apresenta com a

eficácia transformadora necessária para superar o paradigma moderno.

2.2 Modernidade imanente e o transurrealismo: sistemas ilusórios criativos

Neste item buscamos articular as categorias modernidade transcendente e

transurrealismo a partir dos autores Antonio Negri e Luis Alberto Warat. Analisar

o transurrealismo80 de Warat apontando para os pontos de encontro com a

modernidade imanente explicitada por Negri e Hardt, adotando conceito de

modernidade como conceito de uma crise, advém da percepção que ambas

perspectivas são pragmáticas, além de se constituírem em sistemas ilusórios

criativos na medida de sua similitude quanto ao reconhecimento da existência de

um processo histórico no ato de conhecer.

77Ibid., p. 15. 78 KONDER, L., A derrota da dialética : a recepção das idéias de Marx no Brasil, até o começo dos anos trinta, p.22. 79 Ibid. 80 Prefereu-se utilizar a nomenclatura “transurrealismo” para falar das propostas de Warat pela primeira vez em um paper apresentado em um painel do Congresso da ABEDI realizado em Brasília em novembro de 2007, assistido por Warat. Esta opção foi aprovada por Warat que utilizou esta designação apenas uma vez em seu blog. Em seu texto ou fragmento, como prefere, designa sua proposta como uma “ (...) reformulación del surrealismo, o bien los fundamentos para que se pueda, actualmente ir armando un neosurrealismo, possurrealismo,o transurrealismo del siglo XXI”. (grifo nosso) Cf. em WARAT, L. A., Materialismo mágico XI. Acesso em: http://luisalbertowarat.blogspot.com/ , 29/09/2007, 14:05.

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Primeiramente, se esclarecerá a opção por designar as visões de vida, de

mundo e de conhecimento da modernidade hegemônica, da modernidade

imanente, do pós-moderno e da proposta transurrealista de Warat como sistemas

ilusórios.

Assim prefere-se utilizar o conceito de paradigma a partir da noção

proposta por Thomas Kuhn de forma ampliada, por ser um conceito que

aparentemente reduziria a análise às crenças e pressupostos no interior de cada

comunidade científica, já que para o autor:

“Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e,inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma.”81 Neste sentido, Kuhn identifica o termo paradigma com “a constelação de

crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade

determinada”82, no qual uma comunidade científica é constituída pelos

integrantes de uma especialidade científica.

O que aproxima o que ora é chamado de sistemas ilusórios dos paradigmas

delineados por Kuhn é que ambos seriam visões de mundo mais abrangentes que

as teorias e não seriam constituídos metodicamente, simplesmente surgem e se

estruturam segundo um padrão significativo.83

Porém, o que torna a noção de sistema ilusório mais pertinente do que a

paradigmática, na presente análise, seria o caráter informativo que esta última

fornece aos pesquisadores sobre o que procurar e o que esperar da pesquisa,

limitando o que pode ser considerado como verdade ao que a “ciência normal”84

reconhece como tal.85 A ciência normal refere-se ao trabalho científico realizado

no interior de um paradigma estabelecido.86

Denota-se ainda, que o conceito de paradigma pode ser considerado

análogo ao senso comum teórico de cada disciplina, proposto por Warat. Neste

contexto, seria inadequado referir-se a paradigmas para designar os projetos da

81 KUHN, T., A estrutura das revoluções científicas, p. 221. 82 Ibid., p 220. 83 ALVES, R., Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras, p.198-197. 84 “(...) a “ciência normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas da ciência. Estas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior.” KUHN, T., op. cit., p. 29. 85 ALVES, R., op.cit, p. 199. 86 CHAUI, M., Convite à filosofia, p. 224.

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modernidade imanente e do transurrealismo, logo se justifica a utilização

redefinida do conceito.

No tratamento dos sistemas ilusórios parte-se do pressuposto de que o

homem necessita de ilusões, como ensina Freud, as ilusões derivam dos desejos

humanos e, diferentemente dos delírios, não contradizem necessariamente a

realidade.87

Adota-se assim o significado dado por Sigmund Freud à palavra ilusão em

que esta se torna fator determinante para a motivação do homem:

“Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos sua relação com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação.”88 Portanto, o significado que Deleuze e Guattari atribuem ao conceito de

ilusão, quando explicam o plano da imanência, apesar de adequado para expressar

os erros que o plano transcendente inspira, não pode ser adotado da mesma forma

na presente análise. Para esclarecer esta ressalva cabe a transcrição do trecho em

que os referidos autores tratam as ilusões com um significado diverso:

“(...) plano de imanência, isto é o mais puro, aquele que não se dá ao transcendente, nem propicia o transcendente, aquele que inspira menos ilusões, maus sentimentos e percepções errôneas (...).”89 (grifo nosso) Percebe-se então que os referidos autores ressaltam a ilusão em seu

aspecto negativo, a ilusão como um erro, pois estão se referindo a ilusão

provocada pela modernidade transcendente90, que produz uma “ilusão que

domina, intoxica e exclui.”91Enquanto a adoção da referida categoria freudiana

desloca o foco para a motivação humana, principalmente na produção de

conhecimento, seja o cientista movido por concepções limitadas a noções

paradigmáticas ou não.

87 FREUD, S., O Futuro de uma Ilusão. In: FREUD, S., Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise, p.108. 88 Ibid. 89 DELEUZE, G.; GUATTARI, F., O que é filosofia?, p. 79. 90 A modernidade transcendente é sinônimo da modernidade hegemônica que corresponde ao que vários autores designam como paradigma moderno. 91 Entrevista ao autor Luis Alberto Warat, em que se adotou a técnica de entrevista semi-estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar de temas que pretende desenvolver em futuras obras.

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O foco na motivação humana é ainda uma forma de evidenciar as

articulações das propostas de modernidade imanente, de Negri e Hardt, e

transurrealismo de Warat, pois ambos os autores percebem a estreita relação entre

o conhecimento e a vida, além de considerarem o sujeito como “ser prático, um

ser de vontade e de ação”. 92

Portanto, percebe-se a preocupação de ambos os autores no sentido de

resgatar a necessidade básica presente tanto no senso comum quanto na ciência de

se compreender o mundo, como forma de sobrevivência e de uma melhor

qualidade de vida.93

Este entendimento que aponta para as perspectivas pragmáticas dos

referidos autores está cristalizado no trecho transcrito a seguir, em que Antonio

Negri explicita a “lógica” da sua pesquisa:

“... lógica que implica diretamente a ação, ou seja, que insere o momento da práxis na epistemologia e, portanto, a ética e política nos processos cognitivos.” 94(grifo nosso) Warat acompanha esta posição, ao afirmar que as mudanças trazidas pela

revolução comunicacional produziram a necessidade de mudanças também na

estrutura do saber, em que o pesquisador se torna participante, deixando o banco

dos espectadores, exercita assim a convivência para saber como agir em relação

ao outro.95No mesmo sentido que apresenta Negri, pois “antes tínhamos teorias;

agora se dá a mudança para a práxis.”96 Nesta perspectiva, ambos propõem uma

articulação entre teoria e prática que parta da idéia de que “somos primitivamente

seres sociais e não epistêmicos.”97

Warat chega ao ponto de propôr uma concepção pragmática da

objetividade, que analise a ação epistemológica a partir de processos empíricos

que se preocupem com as condições de produção da racionalidade científica.98

92 HESSEN, J., Teoria do Conhecimento, p. 51. 93 ALVES, R., op. cit.,p. 21. 94 NEGRI,A., Cinco lições sobre Império, p. 10. 95 WARAT, L. A., Metáforas para a ciência, a arte e a subjetividade. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 538. 96 Ibid. 97 Ibid. 98 WARAT, L. A., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: FALCÃO, Joaquim (Org). Pesquisa científica e direito, p 82.

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Esta concepção pragmática do conhecimento científico também é

compartilhada por Boaventura de Sousa Santos que compreende a ciência como

reflexão do conhecer como prática social.99Segundo o referido autor só existiria

ciência como crítica a realidade com vistas a transformação para uma nova

realidade.100

As propostas de modernidade imanente e transurrealista podem ser

articuladas a partir da percepção do duelo entre as modernidades, em que Antonio

Negri e Hardt consideram que existiria uma guerra entre um poder constituído

transcendente e um poder constituído imanente, ocorreria uma disputa da “ordem

contra desejo”101, tendo em vista que esta mesma disputa é relatada na metáfora

utilizada por Warat, em uma de suas obras mais célebres: “A Ciência Jurídica e

seus Dois Maridos”.102

No livro citado, Warat utiliza a personagem Dona Flor, de Jorge Amado,

como representação da Ciência Jurídica, e os dois maridos como designação de

duas posturas epistemológicas antagônicas. Além disso, atende a necessidade de

misturar ciência e literatura, no caso opta por um romance que é um gênero

literário representativo da “expressão mais evidente da legitimação da

imaginação, da fantasia, ele incomoda o conservadorismo, enfrenta a ‘cobrança’

de pessoas empenhadas em cotejá-lo com a realidade (para assegurar sua

subordinação à ‘ordem’)”.103 O uso da literatura, com o apelo a recursos quase

poéticos, como meio mais efetivo e claro de transmissão de conhecimento.104

Ainda nesta obra Teodoro representa a ordem e Vadinho o desejo, o que

nos permite fazer uma analogia entre estas posturas e as propostas de

modernidade transcendente e imanente, respectivamente. Dona Flor é uma mulher

dividida entre Teodoro e Vadinho, que expressam o contraste entre a “metafísica

dos costumes” e a “metafísica do desejo”.105

99 SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna, p.49. 100 Ibid., p.48. 101 HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 92. 102 WARAT, L. A. Ciência Jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: FISC, 1985. 103 KONDER, L., As artes da palavra: Elementos para uma poética marxista. São Paulo: Boitempo, 2005. 104 WARAT, L. A., Derecho al Derecho. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 27. 105 Id., Ciência Jurídica e seus dois maridos, p. 21.

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A imanência, como concepção da realidade está calcada nas forças do

desejo, da liberação e nos valores humanistas. Para encontrar uma postura

epistemológica no plano da imanência, Warat propõe a criação de “uma

semiologia do desejo, que implica na releitura crítica de formas ideológicas da

cultura moderna.” 106

Teodoro e Vadinho se complementam, já que Vadinho se apresenta como

expressão do feminino e Teodoro como expressão do masculino, que é

representado pelo previsível.107 Ao realizar uma projeção para o Direito, Warat

considera que o saber jurídico da modernidade organizou o lado masculino do

imaginário do Direito108, pois se adequou ao modelo de modernidade hegemônico

que, como foi dito, é representado pelo normativismo no campo jurídico. 109

O casamento de Dona Flor com Teodoro deve ser compreendido como

conotação da “realidade culturalmente imobilizada, o desejo legalizado”110 (grifo

nosso). A partir desta metáfora podemos considerar que atualmente a maioria dos

juristas só se casaram com Teodoro, são “juristas instituídos” .

A compreensão do feminino/ masculino na obra waratiana é empregada da

mesma forma que Jean Baudrillard, para quem o feminino contradiz a posição

masculino/feminino, em termos do valor de cada sexo.111O feminino fora da idéia

de identidade sexual, tranversalizaria as referidas noções, assim, pode-se perceber

que ambos fogem de um dos dualismos modernos.

Atualmente, Warat vem tratando em Palestras e Congressos112 os opostos

Vadinho/ Teodoro de forma análoga, respectivamente, às figuras de Dioniso e

Apolo. Neste sentido, Warat se apropria da oposição entre o apolíneo e o

dionisíaco desenvolvida por Nietzsche, que deriva das figuras dos referidos

deuses.113

106 WARAT, L. A., Amor tomado pelo amor: crônica de uma paixão desmedida,p. 28. 107 Id., Ciência Jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p.71. 108Ibid., p. 72 109 Cf. item 1.1. da presente análise. 110WARAT, L. A., Ciência Jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade,, p.70 111 BAUDRILLARD, J., Senhas, p. 24. 112 Entre eles a Palestra ministrada pelo autor na Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ sobre Materialismo Mágico, em 17 de outubro de 2007. 113 JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D., Dicionário Básico de Filosofia, p.73.

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Vadinho aparece, assim, na figura do Deus grego Dioniso, “deus da

embriaguez, da inspiração e do entusiasmo”114 e Theodoro como Apolo “o deus

da medida e da harmonia”.115

A figura dionisíaca se adequa à proposição de visão de mundo de Warat,

pois “concebe ativamente o devir”116, o que aponta para uma visão cartográfica de

mundo que trabalha nos territórios desconhecidos.

Retomando a metáfora inicial, Warat propõe que o imaginário jurídico

cometa atos de Vadinhagem “um pouco como Dona Flor, ele poderia descambar

em um Vadinho para compensar-se da sobrecarga de deveres que lhe impõe um

Teodoro.”117 Os teóricos críticos, como Warat, esperam que Vadinho volte da

morte, para que os juristas, como profissionais que se debruçam sobre a Ciência

Jurídica, se entreguem ao adultério.118

Neste ponto pode-se comprovar que o campo epistemológico em que se

permitem os atos de Vadinhagem propostos por Warat, se torna possível dentro de

um modelo de modernidade imanente (Negri), em que as forças imanentes,

construtivas e criadoras prevaleçam ao poder transcendente que visa restaurar a

ordem.

Seguindo a proposta de Warat, que se aproxima do modelo de

modernidade imanente, os juristas são chamados a trabalhar no campo da

marginalidade, da ambivalência como possibilidade de renascer 119 , no sentido de

abertura de um campo de possibilidades para os juristas que sofrem com a

“angústia da castração”.120

A castração é entendida por Warat como a ideologia que coloca o desejo

fora da história, com vistas ao controle dos corpos nos distanciando dos nossos

desejos. Deve-se atentar que a ciência, desenvolvida a partir do modelo da

modernidade hegemônica, impõe métodos que impedem que os desejos

“corrompam” o conhecimento objetivo da realidade.121

114 Ibid., p. 73. 115 Ibid., p. 14. 116 Ibid., p. 14 117 WARAT, L. A., Ciência Jurídica e seus dois maridos, p.26 118 Antes que surjam críticas de “Teodoros” guiados por uma “cultura-detergente”, que exige um pensamento sem sujeira, cabe esclarecer que adultério é empregado pelo autor como “mobilidade e marginalidade que contêm o novo.” In: Ibid., p. 16. 119WARAT, L. A. Ciência Jurídica e seus dois maridos, p. 76. 120 Ibid., p.78. 121 ALVES, R., op. cit., p. 41.

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A ciência moderna considera, para tanto, apenas os aspectos negativos do

desejo como fonte de ilusões (no sentido negativo) e preconceitos. Esta concepção

de ciência esquece que “a música, a literatura, a pintura, a religião, a [própria]

ciência e tudo que se poderia denominar criatividade”122 são fruto dos desejos

humanos.

A proposta de marginalização da ciência jurídica de Warat, que pode ser

equiparada a proposta da modernidade imanente, fica evidente no seguinte trecho

da sua obra “Ciência jurídica e seus dois maridos”:

“Ora, preciso colocar na ciência jurídica a máscara de Vadinho, imaginada por Dona Flor, para montar minhas instituições subversivas e sublimar a parte maldita da cultura jurídica”. 123 Após as aproximações entre as propostas de modernidade imanente e

transurrealismo, será apresentada de forma mais detalhada a proposta de Warat,

como visão de mundo que abrange, implicitamente, propostas para a Ciência

Jurídica e a pedagogia neste campo.124

Para tanto, deve-se perceber que a proposta transurrealista, apresentada por

Warat, será apresentada a partir de um resgate de algumas concepções

apresentadas em obras anteriores a explicitação desta proposta, principalmente

suas perspectivas epistemológicas e pedagógicas, pela constituição da referida

proposta se tratar simultaneamente de uma construção e de uma desconstrução de

próprias idéias do autor.125

O posicionamento de Warat demonstra seu auto-questionamento como

autor que adota a autêntica dialética como modo de pensar, o que não retira a

importância da sua obra em relação aos temas em questão.126

122 Ibid., p. 41. 123 WARAT, L. A., A Ciência Jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p.84. 124 Apesar do referido autor ser um filósofo “que malandramente, faz de conta que nada propõe.” Porém, quem mergulha na leitura desafiadora e surpreendente de sua obra, identifica rapidamente a clareza e riqueza de suas propostas.MONDARDO, Dilsa. 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat, p. 12. 125 Apesar de Warat ter se dedicado com afinco ao campo de estudos da epistemologia e pedagogia do direito, em seus últimos escritos o mesmo demonstra uma desconfiança pelo controle epistemológico e nas possibilidades de ensinar. Este entendimento pode ser comprovado pelo título de um dos volumes da coletânea de suas obras: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Cf. WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. 126 “A dialética, como modo de pensar, no sentido proposto por Marx, precisa estar sempre disposta a questionar a si mesma, a se reformular em seus próprios fundamentos, para não se

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Este entendimento é reforçado pelo enfoque em um projeto de

transformação para o imaginário jurídico dado por Warat à trilogia de textos que

ele escreveu nos anos 80: A ciência jurídica e seus dois maridos; Manifesto do

surrealismo jurídico e Amor tomado pelo Amor. O próprio autor reconhece que

nestas obras aposta na mudança de uma forma de narração como condição

preponderante para a alteração nos significados e no modo de pensar jurídico.127

As propostas de Warat partem da perspectiva de Gaston Bachelard que

consiste na necessária ligação da ciência ao seu ensino.128 Desta forma, a

epistemologia se prolonga com a conexão do saber e do ato que o instituiu, ocorre

assim a simbiose entre a transmissão do saber e do saber em si mesmo.129

Assim, sob a influência de Bachelard, Warat “introduziu a problemática

epistemológica no interior da problemática pedagógica do ensino do direito,

tomando-a como intrínseca à metodologia de ensino”130. Daí decorre a

necessidade da presente pesquisa analisar as propostas epistemológicas e

pedagógicas de Warat conjuntamente.

O autor propõe a carnavalização da epistemologia e da pedagogia, a partir

dos ensinamentos de Bakthin131, em que esta idéia representa o lugar da

criatividade, da fragmentação, da espontaneidade, da recepção dos sinais do

novo.132A carnavalização se presta a descoberta das fissuras da racionalidade

moderna, pois “no campo do saber é preciso envelhecer as verdades instituídas

para que se abra o campo para a presença do novo”.133

A relevância de uma análise mais abrangente dos trabalhos de Warat nos

permite identificar que a idéia de carnavalização bakthiniana é o primeiro passo

desligar do fluxo da história.” KONDER, L., A derrota da dialética : a recepção das idéias de Marx no Brasil, até o começo dos anos trinta, p. 13. 127 WARAT, Luis Alberto. Introdução In: MONDARDO, D., 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat, p. 18. 128 DAGOGNET, F., Sobre una segunda ruptura. In: WUNENBURGER, J. (coord.). Bachelard y la epistemología francesa, p. 13. 129 Ibid., p. 13. 130MONDARDO, D., op. cit, p. 81. 131 “(...) de Bakthin tomei emprestada sua idéia de carnavalização e a projetei ao plano epistemológico(...)”.WARAT, L. A., Introdução.In: Ibid.., p. 18. 132 Ibid., p. 90. 133 WARAT, L. A., Por quem cantam as sereias: Informa sobre Ecocidadania, Gênero e Direito. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 472.

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do autor para chegar ao surrealismo.134 Esta relação é assumida pelo próprio autor

na seguinte passagem:

“A idéia de carnavalização me levou para o surrealismo por entender que existia um alto grau de semelhança entre o surrealismo e as análises Bakthinianas acerca dos discursos carnavalizados.” 135 No que tange ao ensino do direito, a modernidade utilizou o cientificismo

para criar uma mentalidade jurídica obscura e coberta de segredos para seus

alunos, o que ajudou a construir “uma montagem mítica que gera uma relação

imaginária entre o saber do Direito e suas práticas”. 136

Warat compreende que o paradigma da transmodernidade requer uma

revolução na “pedagogia oficial da modernidade”137, em que a relação entre

professor e aluno é carregada de soberba e distanciamentos afetivos. Não adianta

um lifting no modelo educacional das Faculdades de Direito, só uma Revolução

educativa seria capaz de atender as demandas por uma sensibilidade que

possibilite a autonomia e a alteridade.138

Warat busca uma nova maneira de ministrar aulas que seja inversa à idéia

do professor autista139 que ignora ou detesta os alunos, assim como o juiz que

detesta as partes, o médico que detesta os pacientes. Professores que preparam um

roteiro de aula inalterável em nome da seriedade. 140

Dentro da narrativa waratiana pode-se dizer que estes professores têm

uma atitude masculina de cálculo prévio de desempenho. Estes professores são

incapazes de uma atitude feminina de administrar o novo, o imprevisível que

aparece quando se permite um diálogo professor-aluno.

134 Adiante será explicitado o que Warat compreende como surrealismo. 135 MONDARDO, Dilsa. , 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat , p.18. 136WARAT, L. A., Por quem cantam as sereias: Informa sobre Ecocidadania, Gênero e Direito. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 439. 137 Palestra ministrada por Luis Alberto Warat na Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ sobre Materialismo Mágico, em 17 de outubro de 2007. 138 Neste modelo moderno de pedagogia, o aluno se transforma em um número na pauta, na carteirinha, na nota e o professor se preocupa em exibir seu conhecimento, ao invés de estar comprometido com o real aprendizado. As idéias transmitidas tão são tão intoxicantes quanto um yogurte vencido. Aulas virtuais vendidas no mercado acadêmico, com o mesmo efeito das vídeo-conferências. Palestra ministrada por Luis Alberto Warat no PROURB da UFRJ sobre Materialismo Mágico, em 17 de outubro de 2007. 139 O autista não deve aqui ser compreendido como o diagnóstico psicológico daquele indivíduo que possui um excesso de sensibilidade que o retira da sociabilidade, apenas pretende-se enfatizar o aspecto da ausência de escuta do outro. In: Ibid. 140 Ibid.

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Ademais, na perspectiva pedagógica o autor é um forte crítico ao

isolamento acadêmico e pensa além transdisciplinariedade que, segundo o autor,

seria um diálogo entre elites, propondo uma multidisplinariedade que abrangesse

inclusive o saber popular141, a sala de aula é encarada por ele como uma

possibilidade de construção de um conhecimento coletivo entre alunos e

professores.

Warat propõe uma pedagogia surrealista que rompa a cadeia da opressão

existente entre professor e aluno na pedagogia oficial da modernidade através do

uso da imaginação poética. 142 O poético como forma de constituição de um

espírito crítico, criativo que questione o estabelecido, adentrando nos territórios

inacessíveis.

Assim, Warat se considera um surrealista por acreditar que os limites

existem para serem “transgredidos com crueldade”143, no sentido de uma

transgressão rigorosa, determinada e implacável.

A nova sensibilidade proposta para organizar o mundo que ainda não

chegou, Warat denomina de transmodernidade ou transurrealismo, como

preferimos. Este outro regime de sentidos que está na ordem do “entre” devem

possibilitar os “devires, os inéditos, os invisíveis” 144, que implica em uma visão

cartográfica de mundo.

Para concretizar esta idéia de uma nova sensibilidade, Warat elabora uma

proposta surrealista através de um Manifesto145, em que tomou como principal

referência André Breton.146

O surrealismo desenvolvido por Breton influenciou de forma silenciosa o

movimento de maio de 1968. O surrealismo antes de ser um movimento para a

transformação da arte pretende ser um movimento de transformação da vida em

geral147, o que representa uma perspectiva pragmática como pretende Warat.

141 Palestra ministrada por Luis Alberto Warat na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ para o 2º Seminário Internacional Direito e Cinema: visões sobre o direito e a ditadura, em 5 de Outubro de 2006. 142 WARAT, L. A., Por quem cantam as sereias: Informe sobre Ecocidadania, Gênero e Direito. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade.,p. 432. 143WARAT, L. A., Materialismo mágico IX e X. 144 Ibid. 145 Id., Manifesto do surrealismo jurídico, 1988. 146 Cf. BRETON, A., Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard Publication, 1924. 147 WARAT, L. A., Materialismo mágico II.

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Compreende-se que a atualização do surrealismo por Warat se deve

essencialmente pela sua “potencia corrosiva de lo lugares comunes y otras

intoxicaciones”.148

Warat adota a posição que a origem do surrealismo está no dadaísmo, com

sua rebeldia quase despropositada, e na psicanálise. O movimento surrealista e a

psicanálise se apoiaram mutuamente, até porque aparecem historicamente quase

na mesma época, ambos são movimentos de descoberta da subjetividade própria e

alheia.149

Assim, segundo o referido autor, o marco oficial do surgimento do

surrealismo ocorreu com a publicação da Revista Littérature dirigida naquele

momento por Aragon, Breton e Soupault. A referida Revista abriu espaço para a

criação de uma anti-literatura, em que a poesia ganha destaque como forma de

“expresión de la propia sensibilidad inconsciente”. 150

Outro importante marco para o movimento em questão foi a edição do

primeiro Manifesto do Surrealismo que critica pilares do paradigma moderno na

produção dos saberes, como a lógica e os excessos do racionalismo. 151

Em seus mais recentes escritos, Warat está elaborando fragmentos para

compor um outro Manifesto, que acredita ser mais adequado ao paradigma

transmoderno152, em que propõe um “transurrealismo” a partir de um

“materialismo mágico”153 tomando como referência os ensinamentos de Antonin

Artaud.154 A proposta transurrealista cria um novo horizonte deslocado da

melancolia de pensar o novo amparado nas sombras do velho.155

A proposta do materialismo mágico156 visa à articulação dos movimentos

marxistas e surrealistas por “pensar que a transformação das condições materiais

148 Ibid. 149 Ibid. 150 Id., Materialismo mágico III. 151 Ibid. 152 Entrevista ao autor Luis Alberto Warat em que se adotou a técnica de entrevista semi-estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar de temas que pretende desenvolver em futuras obras. 153 Expressão criada por Warat em um diálogo com uma aluna bahiana, se apresenta como um movimento cultural para o século XXI. Esta proposta foi apresentada através de fragmentos em uma coluna virtual. In: Id., Materialismo mágico I. 154Id., Materialismo mágico XI. 155 Id., Crisis de la democracia y crisis de la modernidad. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 316. 156 O materialismo mágico representa ainda uma proposta de um neo-surrealismo como movimento jurídico-político encabeçado por Warat sob a denominação de Arte e Direito, que

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de existência depende de uma transformação simultânea das condições de

produção da subjetividade; que por sua vez, não poderá se concretizar plenamente

se não se modificar, conjunta e de modo uníssono, as condições materiais de

existência.”157

Artaud revela o teatro como uma atitude fantástica que consiste em

compreender que o pensamento é poesia, ou seja, vem de dentro para fora.158Para

que seja atingida a “divindade do sensível”159 deve-se praticar o atletismo afetivo

proposto por Artaud para os atores, que deve ser expandido também para os

juristas e educadores do direito segundo o posicionamento de Warat.

O atletismo afetivo de Artaud representa que o ator possui “uma espécie

de musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas dos

sentimentos.”160Para que o ator use sua afetividade como o lutador (atleta) utiliza

da sua musculatura, o ser humano deve ser compreendido como um Duplo, “como

um espectro perpétuo em que se irradiam as forças da afetividade”161, assim o ator

se torna consciente do mundo afetivo.

Estes atletas dos sentimentos estão abertos ao amor, no caso dos

profissionais do direito, estes atletas têm maior capacidade para prevenção de

litígios, alcançando inclusive os conflitos, além de interpretações sensíveis às

demandas sociais, se configurariam como “intérpretes duplos”. No campo

pedagógico, os juristas educadores teriam a capacidade de desenvolver uma

relação de troca construtiva e criativa entre alunos e professores.

Assim, pode-se dizer que o transurrealismo de Warat propõe um “barroco

do futuro” 162 para o mundo jurídico que através da produção no devir implique

em uma fuga através da sensibilidade como combate aos excessos racionalistas

modernos.

possui um canal de TV disponível na Internet para a reflexão e diálogo sobre o tema. Este é um espaço de fuga para o que Warat designa como “pinguinização” dos profissionais do direito. Disponível em: http://arteedireito.tv/ . Acesso em: 18 out. 2007, 13:40. 157 Id., Materialismo mágico I. 158Esta idéia contraria a referência “(...)ao pensamento do filósofo que perde o tempo tratando de ser erudito, especialista em algum outro filósofo (...)”. In: Id., Crisis de la democracia y crisis de la modernidad. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 316. 159 WARAT, L. A., Materialismo mágico III. 160 ARTAUD, A.,O teatro e seu duplo, p. 151. 161 Ibid., p. 153. 162 WARAT, L. A., Metáforas para a ciência, a arte e a subjetividade. In: WARAT, L. A. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 534.

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O barroco deve atuar nos espaços de imprecisão da linguagem, em que a

vagueza e ambigüidade podem ter origens lingüísticas ou ser reflexo do

desbravamento dos intérpretes nos território desconhecidos.

O barroco adentra nestes espaços de imprecisão abrindo as portas para o

poético e metafórico. A invasão da poesia na “ciência” surge como forma de

reação ao conceitualismo, com o fim de transformar o “geral e abstrato em

metáfora”. 163

A linguagem carregada de emoção e de metáforas que querem encantar o

que se pretende dizer não retira o caráter científico da escritura, se entendermos

que a ciência pode ser produzida em espaços diferentes dos tradicionais.164Assim,

a poesia como forma de exposição emotiva, toma o lugar da seriedade científica, e

a metáfora substitui o enunciado teórico. 165

Não foi incidentalmente escolhido o nome do livro que comemorou os 35

anos de docência de Luis Alberto Warat: O poder das metáforas166, o próprio

organizador do livro explica que este título foi escolhido pelo gosto que Warat

tem pelas metáforas em suas obras, em que a metáfora que teve maior repercussão

entre os juristas tradicionais está presente em seu livro A Ciência Jurídica e seus

dois maridos.

Outro motivo da escolha do título do referido livro, apresenta-se como

mais adequado para representar a importância das metáforas na produção

acadêmica:

“Obviamente o emprego de metáforas na obra waratiana não se dá apenas por razões estritamente literárias. Ao lado do interesse poético de representação do mundo, elas constituem uma forma de duplicação do espaço de reflexão sociopolítica sobre o poder.”167 A apresentação de uma narrativa descontínua e ambivalente como forma

de inserção destes valores no imaginário jurídico. O seguinte fragmento reafirma

as colocações sobre a estética do autor, que afirma:

163 Ibid., p. 534. 164 WARAT, L. A., Derecho al Derecho. In: WARAT, L. A. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 27. 165 Ibidem. 166 OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat. 167 Id., Apresentação. In: OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat.

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O poético como fuga do pensamento alienado. O barroco como forma de expressão do encontro do novo com a instância do jurídico. Uma exaltação do poder da metáfora.168(grifo nosso) O poder das metáforas é reconhecido, e podemos dizer até evidente, para

os escritores de obras literárias como o autor tcheco Milan Kundera que em seu

romance169 A insustentável leveza do ser170 apresenta um exemplo desta

percepção, o que se depreende da seguinte transcrição: “Tomas não sabia que as

metáforas são uma coisa perigosa. Não se brinca com as metáforas. O amor

pode nascer de uma simples metáfora.”171(grifo nosso)

A partir da constatação do processo de constituição de sistemas ilusórios

criativos, que podem utilizar instrumentos políticos, poéticos, epistemológicos,

pedagógicos, entre outros, estes devem ser percebidos como um recurso essencial

para o redimensionamento do jurista no papel de intérprete.

168 WARAT, L. A.. Introdução. In: MONDARDO, D., 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat, p. 18. 169 Como dissemos anteriormente o romance tem um papel importante na não submissão à ordem. 170 KUNDERA, M., A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 171 Ibid.

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3 Resgatando Kelsen: para uma crítica qualificada

3.1 Kelsen em defesa da juridicidade

A presente análise possui um enfoque na pureza metodológica kelseniana,

que pretendia constituir a independência metodológica como a principal tarefa da

Teoria Pura do Direito, o que se comprova quando Hans Kelsen designa que a

referida teoria seria uma “teoría del método específico del conocimiento

jurídico.”1

Além disso, deve ser considerado que este autor representa a principal

“referência do dogmatismo positivista e logicista”2, perpetuado no senso comum

teórico dos juristas e na importância do projeto da Teoria Pura do Direito3 para a

consolidação do campo de conhecimento jurídico como “ciência”.

Como todo discurso, o kelseniano possui diversas denotações, o que nos

permite admitir a existência de diversos “kelsens”4 simultâneos: um Kelsen

kantiano, um Kelsen positivista jurídico, um Kelsen normativista, um Kelsen

formalista, entre outros.

Neste momento, cabe identificar as características comuns das teorias que

estão inseridas no positivismo jurídico5 para, posteriormente, entendermos de

forma específica a Teoria Pura do Direito desenvolvida por Kelsen.

1 KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?, p. 9. 2 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 13. 3 Adrian Sgarbi observa que a “Teoria Pura do Direito” não é apenas um nome de um livro, mas um projeto de que visa a elevação do direito à posição de ciência . O esforço para a consolidação deste projeto está presente nas seguintes obras: ‘Problemas Fundamentais de Direito Público”, ‘Teoria Pura do Direito” e suas edições até a de 1960, “teoria Geral das Normas”, livro editado postumamente. In: SGARBI, A., Hans Kelsen: ensaios Introdutórios (2001-2005), p.1. 4 ROCHA, L. S., Epistemologia Jurídica e Democracia, p. 65. 5 “La teoría pura del derecho es positivismo jurídico, es simplesmente la teoría del positivismo jurídico (...).”In: KELSEN, H., op. cit., p. 31.

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Para tanto, serão apontados a seguir os pontos fundamentais do

juspositivismo a partir de Norberto Bobbio, pois permitirá reconhecer que Kelsen

se insere nesta pespectiva: abordagem do direito como um fato; o direito é

definido em função do elemento da coação; desenvolvimento da teoria da

legislação como fonte preeminente do direito; considera a norma jurídica como

um comando (teoria imperativista do direito); sustenta a teoria da coerência e da

completude do ordenamento jurídico, a teoria da interpretação mecanicista e a

teoria da obediência absoluta da lei.6

O enquadramento da teoria kelseniana no positivismo jurídico é essencial

para rechaçar a crítica freqüente a este pensamento que interpreta como forma de

pensar o direito que exclui os valores morais. Esta interpretação confunde o

positivismo jurídico com o que Norberto Bobbio denominou de versão extremista

do positivismo ideológico.7

Segundo Bobbio, o positivismo ideológico possui duas versões: uma

extremista ou forte; e uma versão moderada. A primeira afirma o “dever absoluto

ou incondicional de obedecer à lei enquanto tal”8, já a versão moderada estabelece

que o direito tem um valor na realização da ordem, mas isto não o torna justo. Na

leitura do projeto kelseniano depreende-se que o mesmo se adequa ao positivismo

ideológico na sua versão moderada.

Hans Kelsen configura-se como ponto de referência e de contraposição

para os autores que se propõem a elaborar um saber crítico como Warat.9Constata-

se que não são apenas os autores que desenvolvem um saber crítico que partem da

análise do positivismo para, posteriormente, apresentarem suas propostas, o que

se deve à relevância desta corrente teórica no pensamento jurídico.

Albert Calsamiglia é um representante do pós-positivismo que estrutura o

seu trabalho a partir da definição do que é positivismo para depois diferenciá-lo

das teorias que denomina de pós-positivistas.

6 BOBBIO, N., O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito, p. 131-133. 7 SGARBI, A., Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p. 716,717. 8 Id., O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito, p. 225. 9 Cf. RUIZ, Alicia E. C. Aspectos ideológicos del discurso jurídico (desde una crítica del derecho). In: MARÍ, E. E.; CÁRCOVA, C. M. (org.), Materiales para una crítica del derecho, p. 111.

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Em seu artigo En defensa de Kelsen10, Calsamiglia descreve as posições

positivistas a partir da Teoria Pura do Direito de Kelsen, por considerar que o

mesmo ocupou uma posição de destaque na Teoria do Direito européia,

principalmente no entre-guerras, e permanece sendo um dos autores mais

estudados na Europa e América Latina. 11

Neste ponto, vale apontar algumas características gerais do positivismo

kelseniano, principalmente a Teoria do Conhecimento em que está fundado, para a

melhor compreensão da crítica pontual às conseqüências do predomínio pureza

metodológica no imaginário jurídico.

Kelsen adota o monismo metodológico, com o fim de evitar o seu oposto:

o sincretismo metodológico12 que, segundo o autor, obscureceria a essência do

direito, influenciado pela Teoria do Conhecimento kantiana em que a ciência cria

seu próprio objeto através da inversão da centralidade gnosiológica do objeto para

o sujeito cognoscente.

Apesar de muitos teóricos não compreenderem, Kelsen não nega a

legitimidade de outros campos de conhecimento como a Sociologia e a Teoria

Política, apenas acredita que a Ciência Jurídica deve constituir um objeto de

conhecimento próprio.13 A seguinte transcrição de um trecho da obra Teoria Pura

do Direito esclarece a posição de Kelsen em relação à conexão do Direito a

ciências como a psicologia, sociologia, ética e política:

“Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar o sincretismo metodológico (...).”14 Disto decorre que, para o positivismo kelseniano, a Ciência Jurídica

produz seu objeto apenas no território gnoseológico15, com o objetivo de buscar a

origem, a natureza, o valor e os limites da faculdade de conhecer dentro de uma

Ciência jurídica em sentido estrito.

10 CALSAMIGLIA, A., En defensa de Kelsen. In: Working Papers- Instituit de Ciències Polítiques i Socials, n. 19, Barcelona:, 1997. 11 Ibid., p. 6 e 7. 12 Kelsen considera que uma teoria do direito possui o defeito do sincretismo metodológico quando utiliza métodos que não sejam estritamente jurídicos. Cf. Ibid., p. 10 e 11. 13 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 30. 14 KELSEN, H., Teoria Pura do Direito, p. 1-2. 15Id., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 28.

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Para uma melhor compreensão, deve-se expor que Kant em sua Crítica da

Razão Pura distingue duas modalidades de conhecimento: os conhecimentos

empíricos, que são captados a partir da experiência sensível; e os conhecimentos

puros ou a priori, baseados apenas na estrutura interna da razão, independente da

experiência individual.16

Estes dois tipos de conhecimentos se exprimiriam a partir de juízos

analíticos ou explicativos e juízos sintéticos ou ampliativos. Apenas os juízos

sintéticos seriam fonte do conhecimento, pois os predicados acrescentariam dados

novos ao conceito do sujeito. De fato, a questão fundamental a ser respondida por

Kant seria sobre a possibilidade de existência dos juízos sintéticos a priori.17

Kelsen utiliza parcialmente o método transcendental ou crítico de Kant,

para desenvolver a Teoria Pura do Direito como epistemologia do saber no campo

jurídico, já que prescinde dos juízos sintéticos a priori que pressupõem sempre

um dado sensível. O autor escapa, assim, da principal problemática do método

transcendental, ao reduzir o conhecimento do direito à dimensão deontológica das

normas positivas.18

A Teoria Pura do Direito kelseniana utiliza ainda a estratégia da cisão

entre o ser (plano ontológico) e dever-ser (plano deontológico) kantiana.19 Com

isso, a referida teoria se limita à análise do plano deontológico em que se

encontram as normas e seu enfoque técnico jurídico, eliminando a facticidade

como objeto de análise.20

Distingue-se, portanto, a problemática da validade em dois domínios: o

prático ou operativo e o teórico ou epistemológico. O plano prático estaria

comprometido com a política jurídica e estaria excluído das preocupações da

ciência normativa do direito, que se limitaria à esfera epistemológica. 21

Na realidade, o princípio metodológico da pureza adotado por Kelsen

possui influências diretas do neokantismo de Marburgo, por acreditar que o 16 “(...) se há um tal conhecimento independente da experiência e mesmo de todas as impressões e sentidos. Tais conhecimentos denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a posteriori, ou seja na experiência.” In: KANT, I., Crítica da Razão Pura, p.53. 17 CHAUI, M., Convite à Filosofia, p. 199. 18 WARAT, L. A., Los pressupuestos kantianos y neokantinos de la teoria pura del derecho. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 246. 19 GUIMARAES, Francisco de. Op. cit., p. 113. 20 Id., Sobre la dogmática jurídica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 156. 21 Id., La norma fundamental kelseniana como critério de significacion. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou., p. 269.

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conhecimento científico do direito só se tornaria possível “com base em uma

estrutura deontológica precisa e pré-existente”22, o que implica na elaboração de

uma teoria dos sentidos deontológicos das normas purificadas da faticidade, de

elementos axiológicos, políticos ou ideológicos. Nem todo Kant interessa a

Kelsen, mas fundamentalmente a metodologia da Crítica da Razão Pura

influencia a delimitação do postulado da pureza como método específico do

conhecimento jurídico.

O primado do teórico sobre o empírico, na concepção de conhecimento

kantiana também influenciou a Teoria Pura, o que explicita a característica

principal do racionalismo, desenvolvido pela primeira vez por Platão, que exalta

epistemologicamente o papel da razão no conhecimento. Assim, o conhecimento

prescindiria da experiência, pois os “conteúdos da experiência não dão qualquer

ponto de apoio ao sujeito pensante para a sua atividade conceitual.”23

A discordância do empirismo afasta Kelsen dos demais positivistas do

século XIX, apesar de, como eles, rejeitar o direito natural, o mesmo não aceita a

possibilidade de se desenvolver uma ciência real em sentido estrito.24

Neste sentido, Kelsen é influenciado, ainda, pelo aspecto da Teoria do

Conhecimento de Kant, que objetiva superar a idéia de que existe uma

possibilidade de conhecer a realidade das coisas em si (noumenon), pois, para este

autor, a apreensão da realidade só seria possível pelo fenômeno, que é

subjetivamente produzido.

Tem-se, pois, em um momento pré-científico, os dados — no caso da

ciência do direito seriam as normas jurídicas — que carecem de significação, com

a tematização, estes dados adquirem sentido como objeto unitário que compõe a

ordem jurídica.25

Do que foi dito, pode se sustentar que Kelsen é influenciado, para a

produção do método da pureza metodológica, de um lado por Kant e do outro pelo

positivismo científico, que foram respectivamente redefinidos pelo neokantismo e

22WARAT, L. A., Los pressupuestos kantianos y neokantinos de la teoria pura del derecho. In: WARAT, L. A.., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 243. 23 HESSEN, J., Teoria do Conhecimento, p. 67. 24 Id., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 73. 25 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 28.

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o positivismo lógico, assim, a Teoria Pura seria a síntese das duas posturas

apresentadas26

A Teoria Pura do Direito desenvolve a função ontológica da Filosofia do

Direito.27 Desta forma, ela procura responder sobre a essência do direito, ao se

ocupar de uma teoria do conhecimento jurídico. Neste sentido, se torna inafastável

uma análise epistemológica para a compreensão dos reflexos da referida teoria.

Warat divide o processo histórico da dogmática28 tradicional, identificada

como a tentativa de construir uma teoria sistemática do direito que não envolva

juízos de valor29na aplicação de seu método jurídico-técnico em três etapas. A

primeira etapa pode ser denominada como exegética30, na qual ocorre a

conceitualização dos textos legais, ou seja, visa o estabelecimento de um conteúdo

exato para a lei.31

Nesta instância metodológica a dogmática identifica-se com a lógica

jurídica, que percebe o conceito da seguinte forma:“El concepto sería entonces,

una categoría conceptual estable, indiscutible, con significación cerrada.”32

A segunda etapa representa a fase dogmatização jurídica propriamente

dita, em que são fixados os dogmas jurídicos e os princípios gerais, que

semiologicamente falando, podem ser considerados como esteriótipos — fórmulas

ocas — que introduzem critérios axiológicos de forma mascarada para que o

ordenamento jurídico obtenha a completude tão sonhada.

O positivismo kelseniano está inserido na terceira fase da dogmática

jurídica33, correspondente à sistematização, que culmina com uma Teoria Geral do

Direito ou uma dogmática geral.

26 Id., Los pressupuestos kantianos y neokantinos de la teoria pura del derecho. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 241. 27 Bobbio fala de três funções para a Filosofia do Direito: deontológica, ontológica e fenomenológica. Cf. WARAT, L. A., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 66. 28 A palavra dogmática vem de dokein que significa doutrinar, ensinar. As questões dogmáticas são regidas pelo “princípio da inegabilidade dos pontos de partida”. In: FERRAZ JÚNIOR, T. S., Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, p. 41-48. 29WARAT, L. A., Sobre la dogmática jurídica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 153. 30A Escola da exegese francesa é uma doutrina subjetivista de interpretação, que se centra na vontade do legislador (mens legislatoris), para compreender o sentido da lei bastariam análises lingüísticas e métodos lógicos. Argumentavam que a interpretação não poderia ficar a mercê dos intérpretes. V. FERRAZ JÚNIOR, T. S., op. cit, p. 267-269. 31 WARAT, L. A., Sobre la dogmática jurídica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p.154. 32Ibid., p. 155. 33 Ibid., p. 156.

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Além da preocupação com a questão epistemológica do discurso jurídico,

Kelsen também estruturou o método da dogmática jurídica para elucidá-lo. Como

a dogmática jurídica tradicional, a Teoria Pura procura “alcançar seu resultado

exclusivamente através da análise das normas jurídico-positivas”.34

Por isso, a Teoria Pura seria um aperfeiçoamento da dogmática jurídica se

apresentando como uma dogmática geral por constituir um esquema de conceitos

básicos35, ou seja, estabeleceria as categorias gerais deste modelo de

conhecimento.

Percebe-se, portanto, que a Teoria Pura pretende ser uma Teoria Geral do

Direito Positivo que seja descritiva, ou seja, que descreva o objeto

normativo.36Como Teoria Geral, ela se ocupa da estrutura lógica das normas e não

dos conteúdos específicos das mesmas.37

Segundo Kelsen, a tarefa da Teoria Geral do Direito seria investigar a

essência do direito, sua estrutura típica, independentemente do conteúdo variante

que teve nas diferentes épocas e países. Como epistemologia, a Teoria Pura do

Direito fornece as normas metodológicas para a adequada produção do saber

jurídico dogmático. 38

A Teoria Pura de Kelsen pretende ser uma teoria geral que, para tanto,

precisa de um método específico e conceitos fundamentais que sirvam para

descrever e conceber qualquer tipo de direito.39

Kelsen tenta criar uma teoria do direito autônoma, sistemática e unitária.

Para tornar esta teoria autônoma o autor em questão utiliza como critério

metodológico o princípio da imputação para selecionar seu objeto40, que

corresponde ao nexo lógico apreendido.

A diferença entre o princípio da imputação e o da causalidade, utilizado

pela “teoría metafísica del derecho”41, reside na dependência ou não da vontade

humana na vinculação entre causa e efeito. No princípio da causalidade esta

34WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica.,p. 33. 35 Ibid., p. 38. 36 Ibid., p. 15. 37 LARENZ, K., Metodologia da ciência do direito, p. 85. 38 Id., A partir de Kelsen. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 226. 39 KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?, p. 8-9. 40 CALSAMIGLIA A., En defensa de Kelsen.,, p. 16. 41 KELSEN, H., op. cit., p.13.

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vinculação independe da vontade humana, enquanto que, na imputação, o ato

vinculativo ocorre pela vontade humana com base na norma.42

A imputação surge para atender a necessidade neokantiana de uma

“categoria gnósica fundamental do direito”43. Neste aspecto, a teoria kelseniana se

aproxima do jusnaturalismo, ao idealizar uma categoria que possui funções

mitificadoras: no jusnaturalismo se mitifica o conteúdo do direito e no positivismo

a forma.44

Porém, este critério não é suficiente para diferenciar o direito e os outros

tipos de ordens normativas. Então, o autor recorre ao tipo específico de sanção

para dar conta deste problema. Já para diferenciar sanções morais das jurídicas,

afirma que as últimas são heterônomas. E, finalmente, distingue normas jurídicas

das demais normas sociais pelas sanções jurídicas serem organizadas e

institucionalizadas45.

Sendo assim, o projeto da Teoria Pura fornece uma visão cientificista para

o Direito, que considera a ciência como única fonte de conhecimento válido.46

Assim, ele visa tornar o estudo do direito uma ciência consolidada através do

estabelecimento de um método que permita a delimitação do objeto e mantenha o

rigor e objetividade47 que toda ciência deve ter 48. A teoria positivista afirma que o

único objeto da ciência do direito é o direito ditado pelos homens que se

manifestam em fontes sociais determinadas.

Esta obsessão de Kelsen em tornar o saber jurídico uma Ciência autônoma

decorre do mito do cientista, que é um reflexo da idéia de que os cientistas são

“uma classe especializada em pensar de maneira correta (...),os outros indivíduos

são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os

cientistas mandam.”49

Daí decorre o perigo do mito como pressuposto inquestionável, que

legitima o discurso daquele que fala — o cientista — por serem indivíduos

42 KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?, p.12 -13. 43 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p. 13. 44 Ibid., p. 21. 45 CALSAMIGLIA, A., En defensa de Kelsen., p. 18. 46Id.,Filosofia do Direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 51. 47 A noção de objetividade adotada por Kelsen compreende a racionalidade inscrita no próprio real.O real estaria limitado aos enunciados considerados verdadeiros pela comunidade científica jurídica In: WARAT, L. A. A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 23. 48 CALSAMIGLIA, A., op. cit., p. 14. 49 ALVES, R., Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras,p.10.

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competentes e especializados em pensar. O cientista deve ser encarado como um

indivíduo especializado, que possui um refinamento de potenciais comuns a

todos.50

Deve-se reconhecer ainda que a proposta de Kelsen visa à superação da

dogmática jurídica dominante até aquele momento, que ganhava expressão com a

escola da exegese francesa, a jurisprudência analítica nos países da common law e

a jurisprudência conceitual alemã.51

A partir da perspectiva kantiana, Kelsen critica os Jusnaturalistas por

buscarem a afirmação de valores absolutos, determinados, como se esses

existissem metafisicamente, como se fossem uma realidade em si, de alguma

forma representável racionalmente e identificável por sujeitos racionais.52

Apesar de Kelsen seguir a direção investigativa da tradição positivista

desenvolvida no século XIX, acreditava que esta precisava do rigor metodológico

e da neutralidade exigida pelo conhecimento científico53.

O próprio Warat explica em seus Quadrinhos Puros do Direito que a

pureza em Kelsen é a pureza no olhar e não a pureza do objeto olhado, no caso o

direito, o que implicaria na produção de uma teoria pura do saber e não uma teoria

do direito puro. 54

O próprio Kelsen afirma que o erro na compreensão do que se trata de

pureza é realizado por alguns dos críticos de sua teoria, como depreende-se do

seguinte trecho: “Pero la teoría pura del derecho es una teoría pura del derecho,

no la teoría de un derecho puro como sus críticos han afirmado erróneamente a

veces.”55

Este olhar puro ordenador do mundo possui uma influência na Teoria do

Conhecimento kantiana segundo a qual a racionalidade residiria no modo como se

tenta conhecer o objeto e não no objeto em si. Com isso, participamos da

construção do conhecimento.56Kelsen olha o direito com os “óculos” de Kant.

50 Ibid.,p. 11 e 12. 51 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p.13. 52ROSA e SILVA, Karen Simões. Das Duas Transformações: Por uma análise metateórica (ou metamorfósica) de Kelsen., p. 11. 53 CALSAMIGLIA, A., En defensa de Kelsen., p. 9 e 10. 54 Id., Os Quadrinhos Puros do Direito. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 563-583. 55 KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?,p. 30. 56 SGARBI, Adrian. Hans Kelsen (Ensaios Introdutórios), p. 17.

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A pureza em Kelsen visa a não interferência de outros campos de

conhecimento, para que haja uma leitura própria e específica da juridicidade, ou

de outra forma que haja uma descrição jurídica das normas.57

Algumas conclusões podem ser retiradas da leitura do seguinte trecho

retirado do prefácio da primeira edição da Teoria Pura do direito, em que Hans

Kelsen assume que apesar de, segundo ele, não se poder colocar em questão os

objetivos do postulado metodológico, poderia se questionar”(...) até que ponto tal

postulado é realizável.”58

Entende-se, então, que os objetivos do postulado da pureza metodológica

são facilmente legitimados pelo contexto ideológico cientificista em que viveu o

autor, mas o próprio parecia prever os equívocos que poderiam surgir na tentativa

da sua aplicação.

3.2 Crítica waratiana ao postulado da pureza metodológica

O item anterior, concentrou-se na tarefa de desenvolver um quadro geral

sobre a Teoria Pura do Direito, com o foco no postulado da pureza metodológica.

Com vistas a uma leitura mais fiel possível desta teoria partimos das suas

influências de raízes kantianas para, neste momento, introduzir a análise das

críticas de Warat, principalmente sobre o modo como os juristas percebem e

utilizam a pureza metodológica.

Com isso, não se pretende realizar uma interpretação autêntica da teoria

kelseniana, pois esta tarefa se limita a raríssimos acadêmicos que possuem uma

leitura abrangente e contextualizada de sua obra, além de uma formação

epistemológica e filosófica que torne possível compreender o alcance e,

consequentemente, as limitações de suas obras.

Assim, delineou-se previamente uma interpretação sustentável sobre as

pretensões de Kelsen na sua abordagem, para que se percebam as distorções de 57 SGARBI, Adrian. Hans Kelsen (Ensaios Introdutórios), p. 2. 58 KELSEN, H., Teoria pura do direito,, XIV. Este também é o entendimento de Karl Larenz: “(...) la Teoría Pura del Derecho es como teoría, sugestiva en alto grado, pero escaso su rendimento para la práctica.” LARENZ, K. Metodologia de la ciencia de lo derecho, p. 84. 

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sua metodologia no imaginário do senso comum teórico, que se deve em grande

medida à pretensão de Hans Kelsen de delimitar a Ciência Jurídica em sentido

estrito, excluindo do seu campo de análise a praxis jurídica.

A presente abordagem parte das críticas elaboradas por Warat às

conseqüências da perpetuação da pureza metodológica no senso comum teórico

que estão presentes principalmente em sua obra A pureza do poder: uma análise

critica da teoria jurídica, em que o autor aponta “o princípio da pureza

metodológica como o núcleo do pensamento kelseniano absorvido pelo senso

comum dos juristas”.59

Parte-se, assim, da idéia de que um saber institucionalmente conservado

que ao ser adaptado e captado se torna um “discurso esteriotipado”.60Em nome de

um “pudor academicista”, se neutralizam as zonas opacas do discurso criando

interpretações institucionalizadas que não seriam as mais adequadas sobre o

pensamento kelseniano.

Warat está longe de ser mais um crítico despropositado da Teoria Pura do

Direito. Suas principais críticas estão focadas no discurso universitário sobre a

obra kelseniana ao apontar para o estudo sobre o saber jurídico perpetuado e não

da interpretação autêntica da obra do referido autor. 61

Este ponto é crucial para a real compreensão da observação crítica de

Warat. Cabe, assim, a transcrição do seguinte trecho em que o autor justifica sua

posição em relação ao método kelseniano:

“ seus efeitos ideológicos e políticos não provêm, isoladamente, dos valores que Kelsen propõe para a construção de uma Ciência do Direito em sentido estrito, senão pelos efeitos de seu discurso como guia e representação da práxis jurídica.”62

A princípio, cabe esclarecer o conteúdo da categoria analítica “senso

comum teórico dos juristas”, produzida por Warat como conceito que serve como

referência ao conhecimento constituído, designando “a montagem de noções-

representações – imagens - saberes, presentes nas práticas jurídicas, funcionando

59 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica,p. 13. 60Id., A partir de Kelsen. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 225 61WARAT, L. A., op.cit., p. 26. 62Id., Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 30.

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como um arsenal de ideologias práticas”.63Assim, o autor em questão compreende

o senso comum teórico dos juristas como “um conjunto heterogêneo de hábitos

semiológicos de referência.”64

Portanto, o senso comum teórico representa os hábitos teóricos, as

constantes em determinado campo intelectual, definindo “o horizonte a partir do

qual se articulam as mensagens científicas.”65

Para explicitar melhor o sentido da categoria em questão, cabe traçar um

paralelo entre o mesmo e o costume de uma comunidade científica. Para

esclarecer a comparação entre o senso comum teórico e o costume cabe apresentar

a definição do mesmo e, para tanto, opta-se pela explicação deste conceito

desenvolvida por Hans Kelsen:

“ Quando os indivíduos que vivem juntamente em uma sociedade se conduzem durante certo tempo, em iguais condições, de uma maneira igual, surge em cada indivíduo a vontade de se conduzir da mesma maneira porque os membros de uma comunidade habitualmente se conduzem.”66 Desta forma o senso comum teórico opera em uma determinada

comunidade científica da mesma forma que o costume age na sociedade. A

conseqüência disto é que os pesquisadores que estudam objetos de conhecimento,

temas ou autores que não condizem com o senso comum teórico dos juristas são

censurados, pela vontade que o referido senso comum gera nestes pesquisadores

para que os demais membros incluídos em sua comunidade científica sigam seus

hábitos teóricos.

Outrossim, quando Warat fala do senso comum teórico como um “arsenal

de ideologias práticas”, o significado de ideologia67 é adotado no mesmo sentido

que o infringe Roland Barthes de “idéia enquanto ela domina”68, por esta

interpretação se mostrar a mais coerente com a idéia de senso comum teórico dos

63 WARAT, L. A. Mitos e teorias na interpretação da lei. Porto Alegre: Síntese, 1979, p.19. 64Id., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, , p. 31. 65 Id., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: (Org) FALCÃO, Joaquim. Pesquisa científica e direito. Recife: Ed. Massangana, 1983, p. 83. 66 KELSEN, H. Teoria pura do direito, p. 10. 67 O termo ideologia possui diversas definições desenvolvidas por autores como Althusser, Arendt, Marx e Engels entre outros, daí a importância de delimitar o conteúdo deste termo para desenvolvermos a presente análise. 68 BARTHES, R., O prazer do texto, p. 41.

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juristas como guia para a atividade dos profissionais do direito. Neste sentido,

ambos autores apontam para “a subversão de toda ideologia”. 69

Além da ideologia se caracterizar como um pensamento hegemônico, a

mesma tem a função de ocultar obviedades e manter o status quo, o que resta

claro a partir da definição de ideologia que oferecida por Marilena Chauí, segundo

a qual“ ideologia é ideário histórico, social e político que oculta a realidade, e

que esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração

econômica, a desigualdade social e a dominação política”70.

Ressalta-se, que desde dos fins dos anos 70 e início dos anos 80, houve um

desprestígio desta categoria no mundo acadêmico, principalmente contra as

significações de ideologia como um “sistema”, abalada pelas idéias da

heterogeneidade e intradiscurso no ordenamento das formações ideológicas e

discursivas.71

O próprio Warat, nos anos 90, desprestigia o uso deste conceito nas

análises contemporâneas, pois, segundo o mesmo, este termo somente poderia ser

empregado se houvesse paixão, solidariedade e princípios idealizados que não

identificamos na sociedade atual.72

Na presente análise, a delimitação do significado da ideologia aos

pensamentos hegemônicos que visam ocultar obviedades para manter o status

quo, servindo aos processos mitológicos, oferece outra conotação a esta categoria

de análise.

Assim, a ideologia pode ser percebida como uma instância fálica da

linguagem, ou seja, uma organização simbólica que se auto-representa como um

fetiche. Isto gera nos receptores dos discursos um furacão de expectativas fálicas

como, por exemplo, comportamentos infalíveis73, “o êxito sem dificuldades, o

triunfo sem batalhas nem conflitos”74.

O próprio Warat, reconhece que vivemos em uma “modernidade

simulada”75,que instaura a reprodução, a repetição. Nesta linha de pensamento, a

69 BARTHES, R., O prazer do texto, p. 41. 70 CHAUI, M., O que é ideologia. 71 CHARAUDEAU, P,; MANGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso, p. 268. 72 WARAT, L. A.,A condição transmoderna do desencanto com a cultura jurídica. WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p 43. 73 Id.., Amor tomado pelo amor: crônica de uma paixão desmedida ,p. 38. 74 Ibid., p. 39. 75 Id., A condição transmoderna do desencanto com a cultura moderna. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 44.

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pureza metodológica e sua repercussão no senso comum teórico dos juristas que

serve como um mecanismo de controle da modernidade, e, portanto, representa

uma ideologia das formas jurídicas, hoje pode ser analisada como uma repetição

de uma crença metodológica que se fixou no imaginário jurídico.

A partir desta perspectiva, Warat desenvolve uma crítica ao princípio

metodológico vertebral da Teoria Pura do Direito utilizando uma abordagem

semiológica do campo jurídico que se presta a demonstrar que todo signo tem um

significado, que só pode ser explicitado a partir de um contexto e de suas

interações político-institucionais.

Warat questiona ainda diretamente a crença kelseniana de que se possa

reconstruir um sistema de conceitos controlados logicamente, que esteja liberado

das articulações ideológicas76, pois para ele sobre o pretexto de racionalização dos

dados e da cientificidade se confirmam valores77, que compõem o conjunto de

crenças e representações que configuram o senso comum teórico dos juristas.

Desta forma Warat critica a pretensão de Kelsen em fundar uma teoria

jurídica apolítica e descompromissada, além dos resultados da interpretação do

saber jurídico kelseniano não atingirem a neutralidade pretendida, mas a

legitimação ideológica da ordem social78.Warat constata que a Teoria Pura cria

uma ilusão da posse de um discurso objetivo, fazendo-se crer no funcionamento

anônimo e imparcial do direito79.

Neste momento, cabe fazer uma digressão sobre o que Kelsen entendia

como interpretação realizada pelos cientistas do direito a partir do postulado da

pureza metodológica, para pontuar de forma mais clara as críticas ora formuladas.

Segundo Kelsen o ato interpretativo pode ser desenvolvido por dois grupos

de sujeitos: os órgãos de aplicação normativa; e os particulares, este grupo inclui

os juristas e os destinatários da norma. O primeiro grupo desenvolve uma

interpretação autêntica; o segundo uma interpretação não-autêntica.80

Os juristas, para que pratiquem ciência, devem adotar uma postura

descritiva frente ao conjunto normativo, revelando o campo de possibilidades

semânticas da norma, apresentando, assim, a “moldura interpretativa”. Não

76 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p. 20. 77 Id., Mitos e teorias na interpretação da lei, p. 137. 78 Id., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica. op. cit., p. 14. 79 Ibid., p. 21 e 22. 80 SGARBI, A., Teoria do direito: primeiras lições, p. 445.

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comporta ao cientista jurídico a escolha de um dos sentidos, esta seria uma função

de uma interpretação política.81

As proposições jurídicas descreveriam que, em determinadas condições,

um ato é lícito ou ilícito, o que permitiria a antecipação do que é aplicável aos

acontecimentos.82 Esta idéia de que bastaria estabelecer as possibilidades

combinatórias da linguagem técnica, pressupõe um controle da linguagem.

Segundo Kelsen, a linguagem dos cientistas do direito é uma linguagem

descritiva, uma atividade de conhecimento que não exclui qualquer possibilidade

semântica.83

Adrian Sgarbi, ao explicar o papel da Ciência Jurídica, esclarece que é

tarefa desta produzir significação a partir do texto legal:

“... a “ciência jurídica” firma uma relação de “conhecimento” (pretende descrever aquilo que os “legisladores”, como legisladores, produziram validamente, e o que significa)” 84 Assim, apesar de Kelsen reconhecer a “inevitável pluralidade de

significações”85, não reconhece a dificuldade, poderia até mesmo dizer a

impossibilidade, da interpretação jurídico-cientifíca ser uma “interpretação

simplesmente cognoscitiva”86. Isto se deve a impossibilidade do cientista do

direito revelar “todas as significações possíveis”87 das normas jurídicas, o que

gera uma escolha do campo das interpretações possíveis pelo mesmos. Com esta

escolha inevitavelmente, cria-se direito.

Em defesa de Kelsen, deve-se esclarecer que o autor reconhece os espaços

de imprecisão da língua ou as chamadas lacunas, mas acredita que o

“...preenchimento da chamada lacuna do Direito é uma função criadora de

Direito que somente pode ser realizada por um órgão aplicador do mesmo...”.88

A questão da pretensa neutralidade científica é criticada por Warat a partir

de duas perspectivas: a do cientista neutro ao analisar um objeto de conhecimento;

81 Ibid,p. 446. 82 SGARBI, A., Hans Kelsen: Ensaios Introdutório (2001-2005), p. 24 e 25. 83 Id., Teoria do direito: primeiras lições, p. 448. 84 SGARBI, A., Hans Kelsen: Ensaios Introdutório (2001-2005), p. 26. 85 KELSEN, H., Teoria Pura do Direito, p. 397. 86 Ibid., p. 395. 87 Ibid., p. 396. 88Ibid., p. 395.

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e a neutralidade do enunciado científico elaborado com base em pressupostos,

como o da pureza metodológica.89

A neutralidade científica está intimamente relacionada a uma pretensa

objetividade científica que pressupõe que as cadeias explicativas estão imunes a

qualquer tipo de valoração, com o fim de procurar a verdade como o principal

dever científico. 90

Portanto, pressupõe-se que a interpretação científica do direito é neutra. O

topoi da neutralidade é um importante lugar retórico para a atuação do senso

comum teórico dos juristas.91

O topoi da neutralidade científica advém da ideologia cientificista que não

considera que a opção de um cientista por um método e a expectativa pela

obtenção de determinado resultado configura uma atividade realizada a partir de

escolhas precisas.92

Como visto, Kelsen pretende a despolitização da ciência do direito através

da pureza metodológica. O saber científico para o referido autor seria um saber

estrito, que tem como objeto específico o Direito positivo, não se trata de uma

teoria política, nem de política jurídica. Esta idéia pressupõe uma distinção entre

conhecimento jurídico e política.

Kelsen explica a despolitização como pretensão da Teoria Pura do Direito

nos seguintes termos:“ La despolitización que la teoría del derecho exige se

refiere a la ciencia del derecho no a su objeto, el derecho.”93

A questão central para compreender a crítica waratiana reside na tese, que

está na base do pensamento kelseniano, de que o saber científico não condiciona a

escolha das significações pelos órgãos do sistema de Direito Positivo. Esta tese “é

uma condição de sentido do próprio princípio da pureza metodológica.”94.

89WARAT, L. A., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,op.cit. p. 52. 90 Ibid. 91 Ressalta-se que quando falamos de topoi nos referimos à Tópica-retórica a partir do trabalho de Theodor Viehweg em que os topois são “lugares comuns revelados pela experiência, aptos a resolverem problemas vinculados a círculos problemáticos concretos. A objetividade e neutralidade das proposições jurídicas é captada pelo senso comum teórico dos juristas, criando a idéia de que o discurso dos cientistas jurídicos é “puro”, despolitizado. Cf. Id. Mitos e teoria da interpretação, p. 86. 92 CHAUI, M., Convite à filosofia, p. 235. 93 KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?, p. 29. 94 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p.38 ou 29.

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Kelsen se silencia, desta feita, sobre a influência e poder que as

proposições da Ciência Jurídica possuem na produção e sentido das normas

jurídicas, se atendo apenas ao fato destas não serem juridicamente obrigatórias.95

Negligencia, desta forma, o saber jurídico como campo privilegiado das

evocações significativas.96

A pureza metodológica como critério de significação jurídica, ao excluir

os elementos extranormativos do campo temático da ciência do direito, estabelece

o princípio de imanência significativa que enclausura o sistema, limitando-o às

significações derivadas das normas positivas válidas.97

Daí se depreende que a principal crítica de Warat dirigida a Kelsen se

apresenta em relação às conseqüências de o mesmo ter ignorado o valor político

do conhecimento na práxis, ao propor um saber puro como teoria.

A partir da pureza metodológica se constitui a “epistemologia dos

conceitos”, em que na práxis os conceitos são apropriados pelo senso comum

teórico dos juristas, que os reintroduz nos hábitos significativos (dóxa).98Ocorre

assim o que poderíamos denominar de doxalização da episteme, em que o senso

comum teórico se apropria ideologicamente da pureza kelseniana para contaminar

a práxis de pureza.

A primeira é constituída pelas opiniões comuns representadas por “um

conglomerado de argumentos verossímeis, formados a partir de representações

ideológicas, das configurações metafísicas e das evocações conotativas”. Através

da purificação lógica do conhecimento restaria apenas o conhecimento científico

(a episteme).

A racionalidade científica procurou opor a dóxa (linguagem do senso

comum) da episteme (linguagem científica), o que se percebe na afirmação de

Bachelard de que a ciência se opõe absolutamente à opinião99. A ciência seria

construída, desta forma, contra o “senso comum”, o “conhecimento vulgar.”100 A

95 Ibid., p.30 96 Id., A partir de Kelsen..In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,op.cit. p. 229. 97 Id., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronomia significativa..In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 236. 98 Id., Saber crítico e senso comum. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 29. 99 BACHELARD, G., A epistemologia, p. 147. 100 SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna, p. 31.

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construção da ciência dependeria da ruptura epistemológica entre ciência e senso

comum.

A referida tarefa é mais árdua no campo das ciências sociais do que no das

ciências naturais, pois o objeto de estudo da primeira fala e se utiliza da mesma

linguagem de base da ciência.101

Em verdade, a episteme se apresenta como um controle fictício do

conhecimento científico do direito, pois ao observamos a práxis jurídica

percebemos que a episteme se converte em dóxa.

Percebe-se então que o postulado da pureza, ao fornecer as bases

epistemológicas para fundamentar o princípio da “imanência significativa”102

acarreta um reducionismo semiológico por não reconhecer a pluralidade de

centros produtores de significação jurídica, “tais como práticas jurídicas, escolas

de Direito, partidos políticos, instituições sindicais, meios de comunicação de

massa, etc.” 103 Este efeito ocorre pois a Teoria Pura fornece bases

epistemológicas para fundamentar o princípio da imanência significativa.

A imanência significativa se fundamenta no mito criado pelos juristas que

crêem na ilusão de que a ciência do direito tem a posse de uma ferramenta

lingüística clara rígida e de limites precisos. Segundo este mito, a linguagem

jurídica não possuiria os mesmos problemas de denotação e conotação da

linguagem cotidiana.

Warat propõe a Heteronomia Significativa em substituição ao princípio da

pureza metodológica em diversos textos, principalmente no livro Mitos e teorias

na interpretação da lei104, em que formula uma “teoria sobre a produção da

significação jurídica”105, com o fim de revelar os âmbitos ideológicos e políticos

das significações jurídicas.

O princípio da Heteronomia Significativa é um critério de sentido oposto

ao kelseniano que estabelece que o processo de produção significativa no campo

jurídico não se limita aos “caracteres lógicos e estruturais extraídos da

101 Ibid. 102 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p. 21. 103 Ibid., p. 236 e 237. 104 Podemos citar também o texto “Los presupuestos kantianos e neokantianos de la teoria pura del derecho.” In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 241. 105 Id., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronomia significativa. WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 235.

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interpretação do Direito Positivo”, mas também de sentidos advindos do saber

acumulado e de condições da vida social.106

O significado das normas não pode ter um caráter meramente estrutural

fornecido somente pelo sistema de normas válidas, os elementos extranormativos

devem integrar a produção de significados para a dinamização da interpretação

das leis. As palavras da lei não podem funcionar como fontes exclusivas de

produção da significação jurídica.107

Neste sentido, a presente análise ao se focar no conceito de senso comum

teórico dos juristas privilegia a produção de significação jurídica da ciência do

direito, para apontar a sua influência na formação dos juristas.108

Neste contexto, as críticas de Warat permitem identificar que a coerência e

a vigilância lógico-conceitual pretendidas pelo ideal de objetivação moderno

acarretam uma aparência de rigor e a produção de dogmas, que ao serem

colocados fora de suspeita, exorcizam a detecção dos efeitos políticos do discurso

jurídico.

106 Ibid., p. 238. 107 WARAT, L. A., Los presupuestos kantianos e neokantianos de la teoria pura del derecho. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,op.cit., p. 253 e 254. 108 Id., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronomia significativa.. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 238-239.

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4 A dimensão mítica da pureza metodológica como obstáculo epistemológico

“Ciencia y mito son agentes, con que la cultura cuenta para dominar el mundo.”1

Luis Alberto Warat

4.1. O Processo de mitificação da pureza metodológica

A partir da compreensão que o campo de análise ora estudado é o do saber

perpetuado no senso comum teórico dos juristas e de um saber juridicista, adentra-

se para a percepção do postulado da pureza metodológica como espaço

privilegiado para a produção mítica.

Neste sentido, a presente análise atua no campo da crítica jurídica a partir

de uma perspectiva semiológica, fato que estabelece coerência com a adoção de

Luis Alberto Warat como referência, pois o instrumental semiológico perpassa

toda a sua produção acadêmica.2

Com este propósito, esta abordagem semiológica vem sendo realizada para

contextualizar a dimensão mítica do postulado estudado, ainda mais evidente

1 WARAT, L. A., La filosofia lingüística y el discuso de la ciência social. In: Revista CCJ da UFSC. n. 1. 2 Antonio Carlos Wolkmer estabelece uma periodização do pensamento waratiano, a partir de um diálogo com o Prof. Horácio W. Rodrigues, em três momentos significativos: “a Semiologia Analítica (formação); a Semiologia Política (temporalidade inovadora e afirmação) e a Semiologia dos Desejos (amadurecimento).” In: WOLKMER, A. C., Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, p. 117.

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quando se trabalha no campo da mitologia3, desenvolvida por Roland Barthes,

como referência.

A partir do estudo sobre mitos elaborado por Roland Barthes compreende-

se que “tudo pode constituir um mito”4 inclusive um método, um critério, um

postulado como a pureza metodológica de Kelsen, sempre quando pode ser

julgado por um discurso.

No estudo do mito no imaginário jurídico se utiliza os ensinamentos de

Roland Barthes, que trata o mito como um sistema semiológico5. O referido autor

afirma que o leitor do mito naturaliza os conceitos como se o significante criasse

o significado.6 Não percebe assim o autor que o mito é um sistema semiológico de

valores e passa a acreditar que é um sistema indutivo de fatos.7Desta forma, o

postulado da pureza metodológica se torna uma verdade inquestionável no campo

jurídico.

A opção por adotar Barthes como referência para uma abordagem

semiológica se deve também a influência do referido autor nas análises

semiológicas desenvolvidas pelo próprio Warat e na perspectiva de empregar a

semiologia como instrumento de denúncia.8

Ademais, Warat utiliza os ensinamentos de Barthes ao tratar dos mitos na

interpretação jurídica em sua obra, anteriormente mencionada, Mitos e teorias na

interpretação da lei. Nesta ocasião conclui que o mito se identifica com a

ideologia política, ou seja, o processo mitológico coloca suas crenças a serviço da

ideologia.9O discurso mitológico esvaziaria o real criando uma situação de

conformação social.10

Sendo assim, na análise de um processo de mitificação parte-se para a

análise do mito como uma fala através da semiologia ou, para ser mais específico,

da mitologia como fragmento desta última, visando o estudo das formas, as

significações, independentemente do conteúdo.11

3 Roland Barthes desenvolve o referido conceito, adotado neste estudo, em seu livro intitulado como Mitologias. 4BARTHES, R. Mitologias, p. 199. 5 Ibid., p.201. 6Ibid., p.221. 7Ibid., p.220. 8Ibid., p. 5. 9WARAT, L. A., Mitos e teorias na interpretação da lei., p.128. 10 Ibid., p.129. 11BARTHES, R., Mitologias, p. 201.

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Porém, para que não se recaia no mesmo equívoco reducionista da pureza

metodológica, ao excluir outras abordagens na análise do fenômeno jurídico, a

mitologia inclui em sua análise, visando mitigar o referido reducionismo, uma

abordagem da ideologia como “ciência histórica”12.

Portanto, a mitologia passa a estudar “idéias-em-forma.”13, por fazer parte

simultaneamente da semiologia e da ideologia considerando que “(...) quanto mais

um sistema é especificamente definido em suas formas, mais dócil é à crítica

histórica.”14

Para atingir estes fins, a semiologia se desvincula da lingüística, como

pólo formal de reflexão, se abre aos campos da Sociologia e Teoria Política, para

que a linguagem seja percebida como lugar de conflito, um espaço de diferenças.

Abre-se então espaço para a transdisciplinariedade, na perspectiva

apresentada por Leonel Severo Rocha, no estudo do mito. Neste sentido, a análise

transdisciplinar com seu caráter pluralista é preferida à análise

“departamentalizada (monolítica)”15, que se limita às análises jurídicas, apesar das

dificuldades ocasionadas pela necessidade do pesquisador ter um conhecimento

amplo em diversas disciplinas simultaneamente.

Roland Barthes utiliza as categorias propostas por Saussure considerando a

linguagem como um sistema de signos em que cada signo é composto por duas

partes: um significante (signifiant) e um significado (signifié), assim, aponta para

a relativa autonomia da linguagem em relação à realidade, ou seja, o signo é

arbitrário16 e mutável dado a possibilidade de desvio da relação entre

significante/significado.17

A análise dos referidos signos pode ser realizada a partir de dois planos

lingüísticos: a linguagem - objeto e a metalinguagem. O primeiro é o plano que se

fala e o segundo onde se fala do que se fala.18 A metalinguagem é um recurso

12 BARTHES, R., Mitologias, p. 203. 13 Ibid., p. 203. 14 Ibid., p. 202. 15 ROCHA, L. S., A problemática jurídica: uma introdução transdisciplinar, p. 18. 16 Segundo Saussure o signo total é a combinação do conceito (significado) e da imagem acústica (significante). Além disso, considera que o significante e o significado estão unidos por um laço arbitrário, o que torna o próprio signo arbitrário. SAUSSURE, Ferdinande. Curso de Lingüística Geral, p. 81. 17 WARAT, L. A., O direito e sua linguagem, p.25. 18 ROCHA, L.S., Epistemologia Jurídica e Democracia, p. 67.

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essencial para superar as armadilhas da hermenêutica jurídica, Roland Barthes a

explica da seguinte forma:

“Uma metalinguagem é um sistema cujo plano de conteúdo é, ele próprio, constituído por um sistema de significação; ou ainda, é uma Semiótica que trata da Semiótica.”19 Barthes revisita sua teoria sobre o mito assumindo-a como uma questão

translingüística incorporada na prática que possui uma relação dialética com o

imaginário, que é o campo de atuação do senso comum teórico dos juristas.

O senso comum teórico dos juristas produz significados no momento da

propagação da pureza metodológica, se configura como metalinguagem, uma fala

sobre este postulado. O mito como segunda língua que fala da primeira, também é

uma metalinguagem,20 com isso propõe-se que o senso comum teórico dos juristas

produz uma fala mítica sobre o postulado da pureza metodológica.

A análise gera, portanto, uma reflexão sobre a metalinguagem, logo tem o

foco no senso comum teórico dos juristas ao invés de se ocupar com a pretensão

da interpretação autêntica, ou ao menos sustentável do postulado da pureza que

representa a linguagem-objeto deste estudo. Neste sentido, cabe o ensinamento de

Roland Barthes sobre a tarefa do semiólogo para definir a tarefa de revelação dos

mitos como uma perspectiva de análise mais ampla sobre o signo global:

“Refletindo sobre uma metalinguagem, o semiólogo já não deve se interrogar sobre a composição da linguagem-objeto e já não deve se ocupar com o detalhe do esquema lingüístico: dele só terá de considerar o termo total ou signo global, e apenas na medida em que este termo se preste ao mito.”21(grifo nosso) No entanto, quando se reflete sobre o mito como metalinguagem a partir

de uma “linguagem revolucionária”, que “(...) não pode ser uma linguagem mítica

[neste sentido] a revolução se define como um ato catártico, destinado a revelar a

carga política do mundo” 22. Na realidade trata-se de uma outra metalinguagem

por se configurar em uma fala sobre a dimensão mítica de um postulado, em que

se fala para transformar e não para conservar, com o fim que a metalinguagem

seja reenviada a uma linguagem-objeto inviabilizando a reprodução do mito.23

19BARTHES, R., Elementos de Semiologia, p.96. 20 Id., Mitologias, p. 206 21Ibid., p. 206. 22Ibid., p. 238. 23Ibid., p. 238

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Esta é a tarefa que se dispõe a executar, quando se busca desenvolver uma

leitura que implique em uma interpretação sustentável sobre as pretensões de

Hans Kelsen em sua obra mais conhecida. Ao elaborar a pureza metodológica

como cerne da Teoria Pura do Direito, além da contextualização desta teoria a

partir do paradigma moderno retorna-se a linguagem-objeto da presente análise,

como forma de deslegitimar o discurso que se apóia na mitificação do postulado

da pureza metodológica.

Este processo de mitificação, que ocorre ao adentrarmos no campo da

práxis jurídica, torna os critérios de purificação metodológica uma crença

vinculada a uma atividade profissional. Com isso, os juristas de ofício se

transformam em meros operadores técnicos da legislação e esquecem que seu real

objeto são as relações sociais.

No momento em que os juristas convertem episteme em dóxa na práxis, os

critérios da pureza metodológica se tornam um mito, ou seja, cria-se uma ilusão

de uma atividade profissional pura.

Esta mitificação decorre da constatação que a epistemologia jurídica

tradicional,24 não considera o valor político do conhecimento na prática, gerando

uma apropriação da idéia de um conhecimento despolitizado pelos juristas de

ofício.

A dimensão mítica da pureza metodológica se revela, quando ocorre a

abstração das condições que presidiam sua produção, ao se tornar um critério

epistemológico institucionalmente legitimado para a Ciência do Direito.

Outro aspecto relevante na análise da dimensão mítica da pureza

metodológica considera a necessária integração das normas jurídicas aos

elementos extranormativos, que dinamizam o acontecer jurídico no ato

interpretativo.25Os sentidos das normas jurídicas são linguisticamente e

socialmente determinados, “não são conteúdos unívocos, nem axiomas de

24 O postulado da pureza metodológica estabeleceu uma proposta epistemológica para a Ciência do Direito, que implica em uma visão objetiva, rigorosa e metódica da dogmática jurídica. Desta forma se configura como uma “ciência das ciências jurídicas”. Cf. WARAT, L. A., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 74. 25Id., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronímia significativa. In: WARAT, L. A. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 237.

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automática aplicação, nem premissas inquestionáveis, que mediante o silogismo

lógico, conduzem a conclusões indubitadas”.26

Assim, o processo de produção da significação jurídica não se limita aos

caracteres lógicos e estruturais extraídos da interpretação do direito positivo. A

eliminação do plano cognoscitivo das representações, imagens, costumes,

preceitos valorativos e teóricos não os tornam inoperantes nas práticas jurídicas. 27

Com isso, sob o pretexto da necessária despolitização e neutralização do

conhecimento científico, a pureza metodológica passa a operar como “código

latente”28 que influencia no pensar e agir dos profissionais do campo jurídico.

A dogmática jurídica como teoria geral estabelecida por Kelsen com suas

categorias, dogmas conceitos, classificações e pureza possuem a função

ideológica de manter o status quo. Neste sentido, os juristas são percebidos da

seguinte forma: “O jurista de construtor transforma-se em tutor, guardião, vigia e,

principalmente cúmplice da dogmática jurídica.”29

A mitificação surge no momento em que as problemáticas inseridas na

Teoria Pura30 perdem, ao longo do tempo, a sua singularidade argumentativa

através de mecanismos redefinitórios elaborados pelo senso comum teórico que

vem carregado de crenças e estereótipos da dogmática jurídica clássica. 31

As conotações elaboradas nas proposições jurídicas são facilmente

articuláveis com o sistema de conotações da dogmática jurídica e das doutrinas

26 WARAT, L. A., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronímia significativa.. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou., p. 238. 27 Ibid.., p. 238. 28Id., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 55 29 CAVALLAZZI, R. L., O Jurista e as Ideologias. In: Revista de Teoria Jurídica - Práticas Sociais – NIDS. Vol. 1, p.89. 30 As problemáticas inseridas na Teoria Pura do Direito visavam constituir um sistema conceitual que fornecesse normas metodológicas e categorias gerais para a produção de um saber dogmático geral. WARAT, L. A., A partir de Kelsen. WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 226. 31 Ibid.., p. 226.

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jusnaturalistas32. Desta forma, devem-se criticar as apropriações kelsenianas

executadas pela doutrina jurídica. 33

A apropriação da episteme, produzida nos moldes da pureza metodológica,

pelas crenças do imaginário jurídico, que compõe o que chamamos de senso

comum teórico dos juristas, apontam para os equívocos de se considerar o senso

comum e ciência jurídica como opostos.

O senso comum teórico dos juristas como conceito analítico que

representa um consenso que serve de guia para uma comunidade cientifica, deixa

clara a impossibilidade desta oposição, além de evidenciar o óbvio: que o

considerado conhecimento científico no campo jurídico é adquirido através de um

“processo de desenvolvimento progressivo do senso comum”.34

Desta forma procede a seguir uma análise mais detalhada da dimensão

mítica do postulado da pureza metodológica no senso comum teórico dos juristas.

Inicia-se pela identificação do esquema tridimencional35 que pode ser identificado

no mito, abarcando o significante, o significado e o signo.

O mito se constitui como “um sistema semiológico segundo”-

metalinguagem- em que o primeiro sistema semiológico- linguagem-objeto- se

torna apenas um significante.36 Para Roland Barthes hoje o mito é uma fala, uma

linguagem, uma mensagem, um sistema de comunicação, um modo de

significação. Não se trata, portanto, de um conceito, é uma forma.37

Cabe especificar algumas discriminações terminológicas designadas por

Roland Barthes ao tratar do sistema mítico. O signo do primeiro sistema (plano da

língua) se torna apenas um significante no segundo (plano do mito). 38

O signo, na terminologia empregada por Saussure, é composto pela união

de um significante e de um significado, trata-se, portanto de uma realidade

32 Segundo Bobbio, o jusnaturalismo aposta no direito natural que seria obtido através da razão, já que advém da natureza das coisas. O direito natural é universal, imutável e pode ser percebido a priori. O jusnaturalismo constitui um ramo da história da filosofia acerca do caráter real do direito e da sociedade se configurando como filosofia social.Neste sentido, é importante a visão de Wieacker ao ressaltar que apesar do jusnaturalismo assumir com freqüência um caráter de movimento de resistência, está relação não é necessária pois o mesmo é por natureza um método do conhecimento do direito.Cf. BOBBIO, N., O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito, p. 22.WIEACKER, F., História do Direito Privado Moderno, p. 280 33 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p.21. 34 ALVES, R., Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras, p. 12. 35Cf. SAUSSURE, F., Curso de Lingüística Geral , 2004. 36 BARTHES, R., Mitologias, p.205. 37 Ibid., p. 199. 38 Ibid.,p.206.

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bifacial.39 O plano dos significantes consiste em um plano de expressão (a forma)

e o dos significados um plano de conteúdo (a substância). Para se descrever a

forma não é necessário recorrer a premissas extralingüísticas, o que se faz

necessário na descrição da substância.40

O significante – plano de expressão (E)- é uma representação psíquica da

coisa que pode ser imaterial, já o significado – plano de conteúdo (C)- é um

mediador que é sempre material. A significação (R) é um processo que une

significante e significado, ou seja, é um ato que resulta no signo (ERC).41

Além disso, para Barthes no sistema mítico sentido é o significante que se

origina do primeiro sistema semiológico, no plano da língua; no plano do mito,

chama-o de forma.42Nos dois planos, significado denomina-se conceito. A

correlação entre os dois termos – significante e significado (conceito), no plano da

língua; sentido e conceito, no plano do mito – origina o signo no plano da língua e

a significação no do mito.43

O que importa neste ponto é entender que o senso comum teórico dos

juristas, como metalinguagem, toma o significado da Ciência do Direito proposta

por Kelsen, com base na pureza metodológica, para compor um sistema

semiológico mítico, como fuga do conteúdo significativo pretendido pelo autor

com seus limites impostos à interpretação científica do direito, que constituía o

signo de um primeiro sistema semiológico, ou seja, o plano da expressão ou forma

do mito.

O sentido do mito tem uma história, um valor próprio44, uma riqueza que é

afastada pela forma, para que se tenha espaço para a produção de uma

significação.45O sentido perde seu valor, mas não morre se prestando a esconder a

forma do mito.46

O mito atua nos espaços onde o sentido já está diminuído e, portanto,

disponível para uma nova significação. É o que acontece no caso pureza

39 SAUSSURE, F., Curso de Lingüística Geral, p. 81. 40 Id., Elementos de Semiologia,. p. 43. 41 BARTHES, R., Elementos de Semiologia,. p. 46-51 42 Id., Mitologias, p. 206. 43 Ibid., p. 206 207. 44 Ibid., p. 208. 45 Ibid., p. 209. 46 Ibid., p. 209 .

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metodológico que, por muitos autores, foi entendida como pureza do próprio

direito.47

Além disso, um dos motivos da incompreensão do projeto da Teoria Pura

do Direito seria o fato de Kelsen ter como alvo a mentalidade jusnaturalista, que

prevalecia entre os professores universitários que transmitiram a Teoria Pura do

Direito. Assim o pensamento de Kelsen foi passado aos alunos de forma

equivocada, diabolizada, pois segundo os “jus-professores” 48 o autor buscava a

separação entre o direito e a moral.49

O mito, como fala despolitizada, traz a pureza metodológica como critério

que despolitiza a Ciência Jurídica, para uma despolitização da práxis e

conseqüente a-historicidade. Barthes define política, neste caso, em um sentido

amplo “como conjunto das relações humanas na sua estrutura real, social, no

poder de construção do mundo”.50

O significado do primeiro sistema semiológico, no caso em questão,

advém da importância e repercussão da Teoria Pura do Direito na produção e

consolidação de uma ciência jurídica em sentido estrito. O referido conceito

(significado) é afastado para que surja uma significação que implique na pureza

na práxis em que o “operador do direito” se abriga no paraíso conceitual.

A perpetuação da pureza metodológica no senso comum teórico dos

juristas, como sistema semiológico dominante é impositivo na prática jurídica,

aliás, este caráter impositivo é uma das funções de um mito.51

A captura da pureza metodológica pelo senso comum teórico dos juristas

originou o plano do mito, que tornou o conteúdo dado por Kelsen a este postulado

em um significante - forma do mito - permitindo surgir uma significação que

legitima a purificação da prática jurídica, que se manifesta no âmbito

interpretativo, para que o operador assuma a função de mero técnico,52 “operador

do direito” e não um produtor de significados, ou seja, um intérprete.

47 SGARBI, A., Hans Kelsen: Ensaios Introdutório (2001-2005), p. 2. 48 WARAT, L. A., Os quadrinhos puros do direito. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 570. 49 Como dito anteriormente, o argumento que Kelsen pretendia desvincular o direito da moral é falso, já que seu objeto de estudo, sua preocupação é com as possibilidades de instituição de uma Ciência do Direito e não com o direito diretamente. Cf.Ibid., p. 571. 50 BARTHES, R., Mitologias, p. 235 51 Ibid., p. 208. 52 Como se fosse possível a neutralidade da técnica jurídica.

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Naturaliza-se, pois, o conceito de que o “operador do direito” ao

interpretar está elaborando um trabalho técnico, não considera que a relação entre

significante e significado das palavras contidas nas normas é arbitrário e sim

controlado epistemologicamente.

Aliás, Barthes identifica na sua fase de crítica social a função do mito para

naturalizar as mensagens, quando trata principalmente em seu livro Mitologias da

utilização do mito nas mídias53 na naturalização das mensagens ideológicas da

classe burguesa.54

O conceito (significado do mito) é histórico e intencional, funcionando

como a força que move o surgimento do mito.55 No caso do mito em questão, a

sua força motriz advém da necessidade de manter a ordem estabelecida através de

conceitos unívocos que geram uma imagem de certeza e segurança na atividade

interpretativa dos “operadores do direito”56. A finalidade da fala mítica neste caso

reside na permanência do projeto dos que adotam os paradigmas modernos, de

previsibilidade, segurança e certeza.

O senso comum teórico designa as “normas que disciplinam

ideologicamente o trabalho profissional dos juristas” 57, funciona como um pano

de fundo – forma do plano do mito- que condiciona o trabalho de juízes,

professores, advogados, defensores, promotores, doutrinadores e demais

profissionais da área jurídica.

Pode-se questionar que uma metodologia de uma teoria científica como a

Teoria Pura do Direito - que visa a reconstrução do real - difere de uma teoria

ideológica, que analisa o senso comum teórico como parte da constituição do

real.58 Este argumento só reforça a tese da captação de um método de uma

pretensa teoria científica fundada no senso comum teórico, lhe fornecendo uma

dimensão mítica.

53 Roland Barthes desenvolve uma crítica ideológica a linguagem da cultura de massa, entre elas a publicidade que, segundo o autor, mascara as verdadeiras funções do produto atribuindo-lhe significados ilusórios. Barthes exemplifica este uso ilusório da imagem com o produto OMO, que se utiliza da idéia de profundidade e da espuma em sua maciça publicidade. A profundidade da limpeza e o luxo da espuma mascaram a função abrasiva do detergente. BARTHES, R., Mitologias, p. 39-41. 54 NÖRTH, W., A Semiótica no Século XX, p. 151. 55BARTHES, R., Mitologias, p. 209. 56 Os operadores do direito são estes seres que habitam o paraíso conceitual de conceitos unívocos. 57 WARAT, L. A., Mitos e teorias na interpretação da lei, p. 19. 58 Ibid., p. 11.

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O senso comum teórico, como teoria ideológica, organiza os dados da

realidade no intuito de assegurar a reprodução de critérios morais, valores e

práticas dominantes, através do atendimento de seus princípios e diretrizes. 59

A tarefa de “caça ao mitos”, enunciada na introdução do presente trabalho,

só se concretiza com a percepção de que a pureza metodológica kelseniana é

utilizada pela prática jurídica como “álibi”60 para perpetuar valores que atendem

aos objetivos dos normativistas. Assim, Warat detecta a função mítica do senso

comum teórico, no uso de dados como “álibi consolidador de valores”. 61

Para uma melhor compreensão dos reflexos do senso comum teórico dos

juristas sobre os profissionais do direito, é pertinente a metáfora sobre as sereias

que estavam no caminho da embarcação de Ulisses, segundo o relato de Homero.

O senso comum teórico dos juristas representa o eco das vozes das sereias

institucionais, o seu canto advém dos juristas que perpetuam o pensamento

positivista hegemônico.62

Os juristas são, ao mesmo tempo, sereias e marinheiros que se embriagam

e são devorados em razão de seu próprio canto. O eco das sereias institucionais

leva os juristas a se atirarem ao mar, que acreditam ser calmo, com poucas ondas e

ventos o que gera uma segurança, não querendo acordar deste sonho e reconhecer

o mar revolto da imprecisão e incerteza.

Neste momento, retorna-se a análise dos signos para a identificação de que

a dimensão mítica da pureza metodológica se revela não apenas na sua capturação

do senso comum teórico dos juristas na práxis jurídica pelos juristas de ofício,

mas também na sua pretensão de despolitizar a fala dos pseudo cientistas

jurídicos.

Adota-se como ponto de partida a análise dos signos pela sua identificação

em três níveis: o sintático, semântico e pragmático. O nível sintático ocupa-se da

relação dos signos entre si; o nível semântico das relações dos signos com o

mundo; o pragmático com o uso dos signos.63

59 Ibid., p. 20. 60 BARTHES, R., Mitologias, p. 221. 61 WARAT, L. A., Mitos e teorias na interpretação da lei. op. cit., p.21. 62 A idéia utilizar o eco das sereias como metáfora que critica o normativismo partiu de Warat em entrevista em que se adotou a técnica de entrevista semi-estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar de temas que pretende desenvolver em futuras obras. 63 ROCHA, L. S. Epistemologia Jurídica e Democracia, p 67.

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A ciência do direito, proposta por Kelsen, ao ser uma fala sobre as normas

jurídicas - linguagem-objeto - se configura também como metalinguagem64, que

visa somente descrever a norma jurídica, situando-se, apenas, no nível semântico

e sintático do signo (norma jurídica).

Nesta perspectiva a pureza metodológica apresenta uma dimensão mítica

por não perceber que a atividade do jurista constitui necessariamente espaços

políticos que produzem significados que se conformam a uma ideologia, ou seja,

por exclui o plano pragmático na análise dos signos.65

Nesta abordagem, se pretende demonstrar no processo de despolitização

como pano de fundo a “resistência apaixonada a qualquer sistema redutor.”66 O

sistema redutor ora analisado é o modelo reducionista das significações jurídicas,

que funciona como suporte ideológico – também chamado de “epistemologia dos

conceitos”67- resultante da mitificação da pureza metodológica.

Ao se adotar o pressuposto apresentado por Roland Barthes de que todo

discurso está envolvido pelo poder, independentemente do lugar da fala,68 é

possível observar como o saber científico do direito sofre inevitavelmente as

influências do contexto social no momento de produção das significações

jurídicas.69

Com isso, deve-se reconhecer a dimensão do poder não somente na prática

jurídica, mas reconhecê-la na atividade da ciência jurídica que se expressa na “luta

ideológica pelas significações”70. Partindo do pressuposto de Roland Barthes,

apresentado acima, pode-se falar do poder como uma condição de sentido das

proposições científicas.

Delineada desta forma a semiologia, como um instrumento epistemológico

para a análise das significações, torna-se adequada, portanto, para uma

“epistemologia das significações”.71

64 Ibid., p 93. 65WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 35 66 BARTHES, R., A câmara clara: nota sobre fotografia , p. 30. 67 WARAT, L. A. O lugar da fala: digna voz da majestade. In: (Org) FALCÃO, Joaquim. Pesquisa científica e direito.,p. 82. 68 BARTHES, R., Aula, p.10. 69 WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p. 20 . 70 Ibid., p. 23. 71 Id., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: (Org) FALCÃO, Joaquim. Pesquisa científica e direito, p.83.

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Nesta ótica, a dimensão mítica da pureza metodológica se apresenta tanto

na sua perpetuação no senso comum teórico, quanto na sua pretensa

despolitização da Ciência no campo jurídico. Esta constatação permite as

reflexões a seguir que percebem a dimensão mítica do referido postulado como

um obstáculo epistemológico para a implementação de sistemas ilusórios

criativos, que permitam o desenvolvimento de um pensamento jurídico crítico.

4.2 A pureza metodológica: obstáculo epistemológico na perspectiva de um pensamento crítico

Após a demonstração da dimensão mítica do postulado da pureza

metodológica na atividade dos profissionais jurídicos, incluindo os pseudo

cientistas do direito, cabe inserir de forma mais aguda na presente análise a

categoria analítica obstáculo epistemológico72 introduzida por Gaston Bachelard

em seu estudo sobre a história do pensamento científico.

Bachelard coloca o problema do conhecimento científico a partir da idéia

de obstáculo epistemológico, assim esta categoria é o cerne da proposta

epistemológica bachelardiana.73

Este conceito essencial na epistemologia bachelardiana surge no ato de

conhecer e “se incrusta no conhecimento não discutido”74, o que acarreta

estagnação, inércia e até regressão para a pesquisa, já que se pode recorrer a

recursos inadequados para a solução de problemas. O caráter paralisante e

impositivo dos valores e crenças do senso comum teórico dos juristas são, neste

ponto de vista, um conhecimento incrustrado.

Desta forma, o referido autor apresenta os conhecimentos anteriores

incrustrados como um dos obstáculos epistemológicos ao ato de conhecer:

72 BACHELARD, G. A epistemologia, p.147. 73 Ibid., p. 147. 74 Ibid., p. 148.

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“No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização.”75 Bachelard desenvolve sua teoria com o fim de estabelecer o abandono da

comodidade científica e afirma que se encontrará mais no real oculto do que no

dado evidente, ou seja, ele propõe que se deve trabalhar na zona escura,

desconhecida76. Para o referido autor os novos pensamentos projetam uma luz

sobre os conhecimentos anteriores incompletos, com a utilização de novos

métodos77.

O que se pretende ao adotar a categoria analítica obstáculo epistemológico

de Bachelard, não é travar uma guerra contra qualquer conhecimento que advenha

do senso comum em geral ou no teórico, mas refletir que para que o pesquisador

inove, ou seja, desenvolva um pensamento crítico, deve conhecer contra um

conhecimento anterior, questionando-o, através de uma vigilância epistemológica.

Esta construção teórica de zona clara e escura no ato de conhecer,

desenvolvida por Bachelard está implicitamente presente na metáfora utilizada por

Luis Alberto Warat, em sua obra “A Ciência Jurídica e seus dois maridos”.78

A metáfora que corresponde perfeitamente às idéias de Bachelard é a que

descreve os momentos em que Teodoro e Dona Flor escolhem para se amar, pois

o mesmo sempre apaga a luz79. Este comportamento aponta para a cultura do

pecado, do segredo, “de produções de silêncios que fundam o autoritarismo e a

castração”. 80

Desta forma, Teodoro funciona contra a idéia do novo espírito científico

proposto por Bachelard, por ser uma representação do imobilismo científico, se

prestando a manter escuras as zonas de conhecimento, intuito sempre presente nos

processos de mitificação. Já Vadinho representa o espírito jovem, sem

preconceitos 81, com a sua malandragem, desejos e fantasias permite à Dona Flor

encontrar “a possibilidade de desejar o novo”.82

75 BACHELARD, G., A epistemologia, p. 147. 76 Id., O novo espírito científico, p.33. 77 Ibid., p.16. 78 WARAT, L. A., Ciência Jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: FISC, 1985. 79 Esta luz representa os novos pensamentos na obra de Bachelard. 80Id., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade,, p. 70. 81 BACHELARD, G., A epistemologia., p. 148. 82 WARAT, L. A. Ciência Jurídica e seus dois maridos, p. 20.

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77

O desenvolvimento de um saber crítico ao pretender romper com as teorias

tradicionais e criar um novo objeto para os estudiosos do direito atende as idéias

do novo espírito científico, defendidas por Bachelard. Para este autor o caráter

inovador do espírito científico acarreta o alargamento dos quadros de

conhecimento, com uma atitude reflexiva que busca compreender o que não se

compreendera83.

Esta categoria ajuda a confirmar a idéia bachelardiana contra o espírito

(postura) que prefere o que confirma seu saber, prefere, então, responder a

questões84. Diversamente, a proposta de uma ciência de devires, de fluxos

constantes, visa que a pesquisa científica não forneça respostas definitivas, mas

provoque respostas.85

Neste sentido Bachelard coloca ao jurista - como pesquisador- a tarefa de

“pôr a cultura científica em estado de mobilização permanente, substituir o saber

firmado e estático, por um conhecimento aberto e dinâmico”86, tarefa esta que o

próprio autor amplia para o educador que enfrenta “obstáculos pedagógicos”87.

Através da apropriação do significado desta categoria, pode-se falar que a

dimensão mítica da pureza metodológica kelseniana se apresenta como um

obstáculo epistemológico para a implementação das propostas que apontem para

uma “ciência jurídica” e um ensino jurídico críticos como, por exemplo, a

proposta transurrealista waratiana.

Nesta monta, pode-se afirmar que o próprio Warat adota a postura do novo

espírito científico proposta por Bachelard, pois está sempre rejuvenescendo por

aceitar as mutações que contrariam o passado88.

Neste sentido, Agostinho Ramalho Marques Netto na apresentação do

livro escrito por Warat “O amor tomado pelo amor” explica a escritura do mesmo,

corroborando com a idéia de rejuvenescimento do autor:

“Há em Warat uma radical insatisfação perante a própria obra. Ele se ultrapassa constantemente, redimensionando mais do que negando o que ficou para trás,

83 BACHELARD, G., O novo espírito científico, p. 147 e 148. 84 Idem 85WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,op.cit., p. 108. 86 BACHELARD, G., op. cit., p. 151 87Ibid., p. 150 88 Ibid.,. p. 148.

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inscrevendo o futuro na esfera do possível e (re)construindo o passado na dimensão dos afetos do presente.Deixando-se mergulhar na temporalidade.”89 A tarefa de desvendar mitos produzidos pelo senso comum teórico, que

visam a representação de “um conhecimento moral, que reduz valores mas não os

explica”90, tem um significado de libertação para o pesquisador que, ao invés de

tomar o senso comum teórico como referência, passa a enxergá-lo como “dado

interpretável”.91

Com este fim, a atmosfera de crenças em funções impossíveis para a

ciência criada pelo paradigma da modernidade hegemônica que acredita na

possibilidade da supressão das opiniões (senso comum) e mitos na produção das

significações jurídicas,92 deve ser afastada visando o “rejuvenescimento”93 da

pesquisa e do ensino jurídico.

Constata-se também que o novo espírito científico se encaixa em uma das

principais características dos autores dialéticos, que seria a capacidade autocrítica,

que acarreta uma necessária renovação.94

Autores dialéticos, como Barthes e Warat se utilizam da fragmentação,

estilo de escritura que de fragmento em fragmento anula a si mesmo, como forma

de manter um discurso sem impor95. Estão sempre perseguindo o excesso, visando

romper limites.96A produção em fragmentos gera o deslocamento em temas que

convergem no mesmo pano de fundo, neste caso a não submissão à ordem.

Neste sentido, os autores críticos preservam uma postura condizente com a

autêntica dialética, nos moldes expostos por Leandro Konder, por terem a

consciência da inevitabilidade da mudança, seguindo a atitude reivindicada por

Bachelard, pois mantêm o espírito rebelde que “incomoda os beneficiários de

interesses constituídos e os dependentes de hábitos mentais ou de valores

cristalizados”.97

89 MARQUES NETTO, A. R., Apresentação. WARAT, L. A., Amor tomado pelo amor: crônica de uma paixão desmedida. 90 WARAT, L. A., Mitos e teorias na interpretação da lei, p. 22. 91Ibid., p. 22. 92 Id., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,op.cit., p. 106. 93 O rejuvenescimento é uma proposta epistemológica bachelardiana para o pesquisador científico. 94 KONDER, L., O que é dialética, p. 83-84. 95BARTHES, R., Aula, p. 43. 96 KRONZONAS, D. E. Warat y yo. In: OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat. p. 11. 97 KONDER, L. O que é dialética., p.86.

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A consciência de que a sociedade se apresenta em uma constante

transformação, que deve ser acompanhada pelo saber jurídico torna necessária a

denúncia à insuficiência do direito normativo para atender as demandas sociais

dos tempos atuais. Com isso, os pensadores críticos propõem a expansão do

campo jurídico através do acréscimo ao conhecimento jurídico de novas

perspectivas, que nas proposta de Warat seriam as: “ecológicas, pedagógicas,

psicanalíticas, semióticas, poéticas e amorosas”.98

Assim, estas idéias pressupõem uma nova cientificidade que dá lugar ao

pensamento indisciplinado e complexo, abrindo espaço para a produção de novos

objetos de conhecimento através de reflexões transdisciplinares.

Deve-se entender que a perpetuação do normativismo jurídico torna os

juristas avessos à transdisciplinariedade do saber. No meio acadêmico se fala

sobre a adoção de abordagens transdisciplinares99, mas deve-se refletir se estes

trabalhos são efetivamente transdisciplinares, ou seja, se permitem a ampliação da

análise em outras perspectivas além da estritamente jurídica.

Neste contexto, a epistemologia perderia a sua função de fornecer regras

para a produção de verdades e controlar os discursos, e passaria a sugerir modos,

pontos de vista de pensar o mundo “(...) orientada por nosso ser social como

condição de significação”.100

Ao se propor uma atitude crítica, seguindo a postura exigida pelo novo

espírito científico, para o profissional e educador inserido no campo jurídico

compreende-se ainda a relevância dos ensinamentos de Marilena Chaui que trata

da referida atitude no campo da filosofia. Assim, deve ser compreendida a face

positiva e negativa ao se tratar da “crítica”. A face negativa implica uma

necessária desconfiança ao estabelecido, já a face positiva designa um

questionamento do porque das coisas, das idéias e das situações.101

A problemática em questão já foi levantada por outros pensadores críticos

como Michel Miaille que trata do tema no primeiro capítulo do seu livro Uma

98 WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p 13. 99 Em busca realizada no banco de dados de grupos de pesquisa do CNPq foram detectados 15 grupos a partir da palavra-chave “transdisciplinar”. Disponível em: http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/. Acesso em: 03 abr. 2008, 13hs e 30min. 100 WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 530. 101 CHAUI, M., Convite à Filosofia, p. 18.

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introdução crítica ao direito, em que trabalha com os obstáculos epistemológicos

à constituição de uma ciência jurídica.

Neste contexto, na referida obra, o autor critica o pensamento positivista

que se estabeleceu como “atitude epistemológica geral”102, que pode ser

considerado um conceito análogo ao senso comum teórico dos juristas

desenvolvido por Warat.

Assim, o processo de mitificação é um instrumento da ideologia para

naturalizar uma intenção histórica, tornando-a clara, não através de uma

explicação, mas de uma constatação, gerando assim uma sensação de comodidade,

tranqüilidade para o jurista que com a instituição da Ciência Jurídica em sentido

estrito que se fundamenta no postulado da pureza metodológica103.

A pureza metodológica se insere em um “pensamento de raízes” de grande

escala dentro do projeto moderno, que a partir da idéia de cartografia, Boaventura

entende que pode ser compreendido como aquele que cobre vastos territórios

simbólicos durante um extenso espaço de tempo, mas não consegue fugir das

ambigüidades das características do terreno.104

Bachelard propôs a ruptura epistemológica entre o senso comum - que o

autor considera como sinônimo de conhecimento vulgar- e a ciência, assim a

ciência se construiria contra o senso comum.105

Nesta perspectiva o senso comum era compreendido como um

conhecimento superficial que conduzia ao erro, além de sua valorização estar

ligada ao projeto de ascensão da burguesia ao poder.106Neste contexto, as ciências

sociais surgem no século XIX contra o senso comum. 107

Bachelard caracterizava o senso comum como fixista, ou seja, como fator

necessariamente imobilizador da ciência, o que não se comprova, pois o seu

caráter conservador ou inovador depende do conjunto das relações sociais em que

ele é produzido.108

102 MIAILLE, M., Introdução Crítica ao Direito, p. 37. 103 BARTHES, R. Mitologias, p 234 e 235. 104 SANTOS, B. S., A gramática do tempo: para uma nova cultura política, p. 55. 105 SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal,1989, p. 31. 106Ibid., p. 36 e 37. 107Ibid., p. 37. 108 “Uma sociedade democrática, com desigualdades sociais pouco acentuadas e com um sistema educativo generalizado e orientado por uma pedagogia de emancipação e solidariedade por certo “produzirá” um senso comum diferente do de uma sociedade autoritária, mais desigual e ignorante.” SANTOS, B. S. Introdução a uma ciência pós-moderna., p. 38.

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Na prática comprova-se que as teorias científicas têm um caráter

conservador e imobilizador muito maior que o senso comum geral, já que

possuem um poder institucional e uma legitimidade caucionada pelo paradigma

moderno, que as torna inquestionáveis.

Ao mesmo tempo deve-se considerar que Bachelard reconhece que não é

possível a anulação dos conhecimentos habituais e que os conhecimentos vulgares

podem ser legitimados pela ciência, por razões distintas das apresentadas pelo

senso comum.109

A categoria “senso comum teórico” está inserida nesta percepção de que

os pesquisadores devem se focar contra as teorias científicas inquestionáveis, ao

invés de deslegitimarem imediatamente qualquer conhecimento que advenha do

senso comum, seguindo o paradigma moderno que os considera como irracionais.

Este posicionamento pretende legitimar as demandas do senso comum

geral, que deve ser questionado, mas não imediatamente desconsiderado. Nesta

linha de pensamento Boaventura propõe uma dupla ruptura epistemológica –

ruptura com a ruptura epistemológica- em que o senso comum se transforma com

base na ciência objetivando-se conduzir para a superação da distinção estanque

entre senso comum e ciência. 110Estabelece-se assim uma nova configuração do

saber em que a fala do senso comum e da ciência dialoguem.

Para tanto, as universidades e os intelectuais devem ser deslegitimados

como lugar exclusivo de produção de saber e de fixação de pautas para a produção

acadêmica permitindo ser perpassada pelos problemas de circulam no mundo.111

Estas condições permitem o diálogo com o senso comum e configura um

paradigma de inclusão cidadã na produção dos saberes.

Entende-se que esta proposta é adequada às idéias fundamentais do novo

espírito científico, proposto por Bachelard, como forma de compreender a teoria

da história da ciência como não evolucionista, em que os desenvolvimentos

anteriores não necessariamente explicam o estágio atual, ou seja, a idéia de

descontinuidade entre as teorias e explicações precedentes dos fenômenos em

relação às novas teorias. O novo na ciência como revolucionário.

109 BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para a psicanálise do conhecimento, p. 18. 110 SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna, p. 42, 43 e 71. 111 WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 45.

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Sendo assim, a ruptura que uma proposta crítica para o campo jurídico

deve realizar é com a ideologia cientificista que entende o saber fora da história,

compreendendo o mundo sem ambigüidades e incoerências. As ambigüidades e

complexidades na produção significativa do direito devem ser reveladas, para

tornar viável a busca de soluções mais adequadas no campo jurídico.

Na perspectiva da superação do obstáculo epistemológico da dimensão

mítica da pureza metodológica no imaginário jurídico não se pode ignorar os

trabalhos de autores que refletem sobre o campo jurídico a partir de um

pensamento crítico.

Neste sentido, a obra A introdução ao pensamento jurídico crítico de

Antonio Carlos Wolkmer é um marco para o entendimento da propagação desta

postura entre os juristas. Wolkmer divide a crítica jurídica em quarto grandes

eixos epistemológicos: Critical Legal Studies (movimento norte-americano com

influência na cultura anglo-americana); Association Critique du Droit (origem na

França com influência na América Latina); Uso Alternativo do Direito (origem na

Itália com penetração na Espanha, possui adeptos europeus e latino-americanos);

Enfoques epistemológicos de pluralismo crítico.112Entre os enfoques

epistemológicos de pluralismo crítico, Wolkmer cita:

“(...) o modelo científico da interdisciplinaridade (Bélgica), a revisão crítica de inspiração frankfurtiana (Alemanha), a sociologia da retórica jurídica (Portugal), a crítica jurídica de matriz marxista-ortodoxa (Espanha, México, Chile, Colômbia, Brasil etc.), a crítica psicanalítica do Direito e a semiologia jurídica (Argentina e Brasil).”113 (grifo nosso) A proposta de um pensamento crítico não implica necessariamente na

filiação do jurista ao que se designa como Teoria Crítica do Direito. Segundo

Warat a origem desta corrente de pensamento ocorre na década de 60 quando

surge um pensamento marxista acadêmico que desenvolvia uma reflexão

materialista do direito a partir de uma teoria das ideologias. Os juristas marxistas

que criticavam as formas de dominação da época se auto-denominou Teoria

Crítica do Direito. 114

112 WOLKMER, A. C., Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, p. 37. 113 Ibid. 114WARAT, L. A., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A.., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 78-80.

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Porém, o movimento crítico no campo jurídico iniciou-se de fato na

década de 70 com professores marxistas franceses que se sentiam ameaçados em

seus cargos. Pelo seu caráter fragmentário, sua falta de coerência, precisão, regras

de correntes da lógica e da não contradição, até mesmo alguns de seus adeptos,

concordam que não se pode falar da produção de uma teoria crítica. 115

Autores que adotam esta atitude desenvolvem um corpo de idéias, que são

produzidas a partir de diferentes marcos conceituais, ou seja, não possuem um

sistema de categorias, estabelecendo assim “contralinguagens”116. Por este motivo

prefere-se falar em um saber, pensamento ou discurso crítico a assumir a filiação a

uma suposta Teoria Crítica do Direito. O principal ponto em comum entre aos

adeptos desta “teoria” seria a crítica às teorias jurídicas hegemônicas,

principalmente o positivismo jurídico.117

O pensamento crítico como contradiscurso, nesta perspectiva, se distancia

dos profissionais que se consideram críticos, que criticam o Direito de forma

superficial quase jornalística e esquecem qualquer obrigatoriedade de um

convencimento ético-legal-racional. Esta preocupação reside na direção ao

irracionalismo tomada por alguns autores que refletem sobre o uso alternativo do

direito, que acabam realizando a mera substituição de dogmas.118

O pensamento crítico para o campo jurídico ora apresentado vai mais além

das propostas epistemológicas bachelardianas, pois não parte apenas de uma

crítica interna do discurso científico, mas de uma crítica do mesmo inserido na

realidade social que abrange a discussão entre o saber e o poder.

Nesta perspectiva, a presente proposta revela a análise do nível pragmático

do signo que implica necessariamente em uma conciliação entre teoria e prática

demonstrando assim a dimensão política do discurso jurídico que visa estabelecer

a pureza da significação jurídica dominante.

O saber crítico pressupõe que o conhecimento é historicamente produzido,

o que impossibilita a sua neutralidade e objetividade na produção científica

115 Ibid. , p. 78-80. 116 WARAT, L. A., A Produção Crítica do Saber Jurídico. In: PLASTINO, C. A. (Org.), Crítica do direito e do Estado, p. 18. 117 Id., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A.., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou , p. 78-80. 118 Id., A condição transmoderna do desencanto da cultura jurídica.In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 41-42.

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pretendida pelos modernos. Pode-se falar em objetividade do conhecimento que é

capaz de revelar o que o sistema social produz. 119

Retomando a metáfora de Ulisses e as sereias, a superação deste obstáculo

silenciaria um dos fundamentos de legitimidade das “sereias institucionais”

permitindo que os juristas ouçam os gritos sociais por inovações no campo do

direito.

119 PLASTINO, C. A. Apresentação. In: PLASTINO, C. A. (Org.). Crítica do direito e do Estado, p. 9.

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5 À guisa de conclusão: rumo a perspectivas no campo jurídico que revelem dimensões críticas na construção de objetos de conhecimento

A presente dissertação analisou o postulado da pureza metodológica,

princípio da Teoria Pura do Direito, revelando sua dimensão mítica a partir da

percepção de que este postulado se torna uma verdade inquestionável, inoculada

pelo paradigma científico moderno como fundamento da produção científica

dominante no campo jurídico.

A tarefa de desvelar a dimensão mítica permitiu apresentá-lo como

obstáculo epistemológico para a expansão do campo de possibilidades na

produção de um saber jurídico crítico. Este projeto, conforme tivemos a

oportunidade de observar, só se consolidará com a inviabilização da reprodução

da referida dimensão mítica no imaginário jurídico.

Com este intuito, foram adotadas as obras de Warat nas quais o autor

desenvolve uma crítica jurídica, concentrando fundamentalmente nas obras A

pureza do poder e Mitos e teorias na interpretação da lei como principal marco

teórico.

O estudo da dimensão mítica da pureza, à exemplo de Warat, foi norteado

pela referência semiológica de Roland Barthes a partir de uma abordagem

transdisciplinar, na qual o autor aproxima questões sobre o saber e poder. Esta

perspectiva se torna imprescindível neste trabalho para denunciar os efeitos

nocivos dos processos míticos.

Neste sentido, o processo de mitificação da pureza metodológica é

analisado como uma metalinguagem a partir de uma “linguagem revolucionária” 1, em que se fala para transformar. Assim, a revelação da referida dimensão, no

desenvolvimento das reflexões, tornou possível viabilizar que a metalinguagem

fosse reenviada a uma linguagem-objeto inviabilizando a reprodução do mito e

permitindo a construção de objetos de conhecimento independentes do senso

comum teórico. 1 BARTHES, R., Mitologias, p. 238.

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A dimensão mítica do postulado da pureza metodológica foi apresentada

em dois planos: um na pretensão de constituição de um saber juridicista, a-

histórico e despolitizado, e outro nos efeitos da perpetuação deste postulado no

senso comum teórico dos juristas.

A pureza metodológica kelseniana é apresentada, portanto, como a base

para a legitimação e perpetuação de um saber juridicista na Ciência do Direito,

dominante nas universidades brasileiras que, pautado pelo paradigma moderno, se

fundamenta na possibilidade da depuração dos aspectos ideológicos para atingir

seus objetivos de neutralidade, sistematicidade, objetividade, universalidade entre

outros.

Ainda no plano no qual a produção científica jurídica se reduz a um saber

juridicista, identifica-se que este não permite a expansão do campo da pesquisa do

direito para o atendimento das demandas sociais, a contrario senso, a perpetuação

deste modelo de saber permite que as formas do direito encubram as relações

sociais.

Ao não admitir que a atividade do jurista constitui necessariamente

espaços políticos e, consequentemente, as influências do contexto social no

momento de produção das significações jurídicas, percebesse ainda que a

dimensão mítica impede a construção do objeto de conhecimento a partir do

objeto real.

A pureza metodológica no senso comum teórico também se mitifica, pois

passa por um processo de julgamento pelo discurso jurídico que esvazia o

conteúdo pretendido por seu idealizador (Kelsen) para preenchê-lo com sua

ideologia representada por suas crenças dominantes que envolvem as conotações

da dogmática e do jusnaturalismo. Revelar a dimensão mítica da pureza

metodológica em Kelsen contribui fundamentalmente nesta análise para

possibilitar a constituição de sistemas ilusórios que atuem no campo jurídico.

Neste sentido, a apresentação dos sistemas ilusórios, conceito ampliado do

paradigma de Thomas Kuhn, serviu para contextualizar e demonstrar a influência

direta dos modos de vida nas formas de produção de conhecimento dominantes

em um dado momento histórico.

Neste contexto, a pureza metodológica kelseniana é apresentada como um

marco para a perpetuação do projeto de modernidade hegemônica, com seus

excessos racionalistas no campo jurídico.

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Reconhecer a modernidade como um duelo entre duas propostas, a partir

dos ensinamentos de Antonio Negri e Hardt, permitiu uma reflexão dialética

explicitando que na história do conhecimento sempre existiu um modelo

vencedor, que pode se tornar hegemônico, mas que nunca será o único.

Assim, se escapa da matriz moderna universal, plena e unívoca para

encontrar uma percepção da complexidade e das ambigüidades que devem ser

enfrentadas no ato de conhecer.

O contexto contemporâneo foi resgatado de uma forma prudente, assumido

o posicionamento de que a modernidade não acabou, mas também reconhecido

que existem propostas não concretizadas e, em certa medida, viáveis para a

produção de saberes críticos como os sistemas ilusórios criativos apresentados

como áreas de escape do rigor da cientificidade moderna.

Para tanto, foram abertas novas vias no campo jurídico, no sentido de um

modelo de cientificidade distinto da ideologia cientificista moderna calcada na a-

historicidade, coerência absoluta e universalidade.

A Epistemologia Crítica constituiu suporte essencial para esta visão plural

que aponta caminhos, métodos, processos, ao invés de produzir modelos estáticos

e intocáveis para a produção de verdades.

O estudo ganhou densidade ao dar visibilidade a determinados efeitos do

processo de mitificação da pureza metodológica como o esvaziamento do

conteúdo, a naturalização, seu caráter impositivo e a-histórico que tornam o

postulado uma verdade inquestionável para o imaginário jurídico dominante.

Foi observado, que a falta de compreensão da Teoria Pura do Direito e de

seu postulado metodológico pelos profissionais de direito é apontada como um

fator facilitador da tarefa de esvaziamento do conteúdo do referido postulado.

Constata-se então que o postulado da pureza metodológica kelseniano, em

sua dimensão mítica, apresenta uma insuficiência metodológica, na perspectiva da

produção de um conhecimento crítico, por consistir em um modelo reducionista

das significações jurídicas, funcionando como suporte ideológico para a

permanência do status quo.

Neste contexto, é considerado um obstáculo epistemológico para o

conhecimento crítico calcado no novo espírito científico. Desta forma, a categoria

obstáculo epistemológico de Bachelard é apropriada como forma da presente

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reflexão dos problemas que surgem para o desenvolvimento de um pensamento

crítico.

A superação do referido postulado como obstáculo epistemológico

permite, que o profissional jurídico se adeque à proposta, do próprio Bachelard,

de um novo espírito científico que abrange a necessidade de inovação inserida em

uma ciência que se baseie em devires.

Nesta perspectiva entende-se que não se deve refutar a razão jurídica, mais

os excessos de uma racionalidade que se torna arbitrária, para tanto a abertura dos

profissionais do direito aos sentimentos, percebendo o campo do “feminino”.

Dentro da proposta transurrealista de Warat com base em Artaud, esta perspectiva

permitiria o surgimento de “intérpretes duplos” e educadores dispostos à

estabelecer trocas com os alunos.

Os “intérpretes duplos” seriam capazes de desenvolver interpretações

sustentáveis tanto no campo teórico quanto prático, o que permitiria uma

articulação entre estes dois campos, para que a Ciência Jurídica se consolide a

partir de uma reflexão do conhecer como prática social com a produção de objetos

de conhecimento plurais.

Portanto, os sistemas ilusórios criativos, representados neste trabalho pela

modernidade imanente de Negri e Hardt e o transurrealismo de Warat,

estabelecem um foco no sujeito e na motivação humana abrindo um campo de

possibilidades para a constituição de um saber crítico transdisciplinar, que

reconhece a importância de revelar os saberes dominantes para que se adentre em

outros territórios de conhecimento.

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Entrevista Entrevista a Luis Alberto Warat, em que se adotou a técnica de entrevista semi-estruturada, a partir de roteiro aberto. Palestras e Congressos Oficina Arte e Direito ministrada por Luis Alberto Warat e Martha Gama no Congresso: 180 anos do ensino do direito no Brasil e a democratização do acesso à justiça realizado pela ABEDI na Universidade Nacional de Brasília em Novembro de 2007. Palestra ministrada por Luis Alberto Warat na Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ, sobre Materialismo Mágico, em 17 de outubro de 2007. Palestra ministrada por Luis Alberto Warat na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ para o 2º Seminário Internacional Direito e Cinema: visões sobre o direito e a ditadura, em 5 de Outubro de 2006.

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