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Vol. XLVI IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA COIMBRA UNIVERSITY PRESS Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

Vol. XLVI - impactum.uc.pt filei Este texto é uma refundição do Cap. ... Em carta de 8/2/1895 — bem dentro da «fase homérica ... fábulas de La Fontaine a quem ele chamava o

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Vol. XLVI

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

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HVMANITAS — Vol. XLVI (1994)

M A N U E L D O S S A N T O S A L V E S

Universidade do Minho

HOMERO NUM MANUSCRITO INÉDITO i

— Tu leste a Ilíada? — Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a Ilíada. Os olhos do meu príncipe fusilaram. — Tu sabes o que fez Alcibíades, uma tarde, no Pórtico, a um sofista,

um desavergonhado dum sofista, que se gabava de não ter lido a Ilíada? — Não. — Ergueu a mâo e atirou-lhe uma bofetada tremenda.

Eça de Queirós, A Cidade e as Serras

Encontram-se na Biblioteca Nacional de Lisboa, no espólio literário de Eça de Queirós, sob a cota Esp. I/253-B, um manuscrito inédito, composto de 4 cartões de 11,5 X 15 cm. (segundo a ficha respectiva), todos escritos a lápis, apenas no anverso, excepto o ter­ceiro, escrito também no verso. A numeração — apócrifa — é a seguinte: 21, 22, 23, 23v, 24 2.

O primeiro, o n.° 21, não contém mais que um esboço de argu­mento de narração e não se reveste de qualquer interesse para os objectivos deste trabalho. Já o mesmo se não pode dizer do segundo,

i Este texto é uma refundição do Cap. I da Segunda Parte da nossa disserta­ção de Doutoramento intitulada Eça de Queirós sob o Signo de Mnemósine: Inter­texto, Interdiscwso, Dialogismo (de Tróia ao Lácio), vols. I-III, (policop.), Braga, Universidade do Minho, 1992, pp. 465-550). O itálico que se encontra no texto é, em geral, da nossa responsabilidade. Os casos em que o não é, são raros e de não difícil identificação.

2 Este manuscrito, que, como se pressupõe, conhecemos de visu, não faz parte do corpus estudado por Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989). Aliás, já nos tínhamos debruçado sobre ele, antes do aparecimento desse impor­tante trabalho de investigação.

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que apresenta um nexo lógico com os três últimos, e estes referem-se aos três primeiros Cantos da Ilíada. Eis a transcrição:

As lendas são, no espírito, o resíduo dos pensamentos exactos, das reali­dades intelectuais das gerações passadas. O que foi lei governando a alma, num século, torna-se, com o andar dos tempos, lenda, divertindo a imagi­nação. A imaginação é o depósito dos raciocínios escoados.

Este pequeno texto, de natureza prefaciai, constitui um documento valioso quanto ao modo de recepção de Homero na obra de Eça de Queirós. O realce nele concedido ao papel da imaginação aparece na obra editada do escritor português, por exemplo, no prefácio de O Mandarim (1880) e no texto «Positivismo e Idealismo» (1893), onde, preconizando um são equilíbrio entre razão e imaginação, chega a comparar a segunda a «essa Circe adorável que transforma os seus amigos, não em porcos — mas em deuses» (1909: 265). Esta alusão à metamorfose operada por Circe no Canto X da Odisseia mostra bem que, do epos homérico, o que mais lhe seduzia a sensibilidade artística era a porção de sonho que nele encontrava, conforme também se pode ver em certos passos da sua Correspondência e de A Cidade e as Serras. Contista exímio e imaginativo, considerava Homero sobre­tudo como um efabulador de histórias para crianças. Em carta de 8/2/1895 — bem dentro da «fase homérica» — chega mesmo a dizer (1925: 258-259): «Positivamente, contar histórias é uma das mais belas ocupações humanas: e a Grécia assim o entendeu, divinizando Homero que não era mais que um sublime contador de contos da carochina» 3.

Esta concepção lúdica do universo épico de Homero sobressai ainda mais do autógrafo que se segue imediatamente ao anterior e passamos a transcrever:

* 23. Durante nove dias, de pé, sobre nuvens cor de ouro e bronze, com o arco de prata na sua armadura, Febus Apolo arremessava flechas sobre o vasto acampamento dos Acaios, defronte dos muros de Tróia — pesados e negros, no resplendor da lua, e coroados de escudos de bronze. O coração do Deus estava irritado-—porque o seu xacerdote Crises, o que no templo de Tenedos, entre os loureiros, lhe queimava em seu louvor as pernas gordas das cabras, fora ofendido por Agamémnon, rei dos Acaios, que lhe arreba- ' tara a filha, Criseis, virgem forte de seio resplandecente. E o sacrificador,

3 Taine já se tinha exprimido em termos muito semelhantes a propósito das fábulas de La Fontaine a quem ele chamava o Homero gaulês : «Ce sont de petits contes d'enfants, comme l'Iliade et 1' Odyssée, qui sont de grands contes de nourrice» (1860: 47).

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1. EI/253-B, fól. [22]

EI/253-B, fól.-[23]

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