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5/24/2018 Vol3EducaoBsicaDoCampo-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/vol-3-educacao-basica-do-campo 1/63 3 Ilustração do tamanho que ficou no 2 Por uma educação básica do campo (Mesma letra, tamanho e cor do n.º 1 e 2)  Projeto Popular e Escolas do Campo César Benjamin Roseli Salete Caldart

Vol 3 Educação Básica Do Campo

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    Ilustrao do tamanho que ficou no 2

    Por uma educao

    bsica do campo

    (Mesma letra, tamanho e cor do n. 1 e 2)

    Projeto Popular e

    Escolas do Campo

    Csar Benjamin

    Roseli Salete Caldart

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    (Folha de Rosto)

    Csar BenjaminRoseli Salete Caldart

    Projeto Popular e

    Escolas do Campo

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    (Verso da folha de rosto)

    BENJAMIN, Csar e CALDART, Roseli Salete

    Projeto Popular e Escolas do Campo / Csar Benjamin e Roseli Salete Caldart. Braslia, DF:Articulao Nacional Por Uma Educao Bsica do Campo, 2000. Coleo Por Uma Educao Bsica doCampo, n. 3.

    Desenho da capa: Irmo Anderson Pereira

    COLEO POR UMA EDUCAO BSICA DO CAMPO

    1 Por Uma Educao Bsica do Campo (Memria)

    2 A Educao Bsica e o Movimento Social do Campo

    3 Projeto Popular e Escolas do Campo

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    (Ver onde ficou esta pgina no n. 2)

    Direitos Autorais cedidos pelos autores :Articulao Nacional Por uma Educao Bsica do Campo

    Secretariado Geral:SCS Qd 06 Edifcio Vilares salas 211/212

    70032-000-Braslia-DFTelefones (0xx61) 322 5035

    Fax (0xx61) 225 1026e-mail: [email protected]

    Coordenao da Articulao Nacional Por Uma Educao Bsica do CampoRepresentantes de:

    UNICEFUnB

    UNESCOMST

    CNBB

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    SUMRIO

    Apresentao ..........................................................................................................................

    PRIMEIRA PARTE:

    Um Projeto Popular para o Brasil. Csar Benjamin. ................................................................

    Projeto

    Popular

    Brasil

    Esse projeto necessrio?

    Esse projeto vivel?

    Princpios organizadores de um projeto popular para o BrasilProjeto popular e luta poltica no Brasil atual

    Uma nova esperana

    SEGUNDA PARTE:

    A Escola do Campo em Movimento. Roseli Salete Caldart. ....................................................

    Introduo .....................................................................................................................

    O MST e a Escola .........................................................................................................

    Lies da caminhada ....................................................................................................

    Seguindo em frente .......................................................................................................

    Anexos:

    1. Carta dos Sem Terrinha ao MST .............................................................................

    2. Manifesto das Educadoras e dos Educadores da Reforma Agrria ao Povo

    Brasileiro ..................................................................................................................

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    Apresentao

    A Articulao Nacional Por uma Educao Bsica do Campo sente-se honrada em

    publicar este volume com os trabalhos de Roseli Salete Caldart e Csar Benjamin.

    Agradecemos a ambos por terem prontamente acolhido nosso pedido e, como os leitores,

    vo comprovar, pela qualidade dos textos apresentados.

    A mobilizao em prol de uma Educao Bsica do Campo foi iniciada em 1998 e dali

    em diante j aconteceram diversas iniciativas locais e nacionais, de pessoas e grupos. Alm

    de felicitar a todos, agradecemos as informaes, notcias, relatos de experincias, textos de

    reflexo, que vem enriquecendo o processo, alimentando a esperana e motivando aes

    concretas.

    Este terceiro volume da coleo tem por objetivo dar continuidade reflexo e ao

    debate sobre a Educao Bsica do Campo, que mais sistematicamente vem sendo

    articulados, no Brasil, desde 1998. Visamos aqui, de modo especial, refletir num primeiro

    momento sobreUm Projeto Popular para o Brasil que nosso povo deseja construire, num

    segundo momento, refletirsobre as escolas do campoe como elas se inserem na dinmica

    das lutas pela implementao deste projeto.

    Csar Benjamin estimula a nossa reflexo sobre o projeto popular de Brasil,comentando cada um dos termos da proposta, portanto: Projeto; Popular, Brasil. Em

    seguida questiona se o referido projeto necessrio e vivel. Analisa a necessidade de

    alguns princpios a serem seguidos, assim como de mudana na poltica dominante para

    tornar possvel o projeto proposto.

    Roseli Caldart situa a experincia concreta do MST neste contexto de luta por um

    Projeto Popular de Brasil, e nele do Campo. O ngulo especfico de sua reflexo a

    caminhada da educao do campo.Na verdade, afirma Csar Benjamin, o povo brasileiro que se esfora, que se vira,

    que cultiva o cho, que constri, que conserta, que busca trabalho pas afora, que reaprende

    todos os dias a sobreviver, que insiste em estudar o povo brasileiro quem conhece bem

    o Brasil. Tem conscincia da fora, do potencial e da viabilidade do pas. no povo que

    esto nossas reservas humanas mais importantes de disposio para o trabalho e para

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    enfrentar dificuldades, de solidariedade, de potencial criador, de autenticidade, de valores e

    de alegria.

    Mas a realidade mostra que o povo vem sendo ludibriado sistematicamente pelas

    elites que governam o Brasil e que tem nas mos as imensas riquezas deste gigante. E o

    povo vem recebendo de modo massivo em vez de cultura, vulgaridade; em vez de interaohumana, isolamento; em vez de estmulo iniciativa, passividade; em vez de esperana,

    cinismo; em vez de cidadania, consumo; em vez de responsabilidade, esperteza. Em vez de

    Pixinguinha, o Tchan; em vez de Machado de Assis, auto-ajuda. Em vez de valorizar

    as pessoas, invejar as mercadorias...

    E mais ainda na poltica, pedem que nos orgulhemos de uma democracia sem

    cidadania, sem participao, impotente para alterar injustias flagrantes; os marqueteiros e o

    poder econmico ganham eleies, enquanto os polticos se dedicam a governar a siprprios. Na economia, pedem que comemoremos a segunda dcada perdida, o crescimento

    zero em 1999, um desemprego de 20%, um ajuste fiscal construdo com o corte dos

    salrios e dos servios essenciais, uma enxurrada de capital estrangeiro que vem aqui para

    ganhar juros de agiota ou comprar um pas barato.

    E Csar Benjamin conclui: o Brasil que nos mostram. O Brasil verdadeiro, no

    entanto, continua cheio de potencialidades. Tem uma populao jovem, com presena

    marcante de pessoas habituadas produo moderna. Tcnicos, em todas as profisses,em bom nmero. Grande mercado interno ainda inexplorado. Um parque industrial articulado

    e quase completo. Agricultura capaz de responder com rapidez a estmulos adequados.

    Vasto espao geogrfico, recheado de terra frtil e de recursos. Instituies cientficas de

    boa tradio. Imensa capacidade de criao cultural. Posio de liderana no continente em

    que est. Invivel o modelo das elites, no o Brasil.

    Apesar das enormes limitaes ao avano da prtica democrtica no nvel das

    instituies formais, nossa histria nos legou uma sociedade vocacionada para o belodestino de construir uma cultura de sntese, com fortes razes, mas aberta a influncias,

    propensa ao pluralismo, mudana e modernidade.

    A maior fora do Brasil seu povo novo. A maior fraqueza que esse povo ainda

    no se organizou com autonomia, de modo a controlar seu prprio destino. O projeto popular

    pretende dar esse passo, abrindo uma fase histrica nova.

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    Por sua vez Roseli Caldart diz que h no Brasil uma importante mobilizao

    organizada do povo do campo, com o objetivo claro de se conseguir um modelo democrtico

    e popular de Reforma Agrria no Brasil com uma justa Poltica Agrcola. Uma mobilizao

    que est dentro de uma outra mais ampla e abrangente que o modelo democrtico e

    popular de Brasil. E nesta mobilizao ocupa lugar de destaque a educao, uma educaonova, que leva em conta o Brasil e o campo que o povo quer.

    Existe, de fato, uma nova prtica de escola que est sendo gestada neste movimento.

    As educadoras e os educadores do campo vem participando intensamente do processo de

    transformao que nele vem acontecendo e esto convencidos de que preciso aprender a

    potencializar mais os elementos presentes nas diversas experincias, e transform-los em

    um movimento consciente de construo das escolas do campocomo escolas que ajudem

    no processo mais amplo de humanizao, e de reafirmao dos povos do campo como

    sujeitos de seu prprio destino, de sua prpria histria.

    O texto de Roseli, a partir da tica especfica da educao, na qual a escola do campo

    ocupa espao privilegiado, tem por finalidade contribuir nos desdobramentos da proposta da

    luta por um Projeto Popular de Brasil. Ele trata das seguintes questes: * que escola est

    sendo produzida pelo movimento social do campo em nosso pas? * qual o lugar da escola

    na dinmica de organizaes e movimentos que participam da luta por um novo projeto de

    desenvolvimento do campo?

    Nossa reflexo, diz Roseli, realizada a partir de uma experincia particular, que a

    do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, um dos sujeitos sociais que vm

    pondo o campo em movimento, atravs da sua luta incansvel para que se realize a Reforma

    Agrria no Brasil. Embora limitada, pensamos que a experincia da relao que

    historicamente o MST estabeleceu com a escola, pode trazer alguns elementos importantes

    para este dilogo, que continua. O texto aponta dez lies principais da caminhada do MST

    em sua relao com a escola, refletindo-as desde o ponto de vista do debate que estamos

    fazendo em torno das Escolas do Campo.

    Na esperana de que este volume seja mais uma ferramenta em nossa mobilizao

    nacional por uma Educao Bsica do Campo, que leva em seu bojo uma luta bem maior

    que por um Projeto Popular de Brasil e, obviamente, do Campo, aguardamos as reaes

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    dos leitores e tambm relatos de suas experincias de caminhada, que podero alimentar

    nossa coleo, com fatos, depoimentos e fotos.

    Braslia, janeiro de 2000.

    Irmo Israel Jos Nery, FSC.p/Articulao Nacional

    Por Uma Educao Bsica do Campo.

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    PRIMEIRA PARTE

    Um Projeto Popular para o Brasil

    Csar Benjamin1

    Ao contrrio das aparncias, o ttulo deste texto no bvio. Quando juntamos essas

    trs palavras simples projeto, popular e Brasil , estamos adotando um ponto de

    vista que remete, pelo menos, a trs questes iniciais bastante polmicas.

    Projeto

    A primeira questo que desejamos tratar senossa sociedade necessita mesmo de

    um projeto.

    O pensamento hoje predominante, chamado neoliberal, afirma que no. Ele diz que aconstruo do futuro deve ser comandada por um mecanismo considerado automtico,

    impessoal e neutro o mercado , definido por suas regras e no pelos efeitos que dever

    produzir. No mercado, segundo essa viso, se encontram incontveis agentes econmicos

    que compram e vendem bens e servios uns para os outros, sem que ningum controle o

    processo e possa prever seu resultado. Por isso, os neoliberais so hostis idia de um

    projeto. Querem que o Estado cuide apenas de que as regras funcionem bem (da a idia

    de um Estado mnimo). A sociedade no deve estabelecer metas, nem construir instituies

    voltadas para atingi-las, pois isso resulta em interferir no funcionamento da mo invisvel do

    mercado, que deve sempre prevalecer.

    Ns, ao contrrio, como diz o ttulo do texto, defendemos a construo de um projeto.

    Achamos que, em cada momento, a sociedade deve definir conscientemente seus objetivos

    mais importantes e organizar-se para atingi-los. Afinal, a principal caracterstica do ser

    humano, em oposio a todas as outras espcies, exatamente sua capacidade de imaginar

    o futuro e agir para constru-lo. Ningum comea a levantar uma parede se no tiver no

    papel, ou pelo menos na cabea, a imagem da casa que quer fazer. Uma casa, uma

    plantao, uma bicicleta, uma roupa, um livro, um clube, uma escola, uma cooperativa, antes

    de existirem na realidade, existiram como uma idia, um projeto. O projeto organiza e

    direciona o esforo criativo das pessoas.

    1Membro da Coordenao Nacional da Consulta Popular.

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    A posio dos neoliberais seria ridcula e insustentvel se, de fato, pretendesse

    eliminar essa caracterstica essencial da existncia humana. Mas, observando-se tudo mais

    de perto, verifica-se que o que eles defendem no bem isso. So contra que as sociedades

    tenham projetos, estabeleam metas e se organizem para atingi-las, mas apiam firmemente

    que as empresas capitalistas atuem dessa forma. Afinal, uma empresa desorganizada, queno defina suas estratgias e no saiba onde quer chegar, no tem chances de sobreviver

    no mercado. No mbito interno das empresas privadas, os neoliberais defendem a mxima

    organizao, a hierarquia e o esforo consciente para perseguir objetivos claros. Da a

    importncia que do a formar bons administradores, engenheiros de produo, chefes e

    capatazes.

    Assim, no verdade que os neoliberais sejam contra toda e qualquer construo

    consciente do futuro, na forma de projetos. O que eles defendem uma sociedade em que

    s os capitalistas possam, legitimamente, definir suas metas (que se resumem a uma s:

    ganhar mais dinheiro) e construir suas instituies (as empresas) capazes de atingi-las. Se

    os agentes sociais no capitalistas tambm organizam projetos claros (escola para todos,

    segurana alimentar ou direito ao trabalho, por exemplo) e criam instituies fortes para lev-

    los adiante (entidade pblicas, sindicatos, movimentos), isso atrapalha as metas dos

    capitalistas.

    Desde logo, fica claro, portanto, o seguinte: ns defendemos que a sociedade, como

    um todo, deve construir um projeto que organize o uso de sua capacidade criativa e

    produtiva, tendo em vista atingir um futuro desejado. Os neoliberais defendem que s os

    capitalistas devem ter esse direito.

    Essa diferena se expressa tambm no debate sobre a distribuio do poder. As

    instituies necessrias para levar adiante um projeto da maioria devem ser, por natureza,

    pblicas, coletivas e democrticas. As instituies dos capitalistas so privadas e autoritrias.

    Dependendo da proposta vitoriosa, um ou outro tipo de instituio prevalece na organizao

    da nossa vida em comum.

    Popular

    Vamos segunda questo embutida no ttulo deste texto: por que esse projeto deve

    ser popular?

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    Imaginemos uma situao absurda: todos os latifundirios resolvem subitamente

    deixar o Brasil. Embarcam numa frota de navios e vo embora. Tentemos responder

    seguinte pergunta: poderia a nossa sociedade viver sem eles?

    Voemos mais alto em nosso delrio. Imaginemos que uma frota um pouco maior

    levasse tambm os banqueiros, ou os especuladores do mercado financeiro, ou os quevivem de altas rendas, de comisses e intermediaes. Poderia o Brasil viver sem eles?

    Por intuio, podemos responder, com segurana, que sim. Devidamente

    reorganizada, nossa sociedade viveria muito bem sem a presena desses grupos sociais.

    Imaginemos agora outra situao, igualmente absurda. A frota de navios deixa aqui os

    latifundirios e leva embora os trabalhadores rurais, aqueles que lavram a terra. Poderia a

    nossa sociedade viver sem eles?

    De novo, vamos generalizar um pouco. E se desaparecem, por exemplo, todos os

    mecnicos? Ou os professores, os faxineiros, os mdicos, os motoristas, os engenheiros, os

    operrios txteis, os artistas? Poderia a sociedade continuar a funcionar?

    Desta vez, ainda por intuio, respondemos que no. Quem plantaria o nosso

    alimento? Quem consertaria as mquinas? Quem garantiria a transmisso do conhecimento

    para as novas geraes? E a limpeza, o cuidado com os doentes, os transportes, a

    construo de prdios e pontes, a fabricao das roupas, a criao de livros e msicas

    quem cuidaria dessas atividades essenciais?

    A diferena entre esses dois grande grupos latifundirios, especuladores,

    capitalistas e banqueiros, de um lado; agricultores, mecnicos, mdicos, professores,

    artistas, etc., de outro que o primeiro grupo, que minoria, existe porque comanda o

    trabalho dos demais; o segundo grupo, que maioria, vive, ele mesmo, dentro do mundo do

    trabalho. Esse comando, a que nos referimos, decorre do controle dos meios de produo:

    os latifundirios controlam a terra; os capitalistas, os instrumentos de trabalho; os

    banqueiros, os recursos financeiros; e assim por diante. Por isso, eles comandam a vida de

    todos os que, para trabalhar, precisam ter acesso a terra, instrumentos e recursos.

    Estabelecem-se relaes de poder: se uns comandam, outros so comandados. Com

    a minoria no poder, a sociedade no pode organizar-se em torno do princpio da

    solidariedade, mas da desigualdade e da hierarquia, que freqentemente descamba para a

    excluso e a represso.

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    Alm disso, os capitalistas nunca esto satisfeitos com o que tm. Querem sempre

    acumular mais. Sua sede de riqueza no tem nada a ver com suas prprias necessidades

    como seres humanos, ou com as necessidades de suas famlias, nem com o valor de uso

    das coisas (para a vida de qualquer pessoa, que diferena h entre ter R$ 10 milhes ou R$

    50 milhes na conta bancria?). Essa ganncia, essa necessidade de ter sempre mais,provoca uma tendncia concentrao, em poucas mos, da riqueza produzida pela

    sociedade: se uns tm muito, muitos tero pouco.

    Os grupos que vivem no mundo do trabalho e da cultura, ao contrrio, podem

    estabelecer entre si relaes de solidariedade, pois suas atividades so teis, necessrias e

    complementares: o agricultor planta o alimento que o professor come; o professor ensina o

    filho do mestre-de-obras a ler e escrever; o mestre-de-obras constri uma fbrica, onde os

    metalrgicos produzem o trator de que o agricultor necessita e assim por diante. Todos

    juntos, eles formam o povo trabalhador.

    O povo tambm quer ganhar mais dinheiro e melhorar de vida, mas dentro de uma

    escala humana, ligada ao valor de uso das coisas. Quer uma comida mais farta e de melhor

    qualidade, uma casa mais espaosa, um cobertor para o inverno, uma bola de futebol para o

    jogo do fim de semana, e assim por diante. Quem valoriza o uso das coisas no precisa

    gastar sua vida acumulando gulosamente cada vez mais riqueza, retirando a oportunidade

    dos outros (ningum precisa acumular um nmero cada vez maior de bolas de futebol).

    Alm disso, o povo sabe que as melhoras no seu padro de vida no vm de repente, numa

    jogada de negcios. Elas dependem do trabalho.

    Quando dizemos que o nosso projeto popular, queremos dizer que ele pretende

    organizar a sociedade em torno dos interesses, do potencial humano e dos valores dos

    grupos sociais que vivem do trabalho e da cultura, que, como vimos, so a imensa maioria.

    S assim a solidariedade, em vez do egosmo, pode passar a ser o princpio organizador da

    nossa vida em comum.

    Brasil

    Chegamos terceira questo que nosso ttulo coloca. Nele, falamos de um projeto

    popular para o Brasil. Qual o sentido do destaque dado ao Brasil? Muitos companheiros se

    perguntam: no somos internacionalistas? Que diferena h entre um ser humano nascido

    aqui, na Austrlia ou na Nigria?

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    Em termos de sua dignidade, de sua capacidade, de seu potencial criador e de seus

    direitos, no h diferena nenhuma. Somos irmos. Queremos um mundo organizado para

    todos. Mas a luta por esse mundo um processo histrico longo, que exige no apenas a

    mobilizao de indivduos, mas de coletividades.

    Os seres humanos se organizam em diferentes tipos de coletividades, oucomunidades, de todos os tamanhos, objetivos e regras. Podemos definir uma infinidade

    delas, conforme os critrios que queiramos adotar. Meus vizinhos formam uma comunidade,

    assim como os habitantes do meu bairro, da minha cidade, ou do meu estado; os latino-

    americanos tambm podem ser pensados como uma comunidade, que alis pode ser

    ampliada um pouco, incluindo-se portugueses e espanhis, para abranger os ibero-

    americanos. Tambm podemos pensar infinitas comunidades de outros tipos (os operrios

    metalrgicos, os catlicos, os idosos, os vegetarianos, os sofredores que torcem pelo

    Grmio) e at mesmo as mais gerais (os seres humanos, os seres vivos). Do ponto de vista

    do respeito aos direitos, devemos levar em conta at mesmo comunidades que no existem,

    como, por exemplo, a dos que ainda vo nascer.

    O projeto popular prope uma reorganizao profunda da sociedade. obra de muita

    gente junta, disposta a lutar por um ideal de justia. Surge ento a pergunta: que

    comunidades so capazes de produzir essa reorganizao? Nem todas. Vejamos alguns

    exemplos. A comunidade dos meus vizinhos, ou dos habitantes da minha cidade, pequena

    demais para isso. Sua capacidade de organizao e de luta no d conta da tarefa de

    produzir uma mudana desse porte. A comunidade dos catlicos exclui milhes de pessoas

    igualmente interessadas na mudana, e cuja participao imprescindvel. A comunidade de

    todos os seres humanos, por sua vez, grande demais e, neste momento histrico, est

    muito marcada por divises de todo tipo, que tm razes antigas e profundas. Infelizmente,

    no vivel esperar uma mudana que dependa de mobilizarmos, em uma mesma direo e

    em um mesmo momento, os seres humanos do mundo inteiro.

    Precisamos encontrar uma comunidade suficientemente grande, para ser capaz de

    produzir mudanas histricas profundas; suficientemente manejvel, para que a proposta das

    mudanas organize uma ao poltica eficaz, que impulsione um processo real, e no fique

    restrita a belos discursos; suficientemente evidente, para que seus integrantes percebam

    com clareza que compartilham um mesmo destino e tm objetivos comuns; suficientemente

    slida, para que no desmorone diante das dificuldades inerentes ao processo de mudana.

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    Essas comunidades existem. Em nosso caso, a comunidade o Brasil. Nosso projeto

    s vivel porque existe o povo brasileiro, uma imensa massa humana que se considera

    unida por uma histria, uma herana cultural, uma lngua, um espao geogrfico, instituies

    polticas, problemas e potencialidades comuns. Reconhecendo claramente que est ligada

    pelo passado e pelo futuro, essa massa humana pode, de fato, se juntar e se colocar emmovimento para atingir objetivos ousados (a idia de que cada um de ns tambm

    compartilha o mesmo destino de um australiano, embora no deixe de ser verdadeira,

    muito abstrata para a grande maioria das pessoas).

    Se quisermos, de um lado, mudar as realidades locais e, de outro, influir no futuro da

    humanidade, ento temos de mudar o Brasil. Dando as mos, claro, aos australianos que

    lutam para mudar a Austrlia, aos nigerianos que querem mudar a Nigria e, antes de tudo,

    aos nossos vizinhos latino-americanos, cujas razes histricas, cuja geografia e cujo destino

    imediato esto mais perto de ns.

    Esse projeto necessrio?

    Por tudo o que vimos, parece justo que a sociedade deve ter um projeto, ou seja, uma

    imagem do futuro que deseja construir e uma idia do caminho que deve trilhar. Que esse

    projeto deve ser popular, ou seja, conduzido pelos grupos sociais que vivem do trabalho e da

    cultura. E que seu espao preferencial de formulao e de ao poltica o Brasil. Um

    projeto popular para o Brasil.

    Mas, isso no esgota as perguntas. Logo aparecem mais duas. A primeira: esse

    projeto popular necessrio?

    Sim, mais do que nunca. O Brasil est em crise: a economia est estagnada; a

    agricultura familiar, falida; o desemprego, imenso; a violncia, crescente; as zonas rurais,

    esvaziadas; as cidades, inchadas; as periferias, em guerra; os idosos, humilhados; pais e

    mes de famlia, sem sossego; a juventude, sem perspectivas; os servios essenciais, como

    educao e sade, cada vez piores; a cultura, entregue a lees, ratinhos e similares.

    Hoje, e cada vez mais, a maioria dos brasileiros vive com medo da prpria vida.

    Estarei empregado amanh? O preo do aluguel vai subir? Serei assaltado? Haver comida

    na mesa? Meu filho e minha filha tero oportunidades na vida? Pagarei a prestao deste

    ms? Se ficar doente, onde encontrarei tratamento? Como ser minha velhice? O Estado e a

    lei me protegem? Que direitos tenho, de fato?

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    So perguntas que todos fazem a si mesmos, numa sociedade que dissemina a

    insegurana e a incerteza. Todos sabem que algo precisa ser feito para mudar essa vida,

    mas no sabem o qu. Por isso o Brasil est em crise: precisa mudar e no sabe como

    mudar, ou para onde mudar.

    No uma crise simples, de natureza apenas econmica. uma crise que questionao nosso destino. Se prestarmos ateno ao discurso das elites, veremos que elas esto

    dizendo, todo o tempo, que o Brasil no tem mais sentido: nosso povo, nossa lngua, nossa

    cultura, nossos produtos so de segunda categoria. Por isso, elas dizem que esto

    globalizadas. Acham que no vale mais a pena continuar a construir uma nao. O prprio

    presidente da Repblica tem-se referido ao Brasil como um mercado emergente, como se

    no fssemos mais um pas. A expresso no inocente: mercado lugar de competio,

    onde ganham os mais fortes.

    Os ricos, cada vez mais ricos, adotam padres culturais e de consumo importados de

    outros pases. Desligam cada vez mais seu padro de vida, seus valores e seu prprio

    destino, dos padres, valores e destino do pas como um todo. A maioria do povo fica

    condenada a uma vida sem perspectivas. No curto prazo, isso aumenta o sentimento de

    insegurana e de crise. No longo prazo, as conseqncias so imprevisveis, pois, abrindo

    mo de ter um projeto prprio, articulado por um Estado nacional forte e legtimo, nossa

    sociedade levada a aprofundar dramaticamente sua antiga vocao para a dependncia

    econmica externa e a desigualdade social interna.

    Alm disso, o modelo atual condena o Brasil a funcionar muito abaixo do seu

    potencial. Temos fartura de terras frteis, mas deixamos que o latifndio improdutivo tome

    conta delas. Temos uma populao jovem, desejosa de trabalho, mas mantemos

    desempregado um brasileiro em cada grupo de cinco. Temos o maior parque industrial do

    Terceiro Mundo, mas est parada uma mquina em cada grupo de quatro. Temos um Estado

    que criou instituies importantes e empresas modernas, agora sucateadas ou vendidas a

    preo de banana para pagar juros aos banqueiros. Temos o maior estoque gentico do

    planeta e as maiores reservas de gua doce, nosso territrio recebe sol o ano inteiro, mas

    quase no investimos em pesquisas cientficas que poderiam nos levar a aproveitar melhor

    tudo isso. Nunca foi to grande a distncia entre o que somos e o que poderamos ser,

    disse recentemente Celso Furtado.

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    O Brasil est vivendo uma crise profunda, que tem a ver com auto-estima, valores,

    identidade diante de si e do mundo. O que, afinal, queremos ser? eis a questo. Uma

    sociedade organizada, com direitos e deveres, ou uma multido de pessoas atiradas a uma

    situao de salve-se quem puder? Uma nao soberana, capaz de definir seu destino, ou

    uma terra de ningum, de cabea baixa, sem rumo prprio? Nossa vida e a vida dos nossosfilhos devem ter um horizonte amplo, seguro e aberto, ou devem ser marcadas pela incerteza

    e a insegurana crescentes? Seremos solidrios uns com os outros, ou seremos os lobos de

    ns mesmos?

    Numa palavra, o Brasil tem sentido?

    Ns dizemos que sim. Para recuperar esse sentido perdido, o projeto popular

    necessrio. Pois, se os ricos brasileiros podem comprar o bilhete de entrada para a farra da

    globalizao, nosso povo no pode. No tem dinheiro aplicado no mercado financeiro ounas bolsas de valores pelo mundo afora, no scio nem representante de grandes

    empresas, no ganha comisses nas negociatas, no fala ingls, no manda seus filhos

    estudarem l fora.

    O presente e o futuro do nosso povo depende do que acontece aqui. Por isso, o

    povo e no as elites que vai reinventar o sentido do Brasil e expressar isso na forma de

    um projeto. O povo precisa que o sentimento de comunidade prevalea, que as instituies

    pblicas se fortaleam, que a cidadania funcione e que a economia brasileira se desenvolva,multiplicando produo, empregos e oportunidades. Portador de necessidades simples, ele

    no precisa dessa modernizao que se baseia na difuso, para poucos, de altos padres

    de consumo, ao preo da desagregao social. Sem expectativas de enriquecimento rpido

    e desmedido, pode dispensar a atrao do capital financeiro internacional, especulativo e

    vagabundo, que no serve para plantar um p de alface ou produzir um alfinete, mas fascina

    nossas elites.

    Mais ainda: o povo brasileiro que se esfora, que se vira, que cultiva o cho, queconstri, que conserta, que busca trabalho pas afora, que reaprende todos os dias a

    sobreviver, que insiste em estudar o povo quem conhece bem o Brasil. Tem conscincia

    da fora, do potencial e da viabilidade do pas. no povo que esto nossas reservas

    humanas mais importantes de disposio para o trabalho e para enfrentar dificuldades, de

    solidariedade, de potencial criador, de autenticidade, de valores e de alegria.

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    Esse projeto vivel?

    Muito bem, o projeto popular necessrio, pois s o povo pode tirar o Brasil da crise.

    Mas, esse projeto vivel?

    A resposta tambm sim. Nos ltimos anos, temos sido bombardeados com

    mensagens negativas de ns mesmos. fcil descobrir por qu. Quem quer desconstruir

    uma nao precisa, antes de tudo, quebrar sua auto-estima, sua confiana em si mesma. A

    destruio da escola pblica e o controle dos meios de comunicao de massas pelas elites

    desempenham nisso um papel decisivo. Em vez de cultura, vulgaridade; em vez de interao

    humana, isolamento; em vez de estmulo iniciativa, passividade; em vez de esperana,

    cinismo; em vez de cidadania, consumo; em vez de responsabilidade, esperteza. Em vez de

    Pixinguinha, o Tchan; em vez de Machado de Assis, auto-ajuda. Em vez de valorizar

    as pessoas, invejar as mercadorias.

    Na poltica, pedem que nos orgulhemos de uma democracia sem cidadania, sem

    participao, impotente para alterar injustias flagrantes; os marqueteiros e o poder

    econmico ganham eleies, enquanto os polticos se dedicam a governar a si prprios. Na

    economia, pedem que comemoremos a segunda dcada perdida, o crescimento zero em

    1999, um desemprego de 20%, um ajuste fiscal construdo com o corte dos salrios e dos

    servios essenciais, uma enxurrada de capital estrangeiro que vem aqui para ganhar juros de

    agiota ou comprar um pas barato.

    o Brasil que nos mostram. O Brasil verdadeiro, no entanto, continua cheio de

    potencialidades. Tem uma populao jovem, com presena marcante de pessoas habituadas

    produo moderna. Tcnicos, em todas as profisses, em bom nmero. Grande mercado

    interno ainda inexplorado. Um parque industrial articulado e quase completo. Agricultura

    capaz de responder com rapidez a estmulos adequados. Vasto espao geogrfico, recheado

    de terra frtil e de recursos. Instituies cientficas de boa tradio. Imensa capacidade de

    criao cultural. Posio de liderana no continente em que est.Invivel o modelo das elites, no o Brasil.

    Princpios organizadores de um Projeto Popular para o Brasil

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    As dvidas continuam. Quais seriam os princpios organizadores de um projeto

    popular para o Brasil?

    Nenhum projeto nacional pode-se construir aqui, com autenticidade, tendo como base

    ambies expansionistas (pois, quanto ao territrio, o que desejamos apenas a

    preservao das nossas fronteiras), sectarismos religiosos (pois o nosso catolicismomajoritrio no tem carter exclusivista e militante) ou idias de superioridade de qualquer

    tipo, muito menos racial (pois nossa afirmao s pode basear-se no elogio da mistura). No

    somos divididos internamente por dios, nem somos hostis a nenhum outro povo. Haver

    quem estranhe a meno a caractersticas que nos parecem to naturais. Mas, basta olhar

    para o que ocorreu no mundo no sculo XX, e tem ocorrido ainda hoje, para que valorizemos

    a inviabilidade, entre ns, dessas formas degradantes de elaborao de identidades. A

    identidade dos brasileiros no pode ter como base uma vocao imperial, o preconceito, a

    segregao, a religio, a raa. Ela s pode ser construda no terreno da cultura. Vejamos por

    qu.

    Ao longo da nossa histria, realizamos uma grande faanha: apesar de moldado por

    contribuies de quase todos os povos da Terra sem esquecer o elemento indgena que j

    estava aqui h milhares de anos , o conjunto humano brasileiro essencialmente uno.

    Depois de vrios sculos de sofrida histria comum, marcada muitas vezes pela dominao

    mais cruel, nenhum grupo pode se definir como puro, nem como centro, nem como

    portador de uma lealdade tnica ou cultural extranacional. Todos foram assimilados e

    abrasileirados. Apesar das enormes limitaes ao avano da prtica democrtica no nvel

    das instituies formais, nossa histria nos legou uma sociedade vocacionada para o belo

    destino de construir uma cultura de sntese, com fortes razes, mas aberta a influncias,

    propensa ao pluralismo, mudana e modernidade. A est a nossa maior fora.

    Mas a mesma histria nos legou tambm um grande fracasso: esse conjunto humano

    que vem se formando h no muitas geraes, esse povo novo, ainda no se transformou

    em um povo de cidados. No assumiu o pleno controle de sua prpria nao, e por isso no

    foi capaz de construir uma sociedade que lhe permita desenvolver suas potencialidades.

    Nascemos como uma colnia, sem autonomia, e permanecemos divididos em senhores e

    escravos at pouco mais de quatro geraes atrs. Obtidas a Independncia e a Abolio da

    escravido, a construo do Brasil moderno foi fortemente marcada pela consolidao do

    territrio e pela ao modernizadora do Estado, feita de cima para baixo e, por isso, fraca

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    para quebrar as caractersticas mais reacionrias daquela matriz ideolgica e daquelas

    relaes sociais herdadas do passado colonial e escravista. A dependncia externa e a

    desigualdade interna permaneceram como marcas profundas da nossa sociedade.

    A maior fora do Brasil seu povo novo. A maior fraqueza que esse povo ainda no

    se organizou com autonomia, de modo a controlar seu prprio destino. O projeto popularpretende dar esse passo, abrindo uma fase histrica nova. Para isso, a sociedade brasileira

    deve assumir consigo mesma cinco compromissos fundamentais.

    (a) O compromisso com a soberania. Ele representa a nossa determinao de dar

    continuidade ao processo de construo nacional, rompendo com a dependncia

    externa e dando ao Brasil um grau suficiente de autonomia decisria.

    (b) O compromisso com a solidariedade. Ele diz que a continuidade da construo

    nacional deve se dar em novas bases, tendo em vista a tarefa de edificar uma

    nao de cidados. A reorganizao das instituies e do esforo produtivo da

    sociedade deve ter como prioridade eliminar a excluso social e a chocante

    desigualdade na distribuio da riqueza, da renda, do poder e da cultura.

    (c) O compromisso com o desenvolvimento. Ele expressa a deciso de pr fim

    tirania do capital financeiro e nossa condio de economia perifrica, dizendo

    que mobilizaremos todos os nossos recursos produtivos e no aceitaremos mais a

    imposio de polticas que frustrem o nosso potencial.

    (d) O compromisso com a sustentabilidade. Ele estabelece uma aliana com as

    geraes futuras, pois se refere necessidade de buscarmos um novo estilo de

    desenvolvimento, que no se baseie na cpia de modelos socialmente injustos e

    ecologicamente inviveis.

    (e) O compromisso com a democracia popular. Ele aponta para a refundao do

    sistema poltico brasileiro em novas bases, amplamente participativas, de modo

    que a sociedade possa efetivamente controlar os centros de deciso e poder.

    Esses cinco compromissos so solidrios entre si. Formam uma unidade indissolvel.

    So o ponto de referncia para todas as decises que tivermos de tomar.

    Projeto Popular e luta poltica no Brasil atual

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    At aqui, tudo ainda parece muito geral. De que forma o projeto popular nos ajuda a

    olhar a luta poltica no Brasil atual?

    Ajuda muito. Nos prximos anos, a crise brasileira caminhar para uma de trs

    solues possveis.

    A primeira delas, que o projeto de Fernando Henrique Cardoso e do Fundo

    Monetrio Internacional, subordina ainda mais a economia brasileira economia dos Estados

    Unidos. Tem sido muito rpida a desnacionalizao de empresas brasileiras, privadas e

    pblicas. As corporaes estratgicas de base nacional tm sido vendidas e desmembradas,

    como j ocorreu com a Telebrs, a Eletrobrs, a Companhia Vale do Rio Doce, a Embraer, a

    siderurgia, a petroqumica e a rede ferroviria. O mesmo est ocorrendo com o setor

    financeiro e poder ocorrer com a Petrobrs e o Banco do Brasil. A dvida externa mais do

    que dobrou. Se esse modelo for aprofundado, o Brasil vai acabar perdendo o controle sobresua prpria moeda (como j ocorreu com a Argentina e o Equador) e se inserindo na rea de

    Livre Comrcio das Amricas (Alca), que colocar o espao econmico dos pases latino-

    americanos dentro do espao econmico dos Estados Unidos (como j ocorreu com o

    Mxico).

    A segunda alternativa defendida por aqueles que pedem alteraes na poltica

    econmica, sob a forma de juros mais baixos, maiores incentivos aos setores produtivos,

    menor obsesso com a estabilidade monetria e assim por diante. a parte mais visvel daoposio, aquela que conta com maior espao institucional e maior cobertura da imprensa.

    Vai do PT a dissidentes do PSDB, da CUT a setores da Fiesp. Essa oposio no pensa

    seriamente em reverter as reformas j feitas pelo modelo neoliberal nem mesmo as

    privatizaes vergonhosas , mas prope correes de rota, para diminuir a instabilidade

    econmica e a tenso social, muito agravadas.

    Nos ltimos vinte anos diversas polticas econmicas foram experimentadas no Brasil.

    Passados alguns momentos eventuais, de esperanas falsas, a crise se repe, sempre maisprofunda, desenhando, no tempo, uma trajetria de degradao. Hoje, estamos em pior

    situao do que estvamos h cinco anos, h dez, h quinze Alguma coisa, que nunca foi

    mudada, mantm o pas nessa rota. O que ser? o sistema de poder.

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    Terceira Alternativa. Por isso, os defensores do projeto popular no pedem apenas

    alteraes na poltica econmica. Querem alterar o sistema de poder que comanda o Brasil.

    Que isso quer dizer?

    Detm o poder aqueles grupos que controlam recursos e instituies decisivas na

    organizao da vida social, fazendo com que a sociedade funcione de forma subordinadaaos seus interesses. Alterar o sistema de poder transferir esses recursos e instituies a

    outros grupos sociais, o que, em nossa proposta popular, significa democratiz-los. A

    pergunta, ento, passa a ser: o que precisaria ser rapidamente democratizado no Brasil, para

    dar incio a uma reorganizao da sociedade, de forma a retir-la da situao de crise? A

    nosso ver, quatro coisas:

    (a) Devemos democratizar a terra, que o principal recurso natural do pas. espantoso o

    grau de concentrao: menos de 1% dos proprietrios (que tm latifndios de mais de milhectares) controlam 44% da terra agricultvel do pas, enquanto 53% (que tm

    propriedades de menos de dez hectares) controlam menos de 3%. No esto

    computados aqui os trabalhadores rurais sem nenhuma terra, que se contam aos

    milhes. Bancos, empreiteiras e grandes grupos industriais, todos sem vocao agrcola,

    tm mais de 13 milhes de hectares. Essa alta concentrao resulta em um baixo uso da

    terra: na mdia brasileira, esto ocupados com lavouras apenas 14% das reas

    agricultveis. Democratizar a terra torn-la fonte de emprego, alimentos e renda. E

    tambm democratizar o poder, pois nas reas rurais quem tem a terra tem o poder.

    (b) Devemos democratizar a riqueza, especialmente, num primeiro momento, aquela que

    est sob a forma financeira, pois ela controla a alocao de recursos e comanda a

    principal fora produtiva da sociedade, o trabalho. Tambm aqui, o nvel de concentrao

    absurdo e crescente. Em 1997, apenas dez bancos detinham 72% dos ativos

    financeiros e 76% dos depsitos totais do pas, e os bancos estrangeiros haviam

    aumentado sua participao total no sistema de 14% para 35% (hoje, ela se aproxima de

    45%). No entanto, esse sistema poderoso e moderno no mobiliza recursos para o

    investimento produtivo, especialmente o de longo prazo, nem apia pequenas e mdias

    empresas. Os bancos acomodaram-se condio de parasitas do desequilbrio financeiro

    do setor pblico e constituram uma janela de vulnerabilidade externa da economia

    brasileira, dadas as suas ligaes com um sistema internacional desregulamentado,

    descontrolado e dominado por atividades especulativas. A poupana financeira no Brasil

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    estimada em R$ 350 bilhes. Para democratizar a riqueza, ser preciso aumentar a

    oferta de financiamento aos investimentos produtivos prioritrios e ampliar

    dramaticamente o acesso ao crdito. E, para defender a economia nacional, ser preciso

    controlar toda movimentao de riqueza financeira lquida. Ambas as necessidades

    exigem que o Estado nacional assuma o controle desse sistema.(c) Devemos democratizar a informao, que, em nossa sociedade, determina a formao de

    opinies e valores, desempenhando assim um papel central na organizao social e

    poltica. Em nvel nacional, apenas seis grupos recebem quase 90% do faturamento dos

    meios de comunicao de massa. Na maior parte do Brasil, a situao mais comum a

    de monoplios regionais que associam em uma mesma famlia, ou grupo, a propriedade

    de praticamente toda a comunicao de massas, o controle da poltica local e os cargos

    de representao federal. A possibilidade de manipulao total. Alm disso,

    organizados como empresas capitalistas privadas, os meios de comunicao tm

    clientes, aos quais vendem um produto. Os clientes so outras empresas capitalistas

    desejosas de anunciar, e o produto vendido a audincia. A concorrncia que assim se

    estabelece nivela a programao por baixo, empobrecendo notoriamente o contedo das

    mensagens transmitidas. A submisso da mdia lgica das mercadorias faz com que a

    informao, a poltica e a cultura se submetam crescentemente mesma lgica. Para

    libertar o potencial criador, restabelecer autenticidade na comunicao, garantir o

    pluralismo e difundir valores positivos para a sociedade, a rede de rdios e televises

    deve ser reorganizada na forma de um espao pblico, sob controle da sociedade.

    (d) Devemos democratizar a cultura, elemento decisivo na construo da cidadania. Cerca

    de 18% dos brasileiros com mais de quinze anos so analfabetos. Se, a eles, somarmos

    os chamados analfabetos funcionais ou seja, pessoas que escrevem o prprio nome,

    soletram palavras, mas no conseguem escrever uma carta ou ler um pequeno artigo

    chegaremos a uma percentagem assustadora, talvez superior a 50%. O maior patrimnio

    de um pas seu prprio povo, e o maior patrimnio de um povo sua cultura, que lhe

    permite expressar conceitos e sentimentos, explorar as potencialidades de sua lngua,

    formular idias mais ricas, reconhecer sua identidade, exigir direitos, aumentar sua

    capacidade de organizao, escolher melhor suas lideranas, libertar-se da misria,

    comunicar-se melhor consigo mesmo e com outros povos, aprender novas tcnicas, ter

    acesso ao que de melhor a humanidade produziu e produz na cincia e na arte. O projeto

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    popular no economizar esforos para eliminar a incultura. Transformar a

    disseminao do aprendizado em prioridade nacional, revitalizar a escola pblica,

    devolver dignidade ao ofcio de ensinar, revalorizar nossas razes e incrementar um

    processo intensivo de aprendizagem e difuso, para que os avanos mundiais da cincia

    e da tcnica sejam assimilados, reprocessados internamente e integrados em um acervonacional de conhecimentos e prticas.

    Uma nova esperana

    O Brasil no sair de sua prolongada crise sem alterar o atual sistema de poder, que

    repousa no controle, por minorias descompromissadas com o povo e a nao, desses

    recursos e instrumentos que determinam nossa forma de organizao social. Simples

    mudanas na poltica econmica, como propem os partidos da oposio parlamentar, no

    conseguiro reverter a rota de degradao em que estamos imersos, na qual preponderam

    os elementos estruturais.

    Muitos acham que nenhuma mudana profunda ocorrer, pois a desesperana e a

    falta de projeto j se espalharam por todo o pas. Esto enganados. Este o maior sintoma

    de que a mudana se aproxima. A dominao das elites s forte quando elas conseguem

    dar esperanas s pessoas e organizar o projeto da sociedade. Quando elas falham, quando

    esto em crise, quando j no podem mais continuar dominando, as esperanas e os

    projetos se frustram, dando lugar, num primeiro momento, a uma crise geral de

    desesperana. Essa crise, esse vazio, essa perda so condio necessria para que uma

    nova esperana possa nascer, um novo projeto possa vingar.

    Nenhuma pessoa, nenhuma famlia, nenhum grupo, nenhuma sociedade podem viver

    muito tempo sem ter esperana e projeto, que fazem parte da nossa condio humana,

    necessariamente aberta ao futuro. Se a elite no pode oferecer mais nada disso, sejamos

    ns os semeadores. A colheita vir.

    Rio de Janeiro, janeiro de 2000.

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    Para o aprofundamento da discusso atual sobre um projeto popular para o Brasil

    importante ler tambm:

    1. BENJAMIN, Csar e outros.A opo brasileira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.

    2. FURTADO, Celso. O capitalismo global. 2 ed., So Paulo: Paz e Terra, 1998.

    3. GUERREIROS, Carlos Frederico Manes e outros (orgs) O novo projeto histrico

    das maiorias.Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1999.

    4. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formao e o sentido do Brasil.So Paulo:

    Companhia das Letras, 1995.

    5. SADER, Emir. Que Brasil este? Dilemas nacionais no sculo XXI. So Paulo:

    Atual, 1999.

    6. SAMPAIO JR, Plnio de Arruda. Entre a Nao e a barbrie. Dilemas do

    capitalismo dependente.Petrpolis: Vozes, 1999.

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    SEGUNDA PARTE:

    A Escola do Campo em Movimento

    Roseli Salete Caldart1

    Introduo

    O objetivo deste texto dar continuidade reflexo e ao debate sobre a Educao

    Bsica do Campo, e em especial sobre as escolas do campo e como se inserem na dinmica

    das lutas pela implementao de um projeto popular de desenvolvimento do campo, e de

    pas.

    Para isto precisamos ter presente e reafirmar trs idias-fora que nos acompanham

    desde a Conferncia Nacional de julho de 1998, e que tambm tm sido desdobradas emoutros textos desta Coleo. As idias so as seguintes:

    1) O campo no Brasil est em movimento. H tenses, lutas sociais, organizaes e

    movimentos de trabalhadores e trabalhadoras da terra que esto mudando o jeito da

    sociedade olhar para o campo e seus sujeitos.

    2) A Educao Bsica do Campo est sendo produzida neste movimento, nesta

    dinmica social, que tambm um movimento sociocultural de humanizao das pessoas

    que dele participam.

    3) Existe uma nova prtica de Escola que est sendo gestada neste movimento.

    Nossa sensibilidade de educadores j nos permitiu perceber que existe algo diferente e que

    pode ser uma alternativa em nosso horizonte de trabalhador da educao, de ser humano.

    Precisamos aprender a potencializar os elementos presentes nas diversas experincias, e

    transform-los em um movimento consciente de construo das escolas do campo como

    escolas que ajudem neste processo mais amplo de humanizao, e de reafirmao dos

    povos do campo como sujeitos de seu prprio destino, de sua prpria histria.

    Estas idias esto na base da reflexo deste texto, que pretende contribuir

    especialmente no desdobramento da terceira, atravs das seguintes questes: que escola

    est sendo produzida pelo movimento social do campo em nosso pas? qual o lugar da

    1Do Setor de Educao do MST e da Articulao Nacional Por Uma Educao Bsica do Campo.

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    escola na dinmica de organizaes e movimentos que participam da luta por um novo

    projeto de desenvolvimento do campo?

    Trata-se de perguntas que certamente exigem um esforo de pesquisa e de reflexo

    bem mais profundo e abrangente do que ser possvel fazer neste texto. So na verdade um

    dos desafios de nossa Articulao Por Uma Educao Bsica do Campo. O que vamos fazeraqui tentar refletir sobre estas questes desde uma experincia particular, que a do

    Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, um dos sujeitos sociais que vm

    pondo o campo em movimento, atravs da sua luta incansvel para que se realize a Reforma

    Agrria no Brasil. Embora limitada, pensamos que a experincia da relao que

    historicamente o MST estabeleceu com a escola, pode trazer alguns elementos importantes

    para este dilogo, que continua.

    O mtodo de elaborao do texto o seguinte: primeiro, vamos situar a relao doMST com a escola, e socializar algumas de suas reflexes pedaggicas. Depois, a idia

    compartilhar com os leitores e as leitoras algumas lies da experincia educacional do MST.

    Para facilitar o dilogo, enunciaremos cada lio j tentando abstrai-la para a discusso mais

    geral das escolas do campo, mas descrevendo-a com as prticas e reflexes que

    conhecemos no MST especificamente. Trata-se de uma sntese certamente incompleta e

    provisria, que a leitura de outras experincias ter que aprofundar e completar.

    O MST e a Escola2

    Memria

    Quase ao mesmo tempo que comearam a lutar pela terra, os sem-terra do MST

    tambm comearam a lutar por escolas e, sobretudo, para cultivar em si mesmos o valor do

    estudo e do prprio direito de lutar pelo seu acesso a ele. No comeo no havia muita

    relao de uma luta com a outra mas aos poucos a luta pelo direito escola passou a fazer

    parte da organizao social de massas de luta pela Reforma Agrria, em que se transformouo Movimento dos Sem Terra.

    2Uma descrio e anlise mais detalhada da trajetria histrica da relao do MST com a escola pode serencontrada em CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Vozes, 2000.

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    Olhando hoje para a histria do MST possvel afirmar que em sua trajetria o

    Movimento acabou fazendo uma verdadeira ocupao da escola, e isto em pelo menos trs

    sentidos:

    1) As famlias sem-terra mobilizaram-se(e mobilizam-se)pelo direito escolae pela

    possibilidade de uma escola que fizesse diferena ou tivesse realmente sentido em sua vidapresente e futura (preocupao com os filhos). As primeiras a se mobilizar, l no incio da

    dcada de 80, foram as mes e professoras, depois os pais e algumas lideranas do

    Movimento; aos poucos as crianas vo tomando tambm lugar, e algumas vezes frente,

    nas aes necessrias para garantir sua prpria escola, seja nos assentamentos j

    conquistados, seja ainda nos acampamentos. Assim nasceu o trabalho com educao

    escolar no MST.

    2) O MST, como organizao social de massas, decidiu, pressionado pelamobilizao das famlias e das professoras, tomar para si ou assumir a tarefa de organizar e

    articular por dentro de sua organicidade esta mobilizao,produzir uma proposta pedaggica

    especfica para as escolas conquistadas, e formar educadoras e educadores capazes de

    trabalhar nesta perspectiva. A criao de um Setor de Educao dentro do MST formaliza o

    momento em que esta tarefa foi intencionalmente assumida. Isto aconteceu em 1987. E a

    partir de sua atuao o prprio conceito de escola aos poucos vai sendo ampliado, tanto em

    abrangncia como em significados. Comeamos lutando pelas escolas de 1 a 4 srie. Hoje

    a luta e a reflexo pedaggica do MST se estende da educao infantil Universidade,

    passando pelo desafio fundamental de alfabetizao dos jovens e adultos de acampamentos

    e assentamentos, e combinando processos de escolarizao e de formao da militncia e

    da base social Sem Terra.3

    3) Podemos afirmar hoje que o MST incorporou a escola em sua dinmica, e isto em

    dois sentidos combinados: a escola passou a fazer parte do cotidiano e das preocupaes

    das famlias Sem Terra, com maior ou menor intensidade, com significados diversos

    dependendo da prpria trajetria de cada grupo mas, inegavelmente, j consolidada como

    sua marca cultural: acampamento e assentamento dos sem-terra do MST tm que terescola

    e, de preferncia, que no seja uma escola qualquer; e a escola passou a ser vista como

    3Sem Terra, com letras maisculas e sem hfen indica o nome prprio dos sem-terra do MST, que assim sedenominaram quando criaram seu Movimento.

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    mesmo. Trata-se de alterar a postura dos educadores e o jeito de ser da escola como um

    todo; trata-se de cultivar uma disposio e uma sensibilidade pedaggica de entrar em

    movimento, abrir-se ao movimento social e ao movimento da histria, porque isto que

    permite a uma escola acolher sujeitos como os Sem Terra, crianas como as Sem Terrinha.5

    E ao acolh-los, eles aos poucos a vo transformando e ela a eles. Um mexe com o outro,num movimento pedaggico que mistura identidades, sonhos, pedagogias... E isto s pode

    fazer muito bem a todos, inclusive aos educadores e s educadoras que assumem esta

    postura. E tambm escola, que ao se fechar e burocratizar em uma estrutura e em um jeito

    de ser, costuma levar os educadores a esquecer, ou a ignorar, que seu trabalho , afinal,

    com seres humanos, que merecem respeito, cuidado, todos eles.

    Nesta trajetria de tentar construir uma escola diferente, o que era (e continua sendo)

    um direito, passou a ser tambm um dever. Se queremos novas relaes de produo no

    campo, se queremos um pas mais justo e com mais dignidade para todos, ento tambm

    precisamos nos preocupar em transformar instituies histricas como a escola em lugares

    que ajudem a formar os sujeitos destas transformaes. Foi assim que se comeou a dizer

    no MST que se a Reforma Agrria uma luta de todos, a luta pela educao de todos

    tambm uma luta do MST...

    Reflexes pedaggicas

    No processo de ocupao da escola o MST foi produzindo algumas reflexes que

    dizem respeito concepo de escola e ao jeito de fazer educao numa escola inserida na

    dinmica de um movimento social. Fez isto em dilogo especialmente com o movimento

    pedaggico da Educao Popular, e aprendendo tambm com as diversas experincias de

    escolas alternativas do campo e da cidade. Estas reflexes costumam ser socializadas com

    os educadores e as educadoras atravs dos materiais produzidos pelo MST como subsdio

    ao trabalho nas escolas dos assentamentos e acampamentos.

    5Sem Terrinha uma expresso que identifica as crianas vinculadas ao MST. O nome surgiu por iniciativa dascrianas que participaram do Primeiro Encontro Estadual das Crianas Sem Terra de So Paulo em 1997. Elascomearam a se chamar assim durante o Encontro e o nome acaboupegando, espalhando-se rpido pelo pasinteiro. Esta informao est em Ramos, Mrcia. Sem Terrinha, semente de esperana. Veranpolis: EscolaJosu de Castro, 1999. Monografia de Concluso do Curso Magistrio. No anexo 1 deste nosso texto, umacarta escrita pelos Sem Terrinha do Rio Grande do Sul, explicando a identidade que compreendem assumircom este nome.

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    A seguir reproduzimos a sntese elaborada para a primeira parte do Caderno de

    Educao n. 9, Como fazemos a Escola de Educao Fundamental, que foi editado pelo

    MST no final de 1999, e que pode ajudar os leitores e as leitoras a melhor compreender a

    concepo de escola de que partimos para a elaborao das lies desta caminhada.6

    Dissemos l:

    O MST tem uma pedagogia. A pedagogia do MST o jeito atravs do qual o

    Movimento historicamente vem formando o sujeito social de nome Sem Terra, e que no dia a

    dia educa as pessoas que dele fazem parte. E o princpio educativo principal desta

    pedagogia o prprio movimento. Olhar para esta pedagogia, para este movimento

    pedaggico, nos ajuda a compreender e a fazer avanar nossas experincias de educao e

    de escola vinculadas ao MST.

    Ser Sem Terra hoje bem mais do que ser um trabalhador ou uma trabalhadora que

    no tem terra, ou mesmo que luta por ela; Sem Terra uma identidade historicamente

    construda,primeiro como afirmao de uma condio social: sem-terra, e aos poucosno

    mais como uma circunstncia de vida a ser superada, mas sim como uma identidade de

    cultivo: somos Sem Terra do MST!

    Isto fica ainda mais explcito no nome crianas Sem Terraou Sem Terrinha, que no

    distinguindo filhos e filhas de famlias acampadas ou assentadas, projeta no uma condio

    mas um sujeito social, um nome prprio a ser herdado e honrado. Esta identidade fica mais

    forte medida que se materializa em um modo de vida, ou seja, que se constitui como

    cultura, e que projeta transformaes no jeito de ser das pessoas e da sociedade, cultivando

    valores radicalmente humanistas, que se contrapem aos valores anti-humanos que

    sustentam a sociedade capitalista atual.

    A relao do MST com a educao , pois, uma relao de origem: a histria do MST

    a histria de uma grande obra educativa. Se recuperamos a concepo de educao como

    formao humana sua prtica que encontramos no MST desde que foi criado: atransformao dos desgarrados da terra e dos pobres de tudo em cidados, dispostos a

    6 Trata-se de um Caderno que vem sendo gestado desde 1994, amadurecendo a construo coletiva deeducadoras e educadores dos assentamentos e acampamentos do MST, e que enfatiza a reflexo sobre o jeitode ser da escola, e como este jeito pode educar ou deseducar, humanizar, ou nem tanto.

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    lutar por um lugar digno na histria. tambm educao o que podemos ver em cada uma

    das aes que constituem o cotidiano de formao da identidade dos sem-terra do MST.

    O Movimento nossa grande escola, dizem os Sem Terra. E, de fato, diante de uma

    ocupao de terra, de um acampamento, de um assentamento, de uma Marcha, de uma

    escola conquistada pelo Movimento, cada vez mais pertinente perguntar: como cada umadestas aes educa as pessoas? como forma um determinado jeito de ser humano? que

    aprendizados pessoais e coletivos entram em jogo em cada uma delas?

    A herana que o MST deixar para seus descendentes ser bem mais do que a terra

    que conseguir libertar do latifndio; ser um jeito de ser humanoe de tomar posio diante

    das questes de seu tempo; sero os valoresque fortalecem e do identidade aos lutadores

    do povo, de todos os tempos, todos os lugares. enquanto produto humano de uma obra

    educativa que os Sem Terra podem ser vistos como mais um elo que se forma em uma longatradio de lutadores sociais que fazem a histria da humanidade. Enraizamento no passado

    e projeto de futuro.

    A educao dos sem-terra do MST comea com o seu enraizamento em uma

    coletividade, que no nega o seu passado mas projeta um futuro que eles mesmos podero

    ajudar a construir. Saber que no est mais solta no mundo a primeira condio da pessoa

    se abrir para esta nova experincia de vida. No este o sentimento que diminui o medo

    numa ocupao, ou faz enfrentar a fome num acampamento? Por isso para ns o coletivono um detalhe, a raiz de nossa pedagogia.

    , pois, do processo de formao dos Sem Terra que podemos extrair as matrizes

    pedaggicas bsicaspara construir uma escola preocupada com a formao humana e com

    o movimento da histria. Mas bom ter presente que a pedagogia que forma novos sujeitos

    sociais, e que educa seres humanos no cabe numa escola. Ela muito maior e envolve a

    vida como um todo. Certos processos educativos que sustentam a identidade Sem Terra

    jamais podero ser realizados dentro de uma escola. Mas o MST tambm vemdemonstrando em sua trajetria, que a escola pode fazer parte de seu movimento

    pedaggico, e que precisa dela para dar conta de seus desafios como sujeito educativo.

    A grande tarefa de educadoras e educadores Sem Terra que querem ajudar a

    construir escolas do MST, se assumirem como sujeitos de uma reflexo permanente sobre

    as prticas do MST, extraindo delas as lies de pedagogia que permitem fazer (e

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    transformar) em cada escola, e do seu jeito, o movimento pedaggico que est no processo

    de formao da identidade dos sujeitos Sem Terra, como est tambm na formao dos

    sujeitos humanos, de modo geral.

    Pedagogias em Movimento

    Pedagogia quer dizer o jeito de conduzir a formao de um ser humano. E quando

    falamos em matrizes pedaggicas estamos identificando algumas prticas ou vivncias

    fundamentais neste processo de humanizao das pessoas, que tambm chamamos de

    educao.

    No processo de humanizao dos sem-terra, e da construo da identidade Sem

    Terra, o MST vem produzindo um jeito de fazer educao que pode ser chamado de

    Pedagogia do Movimento. do Movimento por ter o Sem Terra como sujeito educativo e ter

    o MST como sujeito da intencionalidade pedaggica sobre esta tarefa de fazer educao. E

    tambm do Movimento porque se desafia a perceber o movimento do Movimento, a

    transformar-se transformando.

    Isto no quer dizer que o MST tenha inventado uma nova pedagogia, mas ao tentar

    produzir uma educao do jeito do Movimento, os Sem Terra acabaram criando um novo

    jeito de lidar com as matrizes pedaggicas ou com aspedagogiasj construdas ao longo da

    histria da humanidade. Em vez de assumir ou se filiar a uma delas, o MST tenta pr todas

    elas em movimento, e deixa que a prpria situao educativa especfica se encarregue de

    mostrar quais precisam ser mais enfatizadas, num momento ou outro.

    Vamos aqui tratar brevemente sobre algumas delas, de modo que possam estimular

    nossa reflexo sobre como se relacionam com o processo de construo de nossa Escola.

    a) Pedagogia da luta social

    Ela brota do aprendizado de que o que educa os Sem Terra o prprio movimento da

    luta, em suas contradies, enfrentamentos, conquistas e derrotas. A pedagogia da lutaeduca para uma postura diante da vida que fundamental para a identidade de um lutador

    do povo: nada impossvel de mudar e quanto mais inconformada com o atual estado de

    coisas mais humana a pessoa. O normal, saudvel, estar em movimento, no parado. Os

    processos de transformao so os que fazem a histria.

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    A luta social educa para a capacidade de pressionar as circunstncias para que

    fiquem diferentes do que so. a experincia de que quem conquista algo com luta no

    precisa ficar a vida toda agradecendo favor. Que em vez de anunciar a desordem provocada

    pela excluso, como a ordem estabelecida, e educar para a domesticao, possvel

    subverter a desordem e reinventar a ordem, a partir de valores verdadeira e radicalmentehumanistas, que tenham a vida como um bem muito mais importante do que qualquer

    propriedade.

    Numa Escola do MST, alm de garantirmos que a experincia de luta dos educandos

    e de suas famlias seja includa como contedo de estudo, precisamos nos desafiar a pensar

    em prticas que ajudem a educar ou a fortalecer em nossas crianas, adolescentes e jovens,

    a postura humana e os valores aprendidos na luta: o inconformismo, a sensibilidade, a

    indignao diante das injustias, a contestao social, a criatividade diante das situaes

    difceis, a esperana...

    b) Pedagogia da organizao coletiva

    Ela brota da raiz que nasce de uma coletividade que descobre um passado comum e

    se sente artfice do mesmo futuro. O sem-terra um desenraizado que comea a criar razes

    no tempo de acampamento, com a vivncia da organizao e a percepo da necessidade

    do movimento. Razes que o tornam membro de uma grande famlia, de se sentir irmo ou

    irm, de descobrir em si, como sujeito coletivo, a convico de dizer com orgulho: somosSem Terra, somos do MST.

    No MST esta pedagogia tem tambm a dimenso de uma pedagogia da cooperao,

    que brota das diferentes formas de cooperao desenvolvidas nos assentamentos e

    acampamentos, a partir dos princpios e objetivos da nossa luta pela Reforma Agrria e por

    um novo jeito de fazer o desenvolvimento do campo. o desafio permanente de quebrar,

    pelas novas relaes de trabalho, pelo jeito de dividir as tarefas e pensar no bem-estar do

    conjunto das famlias, e no de cada uma por si, a cultura individualista em que estamosmergulhados.

    Uma escola que se organiza do jeito do MST, educa principalmente atravs das novas

    relaes sociais que produz e reproduz, problematizando e propondo valores, alterando

    comportamentos, desconstruindo e construindo concepes, costumes, idias. Desta

    maneira ela ajuda a enraizar a identidade Sem Terra, e forma um determinado jeito de ser

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    humano. E quando a escola funciona como uma cooperativa de aprendizagem, onde o

    coletivo assume a corresponsabilidade de educar o coletivo, torna-se um espao de

    aprendizagem no apenas de formas de cooperao, mas principalmente de uma viso de

    mundo, ou de uma cultura, onde o natural seja pensar no bem de todos e no apenas de si

    mesmo.c) Pedagogia da terra

    Ela brota da mistura do ser humano com a terra: ela me, e se somos filhos e filhas

    da terra, ns tambm somos terra.7Por isto precisamos aprender a sabedoria de trabalhar a

    terra, cuidar da vida: a vida da Terra (Gaia), nossa grande me; a nossa vida. A terra ao

    mesmo tempo o lugar de morar, de trabalhar, de produzir, de viver, de morrer e cultuar os

    mortos, especialmente os que a regaram com o seu sangue para que ela retornasse aos que

    nela se reconhecem.

    O trabalho na terra, que acompanha o dia a dia do processo que faz de uma semente

    uma planta e da planta um alimento, ensina de um jeito muito prprio que as coisas no

    nascem prontas mas sim que precisam ser cultivadas; so as mos do campons, da

    camponesa, as que podem lavrar a terra para que chegue a produzir o po. Este tambm

    um jeito de compreender que o mundo est para ser feito e que a realidade pode ser

    transformada, desde que se esteja aberto para que ela mesma diga a seus sujeitos como

    fazer isto, assim como a terra vai mostrando ao lavrador como precisa ser trabalhada paraser produtiva.

    Nossa Escola pode ajudar a perceber a historicidade do cultivo da terra e da

    sociedade, o manuseio cuidadoso da terra - natureza - para garantir mais vida, a educao

    ambiental, o aprendizado da pacincia de semear e colher no tempo certo, o exerccio da

    persistncia diante dos entraves das intempries e dos que se julgam senhores do tempo.

    Mas no far isso apenas com discurso; ter que se desafiar a envolver os educandos e as

    educadoras em atividades diretamente ligadas terra.d) Pedagogia do trabalho e da produo

    Ela brota do valor fundamental do trabalho que gera a produo do que necessrio

    para garantir a qualidade de vida social e identifica o Sem Terra com a classe trabalhadora.

    7A expresso de Leonardo Boff, em seu livro Saber cuidar. Vozes, 1999.

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    As pessoas se humanizam ou se desumanizam, se educam ou se deseducam, atravs do

    trabalho e das relaes sociais que estabelecem entre si no processo de produo material

    de sua existncia. talvez a dimenso da vida que mais profundamente marca o jeito de ser

    de cada pessoa. No MST, os Sem Terra se educam tentando construir um novo sentido para

    o trabalho do campo, novas relaes de produo e de apropriao dos resultados dotrabalho, o que j comea no acampamento, e continua depois em cada assentamento que

    vai sendo conquistado.

    Pelo trabalho o educando produz conhecimento, cria habilidades e forma sua

    conscincia. Em si mesmo o trabalho tem uma potencialidade pedaggica, e a escola pode

    torn-lo mais plenamente educativo, medida que ajude as pessoas a perceber o seu

    vnculo com as demais dimenses da vida humana: sua cultura, seus valores, suas posies

    polticas... Por isto a nossa escola precisa se vincular ao mundo do trabalho e se desafiar a

    educar tambm para o trabalho e pelo trabalho.

    e) Pedagogia da cultura

    Ela brota do modo de vidaproduzido e cultivado pelo Movimento, do jeito de ser e de

    viver dos Sem Terra, do jeito de produzir e reproduzir a vida, da mstica, dos smbolos, dos

    gestos, da religiosidade, da arte... a necessidade da ao, com fora e radicalidade

    distinta, que exige uma permanente reflexo que se encarna em nova ao coletiva,

    rompendo com a lgica tanto do ativismo, como de projetos sem ao.

    A pedagogia da cultura tem como uma de suas dimenses fortes a pedagogia do

    gesto, que tambm pedagogia do smbolo e pedagogia do exemplo. O ser humano se

    educa mexendo, manuseando as ferramentas que a humanidade produziu ao longo dos

    anos. Elas so portadoras da memria objetivada (as coisas falam, tm histria). a cultura

    material que simboliza a vida. O ser humano tambm se educa com as relaes, com o

    dilogo que mais do que troca de palavras. Ele aprende com o exemplo, aprende fazer e

    aprende a ser, olhando como os outros fazem e o jeito como os outros so. E os educandosolham especialmente para as educadoras, so sua referncia como modo de vida.

    Numa escola do MST importante resgatar os smbolos, as ferramentas de trabalho e

    de luta, a mstica do Movimento. E fazer do tempo de escola um tempo onde os educandos

    possam refletir muito sobre as vrias dimenses da sua vida, de sua famlia, e tambm da

    grande famlia chamada Sem Terra. A escola far isto no apenas atravs de conversa, mas

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    experincia mais do que racional, porque entranhada em todo o seu ser humano. Fazer uma

    ao simblica em memria de um companheiro que tenha tombado na luta, ou de uma

    ocupao que tenha dado incio ao Movimento em algum lugar, educar-se para sentir o

    passado como seu, e portanto como uma referncia necessria s escolhas que tiver que

    fazer em sua vida, em sua luta; tambm dar-se conta de que a memria uma experinciacoletiva: ningum ou nada lembrado em si mesmo, descolado das relaes sociais,

    interpessoais...

    Uma escola que pretenda cultivar a pedagogia da histria ser aquela que deixe de

    ver a histria apenas como uma disciplina e passe a trabalh-la como uma dimenso

    importante de todo o processo educativo. Ser sua tarefa o resgate permanente da memria

    do MST, da luta dos pequenos agricultores, e da luta coletiva dos trabalhadores em nosso

    pas e no mundo; tambm a tarefa de ajudar os Sem Terrinha a perceber nesta memria as

    suas razes, e a se descobrir como sujeitos da histria. Mas, um detalhe importante: no tem

    como desenvolver esta pedagogia, sem conhecer e compreender a histria e seu

    movimento.

    h) Pedagogia da alternncia

    Ela brota do desejo de no cortar razes. uma das pedagogias produzidas em

    experincias de escola do campo em que o MST se inspirou.8Busca integrar a escola com a

    famlia e a comunidade do educando. No nosso caso, ela permite uma troca deconhecimentos e o fortalecimento dos laos familiares e do vnculo dos educandos com o

    assentamento ou acampamento, o MST e a terra.

    Podemos pensar a escola atuando em regime de alternncia ou pedagogia da

    alternncia. Para isso podemos olhar e ou fazer a escola com dois momentos distintos e

    complementares:

    o tempo escola, onde os educandos tm aulas tericas e prticas, participam de

    inmeros aprendizados, se auto-organizam para realizar tarefas que garantam ofuncionamento da escola, avaliam o processo e participam do planejamento das

    atividades, vivenciam e aprofundam valores, ...

    o tempo comunidade que o momento onde os educandos realizam atividades de

    pesquisa da sua realidade, de registro desta experincia, de prticas que permitem a

    8Esta pedagogia vem sendo trabalhada h 30 anos no Brasil pelas Escolas-Famlia Agrcola (EFAs).

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    troca de conhecimento, nos vrios aspectos. Este tempo precisa ser assumido e

    acompanhado pela comunidade Sem Terra.

    A Escola do MST

    A Escola do MST uma Escola do Campo, vinculada a um movimento de luta social

    pela Reforma Agrria no Brasil. Ela uma escola pblica, com participao da comunidade

    na sua gesto e orientada pela Pedagogia do Movimento, que como vimos, na verdade o

    movimento de diversas pedagogias.

    A Escola do MST aquela que se faz lugar do movimento destas pedagogias,

    desenvolvendo atividades pedaggicas que levem em conta o conjunto das dimenses da

    formao humana. uma escola que humaniza quem dela faz parte. E s far isto se tiver o

    ser humano como centro, como sujeito de direitos, como ser em construo, respeitando as

    suas temporalidades. A nossa tarefa formar seres humanos que tm conscincia de seus

    direitos humanos, de sua dignidade. No podemos tratar os educandos como mercadorias a

    serem vendidas no mercado de trabalho. Isto desumanizar, a eles e a ns todos.

    Para realizar a tarefa educativa de humanizao preciso perceber e levar em conta

    os ciclos da natureza e, de forma especial, os ciclos da vida humana com os quais estamos

    convivendo e queremos ajudar a formar. Os educandos da nossa Escola so crianas,

    adolescentes e ou jovens (com sua temporalidade prpria), so do campo (com saberes

    prprios) e so do MST (herdeiros da identidade Sem Terra em formao).

    Queremos que os educandos possam ser mais gente e no apenas sabedores de

    contedos ou meros dominadores de competncias e habilidades tcnicas. Eles precisam

    aprender a falar, a ler, a calcular, confrontar, dialogar, debater, duvidar, sentir, analisar,

    relacionar, celebrar, saber articular o pensamento prprio, o sentimento prprio, ... e fazer

    tudo isto sintonizados com o projeto histrico do MST, que um projeto de sociedade e de

    humanidade. Por isto em nossa Escola vital que as educadoras cultivem em si e ajudem a

    cultivar nos educandos a sensibilidade humana, os valores humanos.

    preciso tambm que a escola aceite sair de si mesma, reconhecendo e valorizando

    as prticas educativas que acontecem fora dela. Os princpios pedaggicos que

    sistematizamos no Caderno de Educao n. 8 9j apontam para isto. Seria bom retomar sua

    9Caderno de Educao n. 8: Princpios da educao no MST, 1 edio em julho de 1996.

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    leitura e refletir especialmente sobre os vnculos que do mais sentido ao que acontece

    dentro da escola...

    Assim est posto neste Caderno de Educao do MST. Assim o reafirmamos para o

    dilogo com as questes da Educao Bsica do Campo.

    Lies da Caminhada

    Dos 16 anos, completados pelo MST neste ano 2000, de experincias e de reflexes

    de um processo educativo que inclui a escola como uma de suas ocupaes e

    preocupaes, polticas e pedaggicas, podemos extrair algumas lies que, segundo nos

    parece, contribuem no dilogo sobre as escolas e a educao bsica do campo. So elas:

    1. A escola no move o campo mas o campo no se move sem a escola. o que discutimos bastante na Conferncia Nacional de 98: no podemos cair na

    falcia de que o debate sobre a educao bsica do campo substitui, ou mais importante,

    do que o debate sobre Reforma Agrria, sobre poltica agrria e agrcola, sobre relaes de

    produo no campo... No h escolas do campo num campo sem perspectivas, com o povo

    sem horizontes e buscando sair dele. Por outro lado, tambm no h como implementar um

    projeto popular de desenvolvimento do campo sem um projeto de educao, e sem expandir

    radicalmente a escolarizao para todos os povos do campo. E a escola pode ser um agentemuito importante de formao da conscincia das pessoas para a prpria necessidade de

    sua mobilizao e organizao para lutar por um projeto deste tipo.

    tambm o que nosso mestre da Educao Popular, Paulo Freire, nos disse em suas

    reflexes sobre a pedagogia do oprimido: a escola no transforma a realidade mas pode

    ajudar a formar os sujeitos capazes de fazer a transformao, da sociedade, do mundo, de si

    mesmos... Se no conseguirmos envolver a escola no movimento de transformao do

    campo, ele certamente ser incompleto, porque indicar que muitas pessoas ficaram foradele.

    No MST o aprendizado mais difcil e demorado, e ainda em processo, se refere mais

    segunda parte da afirmao do que primeira. Para um sem-terra que est vivendo em um

    barraco de lona, passando fome e tendo a vida ameaada pela represso, no difcil

    perceber que uma escola, por melhor que sejam os propsitos de seus educadores, jamais

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    ser capaz de libert-lo da opresso do latifndio. Alm disso, quando os primeiros sem-terra

    conversavam entre si sobre como decidiram entrar na luta, era muito raro encontrar algum

    que mencionasse a escola como tendo alguma participao nos aprendizados que levaram a

    esta deciso. Ao contrrio, a maioria tem uma pssima recordao da escola, at mesmo por

    ter sido excluda ou expulsa dela.Talvez tenha sido por isso que no comeo do MST, muitos sem-terra resistiram idia

    de lutar por escolas. Foram convencidos pela presso da presena de tantas crianas que

    estavam ameaadas de ficar sem o acesso escola e isto parecia, afinal, mais um

    desrespeito a eles, que j se chamavam de Sem Terra, e comeavam a se enxergar como

    sujeitos de direitos. No foi exatamente pela conscincia disseminada de que o estudo e a

    escola eram importantes para o avano da luta, que os sem-terra comearam a se mobilizar

    para conquist-la. Este foi um desdobramento da pedagogia de sua histria.

    O processo da luta pela terra que aos poucos foi mostrando que uma coisa tem a

    ver com a outra. Especialmente quando comearam a se multiplicar os desafios dos

    assentamentos, ficou mais fcil de perceber que a escola poderia ajudar nisso, desde que

    ela fosse diferente daquela de triste lembrana para muitas famlias. Hoje j parece mais

    claro que uma escola no move um assentamento, mas um assentamento tambm no se

    move sem a escola, porque ele somente se move, no sentido de que vai sendo construdo

    como um lugar de novas relaes sociais, de uma vida mais digna, se todas as suas partes

    ou dimenses se moverem junto. E a escola, medida que se ocupa e ocupa grande parte

    do tempo de vida especialmente da infncia Sem Terra, se no se move junto, de fato um

    freio no processo mais amplo. Sem ela no se constri uma das bases culturais decisivas s

    mudanas sociais pretendidas pelo MST.

    2. Quem faz a escola do campo so os povos do campo, organizados e em

    movimento.

    Se a escola do campo aquela que trabalha desde os interesses, a poltica, a cultura

    e a economia dos diversos grupos de trabalhadores e trabalhadoras do campo (Texto base

    CN, Coleo Por uma EBC n. 1), ela somente ser construda deste jeito, se os povos do

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    campo10, em sua identidade e diversidade, assumirem este desafio. No sozinhos, mas

    tambm no sem sua prpria luta e organizao.

    No MST este tem sido um aprendizado muito importante. Da mesma forma que a luta

    pela terra precisa ser feita e conduzida pelos prprios sem-terra, o processo de construo

    de uma escola que se misture com esta luta precisa ser obra dos mesmos sujeitos. Nosassentamentos e acampamentos esta uma realidade facilmente constatvel: enquanto as

    famlias Sem Terra no agarram a escola como um assunto que lhes diz respeito tanto

    quanto as definies sobre a produo ou a continuidade da luta pela Reforma Agrria, no

    se v uma escola do jeito do Movimento, mesmo que ali estejam educadores com propsitos

    pedaggicos libertadores. O grande desafio pedaggico exatamente pressionar para que a

    escola seja assumida pelos sujeitos que a conquistaram. Em alguns lugares isto inclui os

    educadores, as educadoras.

    Mas tambm um aprendizado da caminhada do MST: os Sem Terra no fazem

    sozinhos a sua escola. Assim como no fazem avanar sozinhos a luta pela Reforma

    Agrria. A leitura pedaggica das prticas sociais do MST, ou a constituio do Movimento

    como sujeito pedaggico, somente possvel no dilogo com outros sujeitos da prxis

    educativa. A prpria compreenso de que as escolas do MST so escolas do campo, fruto

    da abertura dos Sem Terra sociedade. Estamos nos referindo aqui a uma identidade que

    se produz em perspectiva, ou seja, na relao com outros sujeitos sociais e com o

    movimento da histria. O isolamento poltico, cultural, pedaggico, no constri o projeto

    maior de que aqui se trata.

    Neste sentido, a sociedade como um todo que tem o dever de construir tanto

    escolas do campo como escolas da cidade,11quer dizer, escolas inseridas na dinmica da

    vida social de quem dela faz parte, e ocupadas pelos sujeitos ativos deste movimento.

    Uma escola do campo no , afinal, um tipo diferente de escola, mas sim a escola

    reconhecendo e ajudando a fortalecer os povos do campo como sujeitos sociais, quetambm podem ajudar no processo de humanizao do conjunto da sociedade, com suas

    10 Povos do Campo o nome afirmado pela Conferncia Nacional de 1998 para dar conta das diferenashistricas e culturais dos grupos sociais que vivem noe do campo.11Por que no uma reflexo especfica sobre as escolas da cidade? A viso exclusivamente urbana da escolatalvez esteja trazendo um prejuzo pedaggico para a prpria escola da cidade, que no vem tendopotencializada a identidade especfica de seus sujeitos: o que significa, em uma perspectiva popular, fazer umaescola inserida na dinmica social de uma cidade? Este seria o sentido da chamada escola cidad?

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    lutas, sua histria, seu trabalho, seus saberes, sua cultura, seu jeito. Tambm pelos desafios

    da sua relao com o conjunto da sociedade. Se assim, ajudar a construir escolas do

    campo , fundamentalmente, ajudar a constituir os povos do campo como sujeitos,

    organizados e em movimento. Porque no h escolas do campo sem a formao dos

    sujeitos sociais do campo, que assumem e lutam por esta identidade e por um projeto defuturo.

    Somente as escolas construdas poltica e pedagogicamente pelos sujeitos do campo,

    conseguem ter o jeito do campo, e incorporar neste jeito as formas de organizao e de

    trabalho dos povos do campo.

    3. As lutas sociais dos povos do campo esto produzindo a cultura do direito

    escola no campo.

    Um dos entraves ao avano da luta popular pela educao bsica do campo cultural:

    as populaes do campo incorporam em si uma viso que um verdadeiro crculo vicioso:

    sair do campo para continuar a ter escola, e ter escola para poder sair do campo. Ou seja,

    uma situao social de excluso, que um dos desdobramentos perversos da opo de

    (sub)desenvolvimento do pas feita pelas elites brasileiras, acaba se tornando uma espcie

    de bloqueio cultural que impede o seu enfrentamento efetivo por quem de direito. As pessoas

    passam a acreditar que para ficar no campo no precisam mesmo de muitas letras.

    Romper com este e outros bloqueios culturais de mesma natureza, tem sido um

    grande desafio nas lutas pela implementao de um projeto popular de desenvolvimento do

    campo e de pas, bem como precisa ser deste nosso movimento por uma educao bsica

    do campo. E esta uma realidade que somente ser transformada no processo mesmo de

    construo de novas relaes sociais de produo, e da cultura material que lhes

    corresponde.

    So os desafios do campo em movimento que multiplicam as lutas sociais por

    educao. Por sua vez so estas lutas que vo ajudando a tornar consciente este direito e,

    aos poucos, vo transformando este direito tambm em um dever (dever de lutar pelo

    direito), que ento se consolida em modo de vida, viso de mundo: escolas noe do campo

    no precisam ser algo inusitado, mas sim podem passar a ser um componente natural da

    vida no campo. A escola vista como uma das dimenses do processo de formao das

    pessoas, nem mais nem menos, nem algo que se tenha que abandonar todo o resto para

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    conseguir. Sair do campo para estudar, ou estudar para sair do campo no uma realidade

    inevitvel, assim como no so imutveis as caractersticas marcadamente alheias cultura

    do campo das poucas escolas que o povo tem conseguido manter nele.

    Esta sem dvida uma das grandes lies da caminhada dos Sem Terra. No comeo

    o bloqueio ou a resistncia cultural de q