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Encerrados numa pequena ilha na Costa do Atlântico, duas comunidades vivem de costas voltadas entre si. Enquanto La Houssinière se transformou numa cidade próspera devido ao turismo que a única praia de toda a ilha lhe proporciona, Les Salants permaneceu esquecida no tempo, habitada apenas por pescadores e marinheiros que, tal como a vida que levam, são rudes e amargos. Mado nasceu em Les Salants, mas cedo partiu com a mãe para Paris. Após a morte desta, a jovem decide voltar à ilha da sua infância e reencontrar o pai. Mas o regresso ao passado não é fácil. A ilha, constantemente varrida por um vento imclemente, encerra em si todo o universo de mistérios e contradições, inacessíveis a uma "desconhecida". Mas, estranhamente, tal parece não ter acontecido com Flynn, um jovem Irlandês que, embora recém-chegado, é alvo da afeição e da confiança de todos, até do pai de Mado, um homem cujo coração está fechado para o mundo e que se mantém teimosamente recolhido no silêncio sepulcral. Face a uma comunidade fechada, supersticiosa e apostada em manter acesos ódios ancestrais, Mado decide desafiar a sorte e as marés e consegue vencer o orgulho e as crenças dos habitantes de Les Salants. Juntos, vão tentar mudar o futuro da povoação e o seu próprio destino. Para Mado, esta vai ser uma incursão no amor e o (re)encontro com os valores familiares e comunitários. Poderá um castelo de areia sobreviver às marés? Inspirado na ilha onde Joanne Harris passou alguns momentos da sua infância, a praia roubada transporta-nos de imediato para a nossa própria infância e, especialmente, para os inesquecíveis dias ociosamente passados à beira-mar. O romance evocativo, pleno de personagens misteriosas e segredos há muito guardados. Tal como já havia feito nos seus romances anteriores com os Aromas e Sabores, Joanne Harris proporciona-nos desta feita uma viagem pelos prazeres da vida costeira, onde facilmente o leitor sentirá a areia a escapar-se por entre os dedos e, ao longe, o vento marítimo a fustigar a terra com o seu sal. Joanne Harris nasceu em Yorkshire, em 1964, de mãe Francesa e pai Inglês. Com Chocolate, Vinho Mágico e Cinco Quartos de Laranja (livros publicados nesta mesma colecção) conheceu um retumbante sucesso internacional, que a adaptação ao cinema de Chocolate veio ainda intensificar. "Se Joanne Harris não existisse, alguém tinha de a inventar" Jenni Murray, Sunday Express JOANNE HARRIS A PRAIA ROUBADA TRADUZIDO DO INGLÊS POR TERESA CURVELO ASA Literatura ÍNDICE

voltar à ilha da sua infância e reencontrar o pai. Mas o ... · Mágico e Cinco Quartos de Laranja (livros publicados nesta mesma colecção) conheceu um retumbante sucesso internacional,

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Encerrados numa pequena ilha na Costa do Atlântico, duas comunidades vivem de costas voltadas entre si. Enquanto La Houssinière se transformou numa cidade próspera devido ao turismo que a única praia de toda a ilha lhe proporciona, Les Salants permaneceu esquecida no tempo, habitada apenas por pescadores e marinheiros que, tal como a vida que levam, são rudes e amargos. Mado nasceu em Les Salants, mas cedo partiu com a mãe para Paris. Após a morte desta, a jovem decide voltar à ilha da sua infância e reencontrar o pai. Mas o regresso ao passado não é fácil. A ilha, constantemente varrida por um vento imclemente, encerra em si todo o universo de mistérios e contradições, inacessíveis a uma "desconhecida". Mas, estranhamente, tal parece não ter acontecido com Flynn, um jovem Irlandês que, embora recém-chegado, é alvo da afeição e da confiança de todos, até do pai de Mado, um homem cujo coração está fechado para o mundo e que se mantém teimosamente recolhido no silêncio sepulcral. Face a uma comunidade fechada, supersticiosa e apostada em manter acesos ódios ancestrais, Mado decide desafiar a sorte e as marés e consegue vencer o orgulho e as crenças dos habitantes de Les Salants. Juntos, vão tentar mudar o futuro da povoação e o seu próprio destino. Para Mado, esta vai ser uma incursão no amor e o (re)encontro com os valores familiares e comunitários. Poderá um castelo de areia sobreviver às marés? Inspirado na ilha onde Joanne Harris passou alguns momentos da sua infância, a praia roubada transporta-nos de imediato para a nossa própria infância e, especialmente, para os inesquecíveis dias ociosamente passados à beira-mar. O romance evocativo, pleno de personagens misteriosas e segredos há muito guardados. Tal como já havia feito nos seus romances anteriores com os Aromas e Sabores, Joanne Harris proporciona-nos desta feita uma viagem pelos prazeres da vida costeira, onde facilmente o leitor sentirá a areia a escapar-se por entre os dedos e, ao longe, o vento marítimo a fustigar a terra com o seu sal.

Joanne Harris nasceu em Yorkshire, em 1964, de mãe Francesa e pai Inglês. Com Chocolate, Vinho Mágico e Cinco Quartos de Laranja (livros publicados nesta mesma colecção) conheceu um retumbante sucesso internacional, que a adaptação ao cinema de Chocolate veio ainda intensificar.

"Se Joanne Harris não existisse, alguém tinha de a inventar" Jenni Murray, Sunday Express

JOANNE HARRIS

A PRAIA ROUBADA

TRADUZIDO DO INGLÊS PORTERESA CURVELO

ASA Literatura

ÍNDICE

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Prólogo 11Primeira Parte - Detritos e Derelictos17Segunda Parte - Viragem da Maré 141Terceira Parte - Na Crista da Onda 253Quarta Parte - O Homem de Areia 309Epílogo 398Agradecimentos 399

A minha mãe Jeannette Payen Short

Nenhum homem é uma ilha...John DonneVer um mundo num grão de areia... William Blake

PRÓLOGO

As ilhas são diferentes. E quanto mais pequena for a ilha, mais isto é verdadeiro. Reparem na Grã-Bretanha. É quase inconcebível que uma faixa de terra tão estreita contenha tamanha diversidade: o jogo do críquete, chá com natas, Shakespeare, Sheffield, peixe e batatas fritas avinagrados em folhas de jornal, o Soho, Oxford e Cambridge, a praia de Southend, espreguiçadeiras listradas em Green Park, os Beatles e os Rolling Stones, Oxford Street, as indolentes tardes de domingo. Tantas contradições. E todas elas marchando juntas como manifestantes embriagados que ainda não perceberam que a principal causa de protesto são eles próprios. As ilhas são pioneiros, grupos dissidentes, descontentes, peixes fora de água, isolacionistas naturais. Como já disse, diferentes.Esta ilha, por exemplo. Percorre-se de bicicleta de uma ponta à outra. Uma pessoa que caminhasse por cima da água podia alcançar a costa numa tarde. A ilha de Le Devin, um dos muitos ilhéus apanhados como caranguejos nos baixios ao largo da linha costeira da Vendeia, eclipsada por Noirmoutier do lado fronteiro do litoral, pela ilha de Yeu a sul, num dia enevoado pode passar completamente despercebida. Os mapas raramente a referem. Na realidade quase não merece o estatuto de ilha, pois não passa de um conjunto de bancos de areia com pretensões, uma dorsal rochosa que a soergue do Atlântico, duas ou três povoações, uma pequena fábrica de embalagem de peixe, uma única praia. No extremo mais afastado, a minha casa, Les Salants, uma fiada de casinhas, que não chegam11para formarem uma aldeia, e que avançam titubeantes pelas rochas e pelas dunas até ao mar, que se aproxima usurpador cada vez que a maré transborda. A casa é o lugar donde não se pode fugir, o lugar-íman para onde roda a bússola do coração.Se tivesse podido escolher, teria preferido algo de diferente. Algures em Inglaterra talvez, onde eu e a minha mãe fomos felizes durante cerca de um ano até a minha inquietação nos voltar a arras tar para outro lado. Ou a Irlanda, ou Jersey, ou lona ou Skye. Como vêem, procuro ilhas quase por instinto, como se procurasse reconquistar os elementos da minha ilha, Le Devin, o único lugar insubstituível.A sua forma assemelha-se à de uma mulher adormecida. Les Salants é a cabeça, com os ombros encolhidos para se proteger das intempéries. La Goulue é o ventre, La Houssinière o recôncavo abrigado dos joelhos. A toda a volta estende-se La Jetée, uma barra de ilhotas arenosas, que se dilata e contrai ao sabor das marés, cambiando vagarosamente o contorno da costa, mordiscando um dos

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lados, depositando sedimentos no outro, raramente conservando a sua forma o tempo suficiente para terem direito a um nome. Para lá fica o ignoto absoluto, a plataforma de águas pouco profundas de La Jetée precipitando-se abruptamente num abismo de insuspeitada profundidade a que os nativos dão o nome de Nid'Poule, o Buraco.Uma mensagem metida numa garrafa, atirada de qualquer ponto da ilha, regressa quase sempre a La Goulue, a Sôfrega, por detrás da qual a povoação de Les Salants se aconchega contra o áspero vento marítimo. A sua localização a leste do cabo rochoso de Pointe Griznoz significa que a areia fina, o limo e demais resíduos tendem a acumular-se ali. As marés altas e as borrascas invernosas exacerbam este fenómeno, edificando muralhas de algas na margem rochosa que podem permanecer durante seis meses ou um ano antes de outra tempestade as arrastar.Como vêem, Le Devin não é nenhuma beleza. Tal como a nossa santa padroeira, Marine-de-la-Mer, a figura corcovada tem um aspecto rude e primitivo. Poucos turistas cá vêm. Não há muito que os atraia. Se vistas do ar estas ilhas são bailarinas com saias de tule espraiadas, Le Devin e a rapariga na última fila do coro, uma12rapariga bastante insignificante, que esqueceu os passos de dança. Nós ficámos para trás, eu e ela. A dança prossegue sem nós.Contudo, a ilha manteve a sua identidade. Uma faixa de terra de escassos quilómetros, mas com um carácter inteiramente próprio, com dialectos, cozinha, vestuário e tradições completamente diversos quer dos das outras ilhas quer da França continental. Os ilhéus consideram-se mais Devinnois do que franceses ou até Vendeanos. Não cultivam a mínima fidelidade aos políticos. São poucos os seus filhos que se dão ao trabalho de cumprir o serviço militar. Tão afastada do centro das coisas, parece absurdo. E tão distante das malhas da burocracia e da lei, Le Devin segue as suas próprias regras. .Não quer isto dizer que os estrangeiros não sejam bem-vindos. Muito pelo contrário: se soubéssemos como incentivar o turismo, fá-lo-íamos. Em Les Salants, o turismo significa riqueza. Contemplamos do outro lado do mar Noirmoutier com os seus hotéis, pensões e lojas e a grande ponte bem lançada suspensa sobre as águas desde a terra firme. Ali, no Verão as estradas são um rio de carros de matrículas estrangeiras e de bagageiras a abarrotar de malas, as praias ficam negras de gente e tentamos imaginar como seria se fossem nossos. Porém, quase nada passa de fantasia. Os turistas, os poucos que se aventuram até aqui, quedam-se invariavelmente em La Houssinière, o lado mais próximo da ilha. Les Salants não tem nada para lhes oferecer, com a sua costa rochosa e sem areais, as suas dunas de pedras argamassadas com areia dura, o seu vento agreste e incessante.A gente de La Houssinière sabe isso. Existiu sempre desde tempos imemoriais um antagonismo entre houssins e salannais, que começou por motivos religiosos, e mais tarde devido a disputas sobre direitos de pesca, sobre as áreas de construção, sobre o comércio e, inevitavelmente, sobre a terra. As terras recuperadas ao mar pertencem por lei aos que as cultivaram e aos seus descendentes. A terra é a única riqueza dos salannais. Mas La Houssinière controla as mercadorias vindas da costa (a família mais antiga explora o único ferry) e fixa os preços. Sempre que um houssin puder enganar um salannais, fá-lo. Se um salannais conseguir levar a melhor a um houssin, toda a aldeia partilha o triunfo.13Mas La Houssinière possui uma arma secreta. Chama-se Les Immortelles, um pequeno areal, a dois minutos do porto e protegido num dos lados por um antigo molhe. Aqui os barcos à vela des lizam sobre as águas, protegidos dos ventos de oeste. É o único lugar seguro para tomar banho ou velejar, protegido das fortes correntes que zurzem o promontório. Creio que é essa praia, um capricho da natureza, que faz a diferença entre as duas comunidades. A aldeia transformou-se numa cidadezinha pequena. Por causa dela, La Houssinière está próspera, segundo os padrões da ilha. Há um restaurante, um hotel, um cinema, uma discoteca, um parque de campismo. No Verão, o pequeno porto está pejado de barcos de recreio. La Houssinière acolhe o prefeito da ilha, um polícia, o correio, o único sacerdote. Algumas famílias da costa alugam casas aqui em Agosto, trazendo

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consigo comércio.Entretanto Les Salants está morta durante todo o Verão, ofegante e crestada pelo vento e pelo calor. Mas para mim continua a ser a minha casa. Não é o lugar mais belo do mundo, nem sequer o mais acolhedor, mas é o meu lugar.Tudo retorna. É uma máxima de Le Devin. Vivendo como nós na cauda grandiosa da Corrente do Golfo, trata-se de uma afirmação de esperança. Tudo acaba por voltar. Barcos naufragados, mensagens em garrafas, bóias de salvação, carga alijada ao mar, pescadores que se perderam no mar. Muitos não conseguem resistir à atracção demasiado forte de La Goulue. Pode levar anos. O continente é sedutor com o seu dinheiro, as suas cidades e a sua vida movimentada. Três em cada quatro rapazes partem aos dezoito anos, sonhando com o mundo que fica para lá de La Jetée. Mas a Sôfrega é tão paciente quanto voraz e para os que, como eu, não têm mais nenhuma âncora que nos prenda, o regresso parece inevitável.Em tempos, houve uma história. Não que agora tenha importância. Em Le Devin ninguém se interessa por outra história que não seja a sua própria. São restituídos à costa objectos - destroços de naufrágios, bolas de praia, aves mortas, carteiras vazias, sapatilhas caras, talheres de plástico, e até pessoas - e ninguém questiona a sua proveniência. O mar remove o que não é reclamado. Também passam de quando em vez por estas paragens criaturas marinhas: medusas, tubarões, cavalos-marinhos, frágeis estrelas e14uma fortuita baleia. Ficam ou vão, breves curiosidades olhadas com pasmo e rapidamente esquecidas mal abandonam as nossas águas. Para os insulanos nada existe para além de La Jetée. Desse ponto para diante não há nada que quebre o horizonte até se chegar à América. Ninguém ousa aventurar-se mais além. Ninguém estuda as marés nem o que arrastam consigo. A não ser eu. Sendo eu própria uma carga alijada ao mar, sinto-me autorizada a fazê-lo.Veja-se esta praia, por exemplo. É algo espantoso. Uma ilha, uma única praia, uma feliz combinação de marés e de correntes; cem mil toneladas de areia antiga, refractária como a rocha, dourada por milhares de reflexos ciumentos e transformada em algo mais precioso do que pó de ouro. É verdade que trouxe riqueza aos houssins, embora ambos saibamos, tanto os houssins como os salannais, como as coisas podiam ter sido tão fácil e arbitrariamente diferentes.Uma mudança de corrente, que se deslocasse uma centena de metros para a esquerda ou para a direita. Uma variação de um grau nos ventos predominantes. Um movimento na geografia do leito do mar. Uma tempestade desabrida. Qualquer uma destas coisas podia em qualquer altura ter provocado uma inversão cataclísmica. A sorte é como um pêndulo que oscila lentamente durante décadas, trazendo o inevitável na sua sombra.Les Salants continua a esperar, paciente e expectante, o seu regresso.15

PRIMEIRA PARTEDetritos e Derelictos

Regressei depois de uma ausência de dez anos, num dia quente de fins de Agosto, na véspera das primeiras marés perigosas de Verão. Enquanto observava do convés do Brismand 1, o velho ferry, a abordagem a La Houssinière, tinha a impressão de nunca ter partido. Nada mudara: o cheiro pungente do ar, o convés sob os meus pés, o rumor das gaivotas no céu azul e quente. Dez anos, quase metade da minha vida, desvaneciam-se com um simples movimento, como palavras escritas na areia. Ou quase.Não trazia praticamente bagagem, o que reforçava a ilusão. Mas eu sempre viajara "ligeira". Estávamos habituadas, a Mãe e eu; nunca carregávamos muito peso. E no fim era eu que pagava a renda do nosso apartamento de Paris, a trabalhar num sombrio café aberto até tarde durante a noite para arredondar a receita dos quadros que a Mãe detestava, enquanto ela se debatia com o seu enfisema e fingia ignorar que estava a morrer.

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De qualquer maneira, gostaria de ter regressado rica e bem sucedida. Para mostrar ao meu pai como nos tínhamos safado bem sem a ajuda dele. Porém, as escassas economias da minha mãe já hámuito se tinham esgotado e as minhas, uns milhares de francos num Crédit Maritime e um portefólio de pinturas não vendidas, montavam a pouco mais do que tínhamos levado connosco no dia em que partíramos. Não que isso importasse. Não estava nos meus planos ficar. Por muito potente que fosse a ilusão de tempo suspenso, vivia agora outra vida. Tinha mudado. Deixara de ser uma ilha.19Ninguém me prestou atenção enquanto me mantive ligeiramente afastada dos outros no convés do Brismand 1. Estava-se na época alta e havia já um bom número de turistas a bordo. Alguns até estavam vestidos como eu, com calças de lona e uma vareuse de pescador, essa peça sem formas a meio caminho entre a camisa e o gibão: gente da cidade a esforçar-se empenhadamente para não o parecer. Turistas com mochilas, malas de viagem, cães e crianças apinhavam-se no convés no meio de caixotes de fruta e de mercearias, gaiolas de frangos, sacos de correio, caixas. O barulho era assustador. Como ruído de fundo o sussurro do mar contra o casco do ferry e o grito das gaivotas. O meu coração batia ao ritmo da rebentação.Enquanto o Brismand 1 se aproximava do porto, deixei que o meu olhar se espraiasse sobre as águas até à esplanada. Quando era criança gostava daquele sítio: brincava muitas vezes na praia, es condendo-me debaixo dos ventres anafados das velhas barracas enquanto o meu pai tratava dos seus negócios no porto. Reconheci os chapéus-de-sol desbotados da Choky na esplanada do pequeno café onde a minha irmã se costumava sentar, a barraca dos hot-dogs, a loja de recordações, talvez mais agitado do que eu me lembrava. Uma fiada esparsa de pescadores com vasilhas com caranguejos e lagostas alinhava-se ao longo do cais, vendendo o que tinham apanhado. Ouvia a música vinda da esplanada e lá em baixo brincavam crianças numa praia que, mesmo na maré alta, parecia mais agradável e generosa do que eu me lembrava. As coisas pareciam correr bem para La Houssinière.Deixei os olhos divagar ao longo da Rue des Immortelles, a rua principal que corre paralela à linha do mar. Avistei três pessoas sentadas lado a lado no que fora outrora o meu lugar preferido: o molhe por baixo da esplanada virada para a baía. Lembrei-me que costumava sentar-me ali em criança, contemplando o continente, que à distância parecia uma grande mandíbula pardacenta, imaginando o que haveria ali. Semicerrei os olhos para ver com maior nitidez: mesmo a meio da baía, podia ver que dois dos vultos eram de freiras.Reconheci-as no momento em que o ferry se aproximou: Soeur Extase e Soeur Thérèse, voluntárias Carmelitas da casa de repouso de Les Immortelles, já velhas antes de eu nascer. Senti-me estranhamente reconfortada por ainda ali estarem. As duas freiras estavam a20comer gelados, com os hábitos repuxados até aos joelhos e os pés nus a balouçarem por cima do parapeito. O homem sentado ao lado delas, com o rosto sombreado por um chapéu de abas largas, podia ser qualquer um.O Brismand 1 acostou ao quebra-mar. Foi colocada uma prancha e esperei que os turistas desembarcassem. O molhe estava tão apinhado como o barco: viam-se vendedores de bebidas e de doces,um motorista de táxi alardeava os seus serviços, crianças com carrinhos disputavam a atenção dos turistas. Mesmo para Agosto, a azáfama era grande.- Quer que leve as suas malas, menina? - Um rapaz de cara redonda, dos seus catorze anos, com uma t-shirt de um vermelho desbotado, puxou-me pela manga. - Quer que leve as suas malas para o hotel?- Não é preciso, obrigada. - E mostrei-lhe a minha maleta. O rapaz olhou-me com uma expressão confusa, como se tentasse identificar as minhas feições. Depois encolheu os ombros e afastou-se à procura de presas mais atraentes.A esplanada estava cheia de gente. Turistas que partiam e turistas que chegavam e alguns houssins no meio deles. Acenei com a cabeça a um velho que tentava vender-me um porta-chaves de corda:

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era Joio-le-Goëland, que costumava levar-nos a passear de barco no Verão, e embora nunca tivesse sido um amigo - ao fim e ao cabo era um houssin - senti um aperto no coração por não me ter reconhecido.- Vai ficar cá? É turista? - Era outra vez o rapaz do rosto redondo, agora acompanhado por um amigo, um adolescente de olhos escuros, com um blusão de cabedal, que fumava um cigarrocom mais ostentação do que prazer. Os dois rapazes transportavam malas.- Não sou turista. Nasci em Les Salants. - Les Salants?- Sim. O meu pai é Jean Prasteau. Constrói barcos. Ou, pelo menos, construía.- GrosJean Prasteau! - Os dois rapazes olhavam para mim com franca curiosidade. Talvez fossem acrescentar mais alguma coisa, mas nesse preciso momento vieram juntar-se a nós outros21três adolescentes. O maior dirigiu-se ao rapaz de cara redonda com ar autoritário.- O que é que vocês, salannais, estão aqui a fazer outra vez, hem? - perguntou. - Sabem muito bem que o molhe pertence aos houssins. Não estão autorizados a transportar bagagem para Les Immortelles!- Quem disse? - perguntou o rapaz de cara redonda. - Esta esplanada não é vossa! Os turistas não são vossos!- O Lolo tem razão - disse o rapaz dos olhos escuros. - Nós chegámos primeiro.Os dois salannais aproximaram-se mais um do outro. Os houssins eram em maior número, mas senti que eles estavam mais dispostos a lutar do que a desistirem das malas. Por momentos imaginei-me com a idade deles, à espera do meu pai, ignorando as risadas das belas raparigas houssins no terraço do café até as gargalhadas se tornarem demasiado altas e eu correr para o meu refúgio debaixo das barracas da praia onde estava segura.- Eles chegaram primeiro - disse eu aos três. - Agora desapareçam.Por momentos os houssins olharam-me ressentidos, depois afastaram-se, resmungando, em direcção ao molhe. Lolo brindou-me com uma expressão de pura gratidão. O amigo limitou-se a encolher os ombros.- Eu vou com vocês - disse eu. - É para Les Immortelles, não é? - A grande casa branca, que em tempos fora uma casa de repouso para velhos, ficava a poucas centenas de metros abaixo da esplanada.- Agora é um hotel - disse Lolo. - Pertence ao Sr. Brismand.- Bem sei. Eu conheço-o.Claude Brismand, um houssin maciço de bigodes exuberantes que cheiravam a água-de-colónia, que usava alpergatas como um camponês e de voz intensa e encorpada como um bom vinho. Na aldeia chamavam-lhe Brismand a Raposa. Brismand Sortudo. Durante muitos anos pensei que fosse viúvo, embora corressem rumores de que tinha mulher e um filho algures no continente. Sempre gostara dele embora fosse um houssin: era bem disposto, conversador, com as algibeiras sempre atulhadas de doces. O meu pai odiava-o.22Numa espécie de desafio, a minha irmã Adrienne casara com o sobrinho dele.- Já podemos ir. - Tínhamos chegado ao fim da esplanada. Através de um par de portas envidraçadas entrevi o vestíbulo de Les Immortelles: uma secretária, uma jarra de flores, um homemcorpulento sentado ao pé da janela aberta a fumar um charuto. Por instantes hesitei em entrar, depois decidi não o fazer.- Acho que agora já se podem desenvencilhar. Vão lá.Eles lá foram, o rapaz de olhos escuros sem uma palavra, Lolo com um esgar de desculpa pelo amigo.- Não ligue ao Damien - disse em voz baixa. - Ele quer sempre andar à bulha.Sorri. Eu também era assim. A minha irmã, quatro anos mais velha do que eu, com os seus vestidos graciosos e os cabelos primorosamente penteados, nunca tivera problemas de integração; na esplanada do café, o seu riso era sempre o mais sonante.Avancei pela rua apinhada em direcção ao lugar onde as duas velhas Carmelitas estavam sentadas.

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Não tinha a certeza se me reconheceriam, a uma salannaise que não viam desde os seus quin ze anos, mas sempre gostara delas. Ao aproximar-me não fiquei surpreendida ao constatar que não tinham mudado nada: ambas de olhar vivo, mas trigueiras e coriáceas como objectos ressequidos na praia. Soeur Thérèse usava um lenço escuro em vez da quichenotte, a coifa branca das ilhas; se não fosse isso, não tenho a certeza se conseguiria distinguir uma da outra. O homem sentado ao lado delas, com um pendente de coral à volta do pescoço e um chapéu mole, era um estranho. Na casa dos trinta, com um rosto agradável mas sem nada de extraordinário: podia ser um turista se não fosse a familiaridade natural com que me cumprimentou, o mudo aceno das ilhas.Soeur Extase e Soeur Thérèse olharam-me de modo incisivo por momentos e em seguida desfizeram-se num sorriso radioso.- Vejam só, é a garota do Grosjean.Um longo convívio longe do convento criara-lhes idênticos maneirismos. As vozes também eram parecidas, vivas e estridentes como gralhas. E, como gémeas, partilhavam uma empatia peculiar,completando as frases uma da outra e pontuando as palavras da outra com gestos de encorajamento. Por qualquer razão misteriosa,23nunca usavam os respectivos nomes, referindo-se sempre uma à outra como "ma soeur", embora, que se soubesse, não fossem aparentadas.- É a Mado, ma sceur, a pequena Madeleine Prasteau. Como cresceu! O tempo passa...- Tão depressa aqui nas ilhas. Parece que foi apenas...- Há um par de anos que viemos para cá e agora estamos...- Velhas e alquebradas, ma sceur, velhas e alquebradas. Mas é um prazer voltar a ver-te, pequena Mado. Foste sempre tão diferente, tão tão diferente da...- Tua irmã. - Pronunciaram as últimas palavras em uníssono. Os seus olhos negros brilhavam.- É bom estar de volta. - Até ao momento em que pronunciei estas palavras, não tinha consciência de como era bom.- Não mudou muito, pois não, ma sceur? - Não, nada muda muito. Apenas...- Envelhece, só isso. Como nós. - As duas freiras abanaram a cabeça muito prosaicamente e voltaram a concentrar-se nos gelados.- já vi que transformaram Les Immortelles num hotel - comentei.- É verdade - assentiu Soeur Extase. - Pelo menos, a maior parte. Algumas de nós ainda continuamos no andar superior.- Hóspedes a longo prazo, como diz Brismand.- Mas não somos muitos. Georgette Loyon, Raoul Lacroix e Bette Plancpain. Ele comprou-lhes as casas quando ficaram demasiado velhos para tomarem conta delas.- Comprou-as baratas e arranjou-as para alugar aos veraneantes.As freiras trocaram um olhar.- O Brismand só os mantém aqui porque recebe um subsídio de beneficência do convento. Ele gosta de estar em boas relações com a Igreja. Sabe zelar muito bem pelos seus interesses.Seguiu-se um silêncio meditativo enquanto as duas sorviam os gelados.- Este aqui é o Ruivo, pequena Mado. - Soeur Thérèse indicou o estranho, que tinha estado a ouvir os comentários delas com um sorriso malicioso no rosto.24- O Ruivo, o inglês...- Que nos anda a desencaminhar com gelados e mimos. Ainda por cima na nossa idade...O Inglês abanou a cabeça.- Não faça caso do que elas dizem - aconselhou. - Só lhes faço as vontades para não contarem todos os meus segredos. - A voz dele possuía uma tonalidade agradável, apesar de forte.As freiras galhofaram.- Com que então segredos! Não há muitas coisas que nós não saibamos, pois não, ma sceur, podemos ser...

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- Velhas, mas os nossos ouvidos continuam excelentes. - As pessoas não dão por nós...- Porque somos... - Freiras.O homem a quem chamaram O Ruivo olhou para mim e sorriu. Tinha um rosto inteligente e espirituoso que se iluminava quando sorria. Sentia os seus olhos observarem-me minuciosamente de um modo não desagradável, mas com uma curiosidade expectante."O Ruivo?" A maior parte dos nomes em Le Devin são alcunhas. A única excepção são os estrangeiros e os continentais.Ele tirou o chapéu com uma reverência irónica.- Richard Flynn, filósofo, pedreiro, escultor, soldador, pescador, biscateiro, meteorologista... - Esboçou um gesto vago na direcção do areal de Les Immortelles. - mas o mais importante de tudo, estudante e vasculhador de praias.Soeur Extase saudou estas palavras com uma risadinha apreciativa, indiciadora de que se tratava de uma velha piada entre eles.- Sarilhos para mim e para si - explicou ela.Flynn riu. O cabelo dele era quase da mesma cor do pendente que usava ao pescoço. Cabelo ruivo, sangue ruim, costumava dizer a minha mãe, embora seja uma cor insólita nas ilhas e geralmentetida como sinal de boa sorte. Aquilo explicava a alcunha. Mesmo assim, uma alcunha confere uma espécie de estatuto em Le Devin, raro num estrangeiro. Demora tempo a conquistar um nome ilhéu.- Vive aqui? - De certo modo, achava improvável. Senti que havia nele uma certa inquietação, algo de secreto que em qualquer momento se podia tornar imprevisível.25- É um lugar tão bom como qualquer outro - disse com um encolher de ombros.A resposta surpreendeu-me um pouco. Como se para ele todos os lugares fossem iguais. Tentei imaginar como seria não querer saber onde era a casa, não sentir no coração o seu apelo incessante. Pensei na extrema liberdade daquele homem. E no entanto, eles tinham-lhe dado um nome. Toda a minha vida eu fora simplesmente a filha de Grosjean, tal como a minha irmã.- Muito bem - disse ele com um sorriso. - O que é que faz? - Sou pintora. Isto é, vendo os meus quadros.- O que é que pinta?Por instantes recordei o pequeno apartamento de Paris e a sala que usava como estúdio. Um espaço exíguo, demasiado pequeno para quarto de hóspedes, e a Mãe fizera essa concessão de má von tade, com o cavalete, as pastas e as telas encostadas à parede. A Mãe gostava de dizer que eu podia ter escolhido qualquer tema para as minhas pinturas. Tinha talento. Então, porque é que pintava sempre a mesma coisa? Por falta de imaginação? Ou era para a atormentar?- As ilhas sobretudo.Flynn olhou para mim, mas não disse mais nada. Os olhos dele tinham a mesma tonalidade ardósia das nuvens acasteladas na fímbria do horizonte. Tive a sensação curiosa de que era difícil olhar para eles, como se pudessem ler os nossos pensamentos.Soeur Extase acabara de comer o gelado.- Como está a tua mãe, pequena Mado? Veio contigo? Hesitei. Flynn continuava a observar-me.- Morreu - disse, por fim. - Em Paris. A minha irmã não estava lá. - Na minha voz transparecia uma sombra desagradável ao evocar Adrienne.As duas freiras fizeram o sinal da cruz.- Triste notícia, pequena Mado. Muito, muito triste. - Soeur Thérèse segurou a minha mão entre os seus dedos engelhados. Soeur Extase deu-me uma palmadinha afectuosa no joelho. - Vais mandar rezar missa em Les Salants? - perguntou Soeur Thérèse. - Por causa do teu Pai?26- Não, - Continuava a ouvir a crispação da minha voz. - O passado já lá vai. E a minha mãe sempre disse que nunca mais voltaria. Nem sequer as suas cinzas.pena. Teria sido preferível para todos.Soeur Extase lançou-me uma olhadela fugaz por debaixo da sua quichenotte.- Não deve ter sido fácil para ela viver aqui. As ilhas... - Eu sei.

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O Brismand 1 estava outra vez de partida. Por momentos senti-me terrivelmente perdida, como se a minha única âncora de salvação tivesse sido cortada. Um arrepio súbito percorreu-me perante essa ideia- O meu pai não facilitou nada as coisas - respondi, sem desviar os olhos do ferry que se afastava. - De qualquer modo, ele agora é livre. É o que ele queria. Que o deixassem em paz.27

2-Prasteau. É um nome da ilha.O motorista de táxi, um houssin que não reconheci, tinha um tom acusatório, como se eu tivesse usado o nome sem autorização.- Pois é. Eu nasci aqui.- Ah. - O motorista virou-se para me deitar uma olhadela, como se tentasse identificar-me. - Ainda tem família na ilha, hem? - O meu pai. Em Les Salants. - Respondi.- Ah. - O homem encolheu os ombros, como se a referência a Les Salants pusesse fim à sua curiosidade. Em espírito revi GrosJean no estaleiro e vi-me a mim a observá-lo. Experimentei umapontada de orgulho com um misto de culpa ao evocar a perícia do meu pai. Fiz um esforço para não desviar os olhos da nuca do motorista até que aquela sensação me abandonasse.- Muito bem. Les Salants.O táxi cheirava a mofo e a suspensão era uma desgraça. Enquanto percorríamos a estrada familiar deixando para trás Lã Houssinière, sentia uma tremura no estômago. Naquele momentorecordava tudo demasiado bem, com demasiada clareza, uma brenha de tamargueiras, um rochedo, o vislumbre de um telhado ondulado sobre o recorte de uma duna trouxeram-me recordações brutais.- Sabe para onde quer ir, não sabe?28A estrada era má; ao dobrarmos uma curva, as rodas traseiras do táxi atolaram-se por momentos num lamaçal de areia. O motorista soltou uma imprecação e embalou o motor desajeitadamente para as libertar.Sei. Rue de 1'Océan. Mesmo ao fundo.- Tem a certeza? A única coisa que há aqui são dunas. - Tenho. Tenho a certeza.Um certo instinto levou-me a parar a curta distância da aldeia; queria chegar a pé, como uma salannaise. O motorista de táxi recebeu o dinheiro e partiu sem sequer olhar para trás, com as rodas docarro espargindo areia e o escape a protestar num balido exausto. Quando o silêncio se instalou de novo à minha volta, tomei consciência de uma sensação alarmante e senti outra guinada de culpa ao identificar esse sentimento como um sentimento de alegria.Tinha prometido à minha mãe que nunca mais voltaria.Era essa a minha culpa; por momentos senti-me tolhida por ela, como uma partícula sob a vastidão do céu. Só a minha presença ali constituía uma traição a ela, aos bons anos que passáramos juntas, da vida que tínhamos vivido longe de Le Devin.Ninguém nos escrevera depois de partirmos. Mal transpusemos os limites de Lã Jetée tornámo-nos despojos de um naufrágio, ignorados, esquecidos. A minha mãe dissera-mo vezes sem conta,nas noites frias no nosso pequeno apartamento de Paris, ouvindo o ruído pouco familiar do tráfego lá fora e as luzes da cervejaria tremeluzindo do vermelho ao azul através das persianas partidas. Não devíamos nada a Le Devin. Adrienne comportara-se como deve ser: tinha feito um bom casamento, teve filhos, mudou-se para Tânger com o marido Marin, que negociava em antiguidades. Tinha dois rapazinhos, que só conhecíamos de fotografias e raramente nos contactava. A mãe considerava isto como uma prova de dedicação de Adrienne à família e apresentava-me como um exemplo. A minha irmã agira como deve ser e eu devia sentir-me orgulhosa e não invejosa.Mas eu era obstinada: apesar de ter fugido, era incapaz de agarrar por completo as promissoras

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oportunidades que o mundo além das ilhas oferecia. Podia ter tido tudo o que quisesse: um bom em prego, um marido rico estabilidade. Em vez disso, dois anos numa escola de arte seguidos de mais dois anos a viajar sem destino,29depois o trabalho num bar, limpezas, ocupações temporárias, a vender as minhas pinturas pelas esquinas para evitar pagar comissões a galerias. Transportava Le Devin dentro de mim, como a memória de um crime, misturando a minha culpa com promessas senl jamais deixar de saber que, no fundo do coração, estava a mentir."Tudo retorna."É a máxima do vagabundo que percorre as praias. Pronunciei as palavras em voz alta como que em resposta a uma acusação não formulada. Ao fim e ao cabo, não tinha intenções de ficar ali. Tinhapago um mês de aluguer adiantado do apartamento; o pouco que possuía permanecia tal como o havia deixado, suspenso, à espera do meu regresso. Mas por agora, a fantasia era demasiado sedutora para que fosse possível ignorá-la: Les Salants, imutável, acolhedor, e o meu pai...Comecei a correr, desajeitadamente, ao longo da estrada escalavrada em direcção às casas, em direcção a casa.30

3

A aldeia estava deserta. A maior parte das casas tinha os postigos cerrados - uma precaução contra o calor - e pareciam provisórias e abandonadas como barracas de praia fora da estação. Algumas tinham o aspecto de não terem voltado a ser pintadas desde que eu partira; as paredes outrora caiadas de branco na Primavera apresentavam-se agora descoloridas pela areia. Um gerânio isolado erguia a cabeça numa floreira ressequida. Várias casas não passavam de barracões de tábuas com telhados ondulados. Recordava-os agora, embora nunca tivessem figurado em nenhum dos meus quadros. Alguns platts, barcos de quilha chata, tinham sido arrastados ao longo do canal, a enseada de água salgada que vai de La Goulue até à aldeia - e estavam encalhados no limo acastanhado da maré baixa. Dois barcos de pesca estavam atracados nas águas mais fundas. Reconheci-os logo: o Eleanore dos Guénolés, que o meu pai e o irmão tinham construído alguns anos antes de eu nascer e, na outra extremidade, o Cécilia, que pertencia aos pescadores seus rivais, os Bastonnets. Qualquer coisa no cimo do mastro de uma das embarcações embatia monotonamente contra o metal, impelido pelo vento, ting-ting-ting-ting.Não se via quase vivalma. Por breves instantes avistei um rosto que espreitava por detrás de uma janela com os postigos fechados; Ouvi uma porta bater e o ruído de vozes. Um velho estava sentadodebaixo de um chapéu-de-sol no exterior do bar de Angélo, a beber devinnoise, o licor da ilha aromatizado com ervas. Reconheci-o31logo: era Matthias Guénolé, com uns olhos penetrantes e azuis num rosto desgastado pelas intempéries, como madeira flutuante arrastada pelas ondas, mas não descortinei a mínima ponta de curiosidade na sua expressão quando o cumprimentei. Apenas um leve sobressalto de reconhecimento, o breve aceno considerado como cortesia em Les Salants, cedendo logo lugar à indiferença.Tinha areia nos sapatos. Também havia montículos de areia acumulada contra as paredes de algumas casas, como se as dunas tivessem montado um ataque à aldeia. As tempestades de Verão de viam ter tido a sua quota-parte. Um muro ruíra junto à velha casa de Jean Grossel; faltavam telhas em vários telhados; e por detrás da Rue de 1'Océan, onde Omer Prossage e a mulher Charlotte tinham a quinta e a lojeca, a terra surgia empapada e amplas extensões de água estagnada reflectiam o céu. Uma série de tubos ao lado da estrada jorravam água para uma vala, que por sua vez desaguava na enseada. Avistei uma espécie de bomba a funcionar ao lado da casa, presumivelmente para acelerar o processo e ouvi o chiar de um gerador. Atrás da quinta, as velas de um pequeno moinho de vento rodavam diligentes.

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No fim da rua principal, detive-me junto do poço, ao lado do santuário de Marine-de-la-Mer. Havia uma bomba manual, enferrujada mas ainda a funcionar e bombeei um pouco de água paralavar a cara. Num gesto ritual quase esquecido, aspergi água para a bacia de pedra ao lado do santuário e ao fazê-lo, reparei que o pequeno nicho da santa tinha sido pintado de fresco e tinham deixado em cima das pedras velas, fitas, amuletos e flores. A santa erguia-se, grave e impenetrável, no meio das oferendas.- Dizem que se lhe beijarmos os pés e cuspirmos três vezes, voltamos a encontrar o que tivermos perdido.Virei-me com tanta brusquidão que quase perdi o equilíbrio. Uma mulher corpulenta, rosada e jovial estava de pé atrás de mim, com as mãos nas ancas e a cabeça levemente inclinada para um doslados. Dos lóbulos das orelhas pendia um par de argolas douradas e o cabelo tinha o mesmo tom exuberante.- Capucine!Tinha envelhecido um pouco (andava na casa dos quarenta quando eu parti) mas reconheci-a instantaneamente. Tinha a alcunha de La Puce, vivia numa velha rulote cor-de-rosa à beira da32duna com a indisciplinada ninhada de filhos. Nunca fora casada - os homens são demasiado enfadonhos para se viver com eles, minha querida - mas lembrava-me da música noite alta nas dunas e de homens furtivos que se esforçavam por ignorar a pequena rulote com cortinas de folhos e uma luz acolhedora à porta. A minha mãe não gostava dela, mas Capucine sempre fora amável comigo, oferecendo-me cerejas com cobertura de chocolate e todo o tipo de mexericos escandalosos. Possuía o riso mais desbocado da ilha: de facto, ela era a única pessoa adulta da ilha que eu conhecia que ria tão alto.- O meu Lolo viu-te em La Houssinière. Disse-me que vinhas para cá! - Riu. - Tenho de beijar a santa mais vezes para que aconteçam coisas como esta!- É bom ver-te, Capucine. - Sorri também. - Começava a pensar que a aldeia estava deserta.- Ah, bom. - Encolheu os ombros. - Tem sido uma época má. Não que seja de esperar outra coisa nos tempos que correm. - A sua expressão obscureceu-se por momentos. - Lamento o que aconteceu à tua mãe, Mado.- Como é que soubeste?- Ora essa! Estamos numa ilha. Notícias e mexericos é tudo o que temos.Hesitei, consciente das palpitações do meu coração. - E... e o meu pai?O sorriso dela vacilou durante um breve segundo.- Como de costume - volveu brandamente. Em seguida, recuperando a sua compostura bem disposta, rodeou-me os ombros com o braço. - Vem tomar uma devinnoise comigo, Mado. Podes ficar comigo. Tenho uma cama livre, desde que o Inglês se foi embora.Devo ter-me mostrado surpreendida, porque Capucine soltou uma das suas gargalhadas sonoras e desbocadas.- Não comeces a imaginar coisas. Agora sou uma mulher respeitável... bem, quase. - Uma expressão divertida perpassou pelos seus olhos negros. - Vais gostar do Ruivo. Veio para cá em Maio eprovocou um verdadeiro alvoroço! Não assistíamos a nada comparável desde aquela vez que Aristide Bastonnet apanhou um peixe33com duas cabeças, uma em cada ponta. Aquele Inglês! - Riu baixinho consigo mesma, abanando a cabeça.- Em Maio passado? - Significava que só estava aqui há três meses. E no espaço de três meses, tinham-lhe dado um nome.- Pois. - Capucine acendeu um Gitane e aspirou o fumo com prazer. - Apareceu aqui um belo dia, sem um chavo, mas começou logo a tratar da vida. Arranjou emprego junto de Omer e Charlotte, até que a filha deles começou a catrapiscá-lo. Eu acolhi-o na rulote até ele arranjar um sítio para onde ir. Constou que tinha brigado com o velho Brismand, entre outros, lá em La Houssinière. - Lançou-me uma mirada curiosa. - Adrienne casou com o sobrinho dele, não casou? Como é que eles estão?

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- Vivem em Tânger. Não tenho muitas notícias deles. - Com que então, Tânger? Ora, ela sempre disse...- Estavas a falar do teu amigo - interrompi. Pensar na minha irmã fazia-me sentir frágil e sem graça. - O que é que ele faz?- Tem ideias. Constrói coisas. - Capucine esboçou um gesto vago por cima do ombro na direcção da Rue de 1'Océan. - O moinho do Omer, por exemplo. Foi ele que o arranjou.Tínhamos contornado a curva da duna e avistava agora a rulote cor-de-rosa, tal como a recordava mas ligeiramente mais corroída e enterrada na areia. Mais adiante, sabia que ficava a casa do meu pai, apesar de uma sebe espessa de tamargueiras a ocultar da vista. Capucine viu para onde eu estava a olhar.- Oh, não, nem penses nisso - disse com firmeza, pegando-me no braço e puxando-me para a concavidade onde estava a rulote.- Já temos mexericos que chegue. Dá algum tempo ao teu pai. Deixa que seja alguém a dizer-lhe.Em Le Devin, a bisbilhotice é uma espécie de moeda corrente. A terra vive disso: litígios entre pescadores rivais, filhos ilegítimos, histórias extravagantes, boatos e revelações. Avaliei nos olhos de Capucine o valor que tinha: era um bom argumento.- Porquê? - Continuava com os olhos fitos na sebe de tamargueiras. - Porque é que não devo ir vê-lo agora?Capucine mostrou-se evasiva.34- Passou muito tempo, não foi? Ele habituou-se a estar sozinho. - Empurrou a porta da rulote, que não estava fechada à chave. - Entra, minha querida, e eu conto-te tudo.A rulote era singularmente acolhedora, com o interior exíguo pintado de cor-de-rosa, a roupa espalhada por toda a parte, o odor a fumo e a perfume barato. A despeito da sua sordidez óbvia, convidava às confidências.As pessoas pareciam confiar em Capucine como nunca confiaram no padre Alban, o único sacerdote da ilha. Como se o boudoir, mesmo tão fanado, exercesse mais fascínio do que o confessionário.A idade não contribuiu para aumentar a respeitabilidade de Capucine, mas apesar disso ela goza na ilha de uma certa estima saudável. Tal como as freiras, conhece demasiados segredos.Estivemos à conversa enquanto tomávamos café e comíamos uns bolos. Capucine parecia ter uma capacidade ilimitada para os biscoitos de açúcar chamados devinnoiseries, complementando-oscom frequentes Gitanes, café e bombons de ginja, que retirava de uma enorme caixa em forma de coração.- Costumo ir lá vê-lo algumas vezes por semana - disse-me, deitando mais café nas chávenas minúsculas. - Às vezes levo um bolo ou meto a roupa na máquina.Observava a minha reacção e mostrou-se satisfeita quando lhe agradeci.- As pessoas falam, como sabes. Mas não passa disso. Os antigos tempos já lá vão há muito.- Ele está bem ou não?- Sabes como ele é. Nunca se abre muito. - Nunca se abriu.- É verdade. As pessoas que o conhecem compreendem. Mas não é fácil com estranhos. Não quer dizer que tu... - emendou prontamente. - Mas não gosta de mudanças, é só isso. Tem os seus hábitos. Vai até ao Angélo todas as sextas-feiras à noite, toma a sua devinnoise com o Omer, com a mesma regularidade de sempre. Não fala muito, claro, mas a cabeça funciona na perfeição.A demência constitui um verdadeiro pânico nas ilhas. Algumas famílias carregam-na como um gene nocivo, como os casos frequentes de polidactilia e de hemofilia que ocorrem nessas comunidades estagnadas. Demasiados primos próximos, dizem os houssins.35A minha mãe sempre disse que foi essa a razão por que GrosJean escolheu uma rapariga do continente.Capucine abanou a cabeça.- Além disso não é fácil nesta altura do ano. Dá-lhe um pouco de tempo.

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Claro. Era o dia da santa. Quando era pequena, o meu pai e eu tínhamos ajudado muitas vezes a pintar o nicho da santa cor de coral, decorado com o tradicional motivo de estrelas, nos preparativos para a cerimónia anual. Os Salannais são uma gente supersticiosa, temos de ser, embora em La Houssinière, essas crenças e tradições sejam consideradas um tanto ou quanto ridículas. É certo que em La Houssinière ainda há uma igreja. La Houssinière está protegida por La Jetée. La Houssinière não está à mercê das marés. Aqui, em Les Salants, o mar está mais próximo de casa e precisa de ser pacificado.- Claro - disse Capucine, interrompendo os meus pensamentos. - GrosJean perdeu mais do que a maior parte da gente no mar. E no dia da santa, tão perto da data em que aquilo tudo aconteceu... bom. Tens de ser compreensiva, Mado.Assenti com a cabeça. Conhecia a história, embora já fosse antiga e remontasse a ainda antes do casamento dos meus pais. Dois irmãos chegados como dois gémeos; segundo o costume da ilha, até partilhavam o mesmo nome. Mas P'titJean afogara-se aos vinte e três anos, desnecessariamente, por causa de uma rapariga qualquer, embora aparentemente tenham conseguido convencer o padre Alban de que se tratara de um acidente de pesca. Trinta anos depois, GrosJean ainda se culpabilizava pelo que acontecera.- Então, nada se alterou. - Não era uma pergunta. - Minha querida, isso nunca mudará.Eu tinha visto a lápide, uma peça de granito da ilha, em La Bouche, o cemitério salannais para lá de La Goulue.

Jean-Marin Prasteau 1949-1972 Amado irmão

Fora o meu pai quem gravara a inscrição, com um dedo de espessura na pedra maciça. Demorara seis meses.36- Seja como for, Mado - disse Capucine, trincando outro biscoito. - Tu ficas comigo por agora, até acabar a Sainte-Marine. Não deves precipitar-te para lá imediatamente, pois não? Podes esperar um dia ou dois?Assenti, sem querer avançar mais nada.- Há aqui mais espaço do que pensas - disse La Puce optimista, apontando para uma cortina que separava a zona de dormir da zona de convívio. - Ficas confortável lá atrás e o meu Lolo é um miúdo simpático e não vai andar a meter o nariz de dois em dois minutos atrás do cortinado. - Capucine retirou um bombom de ginja da sua reserva aparentemente inesgotável. - Já cá devia estar. Não faço ideia do que é que ele faz o dia inteiro. Anda por aí com o miúdo Guénolé.Percebi que Lolo era neto de Capucine; a sua filha Clothilde tinha-o deixado entregue aos seus cuidados enquanto procurava emprego no continente.- Tudo retorna, como dizem. Bem! A minha Clo não parece estar com muita pressa de voltar. Está a divertir-se à grande. - Os olhos de Capucine ensombraram-se um pouco. - Não, não vale a pena beijar a santa à espera dela. Está sempre a prometer regressar nas férias, mas arranja sempre uma desculpa. Talvez daqui a uns dez anos... - Interrompeu-se, ao ver a minha expressão. - Desculpa, Mado. Não me referia a ti.- Tudo bem. - Acabei o café e levantei-me. - Obrigada pela tua oferta.- Não vais para lá agora? Ainda por cima hoje! - Porque não?- Não vais gostar - avisou. - A casa não está em bom estado.- Cá me arranjarei.- Então deixa-me ir contigo. Ou deixa-me ir buscar o Ruivo. - Porquê? - Senti uma ponta de contrariedade. - O que é que ele tem a ver com isto?Capucine mostrou-se evasiva.É um amigo, só isso. O teu pai habituou-se a tê-lo por perto. - A sério que não. Obrigada. Prefiro ir sozinha.37Capucine franziu por momentos o sobrolho, com as mãos nas ancas, o xale cor-de-rosa meio

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descaído dos ombros.- Não cries muitas expectativas - avisou. - As coisas mudam. Tu criaste um lar para ti lá no continente.- Não te preocupes. Eu cá me arranjo.- Estou a falar a sério. - Olhou-me com uma expressão reprovadora. - Não comeces a imaginar coisas sobre este lugar, menina. Não penses que podes fugir de tudo escondendo-te aqui. - Pareces a minha mãe.Capucine fez cara de má.- Agora fazes sentir-me velha.Eu sabia o que ela estava a pensar. Que eu queria segurança. Que de algum modo tinha medo da vida, lá no continente. Mas não era verdade. Nada é seguro quando se vive numa ilha. Tudo muda. Nada está ancorado. Mas nada disso interessava agora. Tinha regressado a casa. A casa, o lugar aonde tudo retorna: mensagens em garrafas, barcos de brinquedo, trazidos pelas águas. Tudo finalmente restituído àquele areal desolado e inclemente, reduzido a polpa e enterrado nas dunas que avançam lentamente, tudo esquecido, tudo abandonado.Até hoje.38

4

A minha mãe era oriunda do continente. O que faz com que eu seja apenas meio insulana. Era natural de Nantes, uma rapariga romântica que se apaixonou por Le Devin quase tão instantaneamente como pelo aspecto atraente e melancólico do meu pai.Estava mal preparada para a vida em Les Salants. Era uma conversadora, uma estrangeira, gostava de cantar, era uma mulher que chorava, barafustava, ria, exteriorizava tudo. O meu pai tinha pouco para dizer, mesmo no princípio. Era incapaz de conversas superficiais. A maior parte das suas expressões eram monossilábicas; os seus cumprimentos um aceno de cabeça. A sua afeição estava canalizada para os barcos de pesca que construía e vendia no pátio das traseiras da nossa casa. Trabalhava lá fora no Verão, levando o equipamento para o hangar no Inverno, e eu gostava de me sentar ao pé dele, a observá-lo enquanto moldava a madeira, imergindo as pranchas em água para lhes dar elasticidade, enquanto torneava as linhas graciosas da proa e da quilha e cosia as velas. As velas eram sempre brancas ou vermelhas, as cores da ilha. Uma conta de coral decorava a proa. Cada barco era polido e envernizado, jamais pintado com excepção do nome que atravessava a proa a preto e branco. O meu pai gostava de nomes românticos, Belle Ysolde, Sage Héloi'se ou Blanche de Coëtquen, nomes tirados de velhos livros embora que eu saiba nunca tivesse lido nada. O trabalhoera a sua conversa, passava mais tempo com as suas "damas" do que com quem quer que fosse, com as mãos pousadas nos seus39cascos macios e quentes como as de um amante, mas nunca deu a um barco o nome de uma de nós; nem sequer o da minha mãe, embora eu saiba que ela teria gostado. Se ele o tivesse feito, talvez ela tivesse ficado.Quando contornei a curva da duna vi que o estaleiro estava deserto. As portas do hangar estavam fechadas e, a julgar pela altura das ervas crestadas que tinham crescido junto delas, não deviam tersido abertas há meses. Um par de cascos jaziam semienterrados na areia, junto ao portão. O tractor e o reboque estavam estacionados debaixo de uma protecção de plástico ondulado e pareciam estar a funcionar, mas o guincho que o meu pai usara em tempos para içar os barcos para o reboque tinha um aspecto ferrugento e abandonado.A casa não estava em melhores condições. Nos velhos tempos, já estava bastante desleixada, no meio da confusão dos restos de auspiciosos projectos que o meu pai iniciara e depois abandonara.Agora parecia abandonada. A cal branca das paredes desvanecera-se; um dos batentes de vidro fora substituído por tábuas; a tinta das portas e dos postigos estava estalada e solta. Vi um cabo

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estendido na areia até ao telheiro onde se ouvia o zumbido de um gerador; era o único sinal de vida.A caixa do correio não fora esvaziada. Removi o monte de cartas e de brochuras que saíam para fora da caixa e levei-as para a cozinha deserta. A porta não estava fechada à chave. Havia uma pilha de pratos sujos junto ao lava-loiça. Uma cafeteira de café frio em cima do fogão. Um cheiro a enfermaria. As coisas da minha mãe, um guarda-roupa, uma arca, uma tapeçaria, continuavam no mesmo sítio, mas agora havia pó por todo o lado e areia no chão de cimento.Apesar disso havia indícios de que alguém estivera a trabalhar. Havia bocados de tubo, de arame e de madeira numa caixa de ferramentas no canto do quarto e reparei que o esquentador que GrosJean estava sempre em vias de consertar fora substituído por uma geringonça de cobre ligada a uma botija de butano. Fios soltos tinham sido enrolados atrás de um painel; havia sinais de trabalho na lareira e na chaminé, que enchia invariavelmente o ambiente de fumo. Estes sinais de actividade contrastavam estranhamente com o abandono do resto da casa, como se GrosJean estivesse tão absorvido nas suas outras tarefas que nem tivera tempo para limpar o pó40ou lavar a roupa. Reflecti que era típico dele. A única coisa que me surpreendeu foi o facto de pela primeira vez ele ter levado realmente até ao fim aqueles projectos.Depositei as cartas em cima da mesa da cozinha. Percebi, contrariada, que estava a tremer. Eram demasiadas emoções que lutavam para vir à superfície. Fiz um esforço para permanecer calma.Passei os olhos pelo correio, já deviam ter passado uns seis meses ou um ano, e descobri a minha última carta no meio da pilha, por abrir. Fiquei a olhar para ela durante muito tempo, vendo a morada de Paris na parte de trás e recordando. Tinha andado com ela durante semanas antes de finalmente a deitar no correio, sentindo-me entorpecida e estranhamente livre. O meu amigo Luc, do café, perguntara-me de que é que eu estava à espera. "Qual é o problema? Queres vê-lo, não queres? Queres ajudar?"Não era assim tão fácil. Eu tinha construído as minhas esperanças como uma ostra constrói uma pérola, camada a camada, até o humilde grão de areia se transformar numa coisa bela. Em dezanos, GrosJean nunca me escrevera. Eu mandara-lhe desenhos, fotografias, avaliações escolares, cartas, sem jamais receber resposta. No entanto, continuei a enviar-lhas, ano após ano, como mensagens em garrafas. Claro que nunca contei à Mãe. Sei perfeitamente o que ela teria dito.Pousei a carta, com a mão a tremer. Depois enfiei-a no bolso. Ao fim e ao cabo, talvez fosse melhor assim. Dava-me tempo para voltar a pensar. Para ponderar as alternativas.Tal como eu pensara, não havia ninguém em casa. Tentei não me sentir uma intrusa quando abri a porta do meu antigo quarto e depois a do quarto de Adrienne. Quase nada mudara. As nossas coisas continuavam todas ali: os meus modelos de barcos, os cartazes de cinema e os frascos de produtos de beleza da minha irmã. O quarto de Adrienne era o maior e o mais claro. O meu estava virado a norte e no Inverno costumava aparecer uma mancha de humidade. A seguir ficava o quarto dos meus pais.Empurrei a porta na semiobscuridade; os postigos estavam encostados. O cheiro a bafio envolveu-me. A cama estava por fazer, mostrando o colchão de lona riscada sob o lençol amarrotado.Num dos lados via-se um cinzeiro a abarrotar; roupa suja amontoava-se no chão; um nicho ao lado da porta com uma imagem de41gesso de Sainte-Marine; uma caixa de cartão com bugigangas. Descobri uma fotografia no interior da caixa. Reconheci-a de imediato, apesar de ter perdido a antiga moldura. A minha mãe tinha-a tirado quando eu fiz sete anos e mostrava-nos a nós os três, GrosJean, Adrienne e eu, sorridentes diante de um grande bolo em forma de peixe.O meu rosto tinha sido recortado desajeitadamente, com uma tesoura, da fotografia, pelo que só apareciam GrosJean e Adrienne, o braço dela repousando delicadamente no dele. O meu pai sorria para ela por cima do espaço antes ocupado por mim.De súbito, ouvi um ruído lá fora. Amarrotei rapidamente a fotografia na algibeira e detive-me à escuta, com a garganta apertada. Alguém passou suavemente debaixo da janela do quarto, tão suavemente que o bater do meu coração quase abafou o ruído; era alguém descalço ou calçando

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alpergatas.Sem perder tempo corri para a cozinha. Com nervosismo, puxei o cabelo para trás, sem saber o que é que ele iria dizer, o que é que eu iria dizer, ou até se ele me reconheceria. Em dez anos eu tinha mudado, perdera a minha gordura juvenil e deixara crescer até aos ombros os cabelos outrora curtos. Não possuo a beleza da minha mãe, embora algumas pessoas nos achassem parecidas. Sou demasiado alta, sem a graciosidade dos seus gestos e o meu cabelo é de um castanho vulgar. Tenho, porém, os olhos dela, com sobrancelhas espessas e uma tonalidade insólita e reservada de um verde-cinza que algumas pessoas acham feia. De repente lamentei não ter tido mais cuidado com o meu aspecto. Podia, pelo menos, ter posto um vestido.A porta abriu-se. Alguém se deteve no umbral, vestindo um pesado blusão de pescador e carregando nos braços um saco de papel. Reconheci-o logo, apesar do gorro de malha que lhe ocultava o cabelo: os seus movimentos rápidos e precisos não tinham nada a ver com o andar bamboleante de urso do meu pai. Passou por mim e entrou na sala quase antes de eu me aperceber, fechando a porta atrás de si.O Inglês. O Ruivo. Flynn.- Achei que talvez precisasses de umas coisitas - disse ao mesmo tempo que pousava o saco de papel em cima da mesa da42cozinha. Em seguida, ao ver a minha expressão, perguntou: - O que é que se passa?- Não estava à tua espera - respondi por fim. - Apanhaste_me de surpresa. - Ainda sentia uma guinada no coração. Apertei a fotografia que tinha no bolso, sentindo calor e frio ao mesmo tempo sem saber ao certo o que o meu rosto deixava transparecer.- Estás nervosa, não estás? - Flynn abriu o saco em cima da mesa e começou a tirar as coisas lá de dentro. - Tens aqui pão, leite, queijo, ovos, café para o pequeno-almoço. Não te preocupesem pagar-me; está tudo na conta dele. - Meteu o pão no saco de linho pendurado atrás da porta.- Obrigada. - Não pude deixar de notar como ele se sentia à vontade em casa do meu pai, abrindo os armários sem qualquer hesitação e arrumando as mercearias. - Espero não te ter dado muita maçada.- Não deste maçada nenhuma. - Sorriu. - Moro a dois minutos daqui, no velho bunker. Às vezes passo por cá.O bunker ficava nas dunas por cima de La Goulue. Tal como a faixa de terra onde estava implantado, pertencia oficialmente ao meu pai. Lembrava-me dele: um bunker alemão dos tempos daguerra, um cubo horrível de cimento bolorento meio tragado pela areia. Durante anos pensei que estava assombrado.- Nunca imaginei que alguém pudesse viver naquele lugar - comentei.- Arranjei-o - disse Flynn jovialmente, metendo o leite no frigorífico. - A parte pior foi desembaraçar-me daquela areia toda. Como é óbvio, ainda não está acabado; preciso de escavar um poçoe instalar uma canalização decente, mas é confortável, sólido e não me custou nada a não ser tempo e algumas coisas que não consegui encontrar ou fazer eu mesmo.Pensei em GrosJean, com os seus eternos trabalhos em curso. Não me admirava que gostasse daquele homem. Uma espécie de pedreiro, como dissera Capucine. Reparava coisas avariadas. Compreendia agora quem é que tinha feito as reparações em casa do meu pai. Senti uma guinada súbita no peito.- Sabes, é provável que não o vejas esta noite - disse-me Flynn. - Tem andado agitado nestes últimos dias. Ninguém lhe tem posto a vista em cima.43- Obrigada. - Virei-me para evitar o olhar dele. - Eu conheço o meu pai.Aquilo era verdade. Depois da procissão na noite de Sainte-Marine, GrosJean desaparecia sempre na direcção de La Bouche para acender velas junto ao túmulo de P'titjean. Esse ritual anual era sagrado. Não havia nada que o perturbasse.- Ele ainda nem sequer deve saber que voltaste - continuou Flynn. - Quando souber, vai pensar que

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a santa ouviu todas as suas preces.- Não quero que armes em meu protector. GrosJean jamais beijou a santa fosse por quem fosse.Seguiu-se um silêncio longo e desconfortável. Ignorava o que o Inglês sabia sobre o meu pai, o que é que ele lhe contara e comecei a sentir os olhos a arder perigosamente. Era típico de GrosJean,reflecti, fazer amizade com aquele estranho num ápice, enquanto... - Ouve, eu sei que isto não tem nada a ver comigo - disse Flynn, por fim. - Mas se eu fosse a ti, esta noite mantinha-me afastada da festa. Há por aí muitas tensões. - Sorriu e por instantes senti o seu encanto natural e invejei-o. - Tens o ar de quem precisa de descansar. Porque é que não te instalas, não vais dormir e esperar por amanhã de manhã para ver como estão as coisas?A sua intenção era ser amável. E eu sabia-o. Por um segundo senti-me quase tentada a confiar nele. Mas não está no meu feitio; a minha mãe costumava dizer que eu sou obstinada como o meu paie as palavras não me ocorrem com facilidade. Pela primeira vez, interrogava-me se não teria cometido um erro terrível ao voltar para casa. Toquei na fotografia que tinha na algibeira mais uma vez, como se fosse um talismã.- Eu cá me arranjo - respondi.44

5

As festividades de Sainte-Marine-de-la-Mer têm lugar uma vez por ano, na noite de lua cheia do mês de Agosto. Nessa noite, a santa é levada do seu lugar na aldeia até às ruínas da sua igreja em Pointe Griznoz. É uma tarefa complicada: a santa tem quase um metro de altura e é pesada porque é de basalto maciço, e são precisos quatro homens para a transportar num andor até à borda de água. Ali, os aldeões desfilam diante da imagem um a um; alguns param para lhe beijar os pés no antigo gesto ritual, na esperança de que algo perdido, ou mais provavelmente alguém, regresse. As crianças enfeitam-na com flores. São lançadas à maré cheia pequenas oferendas: alimentos, flores, pacotes de sal-gema atados com fitas, e até dinheiro. Achas de madeira de cedro e de pinho são queimadas em braseiros de ambos os lados. Às vezes há fogo-de-artifício, lançado provocadoramente sobre o mar indiferente.Esperei que escurecesse antes de sair de casa. O vento, sempre mais forte nesta parte da ilha, rodara para sul e matraqueava a sua danse macabre nas portas e janelas. Perguntava a mim própria se viria aí uma tempestade. Vento sul é vento ruim, dizem os ilhéus. Na noite de Sainte-Marine, não é bom sinal.Ao sair, com o casaco aconchegado ao corpo, avistei logo o brilho dos braseiros na extremidade de La Pointe. Em tempos houvera ali uma igreja. Está em ruínas há quase um século; o mar levara-a, aos poucos, até ficar apenas uma parte, uma parte da parede norte, o nicho outrora ocupado por Sainte-Marine ainda visível entre as45pedras desgastadas pelas intempéries. Na pequena torre que encimava o nicho houve em tempos um sino, La Marinette, o sino de Sainte-Marine, desaparecido há muito. Reza uma lenda que caiu ao mar; outros contam que La Marinette foi roubado e fundido para ser vendido como ferro-velho por um houssin sem escrúpulos, amaldiçoado por Sainte-Marine e que enlouqueceu com as badaladas fantasmas. Às vezes ainda se ouvem as suas badaladas, sempre em noites de vendaval e sempre mensageiras de desastre. Os cínicos atribuem o som ribombante à investida do vento sul através das rochas e das fendas de Pointe Griznoz, mas os salannais sabem a verdade: é La Marinette que continua a fazer ressoar o seu chamamento, observando Les Salants lá debaixo, do mar.Ao acercar-me de La Pointe, distingui vultos recortados em silhueta contra a parede da velha igreja iluminada pelo fogo. Eram muitos, pelo menos trinta, mais de metade da aldeia. O padreAlban, o pároco da aldeia, estava de pé junto à água, com o cálice e um grosso bastão nas mãos, destacando-se em contornos pardacentos e indistintos. Quando passei por ele, dirigiu-me uma saudação rápida, sem se mostrar surpreendido. Reparei que cheirava vagamente a peixe, com a sotaina enfiada dentro das botas de pesca.

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A antiga cerimónia constitui um espectáculo estranhamente comovente, embora os habitantes de Les Salants não tenham a mínima consciência de que são pitorescos. São de uma raça diferente da minha e da da minha mãe; são na maior parte baixos e robustos, de feições delicadas, Célticos; de cabelos escuros e olhos azuis. No entanto, estes traços surpreendentes desvanecem-se rapidamente, transformando-se em figuras petrificadas na velhice, vestem de negro como os seus antepassados enquanto as mulheres usam a quichenotte branca. Três quartos da população aparenta ter sempre mais de sessenta e cinco anos.Esquadrinhei os rostos rápida e esperançosamente. Velhas envergando luto permanente, velhos de cabelos compridos com polainas de pesca e casacos de pano preto ou vareuses e botas, doisou três rapazes novos, com o equipamento de pescador animado por uma camisa garrida. O meu pai não se encontrava entre eles. Este ano parecia estar ausente a atmosfera de celebração que recordava da infância; havia menos flores à volta do santuário e escassos sinais das oferendas habituais. Achei, pelo contrário, que46os aldeões ostentavam uma expressão soturna, como gente sitiada. Havia uma atmosfera de tensão expectante.Finalmente chegou uma incandescência de luzes de lampiões vinda das dunas para lá de Pointe Griznoz e o som lamentoso dos tocadores de biniou quando teve início a procissão de Sainte~Marine. O biniou é um instrumento tradicional; quando bem tocado assemelha-se um pouco à gaita-de-foles. Neste caso, havia algo de felino no cântico, uma nota fúnebre que se sobrepunha ao rugido monótono do vento.Avistei o andor com a santa em cima; quatro homens, um em cada canto, esforçavam-se por o transportar ao longo do terreno acidentado. Quando a procissão se aproximou pude distinguir ospormenores: o molho de flores vermelhas e brancas sob as vestes cerimoniais de Sainte-Marine; as lanternas de papel; o dourado recente da velha pedra. Lá vinham também as crianças salannaises, com as faces ruborizadas pelo vento e as vozes estrídulas devido ao cansaço e aos nervos. Reconheci o neto de Capucine, o Lolo de rosto redondo, e o seu amigo Damien, ambos com lanternas de papel, uma verde e outra vermelha, correndo ágeis pela areia.A procissão contornou a última duna. Nesse momento, o vento agitou uma das lanternas que se incendiou; sob o clarão súbito, reconheci o meu pai.Ele era um dos carregadores e por instantes pude vê-lo claramente sem ser observada. A luz da fogueira era suave; sob a luminosidade débil, o rosto dele parecia quase não ter mudado, conferindo às suas feições uma expressão invulgar e viva. Estava mais pesado do que eu me lembrava, a idade tinha-o tornado mais espesso, com os grandes braços esticados para manter o andor equilibrado. Havia no seu rosto uma terrível concentração. Os outros transportadores da santa eram todos eles homens mais novos. Reparei em Alain Guénolé e no filho Ghislain, ambos pescadores, habituados a trabalhos pesados. Quando a procissão se deteve defronte do grupo de aldeões expectantes, fiquei surpreendida ao ver que o último carregador era Flynn.Santa Marina". Uma mulher avançou do grupo à minha frente e pressionou levemente os lábios contra os pés da santa. Reconheci-a: era Charlotte Prossage, dona da mercearia, uma mulher roliçae com ar de pássaro, com uma expressão de ansiedade permanente.47Os outros mantiveram-se a uma distância respeitosa, alguns deles tocando com os dedos amuletos ou fotografias."Santa Marina. Traz-nos de volta os nossos negócios. As marés de Inverno inundam sempre os campos. Demorei três meses a limpá-los da última vez. Tu és a nossa santa. Olha por nós." A vozsoou simultaneamente humilde e levemente ressentida. Aqui e ali, os olhos pestanejavam inquietos.Quando a prece de Charlotte chegou ao fim, outros tomaram o lugar dela: o marido, Omer, com a alcunha de La Patate por causa da sua cara cómica e sem forma; Hilaire, o veterinário salannais,com a sua cabeça calva e os óculos redondos; pescadores, viúvas, uma adolescente de olhar inquieto, todos a falar no mesmo sussurro rápido e levemente recriminatório. Não podia passar-lhes à frente sem os ofender; o rosto de GrosJean estava de novo na obscuridade por detrás da onda de

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cabeças sacudidas pela repetição de estribilhos."Marine-de-la-Mer, mantém o mar longe da minha porta. Traz as cavalas para as minhas redes. Afasta o gatuno do Guénolé dos meus bancos de ostras.""Sainte-Marine, dá-nos boas pescarias. Protege o meu filho quando sai para o mar.""Sainte-Marine, quero um biquini vermelho e uns óculos de sol Ray-Ban. Quero ficar estendida numa cadeira à beira de uma piscina. Quero a Côte d'Azur e a praia de Cannes. Quero margari tas, gelados e batatas fritas. Qualquer coisa que não seja peixe. Por favor. Qualquer sítio menos este."A rapariga que pedira os óculos Ray-Ban lançou-me uma mirada rápida ao afastar-se da santa. Reconheci-a então: era Mercédès, a filha de Charlotte e de Omer, que tinha sete ou oito anos quando eu abandonei a ilha, agora alta e de pernas compridas, de cabelos soltos e uma boca bonita e obstinada. Os nossos olhares cruzaram-se, eu sorri, mas a rapariga limitou-se a lançar-me um olhar de antipatia ao passar por mim para se confundir com a multidão. Outra pessoa tomou o seu lugar, uma velha de lenço na cabeça, com o rosto implorativo inclinado sobre uma fotografia gasta.A procissão pusera-se de novo a caminho, descendo em direcção ao mar, onde os pés da santa mergulhariam na água para serem abençoados. Alcancei a extremidade do grupo no momento em que48GrosJean dava a volta. Vi o seu perfil, agora perlado de gotas de suor, vislumbrei um pendente à volta do pescoço, mas mais uma vez os nossos olhares não se cruzaram. Mais um momento e era demasiado tarde; agora os carregadores desciam com dificuldade o declive rochoso até à borda de água, com o padre Alban de mão estendida para impedir que a santa caísse para a frente. O biniou gemia desesperado; uma segunda lanterna incendiou-se, logo seguida de uma terceira, dispersando borboletas negras ao vento.Finalmente chegaram ao mar. O padre Alban manteve-se afastado e os quatro carregadores transportaram Sainte-Marine até à água. Em La Pointe não há areia, apenas pedras submersas, e osmovimentos traiçoeiros eram iluminados pela luz reflectida pela água. A maré estava quase cheia. Sob o grito estrídulo do biniou, pareceu-me ouvir os primeiros rumores do vento através das fendas, o zunido cavo do vento sul que não tardaria a amplificar-se até se tornar quase igual ao do sino submerso...- La Marinette! - Era a velha de lenço na cabeça, Désirée Bastonnet, com o olhar ensombrado pelo medo. As mãos esguias e nervosas não paravam de mexer na fotografia, em que o rosto sorridente de um rapaz reflectia a luz da lanterna.- Não, não é. - Desta vez era Aristide, o marido, chefe da companha de pesca com o mesmo nome; um velho de setenta anos ou mais, com um grande bigode de capitão e cabelo grisalho comprido sob o chapéu chato da ilha. Perdera uma perna alguns anos antes de eu ter nascido, no mesmo acidente de pesca que matara o seu filho mais velho. Lançou-me um olhar penetrante quando passei por ele. - Pára com essa conversa de mau agoiro, Désirée - disse à mulher em voz branda. - E guarda isso.Désirée desviou os olhos e dobrou os dedos sobre a fotografia. Atrás deles, um rapaz de dezanove ou vinte anos olhava para mim com tímida curiosidade por detrás de uns óculos de aros de arame. Pareceu-me que queria dizer qualquer coisa, mas nesse momento Aristide virou-se e o rapaz apressou-se a ir ao encontro dele, correndo descalço e sem ruído pelas rochas.Os carregadores estavam agora mergulhados na água até ao peito, virados para a praia e segurando a santa com os pés no mar. As ondas salpicavam a base do andor, arrastando as flores na corrente.Alain e Ghislain Guénolé estavam virados para a praia, Flynn e o49meu pai estavam de costas, apoiando-se com firmeza contra as vagas. Mesmo em Agosto, a água devia estar fria; uns salpicos gelados molharam-me o rosto e o vento repassou o meu casaco de lã, fazendo-me estremecer. Mas eu, pelo menos estava seca.Depois de todos os aldeões tomarem os seus lugares, o padre Alban ergueu o bastão para a bênção final. Nesse preciso instante, GrosJean ergueu a cabeça em direcção ao padre e os nossos olhos encontraram-se.

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Por momentos eu e o meu pai existimos dentro de uma bolsa de silêncio. Ele fixava-me por entre os pés da santa, com a boca ligeiramente aberta, uma ruga de concentração entre os olhos. O pendente vermelho à volta do pescoço faiscava.Sentia algo na garganta, uma espécie de obstáculo, que me dificultava a respiração. Sentia as mãos como se pertencessem a outra pessoa. Esbocei um passo em direcção a ele.- Pai? Sou eu. Mado.O silêncio abatera-se sobre todas as coisas como cinza.Julgo ter visto Flynn, ao lado dele, fazer um gesto qualquer. Nessa altura, uma onda rebentou com força atrás deles e GrosJean, ainda a olhar para mim, cambaleou, perdeu o pé, estendeu uma mão para se equilibrar... e deixou tombar Sainte-Marine do altar para as águas profundas de Pointe Griznoz.Durante um segundo de assombro paralisante, a imagem pareceu flutuar, miraculosamente, no mar embravecido, com a saia de seda carmesim enfunada. Depois desapareceu.GrosJean ergueu-se impotente, os olhos postados no vazio. O padre Alban esboçou um gesto em vão para agarrar a santa. Aristide soltou uma gargalhada de surpresa. Atrás dele, o rapaz dos óculos avançou para a água e depois parou. Por momentos, ninguém se mexeu. Depois ergueu-se um queixume dos salannais, que se juntou ao gemido do vento. O meu pai ficou ali parado mais um segundo, com as luzes das lanternas iluminando absurdamente festivas as expressões que haviam perdido todo o anterior fulgor, depois fugiu, arrastando-se para fora do mar, escorregando nas rochas, tentando endireitar-se, debatendo-se na roupa pesada e encharcada. Ninguém fez um gesto para o ajudar. Ninguém disse nada. As pessoas comprimiram-se para o deixar passar, desviando os olhos.50. Pai! - Chamei quando chegou ao pé de mim, mas ia-se a afastar sem sequer olhar para trás. Quando atingiu o cimo de Pointe Griznoz, julguei ouvir um som, um som prolongado, atormentado, lamentoso; mas talvez fosse o vento.51

6

Tradicionalmente, depois da cerimónia no cimo do rochedo vão todos para o bar do Angélo brindar à santa. Nesse ano, foram menos de metade dos devotos. O padre Alban foi directamente para casa em La Houssinière sem sequer benzer o vinho, as crianças e a maior parte das mães foram deitar-se, faltando visivelmente a habitual euforia.Claro que a perda de Sainte-Marine foi a razão principal. Sem ela, as preces ficariam sem resposta e as marés sem controlo. Omer La Patate sugerira uma busca imediata, mas a maré estava muito alta e as rochas eram demasiado acidentadas para garantirem segurança, pelo que a operação foi adiada até ao dia seguinte de manhã. Quanto a mim, fui directamente para casa e fiquei à espera que GrosJean chegasse. Ele não regressou. Finalmente, por volta da meia-noite, fui até ao Angélo, onde encontrei Capucine a retemperar os nervos com café e devinnoiseries.Quando me viu, levantou-se, com o rosto preocupado.- Ele não está lá - disse eu, sentando-me ao lado dela. - Não voltou para casa.- Não vai voltar. Pelo menos por enquanto - disse Capucine. - Depois do que aconteceu... e depois de te voltar a ver, logo precisamente nesta noite... - Calou-se, abanando a cabeça. - Eu avisei-te, Mado. Não podias ter escolhido pior altura.As pessoas olhavam para mim; sentia uma certa curiosidade e uma frieza que me fez sentir constrangida e intrusa.52- Julguei que toda a gente era bem-vinda na Sainte-Marine. Não é assim que deve ser?Capucine olhou para mim._ Não me venhas com histórias, miúda - disse, séria. - Eu sei por que é que escolheste o dia de hoje. - Acendeu um cigarro e soprou o fumo pelas narinas. - Foste sempre casmurra. Nunca

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foste capaz de ir pelo caminho mais fácil, pois não? Sempre a talhar a direito, a tentar mudar as coisas de repente. - Esboçou um sorriso cansado. - Dá uma oportunidade ao teu pai, Mado.- Uma oportunidade? - Era Aristide Bastonnet, com Désirée pelo braço. - Depois desta noite, depois do que aconteceu na Pointe, que hipóteses é.que nós temos?Levantei os olhos. O velho estava postado atrás de nós, pesadamente apoiado à bengala, com os olhos duros como pedras. O rapaz dos óculos estava ligeiramente afastado para um dos lados,com o cabelo caído para os olhos, numa atitude embaraçada. Nessa altura reconheci-o: era Xavier, o neto de Aristide. Dantes era um rapaz solitário, que preferia os livros às brincadeiras. Embora fizéssemos pouca diferença de idades, raramente faláramos um com o outro.Aristide continuava a olhar para mim.- Porque é que voltaste, hem? - perguntou. - Já não há nada aqui. Vieste para mandares embora o desgraçado do GrosJean? Para lhe tirares a casa? Para ficares com o dinheiro dele?- Não respondas - disse Capucine. - Ele está bêbedo. Aristide não deu mostras de a ter ouvido.- São todas iguais, vocês! - continuou. - Só voltam quando querem alguma coisa!- Avô - protestou Xavier, pousando a mão no ombro do velho. Mas Aristide afastou-o. Embora o velho fosse uma boa cabeça mais baixo, a raiva agigantava-o; os olhos chispavam como os de um profeta.Ao lado dele, a mulher olhava-me nervosamente. -Desculpa - disse em voz débil. - Sainte-Marine... o nosso filho...- Calada! - vociferou Aristide, virando-se com tal brusquidão apoiado na bengala que se Désirée não estivesse tão perto dele,53podia ter caído. - Achas que ela se preocupa com isso, hem> Achas que alguém se preocupa?Afastou-se sem olhar para trás, com os seus atrás dele, arrastando a perna de pau pelo chão de cimento. Fez-se silêncio. Capucine encolheu os ombros.- Não lhe ligues, Mado. Bebeu demais. A inundação... santa... e agora o teu regresso a casa.- Não compreendo.- Não há nada que compreender - disse Matthias Guénolé. - Ele é um Bastonnet. Tem a cabeça cheia de pedras. - A situação , era menos animadora do que poderia parecer; há várias geraçõesque os Guénolés odiavam os Bastonnets.- Pobre Aristide. Para ele tem de haver sempre uma conspiração. - Virei-me e vi uma mulher velha e franzina, carregando o preto das viúvas, encavalitada num banco ao meu lado. Toinette Prossage, a mãe de Omer e a mais antiga residente da aldeia. - Quem der ouvidos a Aristide pensa que a gente está sempre a tentar afastá-lo, que andamos atrás das suas economias... hem! - Soltou uma gargalhada de satisfação. - Como se toda a gente não soubesse que ele estoirou tudo a reparar a casa. Bonne Marine, mesmo que o filho dele voltasse depois de todos estes anos, não ia encontrar nada a não ser um barco velho e uma tira de terra alagadiça que nem sequer o Brismand está interessado em tirar-lhe.Matthias fungou. - Aquele abutre. Toquei com os dedos na carta que tinha ainda na algibeira. - Brismand?- Claro - disse Toinette. - Quem mais é que tinha possibilidades de construir neste lugar?Segundo Toinette, Brismand tinha planos para Les Salants, planos esses tão sinistros quanto vagos. Reconheci a tradicional antipatia dos salannais por um houssin bem sucedido.- Ele podia resolver o problema de Les Salants... pff! Assim mesmo - disse a velha, com um gesto expressivo. - Tem dinheiro e máquinas. Mandava drenar os pântanos, erguer protecções em La Goulue... podia ter tudo pronto em seis meses. Acabava com as inundações. Hem! Mas com um preço, claro. Ele não arranjou dinheiro a fazer favores.54Talvez devessem ouvir o que é que ele propõe. Matthias olhou para mim, carrancudo.- O quê? Vender a um houssin?- Deixa-a em paz - disse Capucine. - A rapariga tem boas intenções.- Sim, mas se ele pudesse pôr fim às inundações... Matthias abanou a cabeça com determinação.

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- Não se pode controlar o mar - disse. - Ele faz como quer. Se a santa nos quiser afogar, fá-lo-á.Fiquei a saber que fora uma sucessão de anos maus. Apesar da protecção de Sainte-Marine, as marés tinham subido cada vez mais de Inverno para Inverno. Naquele ano, até a Rue de l'Océan tinhaficado alagada pela primeira vez desde a guerra. E o Verão também tinha sido inusitadamente turbulento. Os vagalhões tinham aumentado e inundado metade da aldeia deixando-a debaixo de quase um metro de água salgada, um prejuízo que ainda não tinha sido totalmente reparado.- Por este andar, ainda acabamos como a antiga povoação - disse Matthias Guénolé. - Tudo submerso, até a igreja. - Encheu o cachimbo e calcou o tabaco com o polegar. - Isso mesmo. A igreja. Se a santa não nos pode ajudar, quem é que pode?- Mas esse foi um ano negro - declarou Toinette Prossage. - Foi em mil novecentos e oito. A minha irmã Marie-Laure morreu nesse ano com a gripe, no mesmo Inverno em que eu nasci. - Es petou o dedo curvado no ar. - Cá estou eu, uma filha desse ano negro; nunca esperaram que sobrevivesse. Mas sobrevivi! E se quisermos sobreviver a este, temos que fazer mais qualquer coisa que não seja atirarmo-nos uns aos outros como gansos. - Perscrutou severamente Matthias.- É fácil de dizer, Toinette, mas se a santa não estiver connosco...- Não foi isso que eu disse, Matthias Guénolé, e tu sabes isso. Matthias encolheu os ombros.- Não fui eu quem começou. Se Aristide Bastonnet admitisse ao menos uma vez que não tinha razão...Toinette virou-se para mim, com um olhar ríspido.55- Estás a ver como é? Homens adultos... velhos... que se comportam como crianças. Não admira que a santa tenha mostrado o seu desagrado.Matthias ficou indignado.- Não foram os meus rapazes que deixaram cair a santa. Capucine fitou-o. Ficou embaraçado. - Desculpa - disse-me. - Ninguém responsabiliza GrosJean por causa daquilo. Se é culpa dealguém, é de Aristide. Não deixou o neto transportar a santa porque eram dois Guénolés e apenas um Bastonnet. Claro que ele não podia dar uma ajuda, por causa da perna de pau. - Suspirou. - Já te disse antes. Vai ser um ano negro. Ouviste La Marinette a tocar, não ouviste?- Não era La Marinette - disse Capucine. Automaticamente, fez com a mão esquerda uma figa contra o infortúnio. Vi que Matthias fazia o mesmo.- É como vos digo, ele vem aí, foi há trinta anos... Matthias voltou a fazer o sinal de esconjuro.- Setenta e dois. Foi um mau ano.Eu sabia que tinha sido: esse ano assistira à morte de três habitantes da aldeia, um deles o irmão do meu pai.Matthias bebeu um gole da sua devinnoise.- Uma vez, Aristide pensou que tinha encontrado La Marinette, sabes? Foi no princípio da Primavera, no ano em que perdeu a perna. Afinal era uma velha mina abandonada desde a primeira guerra. Irónico, não achas?Concordei. Escutava-o o mais delicadamente possível, apesar de ser uma história que já ouvira muitas vezes em criança. Nada mudara, reflecti com uma ponta de desespero. As próprias históriaseram tão velhas e cansadas como os habitantes, viradas e reviradas com angústia como as contas de um rosário. Dentro de mim iam-se avolumando a piedade e a impaciência, e suspirei profundamente. Matthias prosseguia, absorto, como se o incidente tivesse acontecido na véspera.- O objecto estava meio enterrado num banco de areia. Soava quando lhe atiravam uma pedra. A miudagem vinha toda com paus e bocados de rocha para tentar fazê-lo tocar. Algumas horas maistarde, quando a maré o pôs a descoberto, explodiu, sem ninguém lhe mexer, a uma centena de metros onde é agora La Jetée. Matou56quase todos os peixes desde ali até Les Salants. Hem! - Matthias chupou o cachimbo com ar pesaroso. - A Désirée fez um balde inteiro de caldeirada porque não era capaz de suportar a ideia de desperdiçar aquele peixe todo. Metade da aldeia ficou intoxicada. - Olhou para mim com os olhos

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avermelhados. - Nunca cheguei à conclusão se tinha sido um milagre ou não.Toinette assentiu num gesto de concordância.- Fosse o que fosse, azedou a nossa boa sorte. Olivier, o filho de Aristide, morreu nesse ano e... bom... tu sabes. - Olhou para mim ao pronunciar estas palavras.- P'titJean.Toinette voltou a acenar com a cabeça.- Oh! Aqueles irmãos! Havias de ouvi-los nos velhos tempos - disse ela. - Eram duas gralhas, os dois. Conversa, conversa e mais conversa.Matthias emborcou um trago de devinnoise.- O Ano Negro levou consigo o coração de GrosJean do mesmo modo que arrastou as casas de La Goulue. Talvez as marés tivessem sido mais fortes nesse ano, mas não foram assim tanto. -Soltou um suspiro de sombria satisfação e fez um gesto na minha direcção com a haste do cachimbo. - Quero avisar-te, menina. Não te acomodes a isto. Porque basta mais um ano como esse...Toinette levantou-se e espreitou o céu através da janela. Para lá de La Pointe, o horizonte de um laranja sombrio ameaçava tempestade, riscado por relâmpagos distantes.- Esperam-nos tempos difíceis - observou, sem qualquer aparente ansiedade. - Como em setenta e dois.57

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Dormi no meu antigo quarto com o rumor do mar nos ouvidos. Quando acordei já era dia, mas continuava a não haver sinais do meu pai. Fiz café e demorei-me a bebê-lo, sentindo-me absurdamente deprimida. O que é que eu esperava? O bom acolhimento do filho pródigo? A atmosfera desagradável dos festejos ainda pairava sobre mim e o estado da casa só contribuía para piorar as coisas. Decidi sair.O céu estava encoberto e ouviam-se os guinchos das gaivotas sobre La Goulue. Calculei que a maré devia estar a vazar. Vesti o casaco e fui dar uma espreitadela.Pode-se sentir o cheiro de La Goulue antes de a avistar. É sempre mais intenso na maré baixa:. um leve cheiro a peixe que um estranho pode achar desagradável, mas que me desperta conotaçõesnostálgicas e confusas. Aproximando-me do lado da ilha, avistei os baixios desertos brilhantes sob a luz prateada. O velho bunker alemão, meio enterrado na duna, assemelhava-se a uma construção abandonada, destacando-se contra o céu. Deduzi que Flynn devia estar a preparar o pequeno-almoço pelo filamento de fumo que se esgueirava da pequena torre.Em Les Salants, fora La Goulue que sempre sofrera mais ao longo dos anos. O bojo da ilha sofrera graves erosões e o caminho que recordava da infância fora tragado pelo mar, deixando uma superfície rochosa escorregadia e irregular a assinalar a sua ausência. A fiada de antigas barracas de praia da minha infância desaparecera;58restava uma sobrevivente isolada, semelhante a um insecto de longas patas sobre as pedras. A entrada da enseada alargara, apesar de serem evidentes os esforços para a proteger: um muro tosco de pedras juntas com argamassa ainda subsistia meio inclinado no lado ocidental, embora também isto tivesse mudado com o correr do tempo deixando a enseada vulnerável às marés. Começava a compreender o pessimismo de Matthias Guénolé; uma maré alta com o vento a soprar por trás pode aumentar as vagas, transbordando por cima do dique até à estrada. Porém, a principal diferença em La Goulue era algo muito mais impressionante. As muralhas de algas, sempre presentes mesmo no Verão, tinham desaparecido, deixando apenas uma extensão árida de pedras sem sequer uma camada de limo a cobri-las. Aquilo intrigou-me. Teriam mudado os ventos? Como reza a tradição, tudo retorna sempre a La Goulue. Hoje não havia nada; nem algas, nem resíduos abandonados, nem sequer um bocado de madeira trazida pelo mar. Também as gaivotas pareciam compreender isso; guinchavam estridentes enquanto riscavam o ar mas sem nunca pousarem o tempo suficiente para se

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alimentarem. Ao longe, o anel de La Jetée formava pálidas crispações contra a água escura. Não havia sinais do meu pai à beira da água. Talvez tivesse ido até La Bouche; o cemitério ficava um pouco acima da enseada para quem vinha da aldeia. Tinha lá estado algumas vezes, embora não muitas; em Le Devin, os mortos são assunto de homens.Gradualmente fui tomando consciência de uma presença próxima. Talvez pelo modo como as gaivotas se moviam; o certo é que não fazia o mínimo ruído. Virei-me e deparei com Flynn alguns metros atrás de mim, perscrutando o mesmo braço de mar. Trazia dois baldes de lagostas e uma mochila a tiracolo. Os baldes estavam cheios e ambos tinham pintado a vermelho um B de Bastonnet.A pesca furtiva é o único crime considerado grave em Le Devin. Roubar das redes de outro homem é tão grave como dormir com a mulher dele.Flynn brindou-me com um sorriso inocente.- É espantoso o que o mar traz - comentou jovialmente, apontando com um dos baldes em direcção a La Pointe. - Decidi levantar-me cedo e ir dar uma espreitadela antes de meia aldeia ir à procura da santa. 59- Da santa?Ele abanôu a cabeça.- Receio bem que por enquanto não haja sinais dela na Pointe . Deve ter sido arrastada pela maré. As correntes aqui são tão fortes que a esta hora pode estar a meio caminho de La Goulue.Eu não disse nada. É preciso mais do que uma maré forte para trazer até à praia um balde de lagostas. Quando era criança, os Guénolés e os Bastonnets costumavam ficar à espreita uns dosoutros nas dunas, armados de espingardas carregadas de sal-gema, cada um à espera de apanhar o outro em flagrante.- Ainda bem para ti - comentei.- Faço por isso. - Os olhos deles cintilaram.Porém no momento seguinte, a sua atenção já estava concentrada noutra coisa e virava com os pés descalços as pequenas pérolas de alho selvagem que crescia na areia. Depois de virar um certonúmero, inclinou-se e enfiou-os numa das algibeiras. Aspirei o aroma acre, fugidio, no ar salgado. Lembrei-me de os ir apanhar para os cozinhados de peixe que a minha mãe fazia.- Dantes havia aqui um caminho - disse eu, olhando a baía. - Costumava descer por ele até aos baixios. Agora desapareceu. Flynn acenou com a cabeça.- Toinette Prossage recorda-se de uma rua inteira com casas aqui, com um molhe, uma pequena praia e tudo. Tudo isso foi engolido pelo mar há anos.- Uma praia?Achei que fazia sentido. Em tempos, na maré baixa, era possível ir a pé desde La Goulue até aos bancos de areia de La Jetée; ao longo dos anos tinham migrado como baleias amarelas, com as correntes variáveis. Olhei para a barraca de praia solitária, agora sem préstimo, empoleirada no cimo dos rochedos.- Nada está seguro numa ilha.Olhei de novo para os dois baldes. Ele tinha atado as lagostas para não se debaterem.- O Eleanore dos Guénolés partiu as amarras durante a noite - continuou Flynn. - Eles pensam que foram os Bastonnets os responsáveis. Mas deve ter sido o vento.Aparentemente, Alain Guénolé, seu filho Ghislain e seu pai Matthias andavam desde madrugada em busca de sinais do barco60desaparecido. Sendo um barco de pesca sólido, de fundo chato, podia ter sido arrastado na ressaca e estar intacto algures nos bai,,os da maré baixa. Era uma ideia optimista, mas valia a pena tentar. - O meu pai sabe? - perguntei.Flynn encolheu os ombros. Percebi pela sua expressão que já considerava o Eleanore perdido.Talvez não tenha ouvido falar nisso. Não voltou para casa a noite passada, pois não? - A surpresa deve ter transparecido no meu rosto, porque ele sorriu. - Eu tenho o sono leve. Ouvi-o descer na

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direcção de La Bouche.La Bouche. Então eu tinha razão.Fez-se silêncio apenas interrompido pelos guinchos das gaivotas. Sentia que ele estava à espera que eu falasse; perguntava a mim mesma o que é que Grosjean lhe teria contado. Pensei na caixa docorreio com a correspondência por abrir, na fotografia mutilada do aniversário.- Ele é um homem complicado - disse eu por fim. - Uma pessoa tem de aprender a ver as coisas como ele as vê. Tem que se fazer um esforço.- Estiveste fora muito tempo. - Eu conheço o meu pai.Uma pausa, durante a qual Flynn brincou com a conta de coral que lhe pendia do pescoço.- Não foste até lá, pois não?- Não. Não é um dos meus lugares favoritos. Porquê?- Vem - disse ele, pousando os baldes das lagostas e estendendo-me a mão. - Quero mostrar-te uma coisa.La Bouche apanha sempre de surpresa quem a visita pela primeira vez. Talvez seja a dimensão: os corredores e as alamedas de pedras tumulares, todas elas assinaladas com nomes salannais, as centenas, talvez milhares de Bastonnets, Guénolés, Prossages, até os nossos Prasteaus, repousam lado a lado como soldados cansados, esquecidos os litígios.O segundo aspecto surpreendente é o tamanho dessas lápides: gigantes de granito da ilha, com cicatrizes e polidas pelo vento, erguem-se como monolitos, ancoradas ao solo movediço apenas61pelo seu peso. Ao contrário dos vivos, os mortos salannais são um grupo sociável; tendem a visitar-se de túmulo em túmulo ao sabor dos movimentos da areia, sem as restrições das ofensas familiares. Para os mantermos tranquilos, usamos as pedras mais pesadas que for possível arranjar. A pedra tumular de P'titJean é uma peça maciça de granito cinzento-rosado da ilha que cobre por completo a sepultura como se P'titjean jamais pudesse ser enterrado demasiado fundo.Flynn recusou-se a responder às minhas perguntas enquanto nos dirigíamos para o velho cemitério. Eu seguia-o relutante, avançando com cautela pelo terreno pedregoso. Avistava agora a pri meira das velhas lápides, erguendo-se acima da crista da duna que as protegia. La Bouche fora sempre o refúgio do meu pai. Mesmo; agora sentia-me confusamente culpada como se estivesse a desvendar segredos.- Sobe até ao alto da duna - disse Flynn, ao reparar na minha hesitação. - De lá podes ver tudo.Durante longos instantes, permaneci imóvel no cimo da duna contemplando La Bouche lá em baixo.- Há quanto tempo é que está assim? - perguntei por fim. - Desde os temporais da Primavera.Fora feita uma tentativa para proteger os túmulos. Tinham sido colocados sacos de areia ao longo do trilho mais próximo da enseada e à volta de algumas das pedras a terra fora revolvida e cavada, embora fosse evidente que os estragos eram demasiado grandes para serem remediados com reparações tão básicas. As lápides projectavam-se das covas como dentes cariados, algumas ainda erectas, outras inclinadas em ângulos instáveis na água pouco profunda nos pontos onde a enseada transbordara os aterros baixos. Aqui e ali um vaso de flores murchas emergia à superfície; por outro lado, numa extensão de cinquenta metros ou mais, apenas se viam as pedras tumulares e o reflexo pálido do céu.Fiquei a olhar durante muito tempo, em silêncio.- Ele vem aqui todos os dias, semanas a fio - explicou Flynn. - Já lhe disse que era inútil. Não acredita em mim.Via agora a sepultura de P'titJean, não muito distante do trilho alagado. O meu pai tinha-o enfeitado com flores vermelhas e contas62de coral em honra de Sainte-Marine. As pequenas oferendas surgiam estranhamente patéticas sobre a sua ilha de pedra.Devia ter sido um choque para o meu pai. Apesar de profundamente supersticioso, nem mesmo o toque de La Marinette lhe podia anunciar uma mensagem tão poderosa como aquilo.Dei um passo na direcção da vereda. - Não vás - avisou Flynn.

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Não fiz caso. O meu pai estava de costas viradas para mim, tão absorto no que estava a fazer que não me ouviu senão quando eu já estava tão perto que quase lhe podia tocar. Flynn ficou onde estava,sem se mexer, praticamente invisível no meio da erva alta das dunas a não ser pelo reflexo mudo da sua cabeleira outonal.- Pai - chamei, e ele voltou-se para me olhar.Agora, à luz do dia, podia ver como GrosJean envelhecera. Pareceu-me mais baixo do que na noite anterior, encolhido nas suas roupas, com o rosto largo coberto de uma barba curta e grisalha de velho. Tinha as mangas salpicadas de lama, que lhe chegava também até ao rebordo das botas de pesca, como se tivesse estado a cavar. Um Gitane pendia-lhe dos lábios.Dei um passo em frente. O meu pai observava-me em silêncio, com os olhos azuis brilhantes, permanentemente enrugados pelo sol. Não reagiu à minha presença; era como se estivesse a observar um flutuador de pesca a rodopiar na água ou a calcular a distância entre um barco e o quebra-mar, com cuidado para evitar uma espadana de água.- Pai - voltei a repetir, com um sorriso estranho e tenso. Puxei o cabelo para trás para que visse o meu rosto. - Sou eu. Mas GrosJean continuava a não dar mostras de me ter ouvido. Vi-o deslizar os dedos para o pescoço, para o pendente. Não, não era um pendente. Era um medalhão. Um medalhão do género onde se guardam pequenas lembranças.- Escrevi-te. Pensei que talvez... se tu precisasses...A voz também não soava como minha. GrosJean fixava-me, inexpressivo. O silêncio pairava sobre todas as coisas como borboletas negras.- Podias tentar dizer qualquer coisa - disse eu. Silêncio. Um adejar de asas.- Então?63Silêncio. Por detrás dele na duna, Flynn observava, imóvel.- Então? - repeti. As borboletas adejavam agora na minha voz, fazendo-a tremer. Quase não conseguia respirar. - Voltei. Não me queres dizer nada?Por momentos julguei vislumbrar uma vacilação nos olhos dele. Talvez fosse imaginação minha. De qualquer modo, desvaneceu-se num segundo. Depois, ainda antes que me desse conta, o meu pai virou-se e encaminhou-se para as dunas sem uma palavra. 64

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Devia esperar aquilo. De certo modo tinha estado à espera que aquilo acontecesse, já tinha imaginado essa rejeição anos antes. Apesar disso magoou-me; depois da morte da Mãe e da partida de Adrienne, tinha com certeza o direito de esperar uma resposta.As coisas podiam ter sido diferentes se eu fosse rapaz. GrosJean, como a maior parte dos homens da ilha, queria ter filhos rapazes: filhos para trabalharem no estaleiro, para cuidarem da sepultura familiar. As raparigas, com todas as despesas que acarretavam, não tinham qualquer interesse para GrosJean Prasteau. Uma filha primogénita já fora suficientemente mau; uma segunda, quatro anos mais tarde, tinha posto fim ao pouco que já restava da intimidade dos meus pais. Cresci tentando reparar o desapontamento que causara, usando o cabelo curto para lhe agradar, evitando a companhia de outras raparigas para merecer a sua aprovação. Em certa medida tinha resultado: às vezes deixava-me acompanhá-lo na pesca da perca na rebentação ou levava-me até aos bancos de ostras com os forcados e cestos. Eram para mim momentos preciosos, que eu não deixava escapar quando às vezes a minha mãe e Adrienne iam juntas a La Houssinière; momentos guardados avidamente em segredo.Ele falava comigo nessas alturas, mesmo quando já não falava com a minha mãe. Mostrava-me os ninhos das gaivotas e os areais ao largo de La Jetée onde as focas regressavam todos os anos. Às vezesencontrávamos coisas trazidas pelo mar para a praia e levávamo-las

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65para casa. E, uma vez por outra, muito esporadicamente, contava-me histórias e velhos ditados das ilhas. Tudo retorna. Era o seu preferido.- Lamento. - Era a voz de Flynn. Devia ter-se aproximado por trás de mim, silenciosamente, quando eu estava de pé junto da sepultura de P'titjean.Assenti com a cabeça. Tinha a garganta irritada como se tivesse estado a gritar.- A verdade é que ele não fala com ninguém - disse Flynn. - Quase só se exprime por gestos. Acho que não o ouvi falar mais de uma dúzia de vezes desde que cá estou e mesmo nesses casos habitualmente não passa de um Sim ou Não.Vi uma flor vermelha a flutuar na água mesmo ao lado do trilho. Observei-a, sentindo-me nauseada.- Então, ele fala contigo - disse eu. - Às vezes.Sentia a presença dele ao meu lado. Estava perturbado, queria consolar-me e por momentos tudo o que desejei foi aceitar. Sabia' que podia virar-me para ele - era suficientemente alto para poderpousar a minha cabeça no seu ombro - e cheiraria a ozone e a mar, e à lã grosseira da camisola. Por baixo da camisola, sabia que a sua pele era quente.- Mado, lamento...Olhei em frente sem o fitar, com uma expressão vazia, detestando a sua piedade e detestando ainda mais a minha própria fraqueza.- Maldito velho. Continua com os jogos dele. - Inspirei o ar, devagar e demoradamente. - Nada muda.Flynn olhou para mim apreensivo. - Sentes-te bem?- Sinto.Acompanhou-me até casa,'recolhendo de passagem os baldes com as lagostas e a mochila. Eu pouco falei; ele foi tagarelando coisas que eu nem sequer ouvia, mas estava-lhe vagamente grata. De quando em quando, tocava na carta que tinha no bolso.66Para onde é que vais agora? - perguntou Flynn, ao chegarmos ao atalho que levava a Les Salants.Contei-lhe do pequeno apartamento de Paris. Da cervejaria defronte. Do café aonde costumávamos ir nas noites de Verão. Das avenidas de tílias.- Deve ser agradável. Talvez eu me mude para lá qualquer dia. Olhei para ele.- Julguei que gostavas disto aqui.- Talvez goste, mas não penso cá ficar. Nunca ninguém fez fortuna enterrando-se na areia.- Fazer fortuna? É disso que andas à procura? - Claro. Não é o que todos procuram?Seguiu-se um silêncio. Caminhávamos juntos, ele silenciosamente, e eu dando pequenos estalidos com as minhas botas ao pisar os pedacinhos de conchas que juncavam as dunas.- Nunca sentes a falta da tua casa? - perguntei por fim.- Não, nunca! - Fez uma careta. - Mado, estava num beco sem saída. Não levava a lado nenhum. Sem trabalho, sem dinheiro, sem vida. O que conseguíamos arranjar era sempre para o meu irmão. Vim-me embora assim que pude.- O teu irmão?- Sim. O John. O Menino de Ouro. - A sua expressão era dura, magoada, como supunha ser a minha quando pensava em Adrienne. - Família. Quem precisa dela, diz-me?Perguntava a mim própria se era assim que pensava Grosjean; se era por-isso que ele me banira da sua vida.- Não sou capaz de o deixar - respondi tranquilamente. - Claro que podes. É óbvio que ele não quer...- Que interessa o que ele quer? Viste o pátio onde estão os barcos, não viste? Viste a casa? Donde é que vem o dinheiro? E o que é que lhe vai acontecer quando o dinheiro acabar?Não há nenhum banco em Les Salants. Segundo uma máxima da ilha, o banco dá-nos um chapéu-de-chuva quando está sol e tira-o quando começa a chover. Em sua -substituição, o dinheiro éguardado em caixas de sapatos e debaixo da pia da cozinha. Na maior parte dos casos, os empréstimos são combinados na base de acordos particulares. Não conseguia imaginar GrosJean a

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pedir67dinheiro emprestado; assim como também não imaginava uma fortuna escondida debaixo do soalho.- Ele lá se há-de arranjar - disse Flynn. - Tem amigos aqui que olharão por ele.Tentei imaginar Omer La Patate a olhar pelo meu pai, ou Matthias, ou Aristide. Mas em seu lugar, via o rosto de GrosJean no dia em que saímos de casa; aquela expressão de estupefacção quetambém podia ser de desespero ou de indiferença ou mais qualquer coisa, tudo junto; o aceno de saudação quase imperceptível quando se afastou. Havia barcos para construir. Não havia tempo para despedidas. Eu a gritar pela janela do táxi :"Eu escrevo. Prometo". A Mãe a debater-se com a bagagem, com o rosto contraído sob o peso das palavras não ditas.Aproximávamo-nos de casa. Avistava o telhado de telhas vermelhas por cima das dunas. Um fino fio de fumo esgueirava-se da chaminé. Flynn caminhava ao meu lado, com a cabeça inclinada, sem falar, com o rosto oculto pelo cabelo que lhe caía para a cara.Subitamente, deteve-se. Havia alguém em casa; alguém junto à janela da cozinha. Não conseguia distinguir-lhe as feições, mas o vulto era inconfundível: um vulto corpulento, como o de um urso, com o rosto comprimido contra o vidro.- GrosJean? - murmurei.Flynn abanou a cabeça, de olhos alerta. - Brismand. 68

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Não tinha mudado. Estava mais velho. Mais grisalho. A cintura mais volumosa, mas continuava a usar as alpergatas e o gorro de pescador que eu recordava da minha infância, com os dedos grossos a abarrotar de anéis, a camisa manchada de suor nos sovacos, embora o dia estivesse fresco. Quando entrei, estava de pé junto à janela, com uma caneca fumegante na mão. Um aroma forte a café com armagnac enchia o ar.- Olá, cá temos a pequena Mado. - Possuía uma voz arrastada, com uma tonalidade rica e ondulada. O seu sorriso era franco e contagiante. O bigode, apesar de grisalho, parecia agora mais exu berante do que nunca, o bigode de um comediante de vaudeville ou de um ditador comunista. Aproximou-se de mim em três passadas rápidas e abraçou-me com os braços sardentos.- Mado, é bom, muito bom ter-te de volta! - O abraço, aliás como tudo nele, era imponente. - Estive a fazer café. Espero que não leves a mal. Afinal somos da família, não somos? - Acenei quesim, meio sufocada nos braços dele. - Como está a Adrienne? E as crianças? O meu sobrinho não escreve tanto como devia.- A minha irmã também não.Ele riu-se, num som tão delicioso como o café.- Os jovens, sabes! Mas tu.. tu! Deixa-me cá ver-te. Cresceste! Fazes-me sentir um velho de cem anos, mas vale a pena para ver a tua cara, Mado. Essa cara linda.69Quase me tinha esquecido disso... do seu fascínio. Possui a arte de nos apanhar de surpresa, de nos deixar indefesos. Também podia ver a sua inteligência por detrás do exterior exuberante; os seus olhos eram astutos, cor de ardósia quase pretos. Era verdade, eu gostava dele em criança. E continuava a gostar.- Continuam as inundações na aldeia, não é? Um azar. - Suspirou estrondosamente. - Deves achar isto muito diferente agora. Mas não é para toda a gente, pois não? A vida nas ilhas. A gentenova quer mais divertimento do que uma pobre e velha ilha lhes pode oferecer.Eu estava consciente da presença de Flynn, parado do lado de fora da porta com os baldes das lagostas. Mostrava-se relutante em entrar, embora ao mesmo tempo eu pressentisse a sua curiosidade e relutância em deixar-me sozinha com Brismand:- Entra e toma um café. Flynn abanou a cabeça. - Vemo-nos mais logo.

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- Deixa-o ir. - Brismand, que apenas lançara uma mirada a Flynn, virou-se de novo para mim, rodeando-me os ombros amistosamente. - Ele não interessa. Quero saber tudo acerca de ti.- Senhor Brismand...- Claude, Mado, por favor. - A sua desmesurada cordialidade era levemente opressiva como a de um Pai Natal gigante. - Mas porque é que não me avisaste que vinhas? Eu já quase tinha perdido as esperanças.Não pude vir antes. A minha mãe estava doente.Por instantes, voltei a evocar: o cheiro do quarto dela; o silvo do aspirador; o tom da sua voz quando mencionei a ideia de voltar, mesmo de visita.- Eu sei. - Serviu-me um pouco de café. - Lamento. E ainda por cima esta história com o GrosJean. - Instalou-se numa cadeira, que rangeu sob o seu peso e fez-me sinal para me sentar ao lado dele. - Estou contente por teres voltado, Mado - disse com simplicidade. - Estou contente por teres confiado em mim. Os primeiros anos depois de sair de Le-Devin foram os mais duros. Foi uma sorte sermos ambas resistentes. Porém, a natureza70romântica da minha mãe foi endurecendo até se transformar num pragmatismo tenso e receoso que nos foi útil. Sem preparação para qualquer ocupação especializada, juntou algumas economias a fazer limpezas. Apesar disso, éramos pobres.GrosJean não mandava dinheiro. A mãe aceitava o facto com uma satisfação amarga, sentindo-se justificada. Na escola, um grande liceu de Paris, a minha roupa surrada tornava-me ainda mais marginal.Mas Brismand ajudara-nos à sua maneira. Ao fim e ao cabo, fazíamos agora parte da família, embora não partilhássemos o seu nome. Não nos mandava dinheiro, mas recebíamos encomendascom roupa e livros pelo Natal e caixas de tintas quando soube do meu interesse. Na escola, encontrara refúgio nas aulas de desenho, numa sala de aulas que me recordava um pouco a oficina do meu pai com os ruídos abafados e afanosos e o cheiro a serradura fresca. Entusiasmada, comecei a ter lições. Tinha algum talento para aquela disciplina. Desenhava cenas de praias, barcos de pesca e casas de telhados baixos caiadas de branco com céus sombrios. Como é evidente, a minha mãe detestava. Mais tarde, tornaram-se a nossa principal fonte de rendimento, embora nem mesmo assim o tema deixasse de lhe desagradar. Suspeitava, ainda que nunca o tenha dito, que era a minha maneira de quebrar o nosso acordo.Durante todos os meus anos de liceu, Brismand continuou a escrever. Não escrevia à minha mãe, que tinha adoptado Paris com toda a sua exuberância e ouropéis e não tinha o mínimo desejo quelhe lembrassem Le Devin, mas a mim. Não eram longas cartas, mas eram tudo o que eu tinha e devorava todos os pedacinhos de notícias. Às vezes dava comigo a desejar que tivesse sido ele, e não GrosJean, o meu pai.Então, há cerca de doze meses atrás, chegou o primeiro indício de que nem tudo corria bem em Les Salants. Ao princípio, foi apenas uma referência de passagem: não via GrosJean há algum tempo,mas depois houve outras alusões. A excentricidade do meu pai, sempre presente mesmo durante a minha infância, estava a tornar-se mais acentuada. Corriam boatos de que tinha estado muito doente, embora se recusasse a ir ao médico. Brismand estava preocupado.71Não respondi a essas cartas. Nessa altura a minha mãe absorvia já toda a minha atenção. O seu enfisema, agravado pela poluição da cidade, piorara e o médico tentara persuadi-la a mudar de clima, aconselhara-lhe um lugar perto do mar, onde o ar fosse mais saudável. Mas a Mãe recusou-se a ouvir. Adorava Paris. Adorava as lojas, os cinemas, os cafés. Estranhamente, não invejava as mulheres ricas a quem fazia a limpeza dos apartamentos, retirando um prazer indirecto dos seus vestidos, dos seus móveis, das suas vidas. Eu pressentia que era isso que ela desejava para mim.As cartas de Brismand continuavam a chegar. Continuava preocupado. Escrevera a Adrienne, mas não recebera qualquer resposta, o que eu podia compreender: tinha telefonado quando a Mãe dera entrada no hospital e fui informada por Marin que Adrienne estava outra vez grávida e, por

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conseguinte, não podia viajar. A Mãe morrera quatro dias depois e foi uma Adrienne em pranto que me disse pelo telefone que o médico a proibira de fazer esforços. Depois de ter tido dois rapazes, estava ansiosa por ter uma rapariga e achava que a Mãe teria compreendido.Bebi o café demoradamente. Brismand aguardava paciente, com o braço enorme à volta do meu ombro.- Eu sei, Mado. Foi duro para ti. Limpei os olhos.- Devia esperar isto.- Devias ter vindo ter comigo. - Olhou à volta; vi-o examinar o chão sujo, os pratos empilhados, as cartas por abrir, o desleixo.- Queria ver com os meus olhos.- Compreendo. - Brismand assentiu com a cabeça. - Ele é o teu pai. A família é tudo.Levantou-se e de súbito pareceu encher a casa, enfiando as mãos nos bolsos.- Sabes que tive um filho. A minha mulher foi-se embora com ele quando tinha três meses. Esperei durante trinta anos, na esperança... tendo a certeza... de que um dia ele regressaria a casa.72Eu fiz um gesto de assentimento. Tinha ouvido contar a história. Em Les Salants, como é evidente, as pessoas partiam do princípio de que Brismand era o culpado.Ele abanou a cabeça, parecendo subitamente envelhecido, pondo de lado os exuberantes gestos teatrais.- É um absurdo, não é, o modo como nos iludimos a nós próprios? As espinhas que deixamos cravadas uns nos outros. - olhou para mim. - GrosJean gosta de ti, Mado. Á sua maneira, ele gosta de ti.Pensei na fotografia do meu aniversário e na forma como o braço do meu pai descansava no ombro de Adrienne. Suavemente, Brismand pegou-me na mão. - Não quero que te sintas pressionada de modo algum.- Eu sei. Está tudo bem.- Les Immortelles é um lugar agradável, Mado. Dispõe dos requisitos de um hospital, de um médico do continente, quartos espaçosos; e ele podia ver os amigos sempre que quisesse. Posso tratar de tudo.Hesitei. Soeur Thérèse e Soeur Extase já me tinham falado dos projectos de Brismand de assistência a longo prazo aos residentes. Devia ser caro, pelo que abordei o assunto.Ele abanou a cabeça, como se não tivesse importância.- Não te preocupes com isso. A venda dos terrenos cobrirá todas as despesas. Ou até mais. Compreendo como te sentes, Mado. Mas alguém tem de agir de modo responsável.Prometi pensar na questão. Era uma ideia a que Brismand já fizera alusões nas suas cartas, embora nunca de forma tão explícita como agora. Parecia uma proposta aceitável; ao contrário da Mãe,GrosJean nunca acreditara em seguros de saúde e eu não me podia permitir somar os seus problemas financeiros aos meus. Era indesmentível que ele necessitava de cuidados. E eu tinha a minha vida em Paris para onde podia, para onde devia, voltar. Independentemente dos meus antigos sonhos, Les Salants tinha-me revelado uma realidade ainda mais desoladora. Demasiadas coisas tinham mudado.73

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A o sair de casa encontrei Alain Guénolé e o filho, Ghislain, que vinham do outro extremo da povoação. Estavam os dois sem fôlego e pareciam mais agitados do que a normal reserva da ilha permitia. Eram muito parecidos, com as feições marcadas típicas da ilha, mas enquanto o pai usava a tradicional vareuse de lona, Ghislain vestia uma t-shirt de uma amarelo berrante cujo brilho de néon contrastava com a pele bronzeada. Ao ver-me, sorriu e começou a subir, correndo, a grande duna.- Senhora GrosJean - disse arfante, fazendo uma pausa para recuperar o fôlego. - Precisamos que

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nos empreste o atrelado do tractor que está no pátio. É urgente.Por momentos, tive a certeza de que não me tinha reconhecido. Era Ghislain Guénolé, dois anos mais velho do que eu e com quem eu brincava em miúda. Tinha-me tratado de facto por senhora GrosJean?Alain baixou a cabeça numa saudação. Também se mostrava ansioso, embora fosse evidente que não havia nada que considerasse suficientemente urgente para o fazer correr.- É o Eleanore - berrou do fundo da duna. - Avistaram-no em La Houssinière, ao largo de Les Immortelles. Vamos para lá para o trazer, mas precisamos do reboque do seu pai. Ele está em casa?Abanei a cabeça.- Não sei onde ele está. 74Ghislain parecia preocupado.- Não podemos esperar - disse ele. - Temos de o levar já. Talvez você... se lhe explicar a razão por que foi...- Claro que o podem levar - atalhei, tomando uma decisão súbita. - Eu vou com vocês.Nessa altura, Alain, que nos tinha apanhado, mostrou-se indeciso.- Não acho...- Foi o meu pai que construiu aquele barco - disse eu com firmeza. - Há anos, antes de eu nascer. Nunca me perdoaria se eu não os ajudasse. Sabem como ele é afeiçoado a esse barco.GrosJean era mais do que afeiçoado ao barco, lembrava-me muito bem. Eleanore fora a primeira das suas "damas"; não era a sua criação mais bela, mas talvez a mais amada. A ideia de que pudesse estar perdido encheu-me de angústia.Alain encolheu os ombros. O barco era o seu ganha-pão, ao fim e ao cabo. Não havia lugar para sentimentos quando estava em jogo dinheiro. Enquanto Ghislain corria para o tractor, experimen tei uma sensação de alívio, como se aquela crise fosse uma espécie de tréguas.- Tens a certeza que queres vir? Não é um incómodo? - perguntou Alain enquanto o filho prendia o reboque ao velho carro. - Não é propriamente um divertimento.A sua observação casual magoou-me. - Eu quero ajudar.- Como quiseres.O Eleanore encalhara nuns rochedos a cerca de quinhentos metros ao largo de La Houssinière. A maré alta deixara o barco ali entalado e embora o mar ainda estivesse baixo, o vento era áspero, empurrando o casco danificado contra a rocha ao ritmo da ondulação. Um pequeno grupo de salannais, incluindo Aristide, o neto Xavier, Matthias, Capucine e Lolo, observavam da praia. Perscrutei os rostos avidamente, mas o meu pai não se encontrava entre eles. Vi Flynn, porém, com as botas de pesca e a camisola, levando ao ombro a mochila. Daí a pouco, Damien, o amigo de Lolo, juntou-se-lhes;75agora, ao vê-lo ao pé de Alain e de Ghislain percebi que tinha as mesmas feições dos Guénolé.- Fica aí atrás, Damien - disse Alain, ao vê-lo aproximar-se. - Não quero que te metas no caminho.Damien devolveu-lhe um olhar mal-humorado e sentou-se numa rocha. Quando voltei a olhar daí a instantes, vi que tinha acendido um cigarro e fumava, de costas voltadas, numa atitude provocadora. Alain, com os olhos fixos no Eleanore, parecia não reparar.Fui sentar-me ao lado dele. Durante alguns instantes ignorou-me. Depois, a curiosidade foi mais forte e virou-se para olhar para mim.- Ouvi dizer que vive em Paris - disse em voz baixa. - Como é?- Como qualquer outra cidade - respondi. - Grande, barulhenta, cheia de gente.Por instantes, pareceu ficar abatido. Em seguida, a sua voz animou-se.- As cidades da Europa, talvez. As cidades americanas são diferentes. O meu irmão arranjou uma camisola americana. A que tem hoje.Sorri, desviando os olhos do dorso luminoso de Ghislain.- Na América a única coisa que comem são hamburgers - disse Alain sem afastar os olhos do Eleanore - e as raparigas são todas gordas.

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O rapaz mostrou-se indignado.- Como é que sabe? Nunca lá esteve. - E tu também não.No molhe próximo que serve de abrigo ao pequeno porto, um grupo de houssins observava também o barco à deriva. Jojo-le-Goëland, um velho houssin com ar de marinheiro e olhar lúbrico, acenou-nos.- Vieram ver? - disse com um sorriso.- Não te metas, Jojo - disse rispidamente Alain. - Os homens têm trabalho para fazer.Jojo riu-se. 76- Vão ter que desistir se tentarem chegar ao barco daqui - disse ele. - A maré está a subir e o vento sopra do mar. Não me surpreendia se se metessem em sarilhos._ Não faças caso - aconselhou Capucine. - Não tem dito outra coisa desde que chegámos.Jojo parecia aflito.- Eu era capaz de o trazer até à praia se quisessem - sugeriu. _ Rebocava-o dos rochedos com o meu Marie Joseph. É fácil trazer um tractor até à areia e depois arrastá-lo.- Quanto? - perguntou Alain, desconfiado.- Bom, há o barco, a mão de obra, o acesso... Digamos unsmil.- O acesso? - Alan estava furioso. - Aonde? Joio fez um sorriso afectado.- A Les Immortelles, como é óbvio. É uma praia privada. Ordens do Sr. Brismand.- Praia privada! - Alain olhou para o Eleanore e franziu o sobrolho. - Desde quando?Joio acendeu com circunspecção o toco de um Gitane.- Só para os clientes do hotel - disse. - Não quer ali gentalha a sujar tudo.Era mentira e toda a gente sabia isso. Vi que Alain calculava as hipóteses de remover o Eleanore à mão.Fitei Jojo.- Eu conheço o Sr. Brismand e não acredito que ele vá cobrar pelo acesso a esta praia.Jojo esboçou um sorriso malicioso.- Porque é que não lhe vais pedir? - sugeriu. - Vamos ver o que é que ele te diz. Não te apresses; o Eleanore não vai sair dali. Alain voltou a olhar na direcção do Eleanore.- Achas que conseguimos trazê-lo? - perguntou a Ghislain. Ghislain encolheu os ombros.- O que é que achas, Ruivo?Flynn, que durante esta troca de palavras desaparecera com a mochila na direcção do molhe, voltara agora sem ela. Olhou para o barco e abanou a cabeça.- Não creio. Não é possível sem o Marie Joseph. É melhor fazerem o que ele diz antes que a maré suba mais.77O Eleanore era pesado, um típico barco para a pesca de ostras, de quilha rasa e com a parte inferior revestida a chumbo para permitir o acesso fácil aos bancos. Com a maré pelas costas, em breve seria praticamente impossível tirá-lo dos rochedos. A espera da maré, uma espera de dez horas ou mais, só iria danificá-lo ainda mais. O sorriso malicioso de Jojo tornou-se mais rasgado.- Acho que conseguimos fazê-lo - disse eu. - Precisamos, de virar a proa na direcção do vento. Podemos usar o reboque, assim que o trouxermos para a zona de águas menos profundas.Alain olhou para mim e depois para os outros salannais. Percebi que estava a avaliar a nossa resistência, a calcular o número de mãos necessárias para a tarefa. Olhei para trás na esperança de ver o rosto de GrosJean entre os demais, mas não havia sinais dele.- Contem comigo - disse Capucine. - Comigo também - disse Damien. Alain franziu a testa.- Vocês, rapazes, fiquem quietos. - disse. - Não quero que se magoem.Voltou a olhar para mim e depois para os outros. Matthias era demasiado velho para participar numa operação arriscada, mas com Flynn, Ghislain, Capucine e eu própria talvez conseguíssemos. Aristide manteve-se à distância, .desdenhoso, embora eu notasse uma expressão ansiosa nos olhos de Xavier.

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Jojo esperava, sorrindo.- Muito bem, o que é que dizem? - O velho marinheiro estava obviamente divertido com o facto de Alain ponderar a minha opinião. Desprezível como a tagarelice de mulheres. É mais uma máxima das ilhas.- Experimentem - insisti. - O que é que temos a perder? Alain continuava hesitante.- Ela tem razão - disse Ghislain, impaciente. - Então? Estás a ficar velho ou quê? A Mado é mais combativa do que tu!- OK - decidiu Alain, por fim. - Vamos fazer uma tentativa.Vi que Flynn olhava para mim.- Acho que arranjaste um admirador - disse com um sorriso, saltando lesto para a areia molhada.Devolvi-lhe um olhar de desaprovação. 78- Estou a ver que já vendeste a tua pescaria - comentei.- Deixa-te disso - disse Flynn. - Não me vais dizer que não terias feito o mesmo se estivesses no meu lugar.- Claro que não. É pesca furtiva.- Claro que é. - O seu sorriso era contagiante.- Claro - disse eu com firmeza, e encaminhámo-nos em silêncio pelas rochas escorregadias em direcção ao Eleanore. Era quase noite, a maré tinha subido quase três quartos quando finalmente nos reconhecemos vencidos e, entretanto, o preço tinha subido mais mil francos. Estávamos enregelados, entorpecidos e exaustos. Flynn perdera a anterior vivacidade e estive quase a ficar esmagada entre o Eleanore e uma rocha enquanto lutávamos para virar o barco. Uma ondulação inesperada da subida da maré, a proa cambou subitamente com o vento e o casco do Eleanore roçou-me o ombro com violência, empurrando-me para o lado e atirando uma chapada de água para a minha cara. Senti o rochedo atrás de mim e houve um momento de pânico quando me apercebi que ia ficar presa ou pior. O medo e o alívio por ter escapado por pouco deixaram-me agressiva. Virei-me para Flynn, que estava mesmo atrás de mim.- Devias estar a segurar a proa! Que diabo aconteceu?Flynn deixara cair as cordas que estávamos a usar para segurar o barco. O seu rosto era uma mancha confusa na luz difusa. Estava afastado e ouvi-o praguejar, de modo muito fluente para um estrangeiro.Ouviu-se um longo som estridente quando o casco do Eleanore roçou mais uma vez as rochas, seguido de uma guinada brusca ao estabilizar-se de novo. Do molhe chegou até nós um grito de troça dos houssins.A voz de Alain atravessou a água, num urro sombrio, até alcançar Jojo.- OK. Ganhaste. Vai buscar o Marie Joseph. - Olhei para ele, que abanou a cabeça. - Não vale a pena. Nunca vamos conseguir. É melhor acabarmos com isto, hem?Joio sorriu trocista. Tinha estado a observar durante todo o tempo fumando uma fiada de beatas de cigarros, sem dizer nada.79Exasperada, comecei a encaminhar-me para a margem. Os outros seguiam-me, debatendo-se nas roupas encharcadas. Flynn era o que estava mais perto, cabisbaixo e com as mãos enfiadas debaixo dos sovacos.- Quase conseguimos - disse eu. - Podia ter resultado. Bastava que tivéssemos conseguido manter aquela maldita proa na posição certa.Flynn resmungou qualquer coisa imperceptível. - O que é que foi?Ele suspirou.- Talvez quando deixares de implicar comigo não te importes de trazer o tractor. Eles precisam dele em Les Immortelles.- Não creio que vamos a lado nenhum durante algum tempo. - Não atires as culpas para'cima de mim. Se te lembrares, eu disse desde o princípio...

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- Já sei. Deste-me uma oportunidade, não deste?A desilusão punha uma nota ríspida na minha voz. Alain levantou os olhos por breves segundos e logo a seguir afastou o olhar. Vi que estava envergonhado por me ter dado ouvidos. O pequenogrupo de mirones houssins começou a aplaudir com ironia. Os salannais estavam com uma expressão sombria. Aristide, que tinha ficado a observar do molhe, olhou-me com desaprovação. Xavier, que permanecera ao lado do avô durante a tentativa de resgate, sorriu-me com uma expressão de desconforto por cima dos aros finos dos óculos.- Espero que aches que valeu a pena - disse Aristide na sua voz brusca.- Podia ter resultado - respondi.- Enquanto querias a toda a força provar que és tão dura como qualquer um, o Guénolé estava a perder o barco dele.,- Pelo menos, fiz uma tentativa - volvi, irritada. O velho encolheu os ombros.- Porque havíamos nós de ajudar um Guénolé? - E apoiando-se pesadamente na bengala, começou a descer o molhe, com Xavier silencioso atrás dele. 80Foram precisas mais duas horas para trazer Eleanore para a praia e mais meia hora para o remover da areia molhada para o reboque. Nessa altura a maré já estava completamente cheia ecomeçava a cair a noite. Jojo fumava os tocos de cigarros e mascava os filamentos de tabaco das pontas, cuspindo de vez em quando para a areia entre os pés. Por insistência de Alain, fiquei a observar o lento processo de resgate um pouco acima da linha de maré, à espera de recuperar a sensibilidade no braço pisado.Finalmente a tarefa chegou ao fim e todos aproveitaram para descansar. Flynn sentou-se na areia seca, com as costas apoiadas na roda do tractor. Capucine e Alain acenderam Gitanes. Daquela ponta da ilha avistava-se nitidamente terra firme, iluminada em contra-luz numa semiclaridade alaranjada. De quando em quando, uma bóia luminosa piscava a sua simples mensagem. O céu frio estava cor de púrpura, leitoso na linha de contorno e começavam a surgir estrelas por entre as nuvens. Sentia através das roupas molhadas o vento cortante que soprava do mar, fazendo-me estremecer. As mãos de Flynn sangravam. Mesmo na luz difusa, conseguia distinguir as palmas das mãos cortadas pelas cordas molhadas. Lamentei ter gritado com ele. Esquecera-me que ele não tinha luvas.Ghislain veio pôr-se ao meu lado. Ouvia a sua respiração junto à nuca.- Estás bem? Apanhaste com uma pancada forte do barco, lá em baixo.- Estou bem.Estás com frio. Estás a tremer. Posso ir buscar... - Deixa lá. Estou bem.Acho que não devia ter sido brusca com ele. As suas intenções eram boas. Mas havia algo na voz dele... um certo proteccionismo embaraçoso. Alguns homens têm comigo esse tipo de reacção. Julgue, ouvir vindo da sombra da roda do tractor o riso baixo e trocista de Flynn. Reparei que ninguém se preocupou com ele.Eu estivera sempre convencida de que GrosJean acabaria por aparecer. Mas agora, com a operação já tão avançada, interrogava-me por que razão se mantivera afastado. Afinal, devia ter ouvido as notícias sobre o Eleanore. Esfreguei os olhos, sentindo-me desolada.81Ghislain continuava a observar-me por cima do seu Gitane. Na semiobscuridade, a t-shirt luminosa emanava um brilho pálido.- Tens a certeza de que te sentes bem? Devolvi-lhe um sorriso cansado.- Lamento. Devíamos ter resgatado o Eleanore. Se ao menos tivéssemos mais gente. - Esfreguei os braços para aquecer. - Creio que o Xavier teria ajudado se o Aristide não estivesse presente. Tenho a certeza que ele queria ajudar.Ghislain suspirou.- Eu e o Xavier entendíamo-nos bem. É evidente que ele é um Bastonnet. Mas não tinha importância nessa altura. Mas agora Aristide não o perde de vista e...- Aquele velho horrível. Qual é o problema dele?

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- Acho que tem medo - disse Ghislain. - Xavier é tudo o que lhe resta. Quer que ele fique na ilha e case com a Mercédès Prossage.- A Mercédès? É uma rapariga bonita.- É verdade. - Estava demasiado escuro para o ver, mas pelo tom da sua voz tive a certeza de que Ghislain corara. Contemplávamos o céu cada vez mais escuro. Ghislain acabou o cigarro enquanto Alain e Matthias inspeccionavam os estragos sofridos pelo Eleanore. Eram mais graves do que receáramos. As rochas tinham-lhe arrancado o fundo, o leme esìáva feito em pedaços e o motor desaparecera. A conta vermelha de boa-sorte que o meu pai costumava pôr em todos os barcos que fazia baloiçava do que restava do mastro. Quando os homens o içaram para a estrada, segui-os, sentindo-me esgotada e fraca. Ao caminhar, reparei que o velho quebra-mar na ponta mais afastada da praia tinha sido reforçado com blocos de pedra que formavam um dique largo que se estendia na direcção de La Jetée.- Aquilo é novo, não é? Ghislain assentiu com a cabeça.- Foi Brismand que o mandou construir. As marés foram más nestes últimos anos. Estavam a levar a areia. Aquelas pedras dão alguma protecção.- É do que precisam em Les Salants - observei, pensando nos estragos sofridos por La Goulue.Jojo fez um esgar de mofa. 82- Vai falar com o Brismand sobre o assunto. Tenho a certeza que ele saberá o que fazer.- Como se nós lhe fôssemos pedir a ele - resmungou Ghislain._ Vocês são uma raça de teimosos, raio de salannais - disse Jojo. - Preferiam que o mar tragasse tudo a pagar um preço justo pelas reparações.Alain olhou para ele. O sorriso de Jojo abriu-se momentaneamente, expondo os dentes fortes.- Eu sempre disse ao teu pai que ele precisava de um seguro _ comentou. - Nunca me quis dar ouvidos. - Olhou para o Eleanore. - Aliás, já há tempos que aquele casco estava uma desgraça. Comprem qualquer coisa nova. E moderna.- O barco está óptimo - disse Alain, sem morder o isco. - Estes barcos velhos são quase indestrutíveis. Parece pior do que está. Necessita de uns consertos e de um motor novo...Jojo riu e abanou a cabeça.- És mesmo um salannais. Com a cabeça cheia de pedras. Vai lá remendá-lo, então. Custa-te dez vezes mais do que vale. Queres saber? Queres saber quanto é que eu ganho num só dia durante a estação, com os passeios turísticos?Ghislain respondeu com um olhar ameaçador.- Se calhar foste tu que tiraste o motor - disse em tom de desafio - para o venderes numa das tuas viagens até à costa. Andas sempre metido em negociatas. Ninguém faz perguntas.Jojo mostrou os dentes.- Estou a ver que vocês, os Guénolés, continuam a ter muita lábia. Já o teu avô era assim. Diz-me cá, qual foi o resultado daquela acção contra os Bastonnets? O que é que vocês ganharam com aquilo, hem? E quanto é que te custou, sabes? E ao teu pai? E ao teu irmão?Ghislain baixou os olhos, embaraçado. É um facto conhecido em Les Salants que o processo Guénolé-Bastonnet se arrastou durante vinte anos e arruinou ambas as partes. A origem, uma dis puta quase esquecida por causa de uns bancos de ostras em La Jetée, tornou-se académica muito antes de chegar ao fim, porque os bancos de areia movediços invadiram o território disputado, mas as83hostilidades jamais cessaram, passando de geração a geração como que para compensar a herança delapidada.- O motor provavelmente foi arrastado para a baía - disse Jojo, fazendo um gesto indolente na direcção de La Jetée. - Ou isso, ou então vão encontrá-lo em La Goulue, se escavarem bem fundo. - Cuspiu para a areia um pedaço de tabaco mascado. - Ouvi dizer que a noite passada também perderam a santa. Vocês são uns tipos descuidados, não são?Alain manteve a calma com dificuldade.

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- Para ti, Jojo, rir é fácil. Mas a sorte muda, segundo dizem, mesmo aqui. Se vocês não tivessem esta praia...Matthias fez um gesto de assentimento.- É verdade - rosnou. O sotaque devinnois do velho era tão cerrado que até eu tinha dificuldade em acompanhar as suas palavras. - Esta praia é a vossa sorte. Não se esqueçam disso. Podia ter sido nossa.O riso de Jojo assemelhava-se a um crocitar.- Vossa! - troçou. - Se fosse vossa já a tinham mandado às urtigas há anos, como fizeram com tudo o resto.Matthias deu um passo em frente, com as`mãos trémulas. Alain pousou a mão preventivamente no braço do pai.- Basta. Estou cansado. E temos que trabalhar amanhã. Houve algo naquela frase que me ficou a martelar na cabeça. Algo que tinha a ver com La Goulue e com La Bouche e com o odor de alho bravo nas dunas. Podia ter sido nossa. Tentei identificar o que era, mas estava demasiado gelada e exausta para pensar com lucidez. E Alain tinha razão; nada disso tinha alterado o que quer que fosse. Eu continuava a ter que fazer na manhã seguinte. 8411Quando cheguei a casa o meu pai já estava deitado. De certo modo senti-me aliviada; não estava em condições de iniciar uma discussão que, tanto quanto sabia, podia tornar-se cáustica. Fui pôr a roupa molhada ao pé da lareira para secar, bebi um copo de água e fui para o meu quarto. Quando apaguei a luz do candeeiro, reparei que tinha sido posta junto à cabeceira uma pequena jarra com flores silvestres: cravos bravos, cardos e rabos-de-coelho. Tratava-se de um gesto absurdo e comovente da parte de um pai tão pouco expansivo, pelo que passei algum tempo acordada a tentar perceber qual o seu sentido até que finalmente o sono me venceu e daí a pouco era manhã.Quando acordei, descobri que GrosJean já tinha saído. Madrugador incorrigível, acordava às quatro no Verão e dava longas caminhadas ao longo da costa. Vesti-me, tomei o pequeno-almoço e segui o seu exemplo.Quando cheguei a La Goulue por volta das nove horas, estava já cheia de salannais. Por instantes interroguei-me por que razão; depois lembrei-me da Sainte-Marine desaparecida, eclipsada no diaanterior pela perda do Eleanore. Nessa manhã recomeçara a busca da santa perdida mal a maré o permitira, mas até àquele momento não havia qualquer sinal dela.Meia aldeia reunira-se na busca. Estavam ali os quatro Guénolés, vasculhando os baixios da baixa-mar, e um grupo de curiosos juntara-se na faixa de seixos por baixo do trilho. O meu pai afastara-se85muito para lá da linha de maré; armado de um comprido rodo de madeira, varria o leito do mar com uma lentidão metódica, detendo-se ocasionalmente para remover uma pedra ou um molho de sargaços.De um dos lados da faixa de seixos, avistei Aristide e Xavier que observavam a operação mas sem nela participarem. Atrás deles, Mercédès tomava um banho de sol e lia uma revista, enquanto Charlotte olhava com a sua habitual expressão de ansiedade. Reparei que embora o olhar de Xavier evitasse a maior parte das pessoas, evitava com maior frequência o de Mercédès. Aristide ostentava um ar sombriamente satisfeito, como se outra pessoa tivesse recebido más notícias.- Que pouca sorte para o Eleanore, hem? Disse-me o Alain que, em La Houssinière, eles estão a pedir seis mil francos para o repararem.- Seis mil? - Era mais do que o barco valia e certamente mais do que os Guénolés podiam pagar.- Hem. - O sorriso de Aristide era amargo. - Até o Ruivo diz que não vale a pena consertar o barco.Olhei a linha do Horizonte: uma faixa amarela entre as nuvens iluminava os baixios desertos com um brilho pálido. Na desembocadura da enseada criada pela maré, alguns pescadores tinham estendido as redes e limpavam-nas laboriosamente das algas. Tinham arrastado o Eleanore um pouco para além dos bancos, onde o barco jazia indolente, expondo as costelas semelhantes às de uma baleia morta, no lodo.

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Atrás de mim, Mercédès virou-se de lado num movimento elegante.- Pelo que ouvi dizer - disse em voz clara - teria sido melhor se ela não tivesse metido o nariz.- Mercédès! - murmurou a mãe. - Isso não se diz. A rapariga encolheu os ombros.- É verdade, não é? Se eles não tivessem perdido tanto tempo...- Pára com isso imediatamente! - Charlotte virou-se para mim, ansiosa. - Desculpa. Ela é extremamente sensível.Xavier mostrava-se pouco à vontade.- Foi um azar - disse-me em voz baixa. - Era um belo barco.86- Pois era. Foi o meu pai que o construiu. - Olhei os baixios onde GrosJean continuava na sua faina. Devia estar a cerca de um quilómetro de distância, o seu vulto minúsculo e obstinado quase invisível na neblina. - Há quanto tempo andam nisto?- Talvez há duas horas. Desde que a maré começou a descer. _ Xavier encolheu os ombros, desviando o olhar. - Neste momento, pode estar em qualquer sítio.Aparentemente, os Guénolés sentiam-se um pouco responsáveis. A perda do Eleanore atrasara as buscas e as correntes transversais de La Jetée tinham feito o resto. Na opinião de Alain, Sainte-Marine estava enterrada algures na baía e só um milagre a podia trazer à superfície.- La Bouche, o Eleanore, e agora isto. - Era Aristide, que continuava a observar-me com uma expressão de ameaçador regozijo. - Diz-me cá, já contaste ao teu pai do Brismand? Ou essa é outra surpresa?Olhei para ele, atónita. - Brismand?O velho arreganhou os dentes.- Perguntava a mim mesmo quanto tempo é que demoraria até ele aparecer por aí a farejar. Um lugar em Les Immortelles em troca da terra? Foi isso que ele te propôs?Xavier olhou para mim e depois para Mercédès e Charlotte. Ambas escutavam atentas. Mercédès deixara de fingir que estava a ler e observava-me por cima da revista, com a boca entreaberta.Sustentei o olhar do velho frontalmente, sem querer ser forçada a mentir.- O que quer que haja ente mim e Brismand é comigo e não vou discuti-lo consigo.Aristide encolheu os ombros.- Então eu tinha razão - disse com amarga satisfação. - Tu estás a fazer o jogo dos houssins.- Não tem nada a ver com, os salannais nem com os houssins - respondi.- Claro, tem a ver com o que é melhor para GrosJean. É o que eles dizem não é? É tudo pelo melhor?87Eu sempre tive mau feitio. Demora a explodir, mas se me sentir acossada e for acumulando, pode ser violento. Sentia-o agora vir à tona.- O que é que sabe disso? - perguntei abruptamente. - Nunca ninguém voltou para cá para olhar por si, pois não? Aristide ficou rígido.- Não tem nada a ver com isso - respondeu. Mas eu não consegui parar.- Não tem feito outra coisa senão criticar-me desde que cheguei. O que não pode compreender é que eu amo o meu pai. Você não gosta de ninguém!Aristide recuou como se eu o tivesse atingido e nesse momento vi-o tal como era; deixou de ser um génio do mal, para se tornar num velho cansado, amargo e receoso. Senti um súbito assomo de piedade e de pesar por ele e por mim. Tinha voltado para casa tão cheia de boas intenções, pensei impotente. Por que razão se tinham deteriorado tão rapidamente?Mas continuava a haver vitalidade em Aristide; encarou-me com uma expressão de desafio nos olhos, embora soubesse que eu tinha ganho.- Se não foi por isso, porque é que voltaste? - disse numa voz débil. - Por que outra razão há-de alguém voltar a não ser que queira alguma coisa?- Tem vergonha, Aristide, velho ganso. - Era Toinette, que se aproximara silenciosamente pelo caminho atrás de nós. Sob as abas da sua quìchenotte, o rosto estava quase invisível, mas conse guia ver-lhe os olhos, vivos como os de um pássaro, brilhantes. - Na tua idade a dares ouvidos a

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bisbilhotices disparatadas? Devias ter mais bom senso.Aristide virou-se, assustado. Toinette, segundo as suas contas, tinha perto de cem anos; ele, com setenta, era comparativamente um jovem. Li no seu rosto um respeito relutante e uma certa hurnilhação.- Toinette, o Brismand esteve lá em casa... - começou a dizer.- E porque é que não havia de estar? - A velha deu um passo em frente. - É da família da rapariga. Então? Queres que ela se88preocupe com as vossas antigas rixas? Não é isso que tem dado cabo de Les Salants nos últimos cinquenta anos?- Continuo a dizer...- Não dizes nada._ - Os olhos de Toinette fulminaram-no como dois petardos. - E se eu descobrir que tens andado por aí a espalhar essa conversa nojenta, hem...Aristide mostrou-se ofendido.- Estamos numa ilha, Toinette. Não podemos deixar de ouvir coisas. Se o GrosJean descobrir, a culpa não é minha.Toinette olhou para.os baixios e depois para mim. O seu rosto denotava preocupação e eu percebi nessa altura que já era demasiado tarde. O veneno de Aristide já se tinha disseminado. Ignorava quem lhe tinha contado a visita de Brismand e como é que ele tinha podido acertar em tantas coisas.- Não te preocupes. Eu cá me entendo com ele. Ele ouvir-me-á. - Toinette segurou a minha mão entre as dela; eram ressequidas e castanhas como madeira flutuante. - Vem comigo - disse viva mente, arrastando-me consigo pelo atalho. - Não é boa ideia andares por aqui a cirandar. Vem para minha casa. A casa dela era uma construção com uma única divisão no extremo da aldeia. Tinha um aspecto antiquado mesmo pelos padrões da ilha, de paredes de pedra e um tecto baixo de telhas mus gosas assentes em vigas escurecidas pelo fumo. A porta e as janelas eram minúsculas, quase do tamanho de uma casa de crianças, e a casa de banho era um telheiro raquítico ao lado da casa, por detrás da pilha de lenha. Ao aproximarmo-nos, avistei uma cabra a comer a erva que crescia no telhado.- Com que então fizeste uma asneira das grossas - disse Toinette, abrindo a porta da frente.Tive de baixar a cabeça para não bater na verga da porta. - Eu não fiz nada.Toinette tirou a quìchenotte e lançou-me um olhar severo.- Não tentes essa jogada comigo, rapariga. Eu conheço muito bem o Brismand e os esquemas dele. Tentou o mesmo comigo, se queres saber um lugar em Les Immortelles em troca da minha casa.Até me prometeu encarregar-se do funeral. Encarregar-se do funeral!89- Soltou uma risada casquinada. - Respondi-lhe que tencionava viver para sempre! - Virou-se para mim, de novo séria. - Sei como ele é. Era capaz de seduzir uma freira, se tivesse comprador. E tem planos para Les Salants. Planos que não contemplam nenhum de nós.Já tinha ouvido falar nisso antes no Angélo.- Se tem, não imagino quais sejam- disse eu. - Ele tem sido bom para mim, Toinette. Melhor do que a maior parte dos salannais.- Aristide. - A velha franziu o sobrolho. - Não o julgues com demasiada severidade, Mado.- Porque não?- O teu pai não foi o único daqui que sofreu - disse, espetando-me um dedo em riste, e com voz grave. - Aristide perdeu dois filhos, um no mar e o outro por causa da sua teimosia. Isso deixou-o amargo.O seu filho mais velho, Olivier, tinha morrido num acidente de pesca em mil novecentos e setenta e dois. O mais novo, Philippe, vivera os dez anos seguintes numa casa que se transformara num santuário silencioso de Olivier.- Claro que ele descarrilou. - Toinette abanou a cabeça. - Envolveu-se com uma rapariga... uma houssine. Podes imaginar como reagiu Aristide.A rapariga tinha dezasseis anos. Quando percebeu que estava grávida, Philippe entrou em pânico e

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fugiram para o continente, deixando que Aristide e Désirée tivessem de enfrentar os pais fu riosos da rapariga. Depois disso, a simples menção do nome de Philippe fora proibida na casa dos Bastonnet. A viúva de Olivier morrera de meningite alguns anos depois, deixando Xavier, o seu único filho, aos cuidados dos avós.- Xavier é agora a única esperança deles - explicou Toinette, dando eco às palavras de Ghislain. - Xavier consegue tudo o que quer. Tudo, desde que fique aqui.Revi o rosto pálido e inexpressivo de Xavier; os olhos inquietos por detrás dos óculos. Ghislain dissera-me que se Xavier casasse, ficaria ali de certeza. Toinette leu-me os pensamentos.90- É verdade, ele e Mercédès estão meio comprometidos desde crianças Mas a minha neta é muito voluntariosa. E tem as suas ideias.Pensei em Mercédès; na sua expressão irritada, no tom de voz de Ghislain ao falar dela.- E nunca casaria com um rapaz pobre - disse Toinette: - No momento em que os Guénolés perderam o barco, o rapaz deles perdeu qualquer hipótese com ela.Ponderei as suas palavras.- Está a dizer que os Bastonnets afundaram o Eleanore?- Não estou a dizer nada. Não espalho boatos. Mas fosse o que fosse que aconteceu ao barco, tu, mais do que ninguém, não te deves meter nisso.Voltei a pensar no meu pai.- Ele gostava daquele barco - repeti com obstinação. Toinette olhou para mim.- Talvez gostasse, sim. Mas na noite em que P'titjean partiu para a sua última viagem, foi buscar o Eleanore e o barco foi encontrado à deriva no dia em que ele se perdeu no mar e desde então, sempre que o teu pai olhou para ele deve ter visto o irmão ali a chamá-lo. Acredita em mim, ele fica melhor sem o barco. - Toinette sorriu e pegou-me na mão, com os seus dedos pequenos, secos e leves como folhas mortas.- Não te preocupes com o teu pai, Mado. Ele vai ficar bem. Eu hei-de convencê-lo.91

12

Cheguei a casa meia hora depois e percebi que GrosJean estivera lá antes de mim. A porta estava escancarada e mal me aproximei, percebi que alguma coisa não estava bem. Vinha da cozinha um forte cheiro a álcool e ao entrar na sala os meus pés pisaram os vidros de uma garrafa partida de devinnoise.Foi apenas o princípio.Tinha escaqueirado todas as peças de barro e de vidro a que conseguira deitar a mão. Tinha partido todas as chávenas, pratos e garrafas. Os pratos Jean de Bretagne da minha mãe; o serviço de chá; a fiada de cálices de licor que estavam no armário. A porta do meu quarto estava aberta; os caixotes com a minha roupa e os meus livros espalhados pelo chão. A jarra ao lado da cabeceira jazia partida, com as flores espezinhadas no meio dos cacos de vidros. O silêncio era lúgubre, ressoava ainda com o ímpeto da sua raiva.Não era inteiramente novo para mim. Os acessos de fúria do meu pai eram raros mas terríveis, sempre seguidos de uma quietude que durava dias e às vezes semanas. Dizia a minha mãe que eram os silêncios que mais a desgastavam; os longos intervalos de desolação, os momentos em que ele parecia ausente de tudo excepto dos seus rituais - as visitas a La Bouche, as sessões de copos no bar do Angélo, os passeios solitários junto ao mar.Sentei-me na cama, sentindo as pernas subitamente fracas. O que provocara aquela explosão? A perda da santa? A perda do Eleanore? Outra coisa?92Reflecti no que Toinette me contara sobre P'titiean e o Eleanore. Ignorava-o. Tentei imaginar o que o meu pai teria sentido ao saber da notícia. Tristeza, talvez, pela perda da sua criação maisantiga? Alívio por P'titJean poder descansar finalmente? Começava a perceber agora a razão por

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que não participara na operação de salvamento. Queria que o barco se perdesse; e eu, feita louca, tentara salvá-lo.Peguei num livro, um dos muitos que deixara ficar quando me fora embora, e cheirei a capa. Avfúria dele visara especialmente os livros; alguns tinham as páginas rasgadas, outros tinham sido pisados. Eu era a única da família que gostava de livros; a Mãe e Adrienne preferiam revistas e televisão. Não pude deixar de pensar que todo aquele vandalismo constituía um ataque directo contra mim.Só alguns minutos depois é que me lembrei de espreitar o quarto de Adrienne. Claro que estava intacto. GrosJean nem sequer devia ter olhado lá para dentro. Levei a mão `à algibeira, à procura da foto de aniversário. Continuava ali. Adrienne sorria-me através do espaço onde eu estivera, com o rosto meio oculto pela cabeleira comprida. Lembrei-me de que ela recebia sempre um presente no dia do meu aniversário. Naquele ano tinha sido o vestido que usava na fotografia - um vestido branco bordado a vermelho. Eu tinha recebido a minha primeira cana de pesca. Ficara satisfeita, como era evidente, mas às vezes interrogava-me por que razão nunca ninguém me comprava um vestido.Fiquei estendida na cama de Adrienne durante muito tempo, com o cheiro de devinnoise nas narinas e o rosto comprimido contra a colcha cor-de-rosa desbotada. Depois levantei-me. Vi a minhaimagem reflectida no espelho do guarda-vestidos dela: pálida, os olhos inchados, os cabelos escorridos. Olhei-me demoradamente. Em seguida saí de casa, caminhando cuidadosamente por cima dos vidros partidos. Disse para comigo que, fosse o que fosse que se passava com GrosJean, fosse o que fosse que se passava com Les Salants, eu não tinha nada a ver com isso. Ele deixara isso muito claro. Acabava ali a minha responsabilidade.93Dirigi-me para La Houssinière mais aliviada do que queria admitir para mim mesma. Ia repetindo para mim que tinha tentado, Tinha tentado mesmo. Se tivesse tido qualquer espécie de apoio... mas o silêncio do meu pai, a indisfarçável hostilidade de Aristide, até a amabilidade dúbia de Toinette mostravam-me que estava sozinha. A própria Capucine, quando descobrisse quais as minhas intenções, tomaria muito provavelmente o partido do meu pai. Sempre fora afeiçoada a GrosJean. Não, Brismand tinha razão. Alguém tinha de ser razoável. E os salannais, desesperadamente apegados a superstições e a costumes ancestrais enquanto o mar os ia tragando cada vez mais de ano para ano, não eram capazes de 1entender. Teria de ser Brismand. Se eu não era capaz de chamar GrosJean à razão, talvez os médicos de Brismand conseguissem. Fiz todo o longo percurso em direcção a Les Immórtelles, passando por La Bouche, onde a maré começava a subir com um marulhar esbranquiçado e estrepitoso. Para lá de La Bouche, no ponto mais estreito da ilha, pode-se ver a maré subir dos dois lados ao mesmo tempo. Qualquer dia, a língua de terra que une as duas partes de Le Devin será quebrada, separando Les Salants de La Houssinière para sempre. Quando isso acontecer, pensei, será o fim dos salannais.Estava tão imersa nos meus pensamentos que quase não dei por Damien Guénolé, sentado imóvel com as costas apoiadas a uma rocha por cima de mim, a fumar. O rapaz tinha o blusão de cabedal com o fecho éclair puxado até ao pescoço e botas de pesca. O cesto de pesca e a cana estavam pousados ao lado.- Desculpa - disse, quando viu que tinha ficado assustada. Não te queria assustar.- Não faz mal. Não estava à espera de encontrar ninguém aqui.- Gosto deste sítio - disse Damien. - É sossegado. As pessoas deixam-me em paz. - Olhou o mar e os seus olhos reflectiam a mesma tonalidade glauca. - Gosto de ver a maré subir daqui.Parece um exército a marchar. - Aspirou com força o fumo do cigarro, conservando-o na concha das mãos para o proteger do vento. Não olhava para mim, com o olhar fixo nos bancos bordejados de espuma branca de La Jetée e na imensidade pardacenta que94se estendia até ao continente. A sua expressão era ambígua - simultaneamente infantil e surpreendentemente dura.- Dentro de pouco tempo, vamo-nos todos embora, não vamos? - disse num murmúrio. - Todos os

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salannais. Vamos embora e vemo-nos todos livres disto. - Voltou a erguer o cigarro e por momentos vi o seu rosto iluminar-se. - Os houssins é que pensaram bem - acrescentou com determinação. - Uma boa camada de cimento e começar do princípio. Pessoalmente, não posso esperar.Estava a meio caminho de Les Immortelles quando encontrei Flynn que vinha do outro lado. Não esperava encontrar mais ninguém, o caminho à beira-mar era estreito e muito pouco usado, mas ele não pareceu surpreendido ao ver-me. Naquela manhã a sua atitude mudara, e a sua despreocupação jovial dera lugar a uma neutralidade cautelosa e o brilho quase desaparecera dos seus olhos. Não sabia se era por causa do que acontecera na noite passada com o Eleanore e senti um aperto no coração.- Continua a não haver sinais da santa, pois não? - O meu tom despreocupado soou falso até aos meus ouvidos.- Vais a La Houssinière. - Não era uma pergunta, embora percebesse que estava à espera de uma resposta. - Para te encontrares com o Brismand - prosseguiu no mesmo tom neutro.- Toda a gente parece estar muito interessada nos meus movimentos- respondi.- É natural que estejam.- O que queres dizer? - A minha voz soou ríspida.- Nada. - Fez menção de continuar o seu caminho, afastando-se para o lado para eu passar, com os olhos fitos noutro ponto. De súbito, pareceu-me muito importante impedi-lo de se afastar. Pelo menos ele compreenderia o meu ponto de vista.- Por favor. Tu és amigo dele - comecei. Sabia que ele compreendia a quem me estava a referir.Manteve-se calado por momentos. - E então?- Então talvez possas falar com ele. Convencê-lo de qualquer maneira.95- Como? Convencê-lo a ir-se embora?- Ele precisa de cuidados especiais. Eu tenho de o fazer compreender isso. Alguém tem de tomar a responsabilidade. - Pensei na casa... nos vidros partidos... nos livros desmembrados. - Pode magoar-se - disse eu por fim.Flynn olhou para mim e fiquei assustada ao ver a expressão dura dos seus olhos.- Parece razoável - disse com suavidade. Mas tanto tu como eu sabemos que a verdade é outra, não sabemos? - Sorriu, mas o seu sorriso não era agradável. - E tem a ver contigo. Toda essa conversa sobre responsabilidade... ao fim e ao cabo é disso que se trata. Daquilo que te convém a ti.Tentei dizer-lhe que não era assim. Mas as palavras que soaram tão naturais quando Brismand as proferiu, saídas da minha boca apenas soavam a falso e inúteis. Eu sabia que Flynn achava isso; que o que eu estava a fazer era por mim, para minha própria segurança, senão mesmo como uma espécie de vingança de GrosJean por todos aqueles anos de silêncio. Tentei dizer-lhe que não era assim. Eu tinha a certeza que não era.Mas Flynn já não estava interessado. Com um encolher de ombros e um aceno de cabeça, afastou-se pela vereda, rápido e silencioso como um pescador furtivo, deixando-me para trás com uma irritação e uma confusão crescentes. Quem diabo era ele, ao fim e ao cabo? O que lhe dava o direito de me julgar?Ao chegar a Les Immortelles, descobri que a minha irritação em vez de abrandar aumentara. Já não confiava em mim para ir falar com Brismand, meio receosa de que a primeira palavra amávelabrisse a comporta de lágrimas que ameaçavam sair desde o dia da minha chegada. Decidi deambular pelo molhe, desfrutando o marulhar tranquilo da água e os pequenos barcos de recreio que. atravessavam a baía. Ainda era cedo para os turistas; apenas alguns estavam na parte de cima da praia, por baixo da esplanada, onde uma fiada de barracas de praia pintadas de fresco se acocoravam na areia branca.Apercebi-me no outro lado da rua de um rapaz que me observava do selim de uma moto japonesa flamejante. Cabelos compridos96caídos sobre os olhos, um cigarro displicente entre os dedos, jeans justos, blusão de cabedal e botas de moto. Demorei algum tempo a reconhecê-lo: Joel Lacroix, o filho elegante e muito mimado do

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único polícia da ilha. Deixou a moto junto à berma do passeio e atravessou a estrada na minha direcção.- Não és daqui, pois não? - perguntou, aspirando uma fumaça do cigarro. Era evidente que não se lembrava de mim. E, afinal, porque é que se havia de lembrar? A última vez que falara com ele andávamos na escola e ele era alguns anos mais velho do que eu. Mirou-me apreciativamente, arreganhando os dentes num sorriso.- Se quiseres, posso servir-te de guia - sugeriu. - Mostrar-te algumas coisas, o que há. De qualquer modo, não há muito que ver. - Fica para outra vez, obrigada.Joel atirou o cigarro com um piparote para o outro lado da rua. - Onde é que estás hospedada, hem? Em Les Immortelles? Ou tens parentes por cá?Por qualquer razão, talvez pela sua expressão especulativa, senti-me relutante em revelar-lhe quem era.- Estou em Les Salants.- Deves gostar da vida dura, hem? Lá para ocidente no meio das cabras e dos pântanos salgados? Sabes que metade deles nasceram com seis dedos em cada mão? Famílias muito chegadas. -Rodou os olhos, depois olhou-me mais atentamente, demorando a reconhecer-me. - Eu conheço-te - disse por fim. - És a rapariga dos Prasteau. Monique... Marie...- Mado - disse eu.- Ouvi dizer que tinhas voltado. Não te reconheci.- E porque é que havias de reconhecer? Nunca fomos amigos, Pois não?Joel repuxou o cabelo para trás, embaraçado.- Então voltaste para Les Salants? Há gente para tudo. - A minha indiferença arrefecera o seu interesse. Acendeu outro cigarro, usando um isqueiro de prata Harley-Davidson quase tão grande como o maço de Gitanes. - Cá por mim, prefiro a cidade. Qualquer dia monto-me na moto e raspo-me. Vou para qualquer lado menos ficar aqui. Ninguém me verá mais a rondar Le Devin o resto da minha vida. - Enfiou o isqueiro no bolso e atravessou a97rua em passo gingão em direcção à Honda, deixando-me outra vez sozinha defronte das barracas da praia.Descalçara os sapatos e sentia debaixo dos dedos dos pés a areia já quente. Tinha consciência uma vez mais da sua espessura. As marcas deixadas na noite anterior pelo tractor ainda eram visí veis. Lembrei-me como as rodas do reboque se tinham atolado na areia quando tentávamos puxar o Eleanore danificado para a estrada, como tinha cedido sob a conjugação de forças; e o cheiro a alho selvagem nas dunas...Parei. Aquele cheiro. Também tinha pensado nele naquele momento. Por qualquer razão, nessa altura tinha-o associado a Flynn e com algo que Matthias Guénolé dissera, com as mãos trémulas deraiva por causa de qualquer comentário de Jojo-le-Goëland, algo acerca de uma praia.Lembrei-me. Podia ter sido nossa.Porquê? A sorte muda, dissera ele. Mas porquê mencionar a praia? Continuava a esquivar-se; sentia o aroma de tomilho e de alho bravo e o cheiro salgado das dunas. Paciência, não era importante. Caminhei até à água, que começava a subir, mas devagar, escoando-se suavemente pelos veios abertos na areia, infiltrando-se nas cavidades debaixo das rochas. À minha esquerda, não longe do molhe, duas crianças trepavam pelo dique, recentemente reforçado com blocos de pedra formando um amplo quebra-mar que se estendia por uma centena de metros. Ouvia os seus gritos, semelhantes aos guinchos das gaivotas, no ar límpido. Tentei imaginar o que uma praia teria significado para Les Salants, o comércio que teria trazido consigo, a infusão de vida. A vossa sorte é a praia, dissera Matthias. Brismand a Raposa fazia jus ao nome mais uma vez.As rochas que formavam o quebra-mar ainda estavam lisas e libertas de lapas e de plantas marinhas. Na extremidade mais próxima tinha talvez uns dois metros de altura; na extremidade maisafastada a altura era menor. A areia tinha-se acumulado ali, depositada pela corrente. Ouvia as duas crianças a brincar ali, atirando mãos-cheias de algas uma à outra numa excitação barulhenta. Olhei para trás para as barracas da praia. A única barraca sobrevivente em La Goulue tinha sido colocada

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muito acima do nível do chão recordava as longas estacas, semelhantes às patas de um insecto,98fixas na rocha. As barracas de Les Immortelles estavam fixas na areia, mal ficando espaço por baixo para se poder rastejar.Reparei que o areal da praia aumentara.E de repente, percebi: o cheiro a alho bravo intensificou-se e ouvi Flynn a dizer-me que Toinette se lembrava de "um molhe, de uma praia e tudo" em La Goulue. Enquanto contemplava a barraca da praia, interrogava-me para onde teria ido toda aquela areia.As crianças continuavam a atirar algas. Havia uma quantidade de algas na ponta mais afastada do quebra-mar; não tantas como em tempos em La Goulue, mas em Les Immortelles provavelmente vinha alguém todos os dias para as limpar. Ao aproximar-me reparei que havia tiras de um vermelho escuro no meio dos castanhos e verdes, um vermelho que me recordava algo. Remexi-o com o pé, removendo a camada de algas que o cobria.Foi então que o reconheci. Tinha sido muito maltratado pela corrente, a seda estava esfiapada e os bordados rasgados, e tudo coberto de areia molhada. Mas era impossível qualquer engano. A veste cerimonial de Sainte-Marine, perdida na noite do festival e arremessada à costa, não em La Goulue, a Sôfrega, como seria de esperar, mas ali, em Les Immortelles, a boa sorte de La Houssinière. Trazida pela maré.A maré.De repente apercebi-me que estava a tremer, mas não de frio. Tínhamos responsabilizado o vento sul por todos os nossos infortúnios, mas de facto foram as marés que mudaram; as marés que emtempos traziam o peixe a La Goulue e que agora a despojavam de tudo o que tinha; as marés que invadiam a pequena enseada até à povoação, quando em tempos a Pointe Griznoz nos protegia.Fiquei a olhar o pedaço de seda durante muito tempo, quase sem ousar respirar. Eram tantas as associações, tantas as imagens. Pensei nas barracas de praia, na areia, no quebra-mar original.Quando fora construído? Quando é que a praia e o molhe de La Goulue foram arrastados pelas águas? E agora esta construção recente, edificada sobre a antiga há tão pouco tempo que as lapas ainda nem sequer se tinham instalado.Uma coisa leva a outra; pequenas conotações, pequenas alterações. As marés e as correntes podem mudar rapidamente numa ilha tão pequena e arenosa como Le Devin; e o efeito de qualquer99mudança pode ser devastador. As marés fortes que arrastaram a areia, contara-me Ghislain na noite da salvação do Eleanore. Brismand estava a proteger os investimentos que fizera.Brismand fora simpático comigo, porque estava preocupado com as inundações. E manifestara interesse pelas terras de GrosJean. Oferecera-se para comprar também a casa de Toinette. Quantos outros é que teria abordado ainda?A maré muda sem pedir autorização. É um axioma da ilha. Porém o mar não é uma força inteiramente arbitrária. Às vezes pode ser previsível e até, em certa medida, controlado. No entanto,os salannais manifestam um desinteresse notável em relação às causas e efeitos do que os rodeia. Estudar as marés é para eles uma perda de tempo. Talvez tenha sido por isso que as descuraram durante tanto tempo. Olhei uma vez mais o bocado de seda rasgada que fizera parte do hábito cerimonial de Sainte-Marine. Um indício demasiado pequeno para me fazer chegar a uma conclusão de tamanha importância. Porém, a partir do momento que o meu espírito estabelecera a associação, essa ideia não me iria abandonar. As medidas de protecção de Brismand teriam de algum modo virado a maré contra Les Salants? E, se assim fosse, teria ele consciência disso?100

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O meu primeiro impulso foi ir directamente falar com Brismand. Mas, depois de reconsiderar, decidi não o fazer. Antevia o seu olhar de surpresa, o brilho de humor; podia ouvir a vibração forte do seu riso enquanto tentava explicar-lhe as minhas suspeitas. E mostrar-se-ia atencioso comigo,

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quase como um pai. Senti-me detestável pelo simples facto de suspeitar dele.Porém, a convicção de que as obras realizadas em La Houssinière tinham provocados os danos em Les Salants era demasiado forte para ser ignorada. Quanto mais pensava nisso mais me parecia tratar-se de uma simples equação; mas observando e constatando os efeitos, a coisa tornava-se demasiado óbvia.Capucine e Toinette não manifestaram o mínimo interesse pela minha descoberta. Tinha havido mais inundações durante a noite e reinava menos boa disposição do que o habitual no Angélo, com os salannais a afogarem as mágoas num silêncio soturno.- Ainda se tivesses encontrado a santa... - disse Toinette com um sorriso que lhe pôs a descoberto os dentes descarnados. - Ela é a boa sorte de Les Salants, e não uma praia qualquer que existiuaqui há trinta anos atrás. E não me vais dizer que a Sainte-Marine percorreu este caminho todo até Les Immortelles, pois não? Isso seria um milagre.Era verdade que ainda não havia qualquer sinal da santa nem na Pointe, nem sequer em La Goulue. O mais provável era que estivesse enterrada, disse Toinette, soterrada debaixo do lodo da101baixa-mar ao largo de La Griznoz e que fosse descoberta daí a uns vinte anos por uma criança que andasse a cavar à procura de mexilhões... e isso, se é que alguma vez viesse a ser encontrada.O sentimento geral na aldeia era de que a santa abandonara Les Salants. Os mais supersticiosos prenunciavam um ano negro que aí vinha; mesmo os habitantes mais novos mostravam-se abatidos com o seu desaparecimento.- A festa de Sainte-Marine era a única coisa que fazíamos com espírito de comunidade - explicava Capucine, despejando uma dose generosa de devinnoise na chávena de café. - Era a única oca sião em que tentávamos manter-nos unidos. Agora está tudo a esboroar-se e não podemos fazer nada.Fez um gesto na direcção da janela, mas não precisei de olhar lá para fora para perceber o que queria dizer. Tanto o tempo como a pesca não tinham melhorado. As marés altas de Agosto estavam a chegar ao fim, mas Setembro traria marés piores e o equinócio de Outubro significava tempestades que iriam varrer o Atlântico e a ilha. A Rue de 1'Océan era um lamaçal completo. Tal como o Eleanore, muitos dos outros platts tinham sido arrastados para o largo, apesar de dragados muito para lá da linha de maré. E pior do que tudo, as cavalas pareciam ter desaparecido por completo e a pesca encontrava-se num impasse. Para agravar a situação, os pescadores de La Houssinière atravessavam um período de prosperidade jamais vista.- É uma maldição infame - declarou Aristide, numa mesa próxima. - Aqueles malditos houssins, hem. Tiraram-nos tudo. O porto, a cidade, e agora até o peixe. Dentro de pouco tempo nãotemos nada a que nos agarrarmos a não ser as rochas. - Mudou a perna de pau para uma posição mais confortável e emborcou um bom trago de devinnoise.- Em La Houssinière os negócios correm bem - comentou Omer do outro lado da mesa. - A minha Mercédès diz que carregam camiões de peixe. Há gente com muita sorte.- Sorte? - Desta vez era Matthias Guénolé, que estava a beber, carrancudo e solitário, a um canto do bar. - Isto não tem nada a ver com sorte. O que eles têm é dinheiro; muito dinheiro e defesas sólidas. Nós já nos contentávamos com um pouco de ambos.102- Lá vens tu outra vez com essa história! - explodiu Aristide, desdenhoso. - Pareces uma velha. - Lançou-me um olhar carregado; Aristide não escondia a sua convicção de que não devia serpermitida a entrada a mulheres no Angélo. - De qualquer modo, quem é que precisa de sorte? Se é dinheiro que tu queres, podes arranjar um empréstimo junto dos teus amigos de La Houssinière.Era um antigo pomo de discórdia entre eles, cada um acusando o outro de estar aliado ao inimigo.Matthias levantou-se. O seu comprido bigode estremecia.- Achas que eu aceitava dinheiro do Brismand, hem? Achas que eu me ia vender a ele?- Foste tu quem falou em defesas e não eu!Os dois velhos, ambos de pé, olhavam-se como profetas rivais. Omer, que estivera a ouvir, interveio.- Vocês os dois, já chega. - O seu rosto cordial estava invulgarmente tenso. - Vocês não são os

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únicos com problemas. Aristide pareceu levemente comprometido; apesar dos esforços de Omer para a proteger com sacos de areia, a casa dos Prossage fora uma das mais seriamente atingidas pelas inundações.- Tens razão - acrescentou Toinette. - Estes dois gansos velhos preferiam ver Les Salants afundada a esquecerem as rixas nem que seja por um minuto.Aristide voltou a sentar-se com um gesto de indiferença.- Diz isso ao Guénolé - replicou secamente. - É ele quem fala em vender, não sou eu.Devia ter sido mais cautelosa e não me intrometer, mas não pude deixar de o fazer. A minha descoberta em Les Immortelles estava ainda tão nítida no meu espírito que queria que todos osoutros a vissem. Pensava que era uma mensagem de esperança, a prova evidente de que podíamos construir a nossa própria sorte.- Não vejo como é que proteger Les Salants equivale a vender-se - disse eu, tão serenamente quanto possível.Aristide olhou-me com desdém.- Lá começa ela - declarou em voz alta, batendo com a bengala na perna da mesa. - Toc, toc, toc. Eu sabia que não ia tardar muito!Estava decidida a não me irritar com ele.103- Qualquer um pensaria que não se preocupam com o que possa acontecer aqui - disse eu - desde que os houssins não entrem cá.- Hem. - O velho afastou-se numa atitude de indiferença.E a ti que te interessa? Tu estás bem, tens o Brismand para olhar por ti.A referência a Brismand fez-me sentir pouco à-vontade. Eu tinha a certeza que ele ignorava os efeitos em Les Salants das protecções de Les Immortelles, mas, mesmo assim, senti-me relutanteem falar dessa ligação a Aristide, que presumiria imediatamente o pior.- Fizeram do Brismand uma espécie de demónio. Talvez seja altura de ver as coisas de forma correcta. Aceitar a ajuda dele em vez de lhe fazer guerra.- Ele não nos pode ajudar - disse Aristide sem se voltar. - Ninguém pode.- Não o entendo! - exclamei. - O que aconteceu a Les Salants? Está tudo num caos, a estrada meio alagada, os barcos levados pelas águas, as casas a cair. Porque é que ninguém faz nada? Porque é que ficam sentados à espera para verem o que acontece?- E o que é que podemos fazer, hem? - disse Aristide por cima do ombro. - Virar a maré como o Rei Canuto?- Pode-se fazer sempre qualquer coisa - rebati eu. - Por exemplo, defesas contra o mar, como em Lu Houssinière. Sacos de areia, pelo menos, para proteger a estrada.- É inútil - resmungou o velho, mudando a perna de pau, impaciente. - Não se pode controlar o mar. É inútil. É como cuspir para o vento.Sabia-me bem o vento na cara enquanto caminhava desconsoladamente pela Rue de L'Océan. De que servia tentar ajudar? De que servia o que quer que fosse, se Les Salants se recusava a mudar? esse estoicismo obstinado que caracteriza os salannais, um traço que não tem a ver com confiança em si mas com fatalismo e superstição. Que dissera ele? É como cuspir para o vento. Apanhei urna pedra do chão e arremessei-a o mas longe que pude contra o vento; foi cair numa moita de esparto, perdendo-se. Por instantes pensei104na minha mãe, em como todo o seu entusiasmo e boas intenções se tinham desgastado, deixando-a cáustica, ansiosa e cheia de pensamentos amargos. Também ela amara a ilha. Durante algum tempo.Mas eu tenho a obstinação do meu pai. Ela falava muitas vezes nisso, nas nossas noites no pequeno apartamento de Paris. Adrienne era mais parecida com ela, costumava dizer; uma rapariga afec tuosa e sociável. Eu tinha sido uma criança difícil, retraída e esquiva. Se ao menos Adrienne não tivesse sido obrigada a mudar-se para Tânger...Eu não reagia a es-sas lamúrias. Nem sequer valia a pena tentar. Há muito tempo que deixara de chamar a atenção para o que era óbvio, para o facto de Adrienne raramente escrever ou telefonar, e

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que nem sequer a convidara uma única vez para a ir visitar. Adrienne não fora obrigada a ir para parte nenhuma, era como se ela e Marin quisessem criar a maior distância possível entre eles e Le Devin. Mas para a minha mãe, o silêncio de Adrienne era apenas uma prova da sua devoção à sua nova família. As poucas cartas que recebíamos eram guardadas sofregamente; uma polaróide dos filhos foi ocupar o lugar de honra por cima da lareira. A nova vida de Adrienne em Tânger, romantizada até se transformar num conto de fadas de souks e templos, era o nirvana a que nós duas devíamos aspirar e para onde acabaríamos por ser chamadas.Afastei esses pensamentos desagradáveis. Naquele momento estava sozinha com as minhas descobertas "apenas um pedaço de seda esfarrapada para provar a minha teoria. Necessitava, porém,de mais provas tanto para mim como para os outros, provas com que pudesse confrontar Claude Brismand e, se tudo corresse bem, conseguir a sua ajuda. Pensava que, certamente, se eu conseguisse mostrar-lhe o que ele provocara involuntariamente... demonstrar a sua responsabilidade, ele ver-se-ia forçado a fazer qualquer coisa. Primeiro, dirigi-me a casa. Era o mesmo caos preocupante de antes e, por instantes, quase perdi a coragem. Haveria sempre lugar para mim em Les Immortelles, como me dissera Brismand. Bastava-me pedir-lhe. Imaginei uma cama limpa, lençóis brancos, água quente. Pensei no meu pequeno apartamento parisiense com o chão de parqué e o odor reconfortante a verniz e a cera. Pensei no105café em frente, nas moules frites numa noite de sexta-feira e talvez um cinema mais tarde. O que estava eu a fazer ainda aqui?, perguntei-me. Porque insistia em passar por tudo aquilo?Peguei num dos meus livros, alisando as páginas amarrotadas. Uma história profusamente ilustrada sobre uma princesa que um mágico perverso transformara num pássaro e um caçador... Em criança eu tinha uma imaginação fervilhante, compensando com a minha vida interior o ritmo tranquilo da ilha. Presumira que com o meu pai se passasse o mesmo. Agora não tinha a certeza se queria' saber o que se ocultava por detrás do seu silêncio, se é que havia alguma coisa.Peguei noutros livros, inconsolável por os ver assim espalhados com tamanha negligência, com as lombadas rasgadas sobre os estilhaços de vidro. A minha roupa era menos importante, trouxera pouca comigo e de qualquer modo já fazia tenções de comprar alguma em La Houssinière, mas apanhei-a e meti-a na máquina de lavar. Os poucos papéis que me restavam, o material de desenho de quando era rapariguinha - uma placa de aguarelas estaladas, um pincel - voltei a guardá-los na caixa de cartão que estava ao lado da cama. Foi então que vi algo aos pés da cama; algo brilhante e meio calcado no bocado de tapete que cobria o chão de pedra. Demasiado brilhante para ser vidro, emanava um brilho suave sob a réstia de luz que se filtrava pelos postigos. Peguei no objecto.Era o medalhão do meu pai, em que eu reparara antes, um pouco amolgado agora e com os restos da corrente partida pendendo do fecho. Devia tê-lo perdido no meio do seu acesso de fúria,pensei; talvez ao puxar o colarinho para o desapertar, tivesse partido a corrente sem dar por isso e o medalhão tivesse deslizado por baixo da camisa. Olhei-o com mais atenção. Era prateado, do tamanho aproximado de uma moeda de cinco francos e tinha de um dos lados uma mola para o abrir e fechar. Era na verdade um objecto feminino. Por qualquer razão, lembrei-me de Capucine. Uma recordação.Abri-o, sentindo-me absurdamente culpada, como se estivesse a espiar os segredos do meu pai, e houve qualquer coisa que me caiu na mão: um caracol de cabelo macio. Castanho, como tinha sido 0 seu em tempos, e a minha primeira ideia foi de que talvez fosse do seu irmão. Grosjean não parecia muito dado a romantismos, e tanto106quanto me lembrava nunca se recordava do aniversário da minha Mãe ou do aniversário de casamento, pelo que a ideia de andar agora com um anel de cabelo da minha mãe à volta do pescoço era de tal modo inverosímil que me fez sorrir constrangida. Abri o medalhão e vi a fotografia.Tinha sido recortada com uma tesoura de uma foto maior; um rosto jovem sorria mostrando os dentes, com o cabelo curto seguro com um gancho à frente e grandes olhos redondos... Fiquei a con templá-la, incrédula, analisando-a como se ao fazê-lo pudesse transformar a minha imagem na de

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alguém mais digno. Mas era mesmo eu; a minha fotografia da foto de aniversário, com uma mão pousada na faca do bolo, e a outra saindo da moldura em direcção ao ombro do meu pai. Retirei o original do bolso, que começava a ficar riscado devido a um manuseamento repetido. O rosto da minha irmã parecia-me agora mal-humorado, invejoso, com a cabeça virada num gesto impertinente como a de uma criança pouco habituada a não ser o centro das atenções...Experimentei uma forte emoção que me deixou as faces ruborizadas e o coração a bater descompassado. Afinal fora a mim que ele escolhera, era a minha foto que ele trazia à volta do pescoço com um tufo dos meus cabelos de bebé. Não era a Mãe. Nem a Adrienne. Eu. Julgara-me esquecida, e durante todo o tempo era de mim que ele se lembrava deste modo, que trazia consigo em segredo, como um amuleto de boa sorte. Que importava não ter respondido às minhas cartas? Que importava que não tivesse vontade de falar?Levantei-me, apertando o medalhão com força na minha mão, desvanecidas as dúvidas. Sabia agora exactamente o que tinha de fazer. Esperei que caísse a noite. Por essa altura a maré estava quase cheia, uma boa ocasião para o que tinha em mente. Calcei as botas, enfiei a minha vareuse e saí para as dunas ventosas. Ao largo de La Goulue avistava-se o brilho frouxo da terra firme e a luz vermelha do farol piscando num alerta de poucos em poucos segundos; por toda a parte o mar era luminoso com aquela luz glauca peculiar da107Costa de Jade, com uma luminescência mais viva quando as nuvens deixavam a descoberto um fragmento de lua.Avistei Flynn em cima do telhado do bunker, contemplando a baía; distinguia-o apenas recortado contra o céu. Fiquei a observá-lo durante um momento, tentando perceber o que estava a fazer, mas estava demasiado distante. Apressei-me em direcção a La Goulue, onde a maré não tardaria a mudar.No saco que trazia ao ombro enfiara alguns flutuadores de plástico cor de laranja que os pescadores da ilha usam para as redes da pesca à cavala. Quando era criança, aprendera a nadar com aajuda de um cinto de salvação feito com esses flutuadores e costumávamos usá-los para assinalar os potes de lagostas e os cestos de caranguejos ao largo de La Goulue, indo recolhê-los às rochas na maré vazante e enfiando-os como se fossem contas gigantescas. Era uma brincadeira, mas uma brincadeira a sério; qualquer pescador estava disposto a pagar um franco por cada flutuador recuperado e muitas vezes esse era o único dinheiro que recebíamos. A brincadeira e os flutuadores iriam ajudar-me nessa noite.Postada nas rochas por baixo da escarpa, lancei-os ao mar, trinta ao todo, certificando-me que caíam para lá da linha de rebentação, na corrente aberta. Há tempos atrás, e não há muito, pelomenos metade dos flutuadores seriam trazidos de volta à baía na maré seguinte. Agora... mas a experiência era justamente essa. Fiquei a olhar mais alguns minutos. Estava quente apesar do vento, uma aragem de fim de Verão, e quando as nuvens se dispersaram por cima da minha cabeça, vi a larga faixa da Via Láctea atravessando o céu. Sentindo-me de súbito muito calma, esperei, sob um céu estrelado, esplendoroso e imenso, que a maré mudasse. 108

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Soube pela luz da janela da cozinha que GrosJean regressara. Via a sua silhueta com um cigarro nos lábios, o vulto curvado como um monolito recortado na luz amarelada. Senti um arrepio de medo. Iria falar? Iria enfurecer-se?Não se virou quando eu entrei. Não esperava que o fizesse; permaneceu imóvel no meio dos estragos que causara, com uma chávena de café numa das mãos e um Gitane entre os dedos amarelecidos.- Deixaste cair o teu medalhão - disse eu, colocando-o em cima da mesa, ao pé dele.Julgo ter detectado uma leve alteração na sua postura, mas não olhou para mim. Impassível e pesado como a estátua de Sainte-Marine, parecia insensível.

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- Amanhã vou dar um jeito à casa - disse eu. - Está a precisar de levar uma volta, mas vais voltar a achá-la confortável. Continuava sem responder. Em lugar de irritação sentia uma imensa e súbita pena dele, do seu silêncio triste, dos seus olhos cansados.- Está tudo bem - disse eu. - Vai ficar tudo bem. - Aproximei-me dele e rodeei-lhe o pescoço com os braços, aspirando o antigo cheiro a sal, a suor, a tinta e a verniz, e ficámos assim até o morrão do cigarro cair no chão de pedra lançando faúlhas.109Levantei-me cedo na manhã seguinte e saí à procura das minhas bóias de pesca. Não vi sinais delas nem em La Goulue nem mais acima na enseada de Les Salants; a verdade é que não esperava encontrá-las ali. Eram tempos áridos para a Sôfrega.Estava em La Houssinière antes das seis; o céu estava claro e pálido e viam-se poucas pessoas, na maior parte pescadores. Julguei avistar Jojo-le-Goëland a cavar nos baixios e dois vultos mais afastados, junto à linha de maré, com as grandes redes quadradas que os houssins usam para apanhar camarão. À parte isso, o lugar estava deserto.Descobri o primeiro dos meus flutuadores cor-de-laranja debaixo do molhe. Apanhei-o e continuei a andar em direcção ao quebra-mar, parando de vez em quando para contornar uma pedraou um monte de sargaços. Quando cheguei ao quebra-mar, já tinha recolhido uma dúzia de flutuadores e avistado outros três entalados no meio de rochas, fora de alcance.Ao todo, dezasseis flutuadores. Uma boa pesca. - É um jogo?Virei-me de repente e o meu saco caiu na areia molhada, espalhando o conteúdo. Flynn olhava para os flutuadores com curiosidade. O seu cabelo esvoaçava ao vento como uma bandeira de alerta.- Então, é um jogo?Lembrei-me da sua frieza da véspera. Hoje parecia descontraído, satisfeito consigo mesmo e a expressão explosiva desaparecera dos seus olhos.Não respondi logo. Em vez disso, fiz questão em apanhar os flutuadores e voltar a metê-los, muito devagar, no saco. Dezasseis em trinta. Um pouco mais de metade. Mas o suficiente para confirmar aquilo que eu já sabia.- Não te imaginava como rasteadora a percorrer as praias - disse Flynn, sem deixar de me observar. - Encontraste alguma coisa interessante?Gostava de saber como é que ele me tinha imaginado. Uma rapariga da cidade em férias? Uma intrusa? Uma ameaça? Sentei-me junto à base do quebra-mar e contei-lhe o que tinha descoberto, com a ajuda de desenhos na areia. Estava a tremer, o vento da manhã soprava frio, mas tinha o espírito claro. A prova 110estava ali, tão fácil de identificar desde que se começasse a olhar. Brismand tinha de estar atento agora que eu descobrira. Teria de me ouvir.Flynn escutou tudo com uma desesperante ausência de surpresa. Perguntava a mim mesma por que razão o tinha escolhido a ele, a um estranho, um desconhecido, para lhe contar as minhas novi dades. Era óbvio que não lhe interessava. Para ele todos os lugares eram iguais.- Não te interessa? É nem sequer te importa nada do que se está a passar aqui?Flynn observava-me com uma expressão curiosa.- Então mudaste de ideias, não foi? Da última vez que te ouvi tinhas praticamente lavado as mãos em relação a toda a gente de Les Salants, incluindo o teu pai.Senti o rosto enrubescer.- Isso não é verdade - respondi. - Estou a tentar ajudar. - Bem sei. Mas estás a perder o teu tempo.- O Brismand vai ajudar-me - volvi, obstinada. - Vai ter de me ajudar.- Achas isso? - O sorriso dele não tinha uma sombra de humor.- Se ele não ajudar, então teremos nós que pensar nalguma coisa. Há muita gente na aldeia pronta a dar uma ajuda. Agora já tenho provas.Flynn suspirou.- Não vais conseguir provar nada a essa gente - disse, pacientemente. - A tua lógica ultrapassa-os, não percebem. Preferem ficar sentados sem fazer nada, a rezar e a lamentar-se até

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ficarem com as cabeças debaixo de água. Estás a ver algum deles a pôr de lado as velhas querelas para ajudar a comunidade? E se lho propuseres, pensas que te vão dar ouvidos?Olhei-o de esguelha. Ele tinha razão, evidentemente. Eu própria já tinha visto que era assim.- Posso tentar. Alguém tem de o fazer. Sorriu.- Sabes como é que te chamam na aldeia? La Poule, a galinha . Sempre a chocar alguma coisa. ,111La Poule. Por instantes permaneci calada, demasiado irritada para poder falar. Irritada comigo própria por me preocupar. Irritada com o derrotismo jovial dele. Irritada com a indiferença estúpida e bovina deles.- Vê o lado bom das coisas - disse Flynn, malicioso. -- Pelo menos agora já tens uma alcunha na ilha.

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Nunca devia ter falado com ele, disse para mim própria. Não confiava nele, não gostava dele; porque é que estava à espera que ele entendesse? Enquanto caminhava pela praia deserta em direcção à grande casa branca com o mesmo nome, sentia vagas alternadas de calor e de frio sufocarem-me. Insensatamente, procurara a aprovação dele porque era um estranho, um continental, um homem que encontrava soluções para problemas técnicos. Tinha querido impressioná-lo com as conclusões a que chegara; provar-lhe que não era a metediça que ele achava que eu era. Mas ele limitara-se a rir. A areia rangia sob as minhas botas enquanto galgava os degraus da esplanada; tinha areia debaixo das unhas. Nunca devia ter dado atenção ao Flynn, repetia furiosa. Devia ter confiado no Brismand.Fui encontrá-lo no vestíbulo de Les Immortelles, a passar em revista alguns registos. Mostrou-se encantado ao ver-me e, por momentos, senti um alívio tão grande que estive perigosamente à beirade debulhar-me em lágrimas. Apertou-me nos braços; a sua água-de-colónia era irresistível e a voz estrondosa e cordial.- Mado! Estava mesmo a pensar em ti. Comprei-te um presente. - Eu tinha pousado o saco com os flutuadores no chão de ladrilho. Tentava respirar no seu amplexo sufocante. - Espera um momento. Vou buscá-lo. Penso que é a tua medida.Durante um minuto fiquei sozinha no vestíbulo enquanto Brismand desaparecia numa das salas ao fundo. Depois voltou a aparecer trazendo qualquer coisa embrulhada em papel de seda.113- Vá lá, chérie, abre. A tua cor é o vermelho. Não tenho dúvidas.A Mãe sempre presumira que eu, ao contrário dela e de Adrienne, não estava minimamente interessada em coisas bonitas. Convencera-se disso devido às minhas observações desdenhosas eà aparente despreocupação com o meu aspecto, mas a verdade é que eu desprezava a minha irmã, as suas pin-ups, os seus produtos de beleza e as risadinhas das suas amigas porque sabia que era inútil interessar-me por essas coisas. Era preferível fingir que não queria nada daquilo. Era preferível não mostrar interesse.O papel de seda emitia uns sons estaladiços sob os meus dedos. Por momentos fui incapaz de falar.- Não gostas dele - disse Brismand, de bigode caído como o de um cão triste.A surpresa deixara-me sem fala.- Gosto - consegui balbuciar por fim. - É maravilhoso. Tinha calculado a minha medida com absoluta precisão. E o vestido era lindo: de crepe da China de um vermelho vivo que brilhava à luz fria da manhã. Vi-me com ele em Paris, talvez com umas sandálias de salto alto e com o cabelo solto...Brismand mostrava-se comicamente satisfeito consigo mesmo. - Achei que podia distrair-te o espírito de outras coisas, dar-te um pouco de ânimo.Desviou o olhar para o saco com os flutuadores aos meus pés. - O que é isso, Mado? Andas a vasculhar a praia?Abanei a cabeça. - Investigações.

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Para mim tinha sido fácil contar a Flynn as conclusões a que chegara. Achava muito menos fácil contar a Brismand, embora ele me escutasse sem o menor sinal de divertimento, acenando a cabeça de vez em quando numa atitude interessada sempre que eu sublinhava as minhas descobertas com uma profusão de gestos.- Aqui fica Les Salants. De La Jetée pode-se observar a direcção das principais correntes. Aqui sopra sobretudo o vento de oeste. Aqui, passa a Corrente do Golfo. Sabemos que La Jetée protege a parte oriental da ilha, mas o banco de areia aqui - martelando a palavra com a ponta do dedo - desvia a corrente que passa ao largo da Pointe Griznoz e acaba aqui em La Goulue.114Brismand acenava com a cabeça num encorajamento mudo.- Ou pelo menos assim era dantes. Mas agora mudou. Em vez de parar aqui, passa por La Goulue e pára aqui.- Em Les Immortelles, sim.- Foi por isso que o Eleanore não ficou na angra e foi ter à outra ponta da ilha. Foi por isso que as cavalas foram para outro lado.Ele voltou a assentir com a cabeça.- Mas isto não é tudo - continuei. - Porque é que as coisas estão a mudar agora? O que é que mudou? - Ele pareceu reflectir por breves instantes. Os seus olhos erravam ao longo da linha do mar, reflectindo a luz do sol. - Veja. - Apontei para lá da praia na direcção das defesas recentes. Do local onde estávamos sentados podíamos vê-las nitidamente: a ponta arrebitada do dique virada para leste, com o quebra-mar em ambas as extremidades.- Pode ver como isto aconteceu. Ampliaram o dique o suficiente para fazer aqui um lugar protegido. O quebra-mar impede a areia de ser arrastada. E o dique protege a praia e desvia a corrente um pouco para este lado, trazendo areia de La Jetée, do nosso lado da ilha, para Les Immortelles.Brismand voltou a assentir. Pensei para comigo que ele não devia ter alcançado todas as implicações.- Então, não está a ver o que aconteceu? - perguntei. - Temos de fazer qualquer coisa. Tem de se acabar com isto antes que os danos sejam mais graves.- Acabar? - Ele arqueou uma sobrancelha. - Acabar, pois. Les Salants... as inundações...Brismand colocou-me as mãos nos ombros num gesto paternal e complacente.- Querida Mado. Eu sei que tu estás a tentar ajudar, mas a praia de Les Immortelles tem de ser protegida. Foi sobretudo por isso que construímos ali o quebra-mar. Não posso removê-lo agorasó porque algumas correntes se alteraram. Tanto quanto sabemos, podiam ter mudado de qualquer maneira. - Soltou um dos seus suspiros monumentais. - Imagina um par de gémeos siameses. Às vezes é necessário separá-los para que um deles possa sobreviver. - Ficou a observar-me atentamente para se certificar de que eu entendia o que estava a dizer. - E às vezes a escolha é difícil.115Eu olhava-o fixamente, sentindo-me subitamente entorpecida. Que estava ele a dizer? Que Les Salants tinha de ser sacrificada para que La Houssinière pudesse sobreviver? Que tudo o que estava a acontecer era de algum modo inevitável?Pensei em todos aqueles anos durante os quais se mantivera em contacto connosco, nas longas cartas, nas encomendas de livros, nos presentes ocasionais. Mantendo em aberto as suas opções, sem quebrar o contacto. Protegendo os seus investimentos.- Sabia, não sabia?- - disse eu, devagar. - Soube sempre que isto acabaria por acontecer. E nunca disse uma palavra.A sua atitude, com os ombros vergados e as mãos enterradas nas algibeiras, pretendia transmitir um profundo sentimento de mágoa perante a cruel acusação.- Querida Mado, como podes dizer uma coisa dessas? É claro que foi um azar. Mas estas coisas acontecem. E se é que o posso dizer, só vem reforçar a minha preocupação acerca do teu pai e a minha firme convicção de que ele acabará por se sentir mais feliz noutro sítio.Olhei para ele.

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- Disse-me que o meu pai estava doente. Qual é exactamente o mal dele? - Por instantes, vi-o hesitar. - É o coração? - insisti. - O fígado? Os pulmões?- Mado, eu não sei pormenores e, francamente... - É um cancro? Cirrose?- Como te disse, Mado, não conheço os pormenores. - Mostrava-se agora menos jovial, com os maxilares contraídos numa expressão tensa. - Mas posso mandar chamar o meu médico quando quiseres e ele dar-te-á a sua opinião equilibrada e profissional.O meu médico. Baixei os olhos para o presente de Brismand no seu casulo de papel de seda. A luz do sol lambia a seda cor de fogo Ele tinha razão, pensei; o vermelho era a minha cor. Sabia que podia deixar tudo nas mãos dele. Voltar para Paris... a nova estação na galeria estava prestes a abrir... dedicar-me aos trabalhos do meu novo portefólio. Desta vez algumas paisagens urbanas; talvez alguns retratos. Depois de dez anos, talvez estivesse pronta a mudar de tema.Mas sabia que não ia fazer isso. As coisas tinham mudado: a ilha mudara e com ela qualquer coisa dentro de mim. A nostalgia 116que experimentara por Les Salants durante todo o tempo que estivera ausente tornara-se agora algo mais visceral, mais forte. E só agora compreendia que nada - o meu regresso ao lar, as ilusões, a emoção, a desilusão, a alegria - nada disso tinha acontecido de facto. Até àquele momento eu não tinha realmente regressado a casa.- Eu sabia que podia contar contigo. - Ele tomara o meu silêncio como anuência. - Podias mudar-te para Les Immortelles até as coisas ficarem resolvidas. Não me agrada imaginar-te naquelelugar com GrosJeain. Ofereço-te a minha suite mais bonita. Ofereço-te a casa.Mesmo naquele momento, embora tivesse a certeza de que ele me ocultava a verdade, tinha consciência de um absurdo sentimento de gratidão. Afastei-o.- Não, obrigada - dei por mim a dizer. - Fico em casa.117

16A semana seguinte trouxe uma nova vaga de mau tempo. Os baixios salobros atrás da aldeia ficaram alagados, destruindo dois anos de trabalho de recuperação. A busca da santa teve de ser adiada devido às marés altas, embora só meia dúzia de optimistas ainda acalentassem esperanças de a recuperar. Perdeu-se um segundo barco de pesca; o Korrigane de Matthias Guénolé, o mais antigo barco ainda activo na ilha, encalhado devido a ventos fortes mesmo ao largo de La Griznoz. Matthias e Alain não conseguiram salvá-lo. Até Aristide disse que fora uma desgraça.- Tinha cem anos - lamentava-se Capucine. - Lembro-me de o ver sair quando era rapariga. Com umas belas velas vermelhas. Naquele tempo Aristide tinha o seu Péoch ha Labour e lembro-mede saírem os dois juntos, cada um tentando apanhar o vento primeiro para tomar a dianteira ao outro. Claro que isso foi antes da morte do seu filho Olivier e de Aristide perder a perna. Depois disso o Péoch ficou abandonado no canal até que um Inverno a maré o arrastou e ele nem fez uma tentativa para o salvar. - Encolheu os ombros roliços. - Não o terias reconhecido naqueles tempos, Mado. Era um homem diferente, na força da vida. Nunca conseguiu superar a morte de Olivier. Agora, nunca fala nele.Fora um acidente estúpido. Como sempre. Olivier e Aristide andavam a investigar uma traineira naufragada em La Jetée na maré baixa; o barco virou-se de repente e Olivier ficou preso por baixo da linha de água. Aristide tentou chegar até ele no Péoch, mas118escorregou entre o seu barco e o barco naufragado, esmagando a perna. Gritou por socorro, mas ninguém o ouviu. Três horas mais tarde, Aristide foi recolhido por um pescador, mas nessa altura a maré tinha subido e Olivier afogara-se.- Aristide ouviu tudo - disse Capucine, despejando umas gotas de crème de cassis no café. - Contou que ouvia Olivier a gritar para o soltarem dali, que ouvia os seus gritos e berros enquanto a água subia.Nunca recuperaram o corpo. A maré arrastou a traineira para o Nid'Poule antes de- a poderem

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inspeccionar e afundou-se muito longe e muito depressa. Hilaire, o veterinário local, amputou a perna de Aristide (não há médico em Les Salants e Aristide recusou-se a ser tratado por um houssin), mas afirma que continua a senti-la ainda hoje, que sente comichões e dores à noite. Atribui isso ao facto de Olivier nunca ter sido sepultado. No entanto, eles enterraram a perna. Aristide insistiu, e ainda hoje se pode ver a sepultura, na extremidade de La Bouche. O local está assinalado por um poste de madeira, onde alguém escreveu: Aqui jaz a Perna do Velho Bastonnet, Marchando em Frente para a Glória!! Por baixo alguém plantou o que parecem ser flores, mas que olhando com mais atenção revela ser uma fiada de batatas. Capucine suspeita que foi um Guénolé.- Depois, o outro filho, Philippe, foi-se embora - continuou ela. - E Aristide entrou em litígio no tribunal com os Guénolés, e a Désiree, agora sem filhos, passou a tomar conta de Xavier. O pobree velho Aristide nunca mais voltou a ser o mesmo depois disso. Nem sequer quando eu lhe disse que não era a perna dele que me interessava. - Soltou uma risadinha lasciva, mas cansada. - Outro café-cassis?Abanei a cabeça. No exterior da rulote ouvia Lolo e Damien aos berros um com o outro nas dunas.- Ele era um belo homem, nessa altura - recordava Capucine. - Eram todos belos, naquele tempo, todos os meus rapazes. Belíssimos, creio. Um cigarro? - Acendeu um com destreza, aspirando o fumo com um murmúrio de prazer. - Não? Devias fumar urn. Acalma.- Não acho - volvi, sorrindo.119- Como quiseres. - Encolheu os ombros, meneando os ombros roliços sob a seda do roupão. - Tenho necessidade dos meus pequenos vícios. - Virou a cabeça na direcção da caixa dos bom bons de ginja ao pé da janela. - Passas-me outro, por favor, minha querida?Era uma caixa nova, em forma de coração, ainda meio cheia.- Um admirador - disse ela, enfiando um dos chocolates na boca. - Ainda tenho os meus encantos, apesar da idade. Come um.- Não, acho que tu os aprecias mais do que eu - respondi.- Minha querida, eu aprecio tudo mais do que tu - disse Capucine, revirando os olhos.Ri-me.- Já vi que as inundações não te afectam.- Boh. - Voltou a encolher os ombros. - Posso sempre mudar de sítio se for preciso. Deve dar um bocado de trabalho mudar esta caranguejola depois de tantos anos, mas cá me arranjarei. - Abanou a cabeça. - Não, não sou eu que tenho de me preocupar. Quanto aos outros...- Eu sei. - Já lhe tinha falado das mudanças em Les Immortelles.- Mas parece uma coisa tão insignificante - protestou. - Ainda não consigo perceber como é que um quebra-mar de poucos metros pode provocar uma alteração tão grande.- Não é preciso muito para desviar a corrente apenas uns metros - disse eu. - Parece não ter grande importância e, no entanto, pode provocar alterações a toda a volta da ilha. É como as pedra de dominó quando caem. E o Brismand sabe isso. Se calhar até o fez intencionalmente, se calhar tinha congeminado um plano. Contei-lhe a analogia com os gémeos siameses, feita por Brismand. Capucine assentiu, e enquanto ia ouvindo, consolava-se com mais bombons de ginja.- Minha querida, eu sou capaz de acreditar no que quer que seja que tenha a ver com esses malditos houssins - disse, regaladamente. - Hum. Devias experimentar um destes. Há muitos mais donde estes vieram. - Abanei a cabeça, impaciente. - Mas para que havia ele de querer terrenos alagados? - continuou Capucine. - Têm tanta serventia para ele como para nós.120Apesar dos avisos de Flynn, eu já tentara informar os salannais durante toda essa longa semana. Como o café de Angélo parecia ser o melhor lugar para espalhar a notícia, fui lá por diversas vezes, na esperança de suscitar o interesse entre os pescadores. Mas havia sempre jogos de cartas, torneios de xadrez, jogos de futebol na televisão por satélite, e tudo isso tinha precedência, e sempre que eu insistia respondiam-me com olhares evasivos, com acenos de cabeça delicados e expressões irónicas que gelavam as minhas boas intenções e me faziam sentir ridícula e furiosa. As vozes calavam-se quando eu entrava. As costas curvavam-se e as caras assumiam expressões taciturnas.

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Quase os podia ouvir sussurrar, como os miúdos à aproximação de uma professora severa: "Lá vem La Poule. Depressa. Finjam que estão ocupados".A hostilidade de Aristide em relação a mim não se alterara. Fora ele que me alcunhara de La Poule; e os meus esforços para industriar os salannais sobre as alterações das correntes apenascontribuíram para intensificar o seu antagonismo. Passara a saudar-me com um sarcasmo inabalável sempre que me cruzava com ele. "Cá está ela. La Poule. Tiveste outra ideia para nos salvar a todos, hem? Vais conduzir-nos à Terra Prometida? Vais fazer-nos a todos milionários?""Lá vem La Poule. Qual é o plano para hoje? Virar a maré? Parar a chuva? Ressuscitar os mortos?"Segundo me disse Capucine, o azedume dele tinha a ver em parte com o aparente insucesso do neto junto de Mercédès Prossage, apesar dos reveses do rival. A timidez inibidora de Xavier na presença da rapariga constituía um obstáculo ainda maior do que a perda do ganha-pão dos Guénolés e o hábito de Aristide de espiar constantemente Mercédès e carregar o sobrolho sempre que a rapariga falava com qualquer homem que não fosse Xavier só piorava as coisas. Por conseguinte, Mercédès continuava tão mal-humorada e desdenhosa como sempre; e embora eu a visse muitas vezes sentada perto do canal à chegada dos barcos, parecia não prestar muita atenção a nenhum dos seus jovens admiradores, limitando-se a limar as unhas ou a ler uma revista, usando uma diversidade de roupas reveladoras que não deixavam espaço à imaginação.121Ghislain e Xavier não eram os únicos a olhá-la com adoração. Reparei, divertida, que também Damien passava bastante tempo na enseada, a fumar cigarros, com a gola subida para o proteger do vento. Lolo brincava sozinho nas dunas sem ele, com ar desconsolado. Claro que a Mercédès passava completamente despercebida a paixão de Damien, ou então não mostrava sinais de dar por ela. Ao observar o regresso das crianças da escola na carrinha de La Houssinière, notei que Damien muitas vezes viajava sozinho, mantendo-se taciturno mesmo no meio dos amigos. Por diversas vezes, reparei nas nódoas negras na cara.- Acho que a miudagem dos houssins fazem passar um mau bocado aos nossos na escola - comentei com Alain, essa noite no Angélo. Alain, porém, não se mostrou compassivo. Desde a perda do Korrigane, o barco do pai, que se mostrava azedo e pouco comunicativo, ofendendo-se por tudo e por nada.- O rapaz tem de aprender - retorquiu, abrupto. - Sempre houve brigas entre os miúdos. Tem de saber viver com isso tal e qual como todos nós.Respondi que achava uma linha demasiado dura para um rapaz de treze anos.- Quase catorze - disse Alain. - As coisas são assim. Houssins e salannais. Um cesto de caranguejos. Sempre foi assim. O meu pai tinha de me espancar para me obrigar a ir para a escola, tal o medo que eu tinha. E sobrevivi, não sobrevivi?- Sobreviver talvez não chegue - disse eu. - Talvez devêssemos reagir.Alain esboçou um sorriso pouco agradável. Atrás dele, Aristide levantou os olhos e agitou os braços no ar, num gesto de aplauso. Senti-me ruborizar, mas ignorei-o.- Sabes o que os houssins estão a fazer. Viste as protecções em Les Immortelles. Se houvesse uma coisa parecida em La Goulue, talvez...- Hem! Outra vez o mesmo! - vociferou Aristide. - Até o Ruivo diz que não vale a pena!- Sim, outra vez o mesmo! - Agora estava irritada e várias pessoas levantaram a cabeça ao som da minha voz. - Podíamos estar livres de perigo se tivéssemos feito o que os houssins fizeram122Ainda estamos a tempo desde que façamos qualquer coisa já, antes que seja demasiado tarde.- Fazer qualquer coisa? O quê? E quem vai pagar?- Nós todos. Podíamos juntar-nos todos. Podíamos juntar as nossas reservas.- É um disparate! Podíamos fazer! - O velho estava agora de pé, a olhar para mim por cima da cabeça de Alain com um olhar feroz.- O Brismand fê-lo - disse eu.- Brismand; Brismand. - Bateu no chão com a bengala. - O Brismand é rico! E tem sorte! - Soltou uma gargalhada rouca. - Toda a gente na ilha sabe isso!

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- Brismand construiu a sua própria sorte - volvi, pacatamente. - E nós podemos fazer o mesmo. E você sabe muito bem, Aristide. Aquela praia... podia ter sido nossa. Bastava descobrir uma maneira de inverter o que foi feito...Por momentos o olhar de Aristide cruzou-se com o meu e senti que algo passou entre nós; algo parecido com compreensão. Depois virou outra vez as costas.- Sonhar acordado - resmungou, com a voz de novo áspera. - Somos salannais. Para que diabo queríamos nós uma praia? 123

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Desalentada e irritada, concentrei as minhas energias a acabar de reparar os estragos na casa. Telefonei à minha senhoria em Paris para a avisar de que ia estar fora mais algumas semanas, transferi algum dinheiro das minhas economias e passei bastante tempo em limpezas, pinturas e decorações. GrosJean parecia ter abrandado um pouco, embora pouco falasse ainda; ficava a observar-me em silêncio enquanto eu trabalhava, ajudando-me às vezes a lavar os pratos ou segurando a escada quando eu substituí as telhas do telhado. Às vezes tolerava o rádio; as conversas, raramente.Uma vez mais tive de aprender a interpretar a natureza dos seus silêncios, a ler nos seus gestos. Em criança, tinha essa capacidade; descobri-a de novo, como quando se reaprende a tocar um instrumento musical quase esquecido. Os pequenos gestos, imperceptíveis para os estranhos, mas cheios de sentido. Os sons guturais, indiciadores de prazer ou de fadiga. E muito raramente, um sorriso.Compreendi que aquilo que eu tomara por rabugice ou ressentimento era, na realidade, uma depressão profunda e tranquila. Como se o meu pai se tivesse retirado simplesmente do ritmo nor mal da vida, como um barco que se afundasse a pique, através de camadas de indiferença cada vez mais profundas até se tornar quase impossível chegar até ele. Nada do que eu pudesse fazer por ele conseguia trespassar essa indiferença; as sessões de copos no Angélo só agravavam a situação.124- Ele vai acabar por voltar a si - disse Toinette, quando manifestei a minha preocupação. - Às vezes fica assim... durante um mês, seis meses, mais tempo. Só gostava que outras pessoas fizessem o mesmo.Tinha-a encontrado no jardim a apanhar caracóis na pilha de lenha e a metê-los numa grande frigideira; era a única pessoa entre todos os salannais que parecia preferir o mau tempo.- É uma vantagem da chuva - declarou, curvando-se tanto que a espinha deu um estalido. - Faz aparecer os caracóis. - Esticou-se com dificuldade por detrás da pilha de lenha e atirou um caracol para dentro da frigideira com uma resmungadela. - Pronto! Apanhei este maldito! - Estendeu a frigideira para me mostrar. - A melhor comida do mundo. Andam por aí a rastejar à espera de serem apanhados. Basta salgá-los durante um bocado para deitarem fora o' muco. Depois põem-se numa frigideira com chalotas e vinho tinto. Longa vida. Vou dizer-te uma coisa - acrescentou de súbito, estendendo-me a frigideira -, leva alguns para o teu pai. Tira-o para fora da concha, está bem? - Casquinou deliciada com a piada.Quem me dera que fosse assim tão fácil. Estava convencida que a causa era La Bouche; GrosJean continuava a ir lá todos os dias, embora estivesse tudo ainda alagado. Às vezes ficava por lá até ao anoitecer, escavando, apático, à volta das sepulturas ensopadas, ou, a maior parte das vezes, limitava-se a ficar ali no topo da enseada a observar a subida e a descida do nível de água. Dizia para mim mesma vezes sem conta que a chave estava em La Bouche. A haver uma maneira de chegar até ao meu pai, tinha de ser assim. 125

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Um Agosto chuvoso precipitou-se num Setembro tempestuoso e, apesar do vento rodar outra vez para oeste, as condições em Les Salants não melhoraram. Aristide apanhou uma forte constipação ao apanhar moluscos nas águas baixas ao largo de La Goulue. Toinette Prossage também adoeceu, mas recusou-se a consultar Hilaire.- Não quero que aquele veterinário me venha dizer o que devo fazer - disse num tom arfante e irritadiço. - Ele que trate das cabras e dos cavalos. Ainda não estou assim tão desesperada.Omer fingia brincar com a doença dela, mas eu percebia muito bem que estava preocupado. Uma bronquite aos noventa anos pode ser uma coisa séria. E o tempo pior ainda estava para vir. Toda a gente o sabia e a disposição não era das melhores.A opinião geral era a de que La Bouche era o menor dos nossos: problemas.- Sempre foi um lugar mau - disse Angélo, que era natural de Fromentine e por isso não tinha parentes em La Bouche. - O que é que podemos fazer, hem?Só as pessoas mais velhas se mostravam verdadeiramente angustiadas com o cemitério inundado; entre elas Désirée Bastonnet, a mulher de Aristide, que costumava visitar o memorial do filho com uma pontualidade comovente todos os domingos depois da missa. Embora solidários com os sentimentos de Désirée, o consenso geral era de que os vivos tinham prioridade sobre os mortos.126Todavia, foi Désirée quem realmente desencadeou a série de mudanças que se seguiram. Desde a minha chegada, só lhe falara para a cumprimentar e ela mostrara-se quase indelicada na precipitação com que se afastava, embora eu achasse que a sua timidez advinha mais do receio de desagradar a Aristide do que de uma verdadeira relutância em falar comigo. Desta vez estava sozinha, descendo a pé a estrada de La Houssinière, vestida de preto como sempre. Sorri-lhe quando nos cruzámos e ela saudou-me com uma expressão amedrontada, mas depois, com um olhar furtivo para ambos os lados, devolveu o sorriso. Sacudia o rosto pequeno por baixo do chapéu preto típico da ilha. Segurava numa das mãos um ramo de flores amarelas.- Mimosas - disse, ao reparar no meu olhar. - Eram as flores preferidas do Olivier. Havia sempre no dia de anos dele... são umas florzinhas muito alegres e com um perfume muito agradável. - Sorriu embaraçada. - O Aristide acha que é um disparate como é de calcular, e que são muito caras fora de época. Mas pensei...- Vai a La Bouche. Désirée assentiu.- Ele faria hoje quarenta e seis anos.Quarenta e seis anos... talvez fosse avô. Li nos olhos de Désirée o vislumbre de qualquer coisa luminosa e indizivelmente triste; a visão dos netos que podia ter tido.- Vou comprar uma lápide - continuou. - Para a igreja de La Houssinière. Amado Filho. Perdido no Mar. O padre Alban diz que posso colocar as flores por baixo quando for para Les Immortelles. - Sorriu-me com o seu sorriso doce e dorido. - O teu pai é um homem feliz, Mado, apesar do que diz Aristide. Teve sorte que tu tenhas voltado.Era o discurso mais longo que jamais ouvira a Désirée Bastonnet. Surpreendeu-me tanto que quase não fui capaz de pronunciar uma palavra; e no momento em que decidira qual a resposta, ela já se afastava com o ramo de mimosas.Encontrei Xavier junto do canal, a lavar algumas vasilhas vazias de lagostas. Parecia ainda mais pálido do que o habitual e os óculos davam-lhe o ar de um sábio perdido.127- A tua avó não anda com bom aspecto - disse-lhe eu. Devias dizer-lhe para me pedir uma boleia a próxima vez que quiser ir a La Houssinière. Não devia ir a pé com a idade dela.Xavier parecia pouco à vontade.- É uma criança, é o que é. Passa aquele tempo todo em La Bouche. Acha que se rezar muito, acontece um milagre. - Encolheu os ombros. - Penso que se a santa nos quisesse fazer um milagre, já o tinha feito.Do outro lado da enseada avistei Ghislain e o irmão junto dos destroços do Eleanore. Como era previsível, Mercédès estava sentada por perto, a limar as unhas e com uma t-shirt rosa forte com as palavras AQUI ESTOU. Enquanto falava comigo Xavier não desviou os olhos dela.

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- Ofereceram-me emprego em La Houssinière. Na embalagem de peixe. Pagam bem.- Ah sim?Fez um gesto de assentimento.- Não posso ficar aqui para sempre. Tenho de ir para onde houver dinheiro. Toda a gente sabe que Les Salants acabou. É melhor aceitar a oferta antes que outro a aceite.Por cima da água, ouvi Ghislain rir, talvez demasiado alto, com qualquer coisa que Damien dissera. Uma grande fiada de salmonetes tinha sido arremessada negligentemente para cima da proa do Eleanore.- Ele compra aquele peixe ao Jojo-le-Goëland - observou Xavier calmamente. - Mas finge que o apanha em La Goulué. Como se a ela alguma vez lhe interessasse o peixe que ele pesca.Como se se apercebesse que estávamos a falar dela, Mercédès pegou num espelho e retocou os lábios.- Se ao menos o meu avô tivesse um pouco de juízo - disse Xavier. - A casa ainda vale alguma coisa. E o barco também. Mas teima em não querer vender aos houssins. - Parecia desajeitado agora, como se tomasse consciência de que se tinha denunciado.- Ele está velho - disse eu. - Não gosta de mudanças. Xavier abanou a cabeça.- Ele tem andado a tentar drenar La Bouche - disse, baixando a voz. - Julga que ninguém sabe.128

Xavier contou-me que foi assim que ele adoeceu, com uma constipação que apanhou quando escavava valas à volta do memorial do filho. Segundo parecia, o velho cavara dez metros de valas ao longo do caminho do cemitério antes de desmaiar. GrosJean tinha-o encontrado ali e fora chamar Xavier.- O velho idiota - disse, não sem uma ponta de afecto. - Estava realmente convencido que podia ser diferente.O meu rosto deve ter manifestado estranheza, porque Xavier riu-se.- Ele não é tão duro como aparenta ser. E sabe a importância de La Bouche para Désirée.Aquilo surpreendeu-me, porque sempre tinha imaginado Aristide como um patriarca que não se preocupava nada com os sentimentos de quem quer que fosse.Xavier prosseguiu.- Se ele estivesse sozinho, há anos que teria ido para Les Immortelles, quando ainda podia obter um preço decente pela casa. Mas não era capaz de fazer isso à minha avó. Sente-se responsável por ela.Fui a pensar nisso no caminho para casa. Aristide, um marido protector? Aristide, um sentimentalista? Interrogava-me se o meu pai também seria assim, se, debaixo da sua passividade obstinada, em tempos também houvera paixão.12919N os últimos dias achara Flynn mais afável, mais igual ao que era quando o vi pela primeira vez em La Houssimere, na companhia das duas freiras. Talvez por causa de GrosJean; depois da minha decisão de recusar a oferta de Brismand de meter o meu pai em Les Immortelles, sentia um afrouxamento da hostilidade contra mim em Les Salants, a despeito da zombaria de Aristide. Percebi que Flynn gostava genuinamente do meu pai e senti-me um tanto ou quanto envergonhada por tê-lo julgado mal. Trabalhara duro para pagar a utilização do bunker; mesmo agora aparecia com frequência com um peixe que tinha pescado (ou roubado), com alguns legumes ou para fazer

biscate que prometera a GrosJean. Começava a perguntar a mim mesma como é que o meu pai se tinha arranjado antes da chegada de Flynn.- Ele lá se arranjava - disse Flynn. - É mais rijo do que pensas e muito teimoso. - Eu tinha-o encontrado nessa tarde no seu refúgio, às voltas com o reservatório de água. - A areia debaixo da rocha filtra a água - explicou-me. - Esta vem à superfície por efeito da acção capilar. Basta-me bombeá-la com este tubo.Era outra das suas ideias engenhosas. Eu já notara sinais da sua actividade um pouco por toda a parte na aldeia: no velho moinho de vento que tinha sido reparado para drenar as águas dos campos;

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no gerador em casa de GrosJean; numa dezena de coisas estragadas ou partidas que tinham sido consertadas, polidas, oleadas, adaptadas,130reparadas e postas em funcionamento apenas com um pouco de habilidade e algumas peças sobresselentes.Falei-lhe da minha conversa com Xavier e perguntei-lhe se era possível construir algo semelhante para drenar a água de La Bouche.- É possível drená-la - disse Flynn, ponderando a sugestão. _ Mas não é possível manter aquilo limpo. Fica inundado sempre que há uma maré alta.Pensei no que me disse. Tinha razão; La Bouche precisava de mais qualquer coisa do que de drenagem. Precisávamos de algo parecido com o quebra-mande La Houssinière, de uma sólida barreira de rochas para proteger a entrada de La Goulue e impedir as marés de invadirem a enseada. Disse isso a Flynn.- Se os houssins foram capazes de construir um dique, então nós também podemos. Podíamos construí-lo com os rochedos que há ao largo de La Goulue e este lugar podia voltar a ser seguro. Flynn encolheu os ombros.- Talvez. Desde que se consiga arranjar dinheiro. E persuadir um número suficiente de pessoas a darem uma ajuda. E calcular o sítio exacto onde deve ser construído. Bastam uns poucos metros na direcção errada para que reverta tudo numa pura perda de tempo. Não basta amontoar uma centena de toneladas de rochas na extremidade de La Pointe e esperar que funcione. Precisam de um engenheiro.Não fiquei desmoralizada.- Mas podia fazer-se? - insisti.- Provavelmente não. - Observou o mecanismo da bomba e fez um ligeiro ajustamento. - Apenas transferia o vosso problema para outro lado. E também não iria inverter a erosão do terreno.- Não, mas podia salvar La Bouche. -< Flynn parecia divertido.- Um velho cemitério? Qual é o interesse? Lembrei-lhe GrosJean.- Tudo isto tem sido duro para ele. A santa, La Bouche, o Eleanore... - E, evidentemente, disse para comigo, a minha chegada e a perturbação que causou.- Ele responsabiliza-me a mim - disse eu, por fim. - Não. Não é verdade.- 131- Ele deixou cair a santa por minha causa. E agora o que aconteceu em La Bouche...- Por amor de Deus, Mado. Tens que ser sempre tu a arcar com as responsabilidades de tudo? Porque não deixas que os acontecimentos sigam o seu curso normal? - O tom de Flynn era cortantee seco. - Ele não te responsabiliza a ti, Mado. Responsabiliza-se a si próprio.

20Desapontada por não ter conseguido persuadir Flynn, segui directamente para La Bouche. Era baixa-mar e o nível da água estava baixo, mas apesar disso, muitas sepulturas permaneciam submersas e o caminho era um lamaçal. Os estragos eram maiores perto da enseada; o limo extravasara a orla fendida do aterro reforçado.Percebi que aquele era o ponto vulnerável; uma extensão de não mais de dez ou quinze metros de comprimento. Quando a maré tomava de assalto a enseada, transbordava, como sucedia em Les Salants, antes de assentar nos baixios salgados. Se ao menos as margens pudessem ser levantadas um pouco para dar tempo a que a água escoasse.Alguém já tentara, usando sacos de areia empilhados na borda da enseada. Provavelmente o meu pai ou Aristide. Mas era evidente que só os sacos de areia não chegavam; seriam precisos centenas deles para obter uma protecção segura. Voltei a considerar a hipótese de uma barreira de rochas; não em La Goulue, mas aqui. Talvez fosse uma medida temporária, mas seria uma maneira de chamar as atenções, de alertar os salannais para as possibilidades...Pensei no tractor e no reboque do meu pai no estaleiro abandonado. Também havia uma grua, se eu conseguisse pô-la a funcionar: um guincho destinado a colocar os barcos em posição de serem

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inspeccionados ou reparados. Era lento, mas sabia que aguentava o peso de qualquer barco de pesca, mesmo como o Marte Joseph de132133Jojo. Pensei que se usasse o guincho talvez conseguisse arrastar as " rochas soltas para a enseada de modo a criar uma espécie de barreira, que poderia ser reforçada mais tarde com terra e fixada com pedras e camadas de lona impermeabilizada com piche. Talvez funcionasse, disse para mim. De qualquer modo, valia a pena tentar.

Demorei cerca de duas horas para levar o tractor e o reboque para La Bouche. A tarde já ia a meio, mas o sol tinha um brilho pálido oculto pelas nuvens e o vento -rodara outra vez, bruscamente para sul. Enfiara as botas de pesca e a vareuse, um gorro e luvas de malha, mas mesmo assim começava a arrefecer, e o vento trazia consigo humidade; não era chuva, mas aquela espécie de morrinha que se levanta na preia-mar. Verifiquei a posição do sol e calculei que dispunha apenas de quatro ou cinco horas. Muito pouco para fazer o que era preciso.Trabalhei o mais depressa que pude. Já havia localizado algumas rochas grandes soltas, mas não estavam tão soltas como ao princípio pensara, e precisava de as desenterrar da duna. Estavamcercadas de água e usei o tractor para as remover. O guincho movia-se com uma lentidão desesperante, deslocando as rochas com o braço grosso da grua. Tive de as deslocar por diversas vezes até conseguir a posição desejada, fixando de cada vez as grossas correntes à volta da pedra e regressando para junto do guincho, para depois baixar o braço até a rocha tocar no rebordo da enseada na posição correcta que me permitisse remover as correntes. Fiquei logo encharcada, apesar do meu equipamento de pesca, mas nem dei por isso. Via o nível da água a subir; o nível no aterro danificado estava já perigosamente alto e o vento encrespava a água. Porém as rochas estavam agora colocadas, cobertas pelo bocado de oleado, e a única coisa de que precisava para tornar aquilo seguro era de um conjunto de pedras mais pequenas e de alguma terra para ficar tudo bem preso.Foi nesse momento que o guincho falhou. Não tenho a certeza se foi o braço da grua que tinha sido esforçado demais ou qualquer coisa no motor, ou talvez a água pouco funda por onde eu o conduzira, mas o certo é que parou e se recusou a funcionar mais. Perdi tempo a tentar descobrir a causa da falha e, depois, quando vi que134era impossível, comecei a remover as pedras à mão, escolhendo as maiores que conseguia arrastar e unindo-as com pazadas de terra. A maré subia alegremente, encorajada pelo vento sul. Ouvia ao longe a rebentação das ondas nos baixios. Continuei a escavar, transportando a terra para a margem com o reboque. Apliquei todo o oleado que tinha trazido, fixando-o com mais pedras para evitar que a terra fosse arrastada.Tinha coberto menos de um quarto da distância necessária. Apesar disso, as minhas protecções provisórias estavam a aguentar-se. Se ao menos o guincho não se tivesse avariado...Começava a escurecer, embora as nuvens se tivessem dispersado um pouco. Na direcção de Les Salants o céu estava vermelho, negro e agourento. Fiz uma pausa para distender as costas doridas e vi alguém de pé por cima de mim, no alto da duna, com o vulto recortado contra o céu.GrosJean. Não-lhe podia ver o rosto, mas soube pela sua postura que me estava a observar. Continuou assim por instantes mas depois, quando comecei a encaminhar-me para ele, avançando desajeitadamente pela água lamacenta, virou-se simplesmente e desapareceu na crista da duna. Fui atrás dele, mas, exausta, segui-o demasiado devagar, sabendo que quando lá chegasse ele teria desaparecido.Lá em baixo, via a corrente a avançar pela enseada. A maré ainda não estava alta, mas do meu ponto de observação já podia perceber quais eram os pontos fracos nas minhas defesas, os pontosonde furtivos veios de água acastanhada se infiltrariam pela terra e pelas pedras soltas para abrir caminho. O tractor já tinha o bojo imerso na água; mais um pouco, e o motor estaria inundado. Praguejei e desci a correr para a enseada, liguei o tractor que estrebuchou duas vezes, mas finalmente fi-lo rodar, com um ruído de protesto, no meio de uma nuvem de vapores de óleo, e

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trouxe-o para um lugar mais seguro.Maldita maré. Maldita sorte. Furiosa, arremessei uma pedra para dentro de água. Foi embater na parede do aterro com um esparramar irónico. Peguei nos restos de uma azálea morta e atirei-atambém. Estava consciente de uma fúria súbita e apocalíptica pronta a explodir dentro de mim e, no espaço de breves segundos, Peguei em todos os mísseis que tinha à mão para atirar: pedras,135paus secos e bocados de destroços. A pá de que me servira ainda estava no reboque; fui buscá-la e comecei a cavar furiosamente no terreno empapado, atirando para o ar espadanas de terra e de água. As lágrimas corriam-me pela cara abaixo e sentia a garganta irritada. Por momentos, senti-me perdida.- Mado. Pára com isso. Mado.Devo tê-lo ouvido, mas só me virei quando senti a mão dele no ombro. Sentia as palmas das mãos empoladas por baixo das luvas. Arfava. Tinha a cara coberta de lama. Ele estava parado atrás de mim, enterrado na água até aos tornozelos. A habitual expressão irónica desvanecera-se; naquele momento, parecia irritado e preocupado.- Por amor de Deus, Mado. Nunca desistes?- Flynn - olhava para ele com o olhar vazio. - Que fazes aqui?- Andava à procura de GrosJean. - Franziu o sobrolho. - Encontrei uma coisa trazida pelo mar em La Goulue. Uma coisa que talvez lhe interesse.- Mais lagostas - sugeri mordaz, lembrando-me daquele primeiro dia em La Goulue.Flynn respirou fundo.- Tu és tão louca como GrosJean. Vais-te matar aqui.- Alguém tem de fazer alguma coisa - respondi, pegando na pá que deixara cair quando ele me interrompeu. - Alguém tem de lhes mostrar.- Mostrar a quem? Mostrar o quê? - Ele tentava manter-se calmo, mas com dificuldade; havia um brilho ameaçador nos seus olhos.- Mostrar-lhes como se contra-ataca. - Olhei para ele fixamente. - Que somos capazes de nos mostrarmos unidos.- Unidos? - Disse, desdenhoso. - Não o tentaste já? Conseguiste alguma coisa?- Tu sabes porque é que eu não consegui nada. Se ao menos tu te empenhasses... a ti eles ouviam-te.Ele fez um esforço para baixar a voz.- Parece que não percebes. Eu não quero envolver-me. Tenho passado a maior parte da minha vida a lamentar o meu envolvimento136

numa coisa ou noutra. Uma pessoa faz uma coisa e essa coisa desencadeia outra e mais outra.- Se o Brismand foi capaz de proteger a praia de Les Immortelles - insisti, de dentes cerrados - significa que nós também podemos fazer o mesmo aqui. Podíamos reconstruir o velho molhe, reforçar o recife em La Goulue...- Claro - cortou Flynn, irónico: - Tu e duzentas toneladas de rocha, uma escavadora, um engenheiro e... cerca de meio milhão de francos.Por momentos, fiquei abalada.- É assim tanto? - exclamei por fim. - No mínimo.- Pareces estar bem informado acerca disso.- Pois estou. Estou atento a esse tipo de coisas. Assisti às obras em Les Immortelles. E posso dizer-te que não foi fácil. E para mais o Brismand estava a construir sobre fundações assentes há mais de trinta anos. E tu estás a falar de uma coisa que parte do zero.- Se quisesses, podias lembrar-te de qualquer coisa - repeti, a tremer. - Sabes como funcionam as coisas. Eras capaz de descobrir uma maneira.- Não, não era - disse Flynn. - E se fosse, com que objectivo? La Houssinière precisa da praia. O comércio desenvolveu-se lá. Para quê perturbar o equilíbrio?- Foi isso que o Brismand fez - volvi, furiosa. - Ele sabia que estava a roubar a nossa areia. A areia

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de La Jetée, que nos devia proteger.Flynn perscrutava o horizonte como se houvesse ali alguma coisa para ver.- Tu nunca desistes, pois não? - Não - respondi secamente.Não olhou para mim. Por trás dele as nuvens baixas tinham quase a mesma tonalidade ocre dos seus cabelos. O cheiro a sal da maré a subir fazia-me arder os olhos.- E não vais ficar quieta até teres resultados? - Não. - Fez-se uma pausa.- Valerá realmente a pena? - perguntou Flynn por fim. - Para mim vale.137- Ouve. Dá-lhes mais uma geração e terão ido todos embora, Olha para eles, por amor de Deus. Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso foi-se embora há anos. Não será preferível deixar que-a natureza siga o seu curso?Limitei-me a olhar para ele sem dizer uma palavra.- Há comunidades que morrem a toda a hora. - A voz dele era calma e persuasiva.- Sabes que é assim. Faz parte da vida aqui. Talvez até seja bom para as pessoas. Obrigá-las apensar outra vezpelas suas cabeças, a construírem vidas novas. Olha para eles, casam entre si até à morte. Precisam de sangue novo. Aqui estão apegados a coisa nenhuma.- Não é verdade - respondi, obstinadamente. - Eles têm direitos. E muitos deles são velhos. Demasiado velhos para recomeçarem de novo noutro lugar. Pensa em Matthias Guénolé, em Aristide Bastonnet ou em Toinette Prossage. Não conhecem mais nada a não ser a ilha. Nunca se mudariam para o continente, mesmo que os filhos partissem.- A ilha não é só Les Salants - disse com um encolher de ombros.- Como? Para serem cidadãos de segunda em La Houssinière? Para alugarem uma casa a Claude Brismand? E donde é que lhes vinha o dinheiro? Como sabes, nenhuma destas casas tem seguro. E estão todas demasiado perto do mar.- Poderão ir sempre para Les Immortelles - lembrou-me suavemente.- Não! - suponho que estava a pensar no meu pai. - Não é aceitável. O nosso lugar é aqui. Não é perfeito, não é fácil, mas é este. O nosso lugar é aqui - repeti. - E não nos vamos embora.Fiquei à espera. O odor intenso da maré enchente era opressivo. Ouvia as ondas como o pulsar do sangue na cabeça e nas veias. Observava-o e esperava que falasse, sentindo de súbito uma imensa calma. Finalmente olhou para mim e acenou com a cabeça.- És obstinada. Como o teu pai.- Sou uma salannaise - respondi, sorrindo: - Tenho a cabeça cheia de rochas.Seguiu-se nova pausa, mais demorada.- Mesmo que eu conseguisse pensar em qualquer coisa, talvez. não resultasse. Uma coisa é reconstruir um moinho de vento, masisto é muito diferente. Não se pode ter qualquer espécie de garantia. Teríamos que obrigá-los a cooperar. Precisávamos que toda a gente em Les Salants se empenhasse a sério. Só com um milagre.Foi aquele nós. Senti o rubor subir-me ao rosto e o coração bater descompassado.- Portanto, é possível? - A minha voz soava arquejante, absurda. - Há uma maneira de acabar com as inundações?- Preciso de pensar. Mas há uma maneira de os obrigar a colaborar.Olhava outra vez para mim com aquele jeito curioso, como se eu o divertisse. Mas desta vez havia algo mais, uma expressão concentrada e determinada como se me visse pela primeira vez. Não tenho a certeza se me agradava.- Sabes - disse por fim - não é certo que alguém te agradeça por isto. Mesmo que resulte, podem manifestar ressentimento. já conquistaste uma certa reputação.Eu sabia.- Não me importo.- Além disso, vamos infringir a lei - prosseguiu. - Em princípio, tem de se pedir uma licença, apresentar documentos e projectos. Obviamente que isso não será possível.- já te disse. Não me importo.

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- Era preciso um milagre _ repetiu, mas pareceu-me que estava prestes a soltar uma gargalhada. Os olhos dele, tão frios um momento antes, brilhavam luminosos.- E então?Ele ria às gargalhadas e nesse momento compreendi que embora os salannais muitas vezes esboçassem sorrisos, meios sorrisos ou até rissem à socapa, eram muito poucos os que riam alto e bomsom. Aquele som tinha algo de exótico, de estranho, vindo de um lugar distante.- Muito bem - disse Flynn.138139SEGUNDA PARTE Viragem da Maré

21A casa de Omer foi inundada durante a noite. As chuvas tinham engrossado a enseada, que, com a maré a subir, voltara a romper as defesas e como a casa de Omer era a mais próxima fora a primeira a sofrer.- Agora eles já nem sequer se dão ao incómodo de tirarem os móveis - explicou Toinette. - Charlotte limita-se a abrir todas as portas e deixar a água sair pelas traseiras. Eu acolhia-os aqui, mas não tenho espaço. Além disso, a filha deles irrita-me. Estou muito velha para aturar raparigas.Mercédès atravessava uma fase extremamente difícil. Já não satisfeita com Ghislain e Xavier, começara a passar o tempo no Chat Noir em La Houssinière, rodeada por uma corte de admira dores houssins. Xavier atribuía as culpas ao comportamento possessivo de Aristide. Charlotte, que podia ter dado uma ajuda, tinha esgotado as suas capacidades. Toinette pressagiava um desastre.- A Mercédès está a brincar com o fogo - declarou. - Xavier Bastonnet é um bom rapaz, mas lá no fundo é tão obstinado como o avô. Ela vai acabar por perdê-lo... e conhecendo a minha Mercédès, só então é que vai perceber que era o rapaz que ela sempre quis.Era óbvio que, se esperava que o seu afastamento provocasse uma reacção, Mercédès estava desapontada. Ghislain e Xavier continuaram a observar-se das duas extremidades do canal, como se fossem eles os apaixonados. Ocorreram alguns pequenos incidentes143desagradáveis de que se acusaram mutuamente - uma vela golpeada no Cécilia, um balde cheio de minhocas misteriosamente despejado numa das botas de Ghislain - embora nenhum deles pudesse provar o que quer que fosse. O jovem Damien desaparecera por completo de Les Salants e passava agora a maior parte do tempo a vaguear à volta da esplanada e metido em rixas.Também eu me sentia atraída para ali. Mesmo fora de época, respirava-se uma certa vitalidade, uma sensação de potencialidades. Les Salants estava mais morto do que nunca; estagnado. Doía-meolhar para aquilo. E então ia para Les Immortelles com um caderno de esboços e lápis, apesar de ter os dedos destreinados e não conseguir desenhar. Esperava: o quê, ou quem, não sabia.Flynn mostrara-se muito evasivo sobre o projecto e eu não sabia o que podia esperar. Dizia-me que era preferível não saber. As minhas reacções seriam mais espontâneas. Desaparecera de vistadurante vários dias depois da nossa conversa e, embora eu soubesse que andava a planear qualquer coisa, recusara-se a contar-me o quê quando finalmente o encontrei por acaso.- Eu sei que ias desaprovar. - Nesse dia parecia cheio de energia, os olhos cor de pólvora, cinzentos, brilhantes e voláteis. Atrás dele, a porta do bunker estava ligeiramente entreaberta e pude ver qualquer coisa embrulhada num lençol lá dentro; uma coisa grande. Encostada à parede estava uma pá, ainda suja de lodo dos baíxios. Flynn viu-me a olhar e fechou a porta com um pontapé.- Tu és tão desconfiada, Mado - queixou-se. - Já te disse que estou a trabalhar no teu milagre.- Como é que eu sei que começou? - Hás-de saber.Volteia olhar para a porta do bunker. - Não roubaste nada, pois não?- Claro que não. Lá dentro só tenho umas tralhas que encontrei na maré baixa.- Andas outra vez na pesca furtiva - comentei desaprovadora.Ele sorriu.

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- Nunca mais vais perdoar-me aquelas lagostas, pois não? Entre amigos, que importância têm uns pequenos furtos?144- Qualquer dia vais acabar por ser apanhado por alguém - respondi, tentando não sorrir - e há-de servir-te de muito se te derem um tiro.Flynn limitou-se a rir, mas na manhã seguinte encontrei um pacote grande envolto em papel de embrulho junto à porta das traseiras, atado com uma fita encarnada.Lá dentro, estava uma lagosta.

Tudo começou pouco depois disso, numa noite fria e tempestuosa. Nessas noites de borrasca, GrosJean ficava muitas vezes inquieto. Levantava-se da cama para ir examinar os postigos, ou ficava sentado na cozinha a beber café enquanto ouvia o mar. Eu não sabia o que ele estava à espera de ouvir.Nessa noite, ouvi-o mais do que de costume porque também me sentia agitada. O vento voltara a levantar-se de sul e ouvia-o arranhar as portas e chiar nas janelas como uma praga de ratos. Por volta da meia-noite dormitei e sonhei de forma intermitente com a minha mãe, sonhos que esqueci quase instantaneamente mas que tinham a ver com o ruído da sua respiração quando dormíamos uma ao lado da outra num de toda uma série de quartos baratos alugados; a respiração dela e o modo como às vezes se suspendia durante meio minuto ou mais antes de retomar o ritmo ofegante...Por volta da uma levantei-me e fui fazer café. Através das persianas podia ver a luz vermelha da bóia luminosa no extremo de La Jetée e, mais ao longe, o horizonte sombrio tingido de laranja, riscado por relâmpagos. O mar rugia, o vento não era ainda de temporal mas suficiente forte para fazer zunir as amarras dos barcos atracados, arremessando borrifos de areia contra o vidro. Enquanto estava à escuta, julguei ouvir um sino tocar uma vez - Bum! -, a sua nota lamentosa destacando-se no meio do bramido do vento. Disse para mim que talvez fosse fruto da imaginação, uma ilusão causada pela noite, mas então ouvi-o uma segunda vez, depois uma terceira, ecoando por cima das vagas e do vento com uma nitidez crescente.Estremeci. Tinha começado.145O som do sino era cada vez mais forte, transportado desde La Pointe pelas rajadas de vento tempestuoso. O sino de uma igreja submersa soava de forma sinistra e lúgubre, estranhamente cavo, num prenúncio de desastre. Quando espreitei pela janela para olhar a Pointe rochosa, pareceu-me ver qualquer coisa, uma luminosidade ondulante e azulada vinda do mar, que se ergueu do solo, uma, duas vezes, e se desfez contra as nuvens num esparramar sombrio de fogo pálido.De súbito, dei-me conta que GrosJean se levantara da cama e estava de pé atrás de mim. Estava completamente vestido, de vareuse e botas.- Não há problema - disse eu. - Não se preocupe. É só um temporal.O meu pai não disse nada. Estava especado, hirto e rígido, ao meu lado, uma figura de madeira como os brinquedos que costumava fazer para mim nos velhos tempos com as aparas que trazia da oficina. Nada na sua atitude deu mostras de que ouvira sequer o que eu dissera. Podia sentir, porém, uma emoção estranha que emanava dele; algo que me impressionou como um gato emaranhado num novelo de fio de nylon. As mãos tremiam-lhe.- Não vai acontecer nada de mal - repeti, estupidamente. - La Marinette - disse o meu pai.A sua voz soou áspera e rouca, percebia-se que não falava há tempos. Por instantes, as sílabas baralhavam-se-me no espírito, indecifráveis.- La Marinette - voltou a repetir GrosJean, desta vez mais insistente, pousando uma mão no meu braço. Havia uma súplica nos seus olhos azuis.- É só o sino da igreja - respondi, tranquilizadora. - Também o ouço. É o vento que traz o som desde La Houssinière. Só isso.GrosJean abanou a cabeça com impaciência. - La... Marinette - repetiu.Flynn - eu tinha a certeza que aquilo era obra dele - escolhera o símbolo próprio na altura própria. Mas a reacção do meu pai perante o toque do sino deixou-me gelada. Estava ali parado,

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inclinado para a frente como um cão preso pela trela, e a mão dele146agarrava-me o braço com tanta força que me magoava. Tinha o rosto lívido.- Por favor, o que é que se passa? - perguntei, soltando o braço suavemente. - Qual é o problema?Mas GrosJean estava de novo incapaz de falar. Só os seus olhos falavam, turvados pela emoção, como os olhos de um santo que tivesse passado demasiado tempo no deserto e acabasse por perder a razão.- Vou ver o que é que se passa - disse eu. - Não me demoro. E deixando-o ali com a cara contra o vidro da janela, enfiei o impermeável e saí para a noite sombria.14722O ruído das vagas era estridente, mas o som do sino continuava a sobrepor-se ao estrépito das ondas, num dobre pesado e prenhe de presságios que parecia percorrer a terra num arrepio. Quando me aproximei, um novo jorro de luz brotou detrás das dunas. Serpenteou no céu, iluminando tudo, para se desvanecer com igual rapidez. Vi luzes nas janelas, persianas que se abriam, vultos dificilmente reconhecíveis nos agasalhos e gorros de lã, parados numa atitude expectante junto às portas das casas e debruçados por cima das sebes. Avistei o vulto maciço de Omer sob o sinal da estrada, acompanhado por uma pessoa vestida de roupão, esvoaçante, que só podia ser Charlotte. Mercédès estava à janela em camisa de noite. Vi Ghislain e Alain Guénolé com Matthias, logo atrás. Um grupo de miudagem, entre eles Lolo e Damien. Lolo tinha um gorro vermelho e saltava exuberante na luz frouxa que se escoava da porta aberta. A sombra dele saltitava e a sua voz chegou até mim, débil, por cima do dum-dum do sino.- Que raio é que se passa ali? - Era Angélo, embuçado até aos olhos na capa de pesca e no passemontagne. Transportava uma tocha numa das mãos, com que me iluminou o rosto por brevessegundos, como que à procura de intrusos. Ficou tranquilo quando me reconheceu.- Ah, és tu, Mado. Estiveste na Pointe? O que se passa lá?- Não sei - O vento abafava-me a voz, tornando-a balbuciante. - Eu vi as luzes.

- Quem é que não as viu? - Os Guénolés tinham chegado à duna entretanto, transportando os dois lanternas de pesca e espingardas. - Se estiver algum malandro a pregar alguma tramóia naPointe... - Alain fez um gesto sugestivo com a espingarda. - Não me admirava se fossem os Bastonnets a fazer um golpe destes. Vou já para La Pointe para ver o que se passa, mas deixo o rapaz de vigia. Devem pensar que nasci ontem se pensam que caio numa destas.- Quem quer que esteja por detrás disto, não são os Bastonnets - declarou Angélo, apontando com o dedo. - Estou a ver lá atrás o velho Aristide com o Xavier a segurar-lhe o braço. Também parece apressado.Era verdade que o velho manquejava ao longo da Rue de L'Océan o mais depressa que podia, usando a bengala para se equilibrar de um dos lados e o braço do neto do outro. O cabelo comprido esvoaçava debaixo do gorro de pescador.- Guénolé! - berrou mal ficou ao alcance do outro. - Eu já devia imaginar que vocês, malandros, estavam por detrás disto! Julgam que andam a brincar com quê para acordarem toda a gente a esta hora da noite?Matthias riu-se.- Não penses que me podes atirar areia para os olhos - disse. - A má consciência grita sempre mais alto. Não me venhas dizer que não sabes nada do que se passa, hem? Senão, porque é que apareceste tão depressa?- A minha mulher saiu - disse Aristide. - Ouvi bater a porta. A andar nos rochedos com este tempo... e com a idade dela. Vai matar-se! - Levantou a bengala, a voz espumando de raiva. - Não são capazes de a deixar em paz? - gritou com voz rouca. - Já não chega que o teu filho... o teu filho... - Investiu com a bengala contra Matthias e teria caído se Xavier não o tivesse amparado. Ghislain levantou a espingarda. Aristide soltou uma risadinha estrídula. - Dispara! - berrou. - Dá-me um tiro

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a ver se eu me importo! Mata um velho só com uma perna, vamos, não há outra coisa a esperar de um Guénolé. Vá lá, eu aproximo-me mais se quiseres, e assim nem tu poderás falhar o alvo... Santa Marina, quando é que aquele maldito sino pára de tocar? - Deu um passo hesitante, mas Xavier deteve-o.148149-- O meu pai diz que é La Marinette - disse eu.Por instantes, Guénolés e Bastonnets ficaram a olhar para mim. Depois Aristide abanou a cabeça.-- Não é - disse ele. - É alguém a gozar connosco. Mais ninguém ouviu La Marinette tocar desde...Instintivamente, algo me fez olhar para trás na direcção da duna. O vulto de um homem recortava-se contra o céu borrascoso. Reconheci o meu pai. Aristide também o viu e engoliu em seco o que ia dizer, resmungando.- Pai - chamei, docemente. - Porque não vais para casa? Mas GrosJean não se mexeu. Aproximei-me, rodeei-lhe os ombros com um braço e senti-o tremer.-- Ouçam, estamos todos cansados - disse Alain numa voz mais branda. - Vamos ver o que se passa e depois acabou-se, hem? Levantei-me muito cedo esta manhã. - Em seguida, virando-se para o filho com inesperada veemência: - E tu... por amor de Deus, afasta essa maldita arma. Onde é que pensas que estás, no Oeste Selvagem?-- É só sal-gema - desculpou-se Ghislain. - Já te disse para afastares isso.Ghislain baixou a arma, com ar sombrio. Ao largo de La Pointe, mais dois clarões rasgaram o ar turvado com uma luz azulada. Senti GrosJean vacilar ao ouvir o estampido.- É o fogo-de-santelmo - declarou Angélo.Aristide parecia pouco convencido. Continuávamos a avançar em direcção a Pointe Griznoz. Omer e Charlotte Prossage juntaram-se-nos, logo seguidos de Hilaire e da sua bengala, de Toinette e de muitos outros. Dum-dum, continuava a badalar o sino submerso, ouvia-se o crepitar dos lampejos azulados e o tom das vozes excitadas aumentava, ameaçando transformar-se em breve em fúria, medo ou algo pior. Perscrutei a multidão à procura de Flynn, mas não vi sinais dele em parte nenhuma. Senti uma pontada de ansiedade; esperava que ele soubesse o que estava a fazer.Ajudei GrosJean a transpor a duna, enquanto Xavier corria à frente transportando a lanterna e Aristide nos seguia, arrastando a perna de pau e apoiando-se pesadamente na bengala. As pessoas ultrapassaram-nos rapidamente, avançando aos tropeções pela areia movediça. Vi Mercédès, com a longa cabeleira solta e o casaco150

abotoado por cima da camisa de noite branca e percebi a razão por que Xavier tinha corrido para a frente.- Désirée - murmurou Aristide.- Não se preocupe - disse eu. - Não lhe aconteceu nada. Mas o velho não me ouvia.- Eu ouvi-o uma vez, sabes? - disse ele, falando mais para si.- La Marinette. No Verão do Ano Negro, no dia em que Olivier se afogou. Quis iludir-me dizendo que era o som do casco da traineira a estalar com o impacto do mar a golpeá-lo. Mais tarde compreendi. O que eu tinha ouvido naquele dia era La Marinette a tocar. A anunciar uma desgraça como sempre acontece. E Alain Guénolé... - O tom da sua voz alterou-se abruptamente. - Alain era amigo dele, como sabes. Eram os dois da mesma idade. Às vezes iam pescar juntos, apesar de nós não aprovarmos.Começava a ficar cansado, apoiando-se pesadamente na bengala quando contornámos a curva da grande duna. Do outro lado ficavam os rochedos de Pointe Griznoz e o que restava das paredes da capela em ruínas de Sainte-Marine erguia-se contra o céu como um megalito.- Ele devia lá estar - prosseguiu Aristide num tom prepotente. - Eles tinham combinado encontrar-se por volta do meio-dia para recuperarem o que pudessem do velho barco. Se ele tivesse vindo, podia ter salvo ,o meu filho. Se tivesse vindo. Mas em vez disso, estava nas dunas com a rapariga dele, não era? Evelyne Gaillard chamava-se ela, a filha de Georges Gaillard de La Houssinière. Perdeu a noção do tempo. Perdeu a noção do tempo! - repetiu, quase exultante. - Ali armado em parvo e

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ainda por cima com aquela houssine, enquanto o amigo, o meu filho...Arquejava no momento em que atingimos o topo da duna. Já lá estava um grupo de salannais, com os rostos iluminados pela luz dos archotes e das lanternas. O fogo-de-santelmo, se era disso que se tratava, extinguira-se. E o sino também parara de tocar.- É um sinal - gritou alguém. Penso que foi Matthias Guénolé.- É uma tramóia - resmungou Aristide.Enquanto olhávamos, iam chegando mais pessoas. Calculei que já lá devia estar meia aldeia e pelo ritmo a que iam chegando, não tardaria a estar a aldeia em peso.151O vento fustigava-nos violentamente o rosto com sal e areia. Uma criança começou a choramingar. Atrás de mim, ouvia o murmúrio de preces. Toinette berrava qualquer coisa sobre Sainte-Marine, uma oração ou uma advertência.- Onde está a minha mulher? - o grito de Aristide sobrepôs-se ao ruído. - O que aconteceu a Désirée?- A santa - gritava Toinette. - A santa! - Olhem!Olhámos. E ali estava ela, por cima de nós, no pequeno nicho escavado na parede da capela. Uma figura primitiva, quase imperceptível na luz difusa, com as feições toscas visíveis à luz das cha mas. O movimento das tochas e das lanternas fazia-a oscilar no seu improvável pedestal como se se preparasse para levantar voo. As vestes festivas envolviam-na e ostentava na cabeça a coroa dourada de Sainte-Marine. Por baixo dela, as duas velhas freiras, Soeur Thérèse e Soeur Extase, em atitudes de devoção. Por trás delas reparei que tinham garatujado ou desenhado qualquer coisa na parede nua da capela em ruínas; uma espécie de graffiti.- Como diabo é que ela foi parar lá acima? - Era Alain, fitando a santa oscilante como se não conseguisse acreditar no que estava a ver.- E que estão ali a fazer aquelas duas gralhas? - rosnou Aristide, fitando as freiras. Mas depois calou-se. Um vulto em camisa de noite estava ajoelhado na erva junto das duas freiras, de mãos postas. - Désirée! - Aristide arrastou-se a coxear, tão depressa quanto podia, para a figura ajoelhada, que, ao vê-lo aproximar-se, o olhou de olhos muito abertos. O seu rosto lívido mostrava-se radioso.- Oh Aristide, ela voltou! É um milagre.O velho tremia. Abriu a boca, mas por segundos não saiu nenhum som. A voz soou áspera quando estendeu a mão para a mulher e lhe disse:- Estás enregelada, minha truta velha e maluca. Que ideia foi essa de vires para aqui sem casaco, hem? Vou ter que te dar o meu. - E, despindo o blusão de pesca, aconchegou-lho à volta dos ombros.Désirée aceitou-o, quase sem reparar.152

- Eu ouvi a santa - disse, sem parar de sorrir. - Ela falou... oh, Aristide, ela falou comigo.Aos poucos, a multidão ia-se concentrando ao pé do muro.- Meu Deus - disse Capucine, fazendo figas contra o azar. - É mesmo a santa que está ali em cima?Angélo assentiu.- Mas só Deus sabe como é que ela lá foi parar.- Sainte-Marine! - gemeu alguém na parte baixa da duna. Toinette caiu de joelhos. Um suspiro percorreu a multidão - aiiii! O baque da rebentação na margem assemelhava-se ao pulsar de um coração.- Ela está doente - disse Aristide, tentando levantar Désirée. - Ajudem-me.- Oh, não - disse Désirée. - Eu não estou doente. Agora já não estou doente.- Hei! Vocês aí! - Aristide dirigia-se às duas Carmelitas, paradas debaixo do nicho da santa. - Querem ajudar-me a levantá-la ou não?As duas freiras olharam para ele, sem se mexerem. - Recebemos um sinal - disse Soeur Thérèse. - Na capela. Tal como Joana d'Arc.- Não, não, não tem nada a ver com a Joana d'Arc. Dessa vez eram vozes, ma soeur, e não visões, e

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lembra-te qual foi o fim dela. - Eu esforçava-me para ouvir o que elas estavam a dizer por cima do ruído do vento.- ...Marine-de-la-Mer, toda vestida de branco com... - ...a Coroa e a lanterna, e um...- ...véu a cobrir-lhe o rosto.- Um véu? - Nessa altura comecei a perceber. As freiras assentiram.- E ela falou connosco, querida Mado. - Falou. Connosco.- Têm a certeza de que era ela? - Não consegui evitar a pergunta.As Carmelitas olharam para mim como se eu fosse idiota. - Claro, claro que era, Mado. Quem...- Mais podia ser? Ela disse que voltaria esta noite, e... - Aqui está.153

- Lá em cima.Balbuciaram as últimas palavras em uníssono, com os olhos vivos e brilhantes de pássaros. Ao lado delas, Désirée Bastonnet escutava, extasiada. Grosjean, que estivera a ouvi-las sem se mexer, olhou para cima, com os olhos sonhadores.Aristide abanou a cabeça, impaciente.- Sonhos. Vozes. Nada disso merece a pena que se saia de uma boa cama quente numa noite fria. Vamos, Désirée.Mas Désirée abanou a cabeça.- Ela falou com elas, Aristide - disse em voz firme. - Disse-lhes para virem. Elas vieram... tu estavas a dormir... elas bateram-me à porta e mostraram-me o sinal no muro da capela.- Eu sabia que as duas gralhas estavam por detrás disto! - explodiu Aristide, furioso. - Essas gralhas...- Acho que ele não nos devia chamar gralhas - disse Soeur Extase. - São aves de mau agoiro.- Nós viemos para aqui - continuou Désirée. - E a santa falou connosco.Por trás de nós, havia pescoços esticados. Os olhos semicerravam-se contra a areia trazida pelo vento. Furtivamente, os dedos faziam figas esconjurando a desgraça. Eu podia ouvir as respirações contidas.- O que é que ela disse? - perguntou por fim C)mer.- O seu comportamento não foi muito de uma santa - disse Soeur Thérèse.- Nada disso - concordou Soeur Extase. Nada próprio mesmo.- Isso é por ser uma salannaise - disse DésirEe. - Não é uma houssine de falas mansas. - Sorriu e pegou na mão de Aristide. - Quem me dera que aqui tivesses estado, Aristide, Gostava que ativesses ouvido falar. Já passou demasiado tempo desde que o nosso filho morreu afogado; já lá vão trinta anos. Desde então só tem havido amargura e raiva. Não eras capaz de chorar, não eras capaz de rezar, fizeste com que o nosso outro filho se fosse embora por causa da tua ira e das tuas ameaças...- Cala-te - disse Aristide, com uma expressão dura no rosto. Désirée abanou a cabeça.154- Desta vez não - disse. - Tu arranjas brigas com toda a gente. Até brigas com a Mado quando ela sugere que a vida devia continuar em vez de parar aqui. O que tu realmente queres é vertudo afundar-se com o Olivier. Tu. Eu. Xavier. Que desapareçam todos. Que tudo acabe.Aristide olhou para ela. - Désirée, por favor...- É um milagre, Aristide. É como se ele próprio tivesse falado comigo. Só queria que tivesses assistido! - E na luz rósea, ergueu o rosto para a santa e, nesse momento, vi algo precipitar-se suavemente sobre ela do nicho escuro lá no alto; algo que se assemelhava a neve perfumada. Désirée Bastonnet estava ajoelhada em Pointe Griznoz, rodeada de flores de mimosas.Nesse instante, todos os olhos se viraram para a alcova da santa. Por segundos, teve-se a sensação de algo que se movia... uma sombra fugidia, talvez projectada pelas lanternas.- Está alguém lá em cima! - vociferou Aristide e, arrebatando a espingarda das mãos do neto, apontou e disparou na direcção da santa, no nicho. Ouviu-se um estrépito forte, que reboou no silêncio súbito.

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- Só mesmo o Aristide é que seria capaz de disparar contra um milagre - disse Toinette. - Se pudesses, até disparavas contra a Virgem de Lourdes, meu idiota, não disparavas?Aristide parecia embaraçado.- Eu tive a certeza de ter visto alguém.Désirée levantara-se finalmente, ainda com as mãos cheias de flores.- Eu sei que viste.A confusão durou vários minutos. Xavier, Désirée, Aristide e as freiras estavam no centro dessa barafunda, cada um tentando estancar a onda de perguntas que caíam sobre eles. As pessoas queriam ver as flores miraculosas, ouvir as palavras da santa, inspeccionar os sinais na parede da capela. Ao olhar para lá de La Pointe, por momentos julguei ver algo agitar-se nas ondas e num minuto de calmaria da maré pareceu-me ouvir um baque como de algo a cair na água. Mas podia ser qualquer coisa. O vulto no nicho, se é que lá estivera, tinha desaparecido.15523U ma rodada de bebidas no bar do Angélo, reaberto para essa ocasião excepcional, contribuiu grandemente para acalmar os ânimos. Esqueceram-se as apreensões e as suspeitas, a devinnoise correu livremente e meia hora depois o cenário parecia quase carnavalesco. As crianças, felizes por terem uma desculpa para estarem a pé, jogavam flipper num dos cantos do bar. Não havia escola na manhã seguinte, o que era só por si motivo suficiente para comemorar. Xavier olhava Mercédès furtivamente e, pela primeira vez o seu olhar foi correspondido. Toinette, entre bebidas, ia insultando jovialmente toda a gente que podia. As freiras tinham finalmente convencido Désirée a voltar para a cama, mas Aristide estava ali, parecendo estranhamente pacato. Flynn entrou na cauda da multidão, com um gorro de malha preto que lhe cobria os cabelos. Deu-me uma piscadela de olhos rápida e foi sentar-se discretamente numa mesa atrás da minha. Grosjean estava sentado ao meu lado com um copo de devinnoise e fumava um Gitane, sem deixar de sorrir. Depois de ter receado que a estranha cerimónia o tivesse perturbado de algum modo, percebi que pela primeira vez desde o meu regresso, o meu pai se sentia verdadeiramente feliz.Ficou ao meu lado durante mais de uma hora, depois saiu tão discretamente que quase nem dei por isso. Não tentei segui-lo; não queria perturbar o equilíbrio delicado que existia entre nós. Mas pela janela fiquei a observá-lo enquanto se encaminhava para casa, e a ponta do cigarro era a única coisa vagamente visível sobre a duna.156

A discussão prosseguiu. Matthias, sentado na mesa maior com os salannais mais influentes à volta dele, estava firmemente convencido de que a aparição de Sainte-Marine se tratava efectivamente de um milagre.- Que outra coisa podia ser? - perguntava, emborcando uma terceira devinnoise. - A história está cheia de exemplos de intercessões sobrenaturais na vida de todos os dias. Porque não aqui?As variantes da história eram já tantas quantas as testemunhas. Alguns declaravam que tinham visto a santa voar para o nicho no campanário em ruínas. Outros tinham ouvido uma música espec tral. Toinette, a quem fora dado um lugar de honra ao lado de Matthias e de Aristide, imensamente feliz com a atenção, beberricava o licor e explicava que fora a primeira a reparar nos sinais na parede da igreja. Afirmava que não havia dúvidas que se tratava de um milagre. Quem é que podia ter descoberto a santa desaparecida? Quem é que a podia ter transportado a santa ao longo de todo o trajecto até La Griznoz? Quem é que a podia ter içado para o nicho? Certamente que nenhum ser humano. Não era pura e simplesmente possível.- Para não falar do sino - declarou Omer. - Todos nós o ouvimos. Que outra coisa podia ter sido senão La Marinette? E os sinais no muro da igreja...A convicção geral era de que algo de sobrenatural acontecera. Mas qual o significado? Désirée interpretara-o como uma mensagem do filho. Aristide não abriu a boca, mas manteve-se inusitada mente pensativo enquanto bebia. Toinette afirmava que a nossa sorte ia mudar. Matthias auspiciava

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melhores pescarias. Capucine saiu, levando Lolo consigo, mas também ela parecia menos exuberante do que de costume e eu interrogava-me se não estaria a pensar na filha no continente. Tentei captar a atenção de Flynn, mas pareceu-me satisfeito com o rumo da discussão. Imitei-o e fiquei à espera.- Estás a perder faculdades, Ruivo - comentou Alain. - Pensei que tu, ao menos, fosses capaz de nos dizer como é que a santa conseguiu escalar sozinha La Griznoz.Flynn encolheu os ombros.- Não faço ideia! Se eu pudesse fazer milagres, estaria longe deste buraco, a beber champanhe em Paris.157A maré amainara e o vento também. As nuvens começavam a dispersar e por detrás delas o céu era de um vermelho escuro com o dealbar da madrugada. Alguém sugeriu que voltássemos à capelapara inspeccionarmos a cena à luz do dia. Formou-se um pequeno grupo de voluntários; os outros voltaram para as suas casas, cambaleando ligeiramente, pela estrada acidentada.Depois de um exame meticuloso das marcas na parede da igreja, não ficámos mais esclarecidos. Pareciam chamuscadas, como que cauterizadas nas pedras; mas não se distinguiam quaisquer letras, apenas uma espécie de desenhos primitivos e alguns números. - Parece... uma espécie de plano - disse Omer La Patate. - Podiam ser dimensões aqui gravadas.- Talvez tenha algum significado religioso - sugeriu Toinette. - Devíam perguntar às freiras. - Mas as freiras tinham ido com Désirée e ninguém queria perder pitada para as ir buscar.- Talvez o Ruivo saiba - sugeriu Alain. - Afinal, não é ele o intelectual?Várias cabeças anuíram num gesto de assentimento.- É verdade, o Ruivo que venha cá. Vá lá, deixem-no passar. Flynn não se apressou. Observou as marcas chamuscadas de diversos ângulos. Semicerrou os olhos, olhou de soslaio, verificou o vento, caminhou até à beira da falésia e olhou para o mar, depois voltou a aproximar-se e tocou as marcas com as pontas dos dedos. Se eu não soubesse, teria acreditado que ele nunca as tinha visto antes na sua vida. Todos o observavam, intimidados e expectantes. Por trás dele rompia a manhã.Finalmente, ergueu os olhos.- Sabes o que isso significa? - perguntou Omer, incapaz de controlar a sua impaciência por mais tempo. - Foi a santa?Flynn assentiu e, apesar de o seu rosto se manter sério, eu apostava que sorria por dentro.158

ristide, Matthias, Alain, Omer, Toinette, Xavier e eu escutávamos em silêncio enquanto Flynn ia explicando. Depois Aristide explodiu.- Uma Arca? Estás a dizer que ela quer que nós construamos uma Arca?Flynn encolheu os ombros.- Não exactamente. Trata-se de um recife artificial, de um muro flutuante, de uma barreira. Como lhe quiserem chamar, mas podem ver como funciona. A areia aqui - apontou para um pontodistante em La Jetée - em vez de ser arrastada para a costa, volta para aqui, para La Goulue. Um tampão, se quiserem, para impedir que Les Salants continue a escoar-se para o mar.Seguiu-se novo silêncio, atónito.- E achas que foi a santa que deixou isto? - disse Alain. - Quem senão ela? - perguntou Flynn, inocentemente. Matthias concordou.- Ela é a nossa santa - disse devagar. - Pedimos-lhe que nos salvasse. Esta deve ser a sua maneira de o fazer.Mais acenos de concordância. Fazia sentido. Obviamente, o desaparecimento da santa tinha sido mal interpretado: tinha aproveitado aquele espaço de tempo para congeminar o plano.Omer olhava para Flynn.- Mas nós não temos nada para construir um muro - protestou. - Lembras-te do que eu paguei só

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para trazer a pedra para o moinho, hem? Custou-me uma fortuna.159Flynn abanou a cabeça.- Não precisamos de pedra. Tem de ser qualquer coisa que flutue. E não é um molhe. Um molhe pode travar a erosão... durante algum tempo, pelo menos. Mas isto é muito melhor. Uma barreira, devidamente posicionada, constrói as suas próprias defesas. Basta dar-lhe tempo.Aristide abanou a cabeça.- Nunca conseguirás que isso funcione, nem daqui a dez anos. Mas Matthias parecia intrigado.- Acho que sim - disse lentamente. - Mas com que material? Não se pode construir uma barreira com papel e saliva, Ruivo. Nem tu consegues fazer isso.Flynn ficou a pensar durante algum tempo.- Pneus. Pneus de automóveis. Flutuam, não flutuam? Arranjam-se quase ao preço da chuva em qualquer garagem. Há sítios onde até pagam para os levarem. Carregam-se em barcos, presos com correntes...- Carregam-se em barcos? - interrompeu Aristide. - Que barcos? Vão ser precisas centenas, talvez milhares de pneus para aquilo que estás a sugerir. Que...- Há o Brismand 1 - sugeriu Omer La Patate. - Podemos alugá-lo.- Pagar uma exorbitância a um houssin! - explodiu Aristide. - Isso é que era mesmo um milagre!Alain ficou a olhá-lo durante muito tempo em silêncio.- A Désirée tinha razão - disse por fim. - Nós já perdemos demasiadas coisas. Já perdemos demasiado.Aristide rodou apoiado na bengala, mas tenho a certeza de que ainda estava a ouvir.- Não podemos reaver tudo o que perdemos - prosseguiu Alain num tom tranquilo. - Mas podemos tentar não perder mais nada. Podemos tentar recuperar o tempo perdido. - Olhava para Xavier enquanto falava. - Devíamos lutar contra o mar em vez de nos guerrearmos uns com os outros. Devíamos pensar nas nossas familias. Os mortos estão mortos; mas tudo retorna. Se nós deixarmos.Aristide olhou para ele sem dizer uma palavra. Omer, Xavier, Toinette e os outros observavam, expectantes. Desde que os Guénolés e os Bastonnets aceitassem o plano, todos os outros aderiam.160Matthias olhava, impenetrável por detrás do seu bigode de capitão. Flynn sorria. Eu contive a respiração.E então Aristide fez o breve aceno que é considerado como sinal de respeito na ilha. Matthias correspondeu. Apertaram as mãos.Brindámos à sua decisão sob o olhar de pedra de Marine-de-la_Mer, a santa padroeira das coisas perdidas no mar.16125Já era manhã quando cheguei a casa. Não vi rastos de GrosJean em parte nenhuma, mas as persianas ainda estavam corridas, pelo que presumi que voltara para a cama e segui-lhe o exemplo.Acordei ao meio-dia e meia quando ouvi bater à porta e fui a cambalear e meio a dormir até à cozinha para ver quem era.Era Flynn.- Acorda! - espicaçou, trocista. - É agora que o trabalho mais duro começa a sério. Estás pronta?Deitei um olhar rápido à minha figura. Descalça, ainda meio vestida com a roupa húmida e amarrotada da noite da véspera, com o cabelo cheio de sal espetado como uma vassoura. Ele, por seulado, ostentava o mesmo ar jovial de sempre, com o cabelo esticado e atado atrás sobre a gola do sobretudo.- Não precisas de te mostrar tão satisfeito contigo próprio - disse eu.- Porque não? - Sorriu. - Acho que correu bem. Pus a Toinette a recolher donativos, além disso encomendei alguns engradados na fábrica de embalagem de peixe para construir os módulos da barreira. O Alain vai pôr-se em contacto com a garagem. Pensei que talvez tu pudesses dispensar

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alguns cabos e correntes para a ancoragem. O Omer trata do cimento. Ainda tem algum material que lhe sobrou das obras do moinho. Se o tempo se aguentar assim, talvez possamos acabar por volta do fim do mês. - Fez uma pausa, ao ver a minha expressão. - Muito bem - acrescentou, prudente162- algo me diz que tenho a cabeça em risco. Que se passa? Queres um café?- Tens cá uma lata - respondi.- O que é agora? - Abriu muito os olhos, divertido.- Ao menos podias ter-me avisado. Tu e os teus milagres. E se as coisas tivessem corrido mal? E se GrosJean...- E eu que pensava que tinhas ficado satisfeita - disse Flynn. - É ridículo. Dentro de pouco tempo vai haver um santuário em La Pointe... e virá gente para ver o sítio do milagre.- Isso seria óptimo para o negócio - disse Flynn. Ignorei-o.- Foi uma crueldade. O modo como todos eles caíram... a pobre Désirée, Aristide, até o meu pai. Presas tão fáceis, todos eles. Gente desesperada e supersticiosa. Conseguiste mesmo convencê-los, não conseguiste? E divertiste-te com isso.- E depois? Funcionou, não funcionou? - Parecia ofendido. - As coisas são o que são, não é? Não tem nada a ver com os salannais e com a sua dignidade. Estás furiosa por eu ter conseguido fazer o que tu não conseguiste. Eu, um estranho. E eles ouviram-me.Talvez fosse verdade. E não fiquei a gostar mais dele por chamar a atenção para o facto.- Mas a noite passada, não fizeste quaisquer objecções - disse Flynn.- Nessa altura não sabia o que ias fazer. Aquele sino...- La Marinette. - Sorriu. - Achei que era uma óptima ideia. Um gravador e uns altifalantes velhos.- E a santa? - Não me agradava nada a ideia de lisonjear a sua presunção, mas estava curiosa.- Encontrei-a no dia em que te encontrei em La Bouche. Ia contar a GrosJean, lembras-te? Tu estavas convencida de que eu tinha andado na pesca furtiva.Lembrava-me. Era provável que se tivesse sentido atraído pela encenação, pelo aspecto teatral, pela poesia da festa da santa, com as lanternas, os hinos: os salannais têm um certo pendor para o pitoresco.- Tirei as vestes cerimoniais e a coroa da sacristia de La Houssinière. O padre Alban quase me apanhou com a boca na botija, mas consegui escapulir-me a tempo. As freiras foram fáceis de levar.163Claro que foram. Tinham estado à espera daquilo uma vida inteira.- Como é que conseguiste levar a estátua lá para cima? Encolheu os ombros.- Com a ajuda do guincho. Transportei-o pela areia molhada na maré baixa e icei-a para o lugar dela. Quando o mar subisse, pareceria impossível. Um milagre instantâneo. Bastava apenas acrescentar água.Depois de reflectir um pouco, era realmente óbvio. Quanto ao resto, um ramo de flores, foguetes de sinalização, grampos de escalada incrustados na parte de trás da parede da capela, a canoa anco rada nas imediações para uma saída de emergência. Tudo parecia demasiado fácil depois de se ter a solução. Tão fácil que era quase um insulto.- O único momento delicado foi quando Aristide me viu em cima do muro - disse, sorrindo. - O sal-gema não faz grande mossa, mas arde. Felizmente só me atingiu de raspão.Não lhe devolvi o sorriso. Já se mostrava demasiado satisfeito consigo mesmo.Naturalmente que ele não pudera fazer especulações sobre o resultado. A questão só por si já era suficientemente complicada. Em boa verdade, deviam ser feitos cálculos, complexas fórmulas matemáticas baseadas na velocidade de queda dos grãos de areia, sobre a inclinação da costa e a frequência da rebentação. Em grande parte teríamos de nos apoiar em meras conjecturas, mas era o melhor que se podia fazer num espaço de tempo tão curto.- Não prometo nada - avisou Flynn. - É só para tapar um buraco e não uma solução permanente.- E se funcionar?- Na pior das hipóteses, vai atrasar os prejuízos durante algum tempo.- E na melhor?

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- O Brismand tem andado a roubar areia de La Jetée. Porque não havemos de fazer o mesmo?- Areia de La Jetée - repeti.- O suficiente para um ou dois castelos. Talvez mais. - Mais - disse eu, sofregamente. - Mais. 164

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Para quem vem do continente deve ser difícil de entender. Ao fim e ao cabo, a areia não é uma metáfora da permanência. Tudo o que se escreve na areia evola-se num ápice e os castelos construídos com amor são arrasados. A areia é obstinada e evasiva. Consegue polir a rocha e tragar muralhas sob as dunas. Nunca permanece a mesma. Em Le Devin, a areia e o sal são tudo. Os alimentos crescem já salgados num solo que quase não merece esse nome; as ovelhas e cabras que pastam nas dunas têm uma carne delicada, com um sabor salgado. É com areia que fabricamos os tijolos e a argamassa. É com areia que construímos os fornos e as estufas. Esta ilha já mudou de forma mil vezes. Vacila na borda do Nid'Poule, derramando-se aos bocados a cada ano que passa. Mas a areia, vinda de La Jetée, renova-a, enroscando-se à volta da ilha como a cauda de uma sereia, movendo-se imperceptivelmente de um lado para outro em lentas vagas de espuma coalhada, rodando sobre si, suspirando, revirando-se. Tudo pode mudar, mas haverá sempre areia.Se digo isto é para que os continentais possam perceber a excitação que senti durante essas breves semanas e depois. A primeira semana foi dedicada a planear. Depois foi trabalho, trabalho e maistrabalho. Acordávamos às cinco da manhã e acabávamos já pela noite dentro. Quando estava bom tempo, trabalhávamos ininterruptamente até ao dia seguinte; quando o vento soprava demasiado forte ou quando chovia, trazíamos o trabalho para casa - para o165hangar dos barcos, para o moinho de Omer, para um barracão vazio onde se costumava guardar batata - para não perdermos tempo.Omer foi com Alain a La Houssinière para tratar do aluguer do Brismand 1, sob o pretexto de que precisava dele para fazer umas entregas de materiais de construção. Claude Brismand acedeude bom grado; era época baixa e, salvo qualquer imprevisto, a barcaça só era usada uma vez por semana para entrega de vitualhas e para remover as caixas da fábrica de peixe. Aristide sabia da existência de um depósito de pneus na estrada para Pornic e negociou as entregas no Brismand 1 servindo-se dos mesmos camionistas que normalmente entregavam as latas de cavala da fábrica. Ficou decidido que o padre Alban se encarregaria das contas - era a única pessoa contra a qual nem os Bastonnets nem os Guénolés tinham qualquer objecção. Além disso, como dizia Aristide, mesmo um continental pensaria duas vezes antes de enganar um sacerdote.Os fundos vieram das fontes mais improváveis. Toinette apareceu com treze Luíses de ouro que tinha escondidos numa meia debaixo do colchão, e de que nem a família sabia. Aristide Bastonnet doou dois mil francos das suas economias. Para não ficar atrás, Matthias Guénolé ofereceu dois mil e quinhentos francos. Outros contribuíram com quantias mais modestas: duzentos francos de Omer, mais cinco sacas de cimento; quinhentos francos de Hilaire, outros quinhentos de Capucine. Angélo não deu dinheiro, mas prometeu cerveja de graça para todos os trabalhadores enquanto durasse o projecto. A promessa garantiu um aumento estável de mão-de-obra, embora Omer tivesse de levar uma reprimenda por diversas vezes por passar mais tempo no café do que à volta dos módulos.Telefonei à minha senhoria em Paris e disse-lhe que não voltava. Concordou em meter os meus móveis num depósito e enviar-me por comboio para Nantes as poucas coisas de que precisava:roupa, livros e material de pintura. Transferi todo o dinheiro que me restava da minha conta-poupança e fechei-a. Não precisava de conta bancária em Les Salants.Flynn achava que a barreira tinha de ser construída por secções. Cada secção era composta por cento e cinquenta pneus, presos uns aos outros por cabos de aeroplano, mandados vir do166continente, e empilhados. Eram necessários no total doze desses módulos, montados em terra e

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depois colocados na maré vazante em La Jetée. Lajes de cimento, muito semelhantes às que são usadas na ancoragem dos barcos da ilha, eram colocadas no leito do mar como âncoras, com a ajuda de mais cabos para prender os módulos. Como só dispúnhamos do guincho do estaleiro dos barcos para transportar os materiais pesados, o trabalho era penoso e, por várias vezes, teve de ser interrompido por não ser possível trazer os materiais necessários a tempo, mas todos faziam o que podiam.Toinette trazia bebidas quentes aos trabalhadores a La Pointe. Charlotte fazia sanduíches. Capucine, metida num fato-macaco e com um gorro de malha, juntou-se à brigada da mistura do cimento, envergonhando alguns dos elementos mais reticentes do sexo masculino e obrigando-os a colaborar. Mercédès permanecia sentada durante horas na duna, pretensamente como mensageira, embora na realidade parecesse mais interessada em observar os homens a trabalhar. Eu conduzia o guincho. Omer empilhava pneus enquanto Ghislain Guénolé os juntava nos engradados. Na maré baixa, um batalhão de crianças, de mulheres e de homens mais velhos escavavam covas fundas para meterem as placas de ancoragem e usávamos o reboque para levar as lajes para La Jetée na maré baixa, assinalando o local com bóias. O barco dos Bastonnet, o Cécilia, saía na preia-mar para inspeccionar o movimento dos módulos. E durante todo esse tempo, Flynn movimentava-se no meio de nós com um maço de papéis na mão, medindo distâncias, calculando ângulos e a velocidade do vento, olhando apreensivo as correntes que se cruzavam e encurvavam em direcção a La Goulue. A santa observava-nos do nicho em Pointe Griznoz, com o rochedo por baixo salpicado de cera branca das velas. Oferendas, sal, flores, taças de vinho, amontoavam-se nas pedras aos pés da santa. Aristide e Matthias revezavam-se, mantendo as tréguas, cada um procurando ultrapassar o outro na corrida para a ultimação das obras. Por causa da perna de pau, o velho Bastonnet não podia fazer nenhun tipo de trabalho pesado e, como compensação, incitava o desgraçado do neto, em desvantagem de dois para um face aos Guénolés, i duplicar os seus esforços.À medida que o trabalho ia progredindo, via o estado do meu pai melhorar a olhos vistos. Já não passava tanto tempo em La167Bouche; em vez disso, ficava a observar os trabalhos de construção embora raramente tomasse parte activa. Via-o muitas vezes, um vulto maciço que se destacava no cimo da duna, imperturbável e imóvel. Em casa, sorria com mais frequência e falava comigo várias vezes por monossílabos. Sentia uma mudança mesmo na natureza dos seus silêncios e nos seus olhos já não havia a mesma expressão de vazio. Às vezes não se ia deitar e ficava a ouvir rádio ou a observar-me enquanto eu fazia alguns esboços rápidos no meu bloco de desenho. Uma ou outra vez pareceu-me notar uma certa desordem nos desenhos, como se alguém tivesse estado a folheá-los. Depois disso, passei a deixar o bloco dos esboços onde ele o pudesse examinar à vontade, embora nunca o fizesse na minha presença. Era um começo, pensei para comigo. Mesmo com Grosjean, algo parecia estar prestes a voltar à superfície.E claro que havia Flynn. Aconteceu antes que eu me apercebesse, insidiosamente, aos poucos, numa erosão progressiva das minhas defesas, que me foi encontrar confusa e inconsciente. Dei comigo a observá-lo sem saber porquê, a estudar as suas expressões como se tivesse um retrato em mente, a procurá-lo no meio da multidão. Poucas palavras tínhamos trocado desde aquela manhã depois do milagre, mas de qualquer maneira as coisas pareciam ter mudado entre nós. Pelo menos, eu assim achava. Era uma conjugação de circunstâncias. Reparava em coisas em que nunca tinha reparado antes. Fomos empurrados um para o outro pela tarefa que tínhamos em mãos. Transpirávamos juntos a atar pneus, encharcávamo-nos juntos na maré enchente quando nos debatíamos para fixar os módulos no devido sítio. Bebíamos juntos no Angélo. E partilhávamos um segredo que nos unia. Tornava-nos conspiradores; quase amigos.Flynn era um excelente ouvinte quando era preciso e era, ele próprio, uma fonte inesgotável de anedotas divertidas e de histórias extravagantes, relatos de Inglaterra, da índia e de Marrocos. A maior parte delas não faziam sentido, mas ele viajara, conhecia lugares e gentes, pratos e costumes, rios e pássaros. Graças a ele, também eu viajei pelo mundo fora. Mas sentia sempre que havia uma parte oculta nele, um lugar donde eu estava excluída. Isso não me devia perturbar. Se ele me tivesse

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perguntado o que é que eu queria dele, talvez fosse difícil para mim responder-lhe.168O lar que Flynn construíra para si no velho bunker era confortável, mas improvisado. Uma divisão interior ampla, limpa e caiada de branco, uma janela virada para o mar, cadeiras, mesa, cama, tudofeito com o bricabraque apanhado no litoral. O efeito resultava excêntrico, mas de certa maneira agradável, aliás como ele próprio: conchas incrustadas no estuque à volta da janela, cadeiras feitas de pneus de automóvel cobertas de oleado. Uma cama de rede, feita de uma velha rede de pesca, dependurada do tecto. Lá fora, o zunido do gerador.- Não posso acreditar no que conseguiste fazer deste lugar - comentei quando o vi. - Dantes era um cubo de cimento cheio de areia.- Eu não podia ficar com a Capucine para sempre - disse. - As pessoas começavam a falar. - Pensativo, traçou com o pé os contornos de conchas no chão de cimento. - Mas sou um bom náufrago, não achas? - Observou. - Tenho todos os confortos de um lar.Notei uma nota melancólica na sua voz ao pronunciar aquelas palavras.- Náufrago? É assim que tu te vês? Flynn riu.- Esquece.Não esqueci; mas sabia que era impossível fazê-lo falar quando ele não queria. No entanto, o seu silêncio não me impedia de especular. Teria vindo para Le Devin para fugir a qualquer tipo deproblema legal? Era possível; as pessoas como Flynn caminham constantemente sobre o fio da navalha e perguntara a mim mesma várias vezes como é que tinha vindo parar a Le Devin, uma ilha tão pequena que quase não aparece nos mapas.- Flynn - disse eu por fim. - Sim?- Onde é que nasceste?- Num lugar como Les Salantes - disse despreocupado. - Uma pequena aldeia na costa de Kerry. Um lugar com uma praia e pouco mais.Afinal, não era bem Inglaterra. Interrogava-me que outras suposições erradas eu fizera acerca dele.169- Não pensas voltar para lá? - Achava difícil que alguém não se interessasse pelo lugar onde nascera, e imaginava nele algo equivalente ao instinto que me atraía para casa.- Voltar? Bolas, não! Voltar para quê? Olhei para ele.- Porque vieste para aqui?- Um tesouro dos piratas - disse-me Flynn num tom misterioso. - Milhões de francos, uma fortuna em dobrões. Quando os descobrir, desapareço daqui... pfff!... num ápice. Bom dia, Las Vegas. - Fez um sorriso rasgado. E no entanto pareceu-me detectar de novo a mesma nota de melancolia, quase de mágoa, na sua voz.Percorri com os olhos o quarto uma vez mais e, pela primeira vez, dei-me conta que, apesar da sua jovialidade, não havia um único objecto pessoal à vista; nem uma fotografia, nem um livro, nem uma carta. Podia ir-se embora dali no dia seguinte, disse para mim, sem deixar qualquer traço de quem era nem de para onde ia.170

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As semanas seguintes trouxeram marés mais altas e ventos mais fortes. O agravamento do estado do tempo fez-nos perder três dias de trabalho. A lua foi amadurecendo, passando de um gomo a uma talhada. A lua cheia no equinócio traz tempestades. Nós sabíamos e lutávamos contra o tempo, observando o seu perfil cambiante sem uma palavra.Depois da minha visita a Les Immortelles, Brismand mantivera-se inusitadamente silencioso. No entanto, eu pressentia a sua curiosidade, a sua vigilância. Enviara-me um bilhetinho com um ramo de flores na semana seguinte à minha visita e um convite sem prazo para ficar no hotel se as coisas se tornassem muito difíceis em Les Salants. Parecia não saber de nada sobre o nosso trabalho e presumia que eu passava o tempo a tornar a casa mais habitável para GrosJean. Louvava a minha

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dedicação, embora não deixasse de mencionar que estava profundamente magoado e pesaroso pela minha falta de confiança nele. Por último, esperava que eu usasse o seu presente e expressava o desejo de me ver com ele em breve. De facto, o vestido vermelho permanecia embrulhado no fundo do meu guarda-vestidos. Não me atrevera a experimentá-lo. Além disso, agora que a barreira estava quase a chegar ao fim, havia muito trabalho para fazer.Flynn entregara-se de todo o coração ao projecto. Por mais que o resto de nós trabalhasse no duro, Flynn estava sempre no meio da luta, deslocando os carregamentos, fazendo testes, estudando171diagramas, arengando com os mais recalcitrantes. Nunca esmorecia; mesmo quando as marés começaram a engrossar quase uma semana mais cedo do que o previsto, não desanimou. Nessa altura agia como um salannais, disputando ao mar a sua tira de terra.- Afinal, porque é que fazes isto? - perguntei-lhe numa noite, já tarde, quando mais uma vez ele ficara depois dos outros no hangar dos barcos para fazer as junções dos módulos acabados. - Disseste-me uma vez que não valia a pena.Estávamos sozinhos no hangar e a luz balbuciante do único tubo de néon era insuficiente para a tarefa que tínhamos em mãos. O cheiro a óleo e a borracha dos pneus era opressivo. Flynn olhou-me de soslaio do alto do módulo que estava a inspeccionar.- É uma reclamação?- Claro que não. Só gostava de saber o que é que te fez mudar de ideias.Flynn encolheu os ombros e afastou o cabelo que lhe caía para os olhos. O néon iluminava-o com uma luz crua, tingindo-lhe o cabelo de uma coloração vermelha inimaginável e tornando o seu rosto ainda mais pálido do que o habitual.- Deste-me uma ideia, foi só isso. - Eu?Assentiu com a cabeça. Senti-me ridiculamente feliz perante a ideia de ter sido eu o catalizador.- Percebi que com uma certa orientação, Grosjean e os outros podiam aguentar-se em Les Salants durante bastante tempo - disse ele, servindo-se de um alicate industrial para apertar as jun ções num dos cabos de aeroplano. - Achei que podia dar-lhes um empurrão.Lhes. Reparei que ele nunca dizia nós, apesar de ter sido aceite mais prontamente do que eu.- E tu? - perguntei, de súbito. - Vais ficar por cá? - Durante algum tempo.- E depois?- Quem sabe?Olhei para ele durante alguns momentos, tentando sondar a sua indiferença. Lugares, pessoas, nada parecia deixar uma impressão duradoura nele, como se fosse capaz de atravessar a vida do mesmo modo que uma pedra atravessa a água, limpa e imperturbável.172Desceu de cima do módulo, limpou o alicate e guardou-o na caixa de ferramentas.- Estás com um ar cansado.- É da luz. - Voltou a puxar o cabelo para trás, deixando uma mancha de óleo na cara. Limpei-lha.- Quando nos encontrámos pela primeira vez, julguei-te um bocado do tipo calaceiro. Estava enganada.- É simpático dizeres isso.- E também nunca te agradeci tudo o que fizeste pelo meupai.Começava a mostrar-se constrangido.- Não foi nada. Ele deixou-me ir viver para o bunker. Estou-lhe grato. - Havia uma nota de determinação na sua voz, que sugeria que qualquer outra expressão de gratidão não seria bemrecebida. Mas apesar disso, por qualquer razão, não sentia vontade de o deixar partir.- Tu não falas muito da tua família - disse eu, enquanto puxava uma ponta do oleado para cobrir o módulo concluído.- É porque não penso muito neles.Uma pausa. Ignorava se os pais dele teriam morrido; se chorava a sua morte; se havia mais alguém. Uma vez mencionara um irmão, com um desapego casual que me fez pensar em Adrienne. Portanto,

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aí não havia afecto. Talvez gostasse que as coisas fossem assim, pensei para comigo: não ter quaisquer laços, nem responsabilidades. Ser uma ilha.- Porque fizeste isto? - Repeti por fim. - Porque é que decidiste ajudar-nos?Voltou a encolher os ombros, num gesto de impaciência.- Sabe-se lá! Era uma tarefa que tinha de ser feita. Porque aconteceu assim, suponho eu. E porque eu podia fazê-la.Porque eu podia fazê-la. Era uma frase que voltaria a obcecar-me muito mais tarde; naquele momento tomei-a como um sinal da sua adopção de Les Salants e senti uma súbita vaga de afeição porele; pela sua indiferença aparente, pela sua falta de irascibilidade, Pelo modo metódico como arrumava as ferramentas na caixa apesar de estar meio-morto de cansaço.O Ruivo, que nunca tomava partido, estava do nosso lado.173

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Completámos os módulos no hangar e preparámo-nos para os colocar no seudevido lugar. Os ancoradouros de cimento já estavam prontos em La Jetée, juntamente com seis dos módulos já completados, e agora só faltava transportar os módulos restantes com o reboque para os baixios e depois de barco para o lugar indicado para serem presos com correntes aos ancoradouros. Seriam necessárias algumas experiências, os cabos teriam que ser encurtados ou estendidos, e alguns módulos deslocados. Poderia demorar algum tempo a decidir a melhor forma de o fazer. Mas, segundo Flynn, depois disso, a barreira encontraria a posição adequada de acordo com a direcção do vento e tudo o que tínhamos a fazer era aguardar para ver se a experiência resultara.Durante cerca de uma semana o mar esteve demasiado agitado para se alcançar La Jetée e o vento demasiado forte para se poder trabalhar. Fustigava a duna, levantando no ar lençóis de areia. Partiu postigos e ferrolhos. Quase arrastou a maré para as ruas de Les Salants e agitava as vagas em Pointe Griznoz numa escuma alucinada. Até o Brismand 1 não saiu para o mar e começámos a duvidar se haveria um período de calmaria suficiente que nos permitisse acabar a barreira semimontada.- Está a começar cedo - anunciou Alain, pessimista. - Dentro de oito dias é lua cheia. Tal como está, o tempo não vai acalmar antes disso.Flynn abanou a cabeça.174- Só precisamos de um dia bom para acabarmos - disse ele. _ Carregamos o material na maré baixa. Já está todo pronto e à espera. Depois disso, a barreira toma conta de si própria.- Mas as marés estão todas ao contrário - protestou Alain. _ A água não baixa o suficiente nesta época do ano. E o vento marítimo não ajuda, hem? Puxa a maré para trás.- Havemos de nos arranjar - declarou Omer com firmeza. - Não vamos desistir agora que estamos tão perto do fim.- O trabalho está feito - concordou Xavier. - Já só faltam os acabamentos.Matthias mostrou-se cínico.- O teu Cécilia não aguenta - disse, contundente. - Viste o que aconteceu ao Eleanore e ao Korrigane. Estes barcos não estão adaptados a este tipo de mar. Devíamos esperar por uma calmaria.E assim foi. Esperávamos no Angélo, taciturnos, como velhas carpideiras a velar um morto. Alguns dos homens mais velhos jogavam às cartas. Capucine sentava-se num canto com Toinette esimulava interesse numa revista. Alguém meteu uma moeda na jukebox. Angélo oferecia cerveja que poucos de nós tínhamos vontade de beber. Preferíamos ver os boletins meteorológicos num fascínio macabro; nuvens de trovoada de banda desenhada perseguiam-se umas às outras no mapa de França enquanto uma rapariga bem disposta aconselhava precauções. Não muito longe, na ilha de Sein, a maré já tinha arrasado casas. Lá fora, o horizonte trovejava e relampejava. Era noite: a maré estava na vazante máxima. O vento cheirava a fumo de pólvora.

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Flynn afastou-se da janela onde estava postado a olhar o céu.- Vai começar - disse ele. - Amanhã talvez seja demasiado tarde.Alain olhou para ele.- Não estás a dizer que devemos fazer isto esta noite? Matthias estendeu a mão para a sua devinnoise e riu-se, de forma pouco agradável.- Viste como está lá fora, não viste, Ruivo? Flynn encolheu os ombros e não disse nada.- Muito bem, não me apanhas lá fora esta noite - disse o velho. - Com La Jetée mergulhada na escuridão, com um temporal175iminente e a maré quase a virar. Uma boa maneira de um tipo se matar, hem? Ou pensas que a santa te vai salvar?- Penso que a santa fez tudo o que tinha a fazer - disse Flynn. - A partir de agora, é a nossa vez. E acho que se quisermos acabar o trabalho, tem de ser agora. Se não prendermos os primeiros módulos depressa, perdemos a oportunidade.Alain abanou a cabeça.- Só um louco é que sairia numa noite destas. Aristide soltou uma risadinha cínica no seu canto.- Estás muito confortável aqui, não estás? Vocês, Guénolés, foram sempre os mesmos. Ficam no café a congeminar planos, enquanto a vida real corre lá fora. Eu vou - disse ele, levantando-secom dificuldade. - Pelo menos seguro a lanterna se não puder fazer mais nada.Matthias levantou-se de um ápice.- Tu vens comigo - arremessou-se contra Alain. - Não admito que um Bastonnet venha dizer que um Guénolé teve medo de um trabalho de pouca monta e de uma porção de água. Despacha-te e rápido! Se ao menos eu tivesse o meu Korrigane o trabalho ficava feito em metade do tempo, mas não há nada a fazer. Porque é... - O meu Péoch fazia o teu Korrigane parecer uma baleia que deu à costa - ripostou Aristide. - Lembro-me dos tempos em que...- Então vamos ou não? - interrompeu Capucine, pondo-se de pé. - Eu cá lembro-me dos tempos em que vocês os dois serviam para mais qualquer coisa além de conversa!Aristide olhou para ela e corou por baixo do bigode.- Hei, La Puce, isto não é trabalho para ti - disse, com aspereza. - Eu e o meu rapaz...- É trabalho para todos - disse Capucine, enfiando a vareuse.Deve ter parecido uma estranha procissão enquanto caminhávamos pela água baixa em direcção a La Jetée. Eu conduzia o guincho sobre as correntes de lagarta, com o único farol varrendo os baixios, projectando sombras movediças dos voluntários enfiados em botas de borracha e vareuses. Eu conduzia pela beira de água, transportando o Cécilia atrás de mim, no reboque. O barco de176fundo chato para a pesca de ostras flutuava facilmente em águas pouco fundas, o que facilitava o seu carregamento no areal. Utilizámos o guincho para colocar um dos módulos no barco, que cedeu sob o peso, mas aguentou a carga. Um homem colocado em cada extremidade mantinha a carga estável. Mais alguns voluntários ajudaram a puxar e a empurrar o Cécilia para águas mais profundas. Lentamente, usando os remos compridos para pilotar e o pequeno motor como propulsor, o barco ostreiro afastou-se em direcção a La Jetée. Repetimos a operação morosa e penosa quatro vezes e, nessa altura, a maré já tinha mudado.Depois disso, pouco vi do que estava a ser feito. A minha tarefa era entregar as peças da barreira, depois trazer o guincho e o reboque de novo para terra. A seguir, apenas conseguia distinguir a luz,os contornos do Cécilia contra o anel lívido do banco de areia e quando as rajadas de vento amainavam ouvia vozes excitadas. Agora a maré subia veloz. Sem uma embarcação não me podia juntar aos restantes voluntários, mas observava-os das dunas com um binóculo. Sabia que o tempo estava a esgotar-se. Em Le Devin a maré sobe rapidamente - talvez não tão depressa como no Monte Saint-Michel, onde as vagas chegam mais depressa do que um cavalo a galope, mas seguramente mais depressa do que um homem consegue correr. É fácil encalhar e naquela faixa de água entre La Pointe e La Jetée as correntes são rápidas e perigosas.Mordi os lábios. Estava a demorar demasiado tempo. Havia seis pessoas em La Jetée: os

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Bastonnets, os Guénolés e Flynn. Demasiados, de facto, para um barco com as dimensões do Cécilia.Naquela altura já não tinham pé. Avistava luzes que se moviam ao longo dos bancos de areia, perigosamente distantes do litoral. Um sinal pré-combinado. Blink-blink. Estava tudo a correr conforme os planos. Mas estava a demorar demasiado tempo.Aristide contou-me mais tarde. A corrente que controlava a colocação de um dos módulos ficara presa debaixo do barco, imobilizando a hélice. A maré estava a encher. Uma tarefa que teriasido simples em águas pouco fundas tornara-se quase impossível. Alain e Flynn debatiam-se dentro de água com a corrente presa, utilizando a barreira ainda inacabada como alavanca. Aristide permaneceu agachado na proa do barco, atento.177- Ruivo! - berrou, quando Flynn veio à superfície depois de outra tentativa falhada para libertar a corrente. Flynn olhou para ele inquiridor. Tinha despido a vareuse e o gorro para facilitar os movimentos. - Não vale a pena - alertou Aristide, severo. - Não vale a pena com este tempo.Alain levantou os olhos e apanhou com uma onda em cheio na cara. Mergulhou, a tossir e a praguejar.- Vocês os dois podem ficar presos aí em baixo - insistia Aristide. - O vento pode empurrar o Cécilia para a barreira e vocês...Flynn limitou-se a inspirar fundo e voltou a mergulhar. Alain içou-se para dentro do barco.- Temos de voltar rapidamente senão arriscamo-nos a acabar nos rochedos - berrou Xavier por cima do vento.- Onde está o Ghislain? - perguntou Alain, sacudindo-se como um cão.- Estou aqui! Já estão todos a bordo excepto o Ruivo.As ondas engrossavam. Uma vaga começara a formar-se para além de La Jetée e, à luz das lanternas, viam a corrente que se dirigia para La Griznoz aumentar de força à medida que a água subia. O que há pouco eram baixios era agora mar aberto e a tempestade aproximava-se. Eu própria podia senti-lo. O ar estava carregado de electricidade estática. Uma guinada imprevista sacudiu o Cécilia, golpeado por um bocado submerso da barreira ainda solta, e Matthias praguejou e deixou-se cair pesadamente. Alain, ao perscrutar as águas escuras à procura de um sinal de Flynn, quase caiu.- Isto não está a funcionar - disse, deixando transparecer ansiedade. - Se não fixarmos os últimos cabos, esta barreira vai desfazer-se em pedaços.- Ruivo! - chamava Aristide. - Ruivo, estás bem?- A hélice está liberta - gritou Ghislain da ré. - O Russo deve tê-la solta, finalmente.- Então, onde diabo é que ele está? - rosnou Aristide.- Ouçam, temos de sair daqui depressa - insistia Xavier. - Já vai ser muito difícil regressar como isto está. Pépé - dirigia-se agora a Aristide - temos de voltar já!- Não. Vamos esperar. - Mas Pépé...178- Já disse que esperamos! - Aristide olhou de través para Alain. - Não quero que ninguém diga que um Bastonnet abandonou um amigo numa aflição.Alain susteve o seu olhar durante segundos, depois virou-se para enrolar uma corda que tinha aos pés.- Ruivo! - gritou Ghislain a plenos pulmões..Flynn emergiu à superfície no segundo imediato, do outro lado do Cécilia. Xavier foi o primeiro a vê-lo.- Está ali! - gritou. - Icem-no para dentro!Precisava de ajuda. Tinha conseguido libertar a corrente de debaixo do barco, mas agora o módulo precisava de ser fixo. Alguém tinha de segurar os módulos o tempo necessário para apertar as junções. Uma tarefa arriscada: era fácil ficar esmagado entre os módulos se uma onda mais forte os impelisse um contra o outro. Além disso, a barreira estava agora submersa; a uma profundidade de cerca de metro e meio sob o mar negro e agitado, a tarefa era, na melhor das hipóteses, arriscada.

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Alain despiu a vareuse.- Eu faço isso - ofereceu-se. Ghislain quis ir em seu lugar, mas o pai deteve-o - Não. Vou eu - disse, ao mesmo tempo que mergulhava de pés na água. Os restantes voluntários esticaram os pescoços para verem, mas já o Cécilia, liberto de obstáculos, começava a afastar-se da barreira.A maré avançava; só restava uma estreita faixa lamacenta onde desembarcar. Depois não haveria mais nada senão rochas, e com o vento pelas costas os voluntários ficariam presos entre os rochedose a tempestade que se aproximava. Chegou até mim um som agudo e receoso vindo dos vigias a bordo do Cécilia, a lanterna piscou em sinal de alarme e pelo meu binóculo vi dois vultos serem içados para bordo. Daquela distância não era possível saber se estava tudo bem ou não. Depois do grito não houve mais nenhum sinal.De La Goulue, eu observava, impaciente, enquanto o Cécilia rumava para terra. Atrás do barco, os relâmpagos riscavam o horizonte. A lua, que dentro de poucos dias estaria cheia, desapareceu atrás de uma cortina de nuvens.- Eles não vão conseguir - comentou Capucine, de olhos postos nos baixios que iam desaparecendo aos poucos.179- Eles não estão a rumar em direcção a La Griznoz - disse Omer. - Conheço o Aristide. Ele sempre disse que se alguma vez ficássemos encalhados, devíamos dirigir-nos para La Goulue. É mais longe, mas as correntes não são tão fortes e é um sítio mais seguro para desembarcar desde que lá se chegue.Tinha razão. O Cécilia contornou La Pointe meia hora depois, oscilando um pouco mas ainda bastante firme e apontou a proa para La Goulue. Corremos para o barco, ainda sem saber se a barreira ficara concluída ou abandonada à força dos elementos.- Olhem! Lá está ele!O Cécilia transpusera a entrada da baía. Atrás dele as ondas eram altas, de cristas pálidas, reflectindo o céu lívido. No interior da baía, o mar estava relativamente calmo. A luz vermelha de uma bóia luminosa piscou, iluminando-os por breves instantes. Numa fugaz acalmia do vento, pudemos ouvir vozes que cantavam alto. Um som estranho e misterioso, ali no meio do frio com a ameaça de tempestade tão próxima atrás deles. A luz da lanterna de Aristide iluminava as seis pessoas que seguiam no barco, e agora que estavam mais perto podia distinguir os rostos de cada um, como que ruborizados pelo brilho de uma fogueira. Lá estavam Alain e Ghislain nos seus casacos compridos e Xavier de pé na popa com Aristide Bastonnet e Matthias Guénolé sentados ao lado dele. Formavam um quadro dramático, talvez do género de John Martin, com aquele céu apocalíptico: os dois velhos de longas cabeleiras e bigodes marciais, de perfil, voltados para terra num triunfo austero. Só mais tarde é que me dei conta que era a primeira vez que via Matthias e Aristide juntos, um ao lado do outro, ou que ouvia as suas vozes erguerem-se num cântico. Durante uma hora os dois inimigos tinham-se tornado, se não amigos, por assim dizer aliados.Avancei ao encontro do Cécilia. Várias pessoas saltaram para dentro de água para ajudarem a trazer o barco para terra. Flynn estava entre eles. Deu-me um abraço quando me agarrei à proa do barco. Apesar de exausto, os olhos brilhavam-lhe. Deitei os braços à volta dele, estremecendo na água fria.Flynn riu.- Que é isto?- Conseguiste. - A minha voz tremia.180É verdade.Ele estava gelado e cheirava a lã molhada. O alívio deixava-me sem forças; agarrei-me a ele freneticamente e quase caímos. Os cabelos dele fustigavam-me o rosto. A boca dele sabia a sal e era quente.Na proa do barco, Ghislain contava a quem o queria ouvir como é que Alain e o Ruivo tinham mergulhado por turnos debaixo do módulo para fixarem o último conjunto de cabos. Na encosta da falésia alguns habitantes da aldeia aguardavam: reconheci Angélo, Charlotte, Toinette, Désirée e o meu pai entre eles. Um grupo de crianças segurando tochas começaram a aplaudir. Alguém atirou

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um foguete de alerta que voou exuberante sobre as rochas em direcção à água. Angélo berrou lá para baixo:- Devinnoise gratuita para todos os voluntários! Vamos fazer um brinde a Sainte-Marine!O grito distante foi correspondido. - Longa vida para Les Salants!- Abaixo La Houssinière! - Três vivas ao Ruivo!Desta vez era Omer, passando por mim em direcção à proa do barco. Com Omer de um lado e Alain no outro, Flynn foi erguido no ar por cima de água. Ghislain e Xavier juntaram-se-lhes. Flynn, içado em ombros, foi trazido em triunfo, sorridente.- O engenheiro! - gritava Aristide.- Ainda nem sequer sabemos se a barreira vai funcionar - disse Flynn, rindo. O ribombar de um trovão abafou os seus protestos. Alguém berrou um desafio provocador para os céus. Como que em resposta, começou a chover. 181

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Seguiu-se um período de incerteza tanto para mim como para os outros. Esgotados por semanas sucessivas de trabalho intenso, soçobrámos numa estranha apatia, demasiado cansados para trabalhar, demasiado ansiosos para festejar. As semanas deslizavam na mesma atmosfera de ansiedade. Esperávamos, como gaivotas pousadas nas ondas, que a maré virasse.Alain falava em investir noutro barco. A perda do Korrigane tinha trazido a pesca a um ponto morto para os Guénolés e, apesar de reagirem com coragem perante os desaires, era por demais sabi do na aldeia que a família estava atolada em dívidas. Só Ghislain se mostrava optimista; vi-o por diversas vezes em La Houssinière, a rondar o café do Chat Noir sempre com t-shirts psicadélicas. Se impressionava Mercédès, a rapariga não dava mostras disso.Ninguém mencionava a barreira. Até à data tinha-se aguentado, encontrando a sua posição como Flynn havia previsto, mas pensava-se que falar dela abertamente seria desafiar a sorte. Eram poucos os que se atreviam a esperar demasiado. Contudo, a inundação em La Bouche baixara; Les Salants estava desembaraçada de água até aos terrenos pantanosos mais perto do mar e quando as marés de Novembro vieram e foram, não causaram mais estragos em La Bouche nem em La Goulue.Ninguém manifestava as suas esperanças em voz alta. Para um estranho, Les Salants parecia não ter mudado. Mas Capucine recebeu um postal da filha, do continente; Angélo começou a repintar o182bar; Omer e Charlotte salvaram a colheita de batatas de Inverno; e Désirée Bastonnet foi a La Houssinière e passou mais de uma hora a falar ao telefone com o filho Philippe que vivia em Marselha.Nada disso tinha um significado excepcional. E não era certamente suficiente para sugerir que a nossa sorte colectiva tinha mudado finalmente. Mas havia qualquer coisa no ar: uma sensação de possibilidade, os prenúncios de um entusiasmo novo.Também GrosJean tinha mudado. Pela primeira vez desde a minha chegada, voltou a interessar-se pelo estaleiro de barcos há muito abandonado"e um dia, ao chegar a casa, fui encontrá-lo de fato-macaco, a ouvir rádio e a mexer numa caixa de ferramentas enferrujadas. Noutro dia, começou a pôr em ordem o quarto de hóspedes. Uma vez fomos os dois até à sepultura de P'titjean - a inundação já cessara quase por completo - e pusemos cascalho novo à volta da pedra. GrosJean metera no bolso alguns bolbos de açafrão, que plantámos. Por momentos, foi quase como nos velhos tempos quando eu ajudava o meu pai no estaleiro e a Adrienne ia a La Houssinière com a Mãe, deixando-nos sozinhos. Esse tempo era nosso, roubado e por isso mesmo precioso; e às vezes deixávamos o estaleiro e íamos pescar para La Goulue ou descíamos o canal num pequeno barco à vela, como se eu fosse o filho que ele gostava de ter tido.Só Flynn parecia não ter mudado nada. Continuava na sua rotina como se a barreira não tivesse nada a ver com ele. E no entanto, pensava para comigo, arriscara a vida nessa noite em La Jetée por causa dela. Não conseguia entendê-lo. Havia nele uma ambiguidade, a despeito dos seus modos

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naturais; esse lugar no seu coração para onde nunca fora convidada. Era algo indefinido, como uma sombra em águas profundas. Não obstante, à semelhança de todos os abismos, atraía-me.

A maré virou no dia vinte e um de Dezembro, às oito e meia da manhã. Ouvi a súbita calmaria quando o vento mudou; a última e a mais forte das marés do mês rendia-se finalmente à barreira em LaJetée. Dirigira-me a pé sozinha para La Goulue, como fazia todos os dias, para detectar sinais de mudança. Os seixos esverdeados esta°am a descoberto na madrugada pálida, e mais ao fundo os baixios183eram apenas visíveis na vazante. Os poucos bouchots - os tocos de madeira que assinalavam os velhos bancos de ostras - que tinham sobrevivido intactos à invernia emergiam da água com os colares de corda flutuantes. Ao aproximar-me, vi que a linha de água estava cheia de destroços trazidos pela maré: um bocado de corda, um pote lagosteiro, uma alpergata desemparceirada. Numa poça aos meus pés, avistei uma lapa verde solitária.Estava viva. Não era habitual. As marés agitadas em La Goulue raramente encorajavam as criaturas marinhas a fixar-se. Ouriços-do-mar, de vez em quando. Medusas que davam à praia, semelhantes a sacos de plástico deixados a secar na areia. Inclinei-me para examinar as pedras junto aos meus pés. Enterradas no lodo, formavam uma larga faixa de seixos, por onde era traiçoeiro caminhar. Mas naquele dia, vi uma coisa nova. Uma coisa mais áspera do que o limo dos baixios, algo mais leve que polvilhava a superfície submersa dos seixos com pó de mica.Areia.Nem sequer o suficiente para caber na palma da minha mão. Mas era areia: a areia pálida de La Jetée que brilha no anel claro da baía. Era capaz de a reconhecer em qualquer parte.Disse para mim que não era nada; uma leve película trazida pela maré, mais nada do que isso. Não significava nada. Significava tudo.Esgravatei toda a que pude para a minha mão - uma pitada, apenas a necessária para apertar entre os dedos - e galguei o caminho da falésia em direcção ao velho bunker. Flynn era a única pessoa capaz de compreender a importância daqueles escassos grãos de areia. Flynn, que estava do meu lado. Encontrei-o meio vestido, a beber café, com a mochila pronta ao pé da porta. Achei-o cansado e inusitadamente melancólico quando entrei, esbaforida.- Conseguimos! Olha! - Estendi a minha mão aberta.Ficou a olhá-la demoradamente, depois encolheu os ombros e começou a enfiar as botas.- Uma pitada de areia - comentou com voz neutra. - Só davas por ela se te entrasse para os olhos.A minha excitação esmoreceu tão rapidamente como se me tivessem despejado um balde de água fria.184- Mas mostra que está a funcionar - disse eu. - O teu milagre. Já começou.Ele não sorriu.- Eu não faço milagres.- A areia é uma prova - insisti. - Tu fizeste-a voltar. Salvaste Les Salants.Flynn soltou uma gargalhada desagradável.- Por amor de Deus, Mado! Não és capaz de pensar noutra coisa? É realmente isto aquilo que sempre desejaste? Fazer parte disto... deste insípido e pequeno círculo de perdedores e de degenerados, sem dinheiro, sem vida, gente que vai envelhecendo sem fazer nada, que reza ao mar e resvala aos poucos para a extinção cada ano que passa? Suponho que achas que eu devia estar grato por estar enfiado neste lugar, que é uma espécie de privilégio... - Calou-se, a sua raiva abrandou de forma abrupta e olhou através da janela. A expressão de desânimo desaparecera por completo como se nunca tivesse existido.Senti-me entorpecida, como se me tivesse desferido um soco. E no entanto, não era verdade que sempre tinha sentido aquela tensão, aquela ameaça de algo prestes a explodir?- Julgava que gostavas de estar aqui. No meio dos perdedores e dos degenerados.

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Ele encolheu os ombros, parecendo agora embaraçado. - E gosto. Talvez demasiado.Fez-se silêncio, durante o qual ele voltou olhar através da janela, com a madrugada reflectindo-se nos seus olhos cor de ardósia. Depois olhou para mim e, abrindo-me os dedos, alisou a areia na palma da minha mão.- Os grãos são finos - observou por fim. - Têm muita mica. - E então?- Então significa que é leve. Não se vai fixar. Uma praia necessita de uma base firme... de pedras, seixos, coisas assim... para a segurar. Senão é arrastada depressa, como vai acontecer com esta. - Estou a perceber.Ele reparou na minha expressão.- Significa muitíssimo para ti, não é? Não respondi.- Uma praia não transforma este lugar em La Houssinière.185- Eu sei. Ele suspirou. - OK. Vou tentar.Pousou-me as mãos nos ombros. Por instantes senti essa sensação de viabilidade intensificar-se, como electricidade estática na atmosfera. Fechei os olhos, aspirando o cheiro dele a tomilho, a lãvelha e o aroma das dunas ao amanhecer. Um odor levemente bolorento como o cheiro do espaço que fica por baixo das barracas de praia em La Houssinière, onde eu costumava esconder-me à espera do meu pai. Vi então o rosto de Adrienne, a observar-me e a sorrir com a sua boca grossa pintada de bâton e abri os olhos de repente. Mas Flynn já se tinha afastado.- Tenho de ir. - Pegou no saco e começou a vestir o casaco. - Porquê? Lembraste-te de alguma coisa? - Continuava a sentir a pressão das suas mãos nos meus ombros. Eram quentes e algo na boca do estômago parecia reagir a esse calor, como flores ao sol.- Talvez. Vou pensar nisso - Afastou-se rapidamente na direcção da porta.- O que se passa? Qual é a pressa?- Preciso de ir à cidade. Quero encomendar uma coisa de Pornic antes de o ferry partir. - Fez uma pausa e brindou-me com o seu sorriso despreocupado e radioso. - Até logo, `tá bem, Mado? Tenho de ir numa corrida.Saí atrás dele, perplexa. As suas repentinas mudanças de disposição, passando de um extremo ao outro com a velocidade do clima outonal, não eram novidade. Mas havia qualquer coisa que o perturbava, qualquer coisa para além da minha súbita aparição. Contudo, era pouco provável que me contasse do que se tratava. Subitamente, quando Flynn fechou a porta, houve um leve movimento que me chamou a atenção, um vislumbre de uma camisa branca a alguma distância para lá das dunas. Um vulto na vereda. O corpo de Flynn ocultou-o quase de imediato e quando se desviou para o lado, o vulto já tinha desaparecido. No entanto, apesar de só o ter avistado por um breve segundo e apenas de costas, achei que o tinha reconhecido pela maneira de andar, pela corpulência e pela inclinação do gorro de pescador.186Não fazia sentido; aquele caminho não levava a mais lado nenhum senão às dunas. Mas mais tarde, ao regressar pelo mesmo trilho, reparei nas marcas das sapatilhas na areia dura e tive a certeza de que não me tinha enganado. Brismand tinha lá estado antes de mim.187

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Mal cheguei à aldeia percebi que alguma coisa acontecera. Sentia-se no ar, uma leve excitação, um sopro vindo de outros lugares. Viera a correr todo o caminho desde La Goulue com uma mão cheia de areia, apertando-a com tanta força que tinha a palma tatuada de mica. Quando cheguei ao cimo da grande duna em direcção ao estaleiro abandonado de GrosJean, senti dentro de mim uma sensação gelada que me apertava o coração com a mesma intensidade.Estavam cinco pessoas diante da casa, três adultos e duas crianças. Todos eles de compleição escura, o homem usava uma túnica comprida, vagamente árabe, por baixo de um pesado sobretudo de Inverno. As crianças, ambos rapazes, de pele tisnada mas com o cabelo quase branco pelo sol,

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aparentavam oito e cinco anos. Enquanto os observava, o homem abriu o portão e as mulheres seguiram-no.Uma era pequena e banal, com um albornoz amarelo a tapar-lhe o cabelo. Foi atrás das duas crianças, falando numa língua que eu não compreendia.A segunda mulher era a minha irmã. - Adrienne?A última vez que a vira tinha dezanove anos, acabara de casar, era esbelta e bonita, naquele estilo mimado e aciganado assumido por Mercédès Prossage. Continuava igual, embora eu achasse que os anos a tinham endurecido um pouco, tornando-a vigilante,188angulosa. Usava o cabelo comprido, liso e tingido de hena. Os pulsos morenos tilintavam com braceletes de ouro. Virou-se ao ouvir a minha voz.- Mado! Como cresceste! Como é que sabias que vínhamos? _ Deu-me um beijo breve, com perfume a patchouli. Marin beijou-me também nas duas faces. Assemelhava-se a uma versão maisjovem do tio, mas com o queixo coberto de penugem e esbelto, sem o encanto ostensivo e perigoso de Claude.- Não sabia.- Sabes como ,é o pai. Não fala muito. - Puxou o mais novo dos dois miúdos e aproximou-o de mim. O garoto tentou esgueirar-se. - Não conheces os meus soldadinhos, pois não, Mado? Este é o Franck. E este... este é o Loïc. Diz olá à tua tia Mado, Loïc.Os rapazes olhavam para mim com os seus rostos idênticos, morenos e inexpressivos. Mas não disseram nada. A mulherzinha de albornoz, que eu tomara por ama deles, cacarejava frenetica mente em árabe. Nem Marin nem Adrienne a apresentaram, e pareceu ficar surpreendida quando a cumprimentei.- Fizeste um bom trabalho aqui - disse Adrienne, mirando a casa. - Da última vez que cá estivemos estava uma desgraça. Estava tudo a cair aos bocados.- A última vez? - Tanto quanto sabia, ela e Marin nunca tinham regressado.Mas Adrienne já tinha aberto a porta da cozinha. GrosJean estava parado junto da janela, a olhar para fora. Atrás dele, os restos do pequeno-almoço - pão, café frio, um boião de compota aberto - aguardavam a minha chegada com ar reprovador.As crianças olhavam-no, curiosas. Franck sussurrou qualquer coisa a Loïc em árabe e riram-se ambos. Adrienne dirigiu-se a ele. - Papá!GrosJean virou-se devagar. Semicerrou as pálpebras. - Adrienne - disse. - É bom ver-te.E depois sorriu e encheu uma malga de café frio da cafeteira que estava em cima da mesa ao lado dele. Como é evidente, Adrienne não manifestou qualquer surpresa por ele a ter cumprimentado.Porque é que havia de manifestar? Tanto ela como Marin abraçaram-no respeitosamente. Os dois rapazes esquivaram-se com189risadinhas. A ama fazia mesuras e sorria, com os olhos respeitosamente baixos. GrosJean fez um gesto a pedir mais café e eu fui fazê-lo, satisfeita por ter uma desculpa para estar ocupada. As minhas mãos moviam-se desajeitadas com a água, com o açúcar. As chávenas escorregavam-me por entre os dedos como peixes.Atrás de mim, Adrienne falava dos filhos na sua voz alegre de rapariga. Os rapazes brincavam em cima do tapete ao lado da lareira. - Nós demos-lhes o teu nome, Papá - explicava Adrienne. - O teu e o de P'tit-Jean. Baptizámo-los com os nomes de Jean-Franck e de Jean-Loïc, mas por enquanto tratamo-los pelos diminutivos até crescerem e passarem a usar os verdadeiros nomes. Como vês, nunca esquecemos que somos salannais.- Hei.Até mesmo aquela meia-palavra era uma espécie de milagre. Quantas vezes desde o meu regresso é que GrosJean falara comigo directamente? Virei-me com a cafeteira do café, mas o meu pai estava a olhar para os rapazes, que rebolavam e lutavam em cima do tapete, com uma expressão enlevada e absorta. Franck viu-o a olhar e deitou a língua de fora. Adrienne riu, indulgente.- Macaquinho.

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O meu pai riu à socapa.Servi café a todos. Os rapazes comiam fatias de bolo e olhavam para mim com os olhos castanhos muito abertos. Eram muito parecidos se não fosse a diferença de idades, de grandes franjas de um louro acastanhado, pernas magras e ventres redondos sob os camisolões de cores vivas. Adrienne falava deles com afecto, mas reparei que sempre que era preciso fazer qualquer coisa - limpar as bocas sujas, assoar os narizes, apanhar os pratos espalhados ao acaso - ela se virava para a ama.- Há já tanto tempo que eu desejava voltar a casa - suspirou, beberricando o café. - Mas os negócios, Papá, e as crianças... nunca era a altura conveniente. E não se pode confiar em ninguémlá, como sabes. Os europeus são uma boa presa para eles. Roubos, corrupção, actos de vandalismo... tudo o que se possa imaginar. Não se pode virar as costas um minuto.GrosJean ia ouvindo. Bebia o café, tapando quase por completo a malga com a sua mão enorme. Fez um gesto para pedir outra fatia de bolo. Cortei-a e passei-lha por cima da mesa. Não fez o190mínimo gesto de reconhecimento. E no entanto, enquanto Adrienne falava, o meu pai ia acenando de vez em quando, balbuciando ocasionalmente a afirmativa típica da ilha - hem - que costumava usar. Para o meu pai, aquilo era quase loquacidade. Depois Marin falou dos negócios em Tânger, de azulejos antigos, que eram a actual coqueluche em Paris, das possibilidades de exportação, dos impostos, da mão-de-obra espantosamente barata, do círculo de expatriados franceses a que pertenciam, da desumanidade dos seus rivais, dos clubes exclusivos que frequentavam. A história da vida deles desdobrada diante de nós como um rolo de seda brilhante. Bazares, piscinas, mendigos, termas, noitadas de bridge, vendedores ambulantes, confeitarias. Um criado para cada tarefa. A minha mãe teria ficado impressionada.- E eles aceitam bem o trabalho, Papá. É o padrão de vida deles. Tão baixo que chega a ser ridículo. Nós damos-lhes muito mais do que ganhariam no meio deles. A maior parte deles mostram-se realmente gratos.Olhei para a pequena ama, que limpava metodicamente a cara de Franck com um toalhete húmido. Ignorava se tinha família própria lá em Marrocos, se tinha saudades de casa. Franck esquivava-se e lamuriava-se em árabe.- Claro que tem havido problemas - continuou Adrienne. Um incêndio num dos armazéns, posto por um rival descontente. Perderam-se milhões de francos. Furtos e fraudes por empregados sem escrúpulos. Graffiti contra os brancos nos muros da vivenda deles. Os fundamentalistas estavam a ganhar força, disse ela, e a tentar dificultar a vida aos estrangeiros. E era preciso pensar nas crianças... Tinham sido bons tempos, mas agora era altura de pensarem em mudar-se.- Quero que os meus rapazes tenham a melhor educação possível, Papá - declarou. - Quero que saibam quem são. Para mim, vale a pena o sacrifício. Só desejava que a Mamã tivesse podidover... - Calou-se para olhar para mim. - Sabes como ela era. Não se lhe podia dizer o que devia fazer. Nem sequer se lhe podia dar dinheiro. Era demasiado teimosa.Olhei para a minha irmã sem sorrir. Recordava como a Mãe se sentia orgulhosa do seu trabalho como mulher-a-dias; como costumava falar-me das camisas Hermès que passava a ferro e dos fatosChanel que ia buscar às lavandarias; quando encontrava uns trocos caídos atrás das almofadas do sofá deixava-os dentro do cinzeiro, porque ficar com eles era o mesmo que roubar.- Nós ajudámo-la em tudo o que pudemos - prosseguiu Adrienne, olhando para GrosJean. - Sabes isso, não sabes? Temos andado tão preocupados contigo, aqui sozinho, Papá.Ele fez um gesto imperioso: mais café. Eu servi-o.- Vamos ficar em Nantes durante algum tempo para preparar as coisas. O Marin tem lá um tio, Amand, primo de Claude. Também está metido no negócio de antiguidades, é importador. Vai hospedar-nos até encontrarmos qualquer coisa mais permanente. Marin assentiu.- É bom saber que os rapazes vão frequentar uma boa escola. O pequeno Jean-Franck quase não fala francês. E precisam ambos de aprender a ler e a escrever.- E o bebé recém-nascido? - Lembrei-me que ela estava grávida quando a Mãe morreu, apesar de não ter nada o ar de quem dera à luz recentemente. Adrienne sempre fora muito magra e agora ainda era mais. Reparei nos pulsos e nas mãos frágeis e ossudas e nas faces macilentas.

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Marin dardejou-me um olhar acusador.- Adrienne abortou aos três meses - disse na sua voz nasalada. - Não queremos falar disso. - Falava como se eu tivesse contribuído directamente para aquele desenlace.- Lamento - murmurei.Adrienne volveu-me um sorriso taciturno.- Não faz mal - disse. - Só uma mãe é que pode entender. - Estendeu a mão morena e magra e tocou na cabeça de um dos rapazes. - Não sei o que seria de mim se não fossem estes anjos.Os rapazes riam e segredavam um para o outro em árabe. GrosJean observava-os enternecido como se nunca se cansasse de os olhar.- Podemos trazê-los outra vez, durante as férias - sugeriu Adrienne numa voz mais animada. - Podemos voltar para uma visita demorada.

31Demoraram-se duas horas. Adrienne percorreu a casa de ponta a ponta, Marin inspeccionou o estaleiro abandonado e GrosJean acendeu um Gitane, bebeu café e observou os rapazes, com os olhos azuis-borboleta a brilharem.Aqueles rapazes. Não me devia ter surpreendido. Sempre sonhara ter filhos e a chegada de Adrienne, mãe de rapazes, voltara a lançar a confusão na nossa coexistência que começava a ser agradável. GrosJean seguia os rapazes atentamente, e de vez em quando passava-lhes as mãos pelos cabelos compridos; afastava-os da lareira quando as brincadeiras os aproximavam do lume, apanhava as camisolas atiradas para o chão e dobrava-as pondo-as em cima de uma cadeira. Eu sentia-me intranquila, desajeitada, sentada defronte da ama sem nada para fazer. A mão-cheia de areia, agora no meu bolso, estava desejosa de saltar cá para fora. Apetecia-me voltar para La Goulue ou para as dunas onde pudesse estar sozinha, mas a expressão do rosto do meu pai fascinava-me. Aquela expressão que devia ter sido para mim.Por fim, não consegui ficar mais tempo calada. - Esta manhã fui até La Goulue.Não houve qualquer reacção. Franck e Loïc brincavam às lutas, rebolando-se no chão como cachorros. A ama sorria timidamente, mas obviamente não percebia uma palavra.- Pensei que talvez a maré tivesse trazido alguma coisa.192193GrosJean ergueu a tigela e por momentos a sua cara desapareceu dentro dela. Ouvi-o sorver debilmente. Depositou a malga vazia à sua frente e empurrou-a na minha direcção num gesto que significava "mais".Ignorei-o- Estás a ver isto? - Tirei a mão da algibeira e estendi-udiante dele. Tinha areia pegada à palma da mão.GrosJean voltou a empurrar a malga, insistente.- Sabes o que isto significa? - Ouvi a minha voz elevar-se áspera. - Estás interessado?Voltou a empurrar a tigela. Franck e Loïc olhavam para mim boquiabertos, esquecida a brincadeira. GrosJean olhava para além de mim, com o olhar vazio e imóvel como o das estátuas da Ilha de Páscoa.De súbito fiquei irritada. Estava tudo a correr mal: primeiro Flynn, depois Adrienne e agora também GrosJean. Pousei com força a cafeteira em cima da mesa diante dele, salpicando a toalha de café.- Queres? - perguntei com rudeza. - Então serve-te! Ou se queres que eu te sirva, diz-me. Sei que és capaz. Vá. Diz-me! Silêncio. GrosJean olhava outra vez para lá da janela, alheado de mim, alheado de tudo e de todos. Talvez tivesse voltado a ser como dantes, esquecidos todos os progressos feitos. Depois de um momento, Franck e Loïc retomaram as brincadeiras. A tímida ama olhava, de joelhos. Lá fora, ouvi a voz de Adrienne elevar-se estridente numa gargalhada ou excitada. Comecei a levantar as coisas do pequeno-almoço, atirando a louça para o lava-loiça. Deitei fora o resto do café, à espera de um protesto que nunca chegou. Lavei os pratos e limpei-os em silêncio. Sentia os olhos a arder. Quando limpava a mesa, encontrei areia no meio das migalhas.

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32A minha irmã e a família ficaram mais duas semanas, hospedados em Les Immortelles. Vieram almoçar no dia de Natal, e depois apareciam lá por casa quase todas as manhãs durante uma hora mais ou menos antes de voltarem a partir para La Houssinière. No dia de Ano Novo, Franck e Loïc partiram com bicicletas novas de três mil francos cada, mandadas vir expressamente do continente pelo meu pai.Foi já na prancha do Brismand 1, quando GrosJean ajudava a ama a transportar a bagagem para bordo, que Adrienne finalmente me chamou à parte. Estava à espera disso, sem saber quanto tempo demoraria para abordar a questão.- É o Papá - confidenciou. - Não quis dizer nada em frente dos rapazes, mas estou muito preocupada.- A sério? - Procurei que a minha voz não deixasse transparecer sarcasmo.Adrienne mostrou-se magoada.- Sei que não acreditas em mim, mas sou muito amiga do Papá - disse ela. - Preocupa-me que ele viva aqui tão isolado, tão dependente de uma pessoa só. Acho que não é bom para ele.- A verdade - respondi - é que ele tem melhorado. Adrienne sorriu.- Ninguém disse que não tens feito o melhor de que és capaz. Mas tu não és enfermeira e não tens habilitações para lidar com os problemas dele. Sempre achei que ele precisava de ajuda.194195- Que tipo de ajuda? - A minha voz começava a subir de tom. - A ajuda que teria em Les Immortelles? É isso que o Claude Brismand diz?A minha irmã mostrou-se ofendida.- Mado, não sejas assim. Sei que ainda estás desgostosa por causa do funeral da Mamã. Sinto-me horrível por não ter estado presente. Mas na minha situação...Ignorei o que ela dizia.Foi o Brismand que vos disse para voltarem? - perguntei. - Contou-te que eu não estava a cooperar?- Eu queria que o Papá conhecesse os rapazes. - Os rapazes?- Sim. Para lhe mostrar que a vida continua. Não lhe faz bem viver aqui quando podia estar junto da família. É egoísmo... e um risco... da tua parte incentivá-lo desta maneira.Eu fitava-a, atónita e magoada. Eu tinha sido egoísta? Tinha andado tão embrenhada nos meus planos e nas minhas ideias ao ponto de negligenciar as necessidades do meu pai? Seria realmente possível que GrosJean não precisasse da barreira, nem da praia, nem de nenhuma das coisas que eu fizera por ele? Que, de facto, a única coisa que sempre desejara fossem os netos que Adrienne trouxera consigo?- Esta é a casa dele - disse eu, por fim. - E eu faço parte da sua família.- Não sejas ingénua - disse a minha irmã e, por momentos, voltou a ser a antiga Adrienne, a desdenhosa irmã mais velha, sentada na esplanada do café Houssin, a rir-se do meu cabelo à rapaz e da minha roupa desmazelada. - Talvez tu aches romântico viver aqui no fim do mundo. Mas é a última coisa que pode fazer bem ao pobre Papá. Olha para a casa... é tudo uma confusão. Nem sequer tem uma casa de banho decente. E se ele adoecer? Não há ninguém para lhe dar uma ajuda a não ser aquele velho veterinário, de quem já nem me lembro do nome. E se precisar de ir para o hospital?- Não o obrigo a ficar - respondi, não me agradando a nota defensiva da minha voz. - Tenho tomado conta dele, só isso. Adrienne encolheu os ombros. Da mesma maneira como poderia ter dito alto e bom som: Do mesmo modo que trataste da Mãe. Esse pensamento pôs-me nervosa; doía-me a cabeça.196

- Ao menos tentei - disse eu. - E tu, o que é que alguma vez fizeste por qualquer deles? Viveste sempre na tua torre de marfim. Como é que sabes como foram todos estes anos para nós?Não sei por que é que a Mãe sempre insistira que eu era a mais parecida com GrosJean. Adrienne

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limitou-se a sorrir para mim naquele seu jeito impenetrável, sereno como uma foto e igualmente silenciosa. Os seus silêncios complacentes sempre me enervaram. A irritação começava a avassalar-me como um exército de formigas. - Quantas vezes nos visitaste? Quantas vezes prometeste telefonar? Tu e as tuas gravidezes fantasmas... Eu telefonei-te, Adrienne, disse-te que a Mãe estava a morrer...Mas a minha irmã olhava para mim, com o rosto lívido. - Gravidez fantasma?A sua expressão magoada fez-me calar. Senti o rosto ruborizado.- Escuta, Adrienne, lamento, mas...- Lamentas? - A voz dela era penetrante. - Como é que tu sabes o que significou para mim? Eu perdi o meu bebé... o neto do meu pai... e achas que podes dizer apenas que lamentas?Tentei tocar-lhe no braço, mas ela afastou-se com um gesto nervoso e histérico, que por qualquer razão me fez pensar na Mãe. Fitava-me e os seus olhos eram como facas.- Queres que te diga porque é que não viemos visitá-las, Mado? Queres que te diga porque é que ficámos em Les Immortelles em vez de ficarmos em casa do Papá, onde o podíamos ver todos os dias? - Agora a voz dela era um milhafre, leve, nervosa, subindo cada vez mais alto.Abanei a cabeça.- Por favor, Adrienne...- Por tua causa, Mado! Porque tu estavas lá! - Estava meio a chorar, a raiva cortava-lhe a respiração, embora me parecesse notar ao mesmo tempo um certo comprazimento; tal como a Mãe, Adrienne sempre apreciara a teatralidade.- Sempre a resmungar! Sempre intimidante! - Suspirou fundo. - Intimidavas a Mamã, estavas sempre a tentar tirá-la de Paris, a terra de que ela gostava... e agora estás a fazer o mesmo ao des graçado do Papá! Vives obcecada com esta ilha, Mado, é o que é, e não consegues perceber que outras pessoas não queiram o que tu197queres! - Adrienne limpou a cara com a manga. - E se não voltarmos, Mado, não é por não querermos ver o Papá, é porque eu não suporto estar ao pé de ti!Soou o apito do ferry. No silêncio que se seguiu ouvi um leve andar arrastado atrás de mim e virei-me. Era GrosJean, de pé, silencioso na prancha. Estendi as mãos.- Pai...Mas ele já se afastava para outro lado.

33O mês de janeiro trouxe mais areia para La Goulue. Em meados do mês já era facilmente visível: uma subtil franja branca contra as rochas, nada tão ambicioso como uma praia, mas apesar de tudo areia, pontilhada e salpicada de flocos de mica que se desfaziam em pó na maré baixa.Flynn cumprira a palavra. Com a ajuda de Damien e de Lolo, trouxera sacos de cascalho arenoso das dunas e esvaziara-os sobre os seixos musgosos na base da falésia. Plantaram-se tufos de espar to nesse lodo pardacento para impedir que a areia fosse arrastada e foram espalhadas algas entre as camadas de cascalho, fixas com estacas e bocados de rede de pesca não usadas. Eu observava os progressos com curiosidade e uma expectativa relutante. La Goulue, devido à acumulação de resíduos, de terra, de algas e de redes, ainda se parecia menos com uma praia do que antes.- Isto é apenas a base - tranquilizava-me Flynn. - Não queres que a tua areia desapareça, pois não?Mostrara-se estranhamente desconfiado durante a estadia de Adrienne, só aparecendo uma ou duas vezes em vez de aparecer quase todos os dias. Eu sentia a falta dele, mais ainda devido ao comportamento de GrosJean, e começava a compreender quão profundamente a sua presença nos afectara a todos durante as últimas semanas; até que ponto nos animara a todos.Contara-lhe a minha discussão com Adrienne. Ouvira-me sem o mínimo indício da sua habitual leviandade, com uma ruga cavada entre os olhos.198199

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- Eu sei que ela é minha irmã - disse eu - e sei que passou um mau bocado, mas...- Não podemos escolher a família - disse Flynn. Só se encontrara com Adrienne uma vez, de passagem, durante a estadia dela, e lembrava-me que estivera inusitadamente calado. - Não há qualquer motivo para que tu e ela se dêem só por serem irmãs.Eu sorri. Se ao menos eu tivesse conseguido que a Mãe percebesse isso.- GrosJean queria ter um rapaz - disse eu, cortando uma haste das ervas que crescem nas dunas. - Não estava preparado para ter duas filhas. - Supunha que Adrienne tinha compensado esse desejo. Todos os meus esforços, o cabelo curto, as roupas de rapaz, as horas passadas na oficina do meu pai a observá-lo, a pesca, os pedacinhos de tempo, tudo se eclipsara, tudo se despojara de sentido. Flynn deve ter lido algo no meu rosto, porque parou de trabalhar e olhou para mim com uma expressão estranha.- A tua vida não tem que ser determinada pelas expectativas de GrosJean nem de ninguém. Se ele não é capaz de ver que aquilo que tem vale mil vezes mais do que certas fantasias... - Calou-se, encolhendo os ombros. - Não tens de provar nada - disse com uma dureza inusitada. - Ele tem a sorte de te ter.Fora o que dissera Brismand. Mas a minha irmã acusara-me de egoísmo, de me servir do meu pai. Voltava a interrogar-me se ela teria razão; se a minha presença não estaria a ser mais nociva do que benéfica. E se o que ele queria era estar ao pé de Adrienne e ver os rapazes todos os dias?- Tens um irmão, não tens?- Um meio-irmão. O Menino de Ouro. - Estava a pregar um bocado de rede que se desprendera da duna. Tentei imaginar Flynn como irmão de alguém; para mim, ele era o epítome do filho único. - Não gostas muito dele.- Ele devia ter sido filho único.Pensei em mim e em Adrienne. Ela devia ter sido filha única. Tudo o que eu tentava fazer, a minha irmã já tinha feito antes e melhor.Flynn inspeccionava o crescimento do esparto na duna. Para qualquer outra pessoa talvez o seu rosto parecesse inexpressivo, mas eu podia ver a tensão que lhe repuxava a boca. Resisti à tentação de200

lhe perguntar o que era feito do irmão e da mãe. O que quer que fosse tinha-o magoado. Talvez quase tanto como Adrienne me magoara a mim. Uma tremura percorreu-me, algo mais profundo do que a ternura. Estendi o braço e afaguei-lhe os cabelos.- Então nós os dois temos algo em comum - disse eu num tom ligeiro. - Famílias trágicas.- De modo algum - disse Flynn, levantando o rosto para mim com o seu sorriso súbito, insolente e resplandecente. - Tu voltaste. Eu fugi.Em Les Salants poucas pessoas pareciam especialmente interessadas no crescimento da praia. À medida que o Inverno se aproximava do fim, estavam demasiado preocupadas em observar outras coisas: como a mudança da corrente voltara a trazer os salmonetes, ainda em maior quantidade do que antes; como as redes vinham mais vezes cheias do que vazias; como as lagostas, as aranhas-do-mar e os grandes caranguejos-eremitas apreciavam a baía protegida e disputavam, virtualmente, os potes. As marés de Inverno não tinham provocado cheias e até os campos alagados de Omer tinham começado a recuperar, depois de estarem submersos quase três anos. Os Guénolés finalmente puseram em prática o projecto de comprarem um barco novo. O Eleanore 2 foi construído no continente, num estaleiro perto de Pornic, e durante várias semanas não falaram de outra coisa senão do progresso do barco. Seria um barco típico da ilha, como o seu antecessor, rápido e de quilha alta, com dois mastros e as velas quadrangulares da ilha. Alain não revelou quanto é que lhes ia custar, mas depois da mudança das correntes parecia optimista em recuperar depressa o investimento. Ghislain mostrava-se menos entusiasta - segundo constava, tinham tido que o afastar dos modelos de lanchas rápidas e de Zodiacs - embora animado com a perspectiva do dinheiro que iriam ganhar. Eu esperava que o novo barco não tivesse quaisquer conotações nostálgicas para o meu pai, apesar do nome; secretamente, eu acalentara a esperança de que os Guénolés escolhessem

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algo diferente. Porém, GrosJean mostrava-se impassível perante os relatos sobre os progressos do Eleanore 2, pelo que comecei a pensar que era eu que estava a ser demasiado sensível.201A barreira fora baptizado por mérito próprio de Bouch'ou e tinha em cada extremidade duas bóias luminosas para assinalar a sua presença à noite.Os Bastonnets, que continuavam a hastear a bandeira branca com os Guénolés, mas sem descurarem a retaguarda, iam batendo recordes de pescaria. Aristide anunciou triunfante que Xavier tinha apanhado dezasseis lagostas nessa semana e as vendera a um houssin, primo do prefeito e proprietário de La Maree, um restaurante-marisqueira perto da praia, por cinquenta francos cada.- Eles estão à espera de uma grande afluência de veraneantes em julho - disse-me com uma satisfação contida. - Dentro de pouco tempo, aquele restaurante vai estar a abarrotar. Durante a estação, chega a despachar meia dúzia de lagostas numa noite... e acha que as pode comprar agora, metê-las no viveiro e esperar que os preços subam em flecha. - Aristide soltou uma risadinha. - Ora bem, o jogo pode ser jogado a dois. Mandei o meu rapaz construir um viveiro para nós, lá na enseada. Sai mais barato do que os tanques e com o tipo certo de armadilhas as lagostas não fogem. Podemos mantê-las lá dentro vivas, mesmo as mais pequenas. Assim não temos de deitar ao mar nenhumas e podemos vendê-las a bom preço quando chegar a altura. Temos que as prender a estacas para não lutarem. A maré traz-lhes a comida através do canal. Bem pensado, hem? - O velho esfregou as mãos. - Nós, os salannais, ainda somos capazes de ensinar uma coisa ou duas sobre negócios aos houssins.- Claro que podem - disse eu, surpreendida. - Trata-se muito simplesmente de espírito de iniciativa, Senhor Bastonnet.- É, não é? - Aristide mostrava-se agradado. - Achei que era tempo de começarmos a pensar pelas nossas cabeças, para variar. É preciso arranjar algum dinheiro para o rapaz. Não se pode esperar que um rapaz como ele viva sem nada, especialmente se estiver a pensar em assentar.Pensei em Mercédès e sorri.- Mas não é tudo - disse Aristide. - Não adivinhas quem é que vai entrar em negócios comigo quando tiver o barco pronto. - Olhei para ele, expectante. - Matthias Guénolé. - Riu perante a minha surpresa, com os olhos azuis brilhantes. - Pensei que te ia surpreender - disse, ao mesmo tempo que puxava de um cigarro e202o acendia. - Aposto que não há muita gente na ilha que imaginasse ainda vir a ver os Bastonnets e os Guénolés a trabalharem juntos enquanto eu fosse vivo. Mas negócio é negócio. Se trabalharmos juntos... dois barcos e cinco homens... podemos fazer uma boa maquia com os salmonetes, as ostras e as lagostas. Podemos fazer uma fortuna. Se trabalharmos sozinhos, a única coisa que conseguimos é roubar o vento um ao outro e quem se fica a rir à nossa custa são os houssins. - Aristide aspirou uma fumaça e inclinou-se para trás, mudando a perna de pau para uma posição mais confortável. - Apanhei-te de surpresa, hem?Era mais do que isso. Há seis meses atrás eu não acreditava que nenhuma dessas duas coisas fosse possível - acabar com as querelas que as famílias tinham alimentado durante anos e alterar radicalmente a sua maneira de conduzir os negócios.E foi isso que, finalmente, me convenceu que os Bastonnets não tinham tido nada a ver com a perda do Eleanore. Toinette sugerira-o, Flynn reforçara as minhas suspeitas - embora nem por momentos tenha pensado que GrosJean pudesse ter sido de algum modo conivente - e desde então permanecera uma área obscura no meu espírito. Agora podia finalmente ficar tranquila. Fi-lo com prazer e com um sentimento de profundo alívio. Fosse o que fosse que tinha provocado a perda do Eleanore, não fora Aristide. Senti um súbito afecto pelo velho rabugento e dei-lhe uma palmadinha afectuosa no ombro.- Merece uma devinnoise - disse-lhe. - Ofereço-lha. Aristide apagou o morrão do cigarro no cinzeiro.- Não digo que não.A visita da minha irmã pelo Natal causara uma certa excitação. Não só por causa dos rapazes, que

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foram devidamente apreciados desde Pointe Griznoz até Les Immortelles, mas sobretudo porque veio dar esperança aos que ainda esperavam. Enquanto o meu regresso suscitara suspeitas, o dela - na altura em que foi, com os miúdos e a promessa de melhores dias - só mereceu aprovação. Até o seu casamento com um houssin foi bem aceite; Marin Brisnmand era rico ou, pelo menos, o tio era, e na ausência de outros203familiares, Marin estava em situação de vir a herdar tudo. A opinião generalizada era a de que Adrienne fizera muito bem.- Devias seguir o exemplo dela - aconselhava Capucine, diante de um prato com doces, na sua rulote. - Era bom para ti assentares. É isso que faz a ilha progredir, o casamento e os filhos, e não a pesca e o comércio.Encolhi os ombros. Embora não voltasse a receber notícias da minha irmã desde a nossa conversa na prancha do Brismand 1, sentia-me apreensiva, questionando as minhas próprias razões e as dela. Estaria a servir-me do meu pai como uma desculpa para me refugiar ali? Seria a opção de Adrienne preferível?- És uma boa rapariga - disse Capucine, refastelando-se confortavelmente na cadeira. - Já ajudaste muito o teu pai. E Les Salants também. Agora é tempo de fazeres alguma coisa por ti. - Endireitou-se na cadeira e fixou-me com ar crítico. - És uma rapariga bonita, Mado. Já reparei no modo como o Ghislain Guénolé olha para ti, além de outros. - Tentei interrompê-la, mas ela abanou as mãos num gesto de irritação bem-humorada. - Já não falas com as pessoas da maneira ríspida como costumavas fazer - prosseguiu. - Já não andas por aí de queixo espetado, como se quisesses desafiar os outros para uma briga. Agora já não te chamam La Poule.Era tudo verdade e eu própria já tinha reparado. - Além disso, recomeçaste a pintar. Não foi?Olhei as meias-luas de tinta ocre sob as unhas, sentindo-me absurdamente culpada. Ao fim e ao cabo, não era grande coisa: alguns esboços e uma tela maior semiacabada no meu quarto. Flynné um tema surpreendentemente bom para retratar. Noto que recordo as suas feições melhor do que as outras. O que era natural; tinha passado bastante tempo com ele.Capucine sorriu.- Bom, está a fazer-te bem - declarou. - Pensa em ti, para variar. E deixa de carregar com o mundo inteiro em cima dos teus ombros. A maré vira sem te pedir licença. 204

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Em Fevereiro as alterações em La Goulue começavam a ser visíveis para todos nós. A corrente desviada de La Jetée continuava a trazer areia, um processo lento que apenas as crianças e eu seguíamos com algum interesse. Uma camada fina de areia cobria agora grande parte do cascalho e do entulho que Flynn trouxera das dunas e o esparto e os rabos-de-coelha que tinha plantado estavam a cumprir bem a sua missão não deixando que a areia fosse levada pelo vento ou arrastada pela água. Certa manhã em que desci até La Goulue fui encontrar Lolo e Damien Guénolé a tentarem corajosamente construir um castelo. A tarefa não era fácil, porque a camada de areia era demasiado fina, tendo apenas lodo por baixo, mas com um pouco de engenho era possível. Tinham construído uma espécie de represa com restos de madeira e empurravam a areia molhada através de um canal escavado no limo.Lolo sorriu-me.- Vamos ter uma praia como deve ser - disse ele. - Com areia das dunas e tudo. Foi o Ruivo que disse.Sorri.- Vocês gostavam, não gostavam? Gostavam de ter uma praia? As crianças fizeram que sim com a cabeça.- Não temos sítio nenhum para brincar, a não ser aqui - disse Lolo. - Agora até é proibido ir para o canal por causa daquela coisa nova para as lagostas.

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Damien deu um pontapé numa pedra.205- A ideia não foi do meu pai. Foi dos Bastonnets. - Olhou-me em ar de desafio por baixo das pestanas pretas. - O meu pai talvez se tenha esquecido do que eles fizeram à nossa família, mas eu não.Lolo fez uma careta.- Tu queres lá saber disso! - disse ele. - Estás é com ciúmes porque o Xavier anda com a Mercédès.- Não anda nada!Era verdade que não era oficial. Mercédès continuava a passar muito tempo em La Houssinière, onde, segundo ela, havia agitação. Mas Xavier fora visto com ela no cinema e no Chat Noir, e Aristide mostrava-se definitivamente mais bem disposto e falava com à vontade em investimentos e em preparar o futuro.Também o casmurro do Guénolé se mostrava inusitadamente optimista. No fim do mês, o há muito aguardado Eleanore 2 estava finalmente acabado e pronto para o irem buscar. Alain, Matthias e Ghislain apanharam o ferry para Pornic, com a intenção de partirem dali no barco até Les Salants. Aproveitei a companhia deles para ir levantar uma mala com as minhas coisas, sobretudo material de pintura e roupa, que a minha senhoria despachara de Paris. Dizia a mim própria que estava curiosa em ver o novo barco; mas de facto, sentia-me bastante oprimida em Les Salants. Desde a partida de Adrienne, GrosJean voltara a mostrar-se sorumbático como dantes; o tempo estava triste e sombrio e até a expectativa de areia em La Goulue tinha perdido uma certa dose de novidade. Precisava de mudar de ares.Alain tinha escolhido o estaleiro de Pornic porque era o mais próximo de Le Devin. Conhecia vagamente o dono; era um parente afastado de Jojo-le-Goëland, mas não estava envolvido nas lutas entre os houssins e os salannais, pelo facto de residir no continente. As instalações ficavam junto ao mar, contíguas à pequena marina e quando entrámos, fui apanhada de chofre pelo cheiro nostálgico e inesquecível de um estaleiro em actividade: as tintas, a serradura, o odor forte a plástico queimado, a solda e escórias de carvão embebidas em produtos químicos.Era uma empresa familiar, de modo algum tão pequena como era a de GrosJean, mas suficientemente dimensionada para Alain não se sentir completamente intimidado. Enquanto ele e Matthias206se afastavam com o proprietário para discutirem o pagamento, Ghislain e eu ficámos no estaleiro, a observar a doca seca e os trabalhos em curso. Era fácil de identificar o Eleanore 2, o único barco de madeira numa fiada de embarcações com cascos de plástico que Ghislain contemplava com inveja. Era ligeiramente maior do que o Eleanore original, mas Alain mandara-o construir dentro do mesmo estilo e, embora eu pudesse ver que a este construtor faltava a perícia minuciosa do meu pai, era um belo barco. Contornei-o, enquanto Ghislain se afastava em direcção à água, e estava precisamente a inspeccionar a parte debaixo do Eleanore 2 para ver a quilha quando ele voltou a correr, quase sem fôlego, com o rosto excitado.- Olha para ali! - disse, apontando para trás de si para a zona principal de armazenagem. Viam-se ali armazenadas num hangar seguro peças, além de maquinaria de suspensão e de soldadura. Ghislain puxou-me pela mão.- Vem ver!Depois de contornar a esquina do hangar, vi que estava em fase de construção algo de grande. Ainda nem sequer estava semiacabado mas era de longe o que havia de maior no estaleiro. Um cheiro intenso a óleo e a metal impregnava o ar.- O que é que achas que é? - perguntei. - Um ferry? Um rebocador?Tinha cerca de vinte metros de comprido, com duas cobertas, rodeado por andaimes. Uma proa romba e a popa quadrada; quando eu era criança GrosJean costumava chamar a estes barcos "por cos de metal" e desprezava-os por completo. O pequeno ferry que tínhamos tomado para Pornic era um desses porcos de metal, quadrado, feio e muito funcional.- É um ferry. - Ghislain sorriu, satisfeito consigo. - Queres saber como é que eu sei? Dá a volta e vai

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ver do outro lado.O outro lado estava incompleto; grandes painéis metálicos tinham sido rebitados de modo a constituírem o casco exterior, mas ainda faltavam vários, tal como num puzzle muito moroso e in completo. Os painéis eram de um cinzento-escuro, mas num deles alguém escrevera o nome do porco de metal a giz amarelo: Brismand 2.Fiquei a olhar para ele por momentos sem dizer nada.207- Então? - perguntou Ghislain, impaciente. - Que achas? - Acho que se o Brismand pode comprar uma coisa destas é porque está ainda muito melhor do que nós imaginamos - disse eu. - Outro ferry para La Houssinière? Quase não há espaço para um.Era verdade; o pequeno porto de Les Immortelles já estava superlotado e o Brismand 1 fazia o percurso duas vezes por dia.- Talvez esteja a pensar substituir o velho - sugeriu Ghislain. - Porquê? Continua a funcionar bem.Brismand, que não tinha acumulado uma fortuna a atirar dinheiro fora, jamais se iria desfazer de um barco operacional. Não, se mandara construir outro ferry era porque tencionava explorar os dois.Ghislain não se mostrava interessado em mais nada senão nos pormenores financeiros.- Gostava de saber quanto é que isto custa - disse ele. - Toda a gente sabe que o velhaco está a abarrotar de dinheiro. Já é dono de metade da ilha. - Não passava de um leve exagero.Mas eu quase não o ouvia. Enquanto Ghislain continuava a divagar sem fazer uma pausa acerca dos milhões de Brismand e do que ele, Ghislain, faria com uma fortuna daquelas se lhe dessem uma oportunidade (a maior parte dos seus planos envolviam de algum modo a América e carros velozes), eu ia pensando no Brismand 2. Para que é que o Brismand precisava de outro ferry?, perguntava a mim mesma. E onde é que planeava explorá-lo?35

Regressei sozinha, depois de fazer um desvio até Nantes para ir levantar a minha mala. Talvez fosse por já ter passado algum tempo desde que eu prestara um pouco de atenção a La Houssinière, mas quando olhei à minha volta achei que havia qualquer coisa de insólito. Não era capaz de dizer exactamente o quê, mas a cidade parecia-me estranha, vagamente em desacordo consigo própria. As ruas brilhavam com uma luz diferente. O ar tinha um cheiro diferente, mais salgado, como La Goulue na maré baixa. As pessoas olhavam para mim quando eu passava, algumas acenando levemente em sinal de reconhecimento, outras desviando os olhos como se estivessem demasiado apressadas para conversar.O Inverno na ilha é sempre uma estação morta. Muitos dos mais novos vão para o continente fora da estação para arranjarem trabalho e só voltam em Junho. Mas naquele ano La Houssinière parecia diferente, como se o seu sono fosse de algum modo doentio, mais próximo da morte. A maior parte das lojas da rua estavam fechadas e com as gelosias corridas. A Rue des Immortelles estava deserta. A maré estava na vazante e os baixios eram uma mancha branca de gaivotas. Quando num dia como aquele haveria normalmente dezenas de pescadores na apanha do berbigão e do mexilhão, avistava-se à beira-mar um vulto isolado com uma rede com um cabo comprido, remexendo ao acaso num monte de algas.Era Jojo-le-Goëland. Trepei para cima do muro e caminhei ao longo das pedras. Soprava um vento fresco dos baixios que me208209fazia esvoaçar o cabelo e tremer. O solo era pedregoso, o que dificultava o andar. Desejei ter as botas calçadas, como Jojo, em vez das alpergatas de solas finas.Do areal podia ver Les Immortelles, um cubo branco sobre o molhe, a uma distância de poucas centenas de metros. Por baixo estendia-se a estreita cunha da praia. E mais longe os rochedos. Não me lembrava de tantos rochedos, e do sítio onde estava parecia diferente, mais pequena e mais distante, com a praia reduzida pelo ângulo da perspectiva, quase não parecia uma praia, e o quebra-mar destacava-se por completo contra a areia. Por baixo do muro via-se uma placa, mas as letras

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não eram legíveis àquela distância.- Olá, Jojo.Ele virou-se ao ouvir a minha voz, com a rede na mão. Aos seus pés, o balde de madeira continha apenas um monte de algas e algumas minhocas.- Oh, és tu - Abriu a boca num sorriso, segurando entre os dentes uma ponta de cigarro molhada.- Como vai a pesca?- Vai bem, acho eu. O que andas a fazer por estas bandas, hem? À cata de minhocas?- Queria andar um bocado. Isto aqui é bonito, não é? - Hem.Sentia que me observava enquanto eu me encaminhava para Les Immortelles através dos baixios. O vento era suave. À medida que me aproximava do areal achava-o mais pedregoso do que me lembrava e, nalguns pontos, viam-se faixas cobertas de seixos donde a areia tinha sido arrastada, expondo as fundações de um antigo dique.A praia de Les Immortelles tinha perdido areia.Isto tornou-se-me mais evidente quando alcancei a linha de maré; aí podia ver os postes de madeira das barracas da praia expostos, como dentes cariados. Que quantidade de areia não saberia dizer.- Então viva!A voz soou nas minhas costas. Apesar da sua corpulência, as suas passadas eram praticamente inaudíveis na areia. Virei-me, desejando que ele não tivesse reparado na minha hesitação.- Senhor Brismand?210Brismand levantou um dedo reprovador.- Claude, por favor. - Sorria, aparentemente encantado por me ver. - A gozar as vistas?Dei por mim a reagir ao seu charme habitual sem querer.- É muito bonito. Os seus hóspedes devem apreciar este lugar. Brismand suspirou.- Tanto quanto podem apreciar alguma coisa, suponho que sim. Infelizmente, todos nós temos que envelhecer. A Georgette Loyon está cada vez mais frágil. Mesmo assim, fazemos os possíveis. Ao fim e ao cabo, ela já tem mais de oitenta anos. - Passou-me um braço pelos ombros. - Como vai GrosJean?Eu sabia que tinha de ser cautelosa.- Está bem. Nem pode acreditar como melhorou.- Não foi isso que me disse a tua irmã. Tentei sorrir.- A Adrienne não vive cá. Não sei como é que ela sabe. Brismand assentiu, complacente.- Claro, é muito fácil julgar, não é? Mas a menos que se queira ficar lá indefinidamente...Eu não mordi o isco. Em vez disso, desviei o olhar para a esplanada deserta.- As coisas parecem um tanto ou quanto paradas neste momento, não acha?- Bom, é uma época morta do ano. Tenho de admitir que presentemente gosto mais das épocas mortas; estou a ficar demasiado velho para me ocupar do negócio do turismo. Estou a pensar reformar-me dentro de poucos anos. - Sorriu benevolente. - E tu? Tenho ouvido uma data de coisas sobre Les Salants recentemente. Encolhi os ombros.- Cá nos vamos arranjando. Os olhos dele brilharam.- Ouvi dizer que têm feito mais do que isso. Um verdadeiro empreendimento em Les Salants, o que é uma novidade. Um viveiro de lagostas lá em baixo no velho canal. Daqui a pouco começo apensar que querem fazer-me concorrência. - Soltou uma risadinha. - A tua irmã está com bom aspecto - observou. - A vida longe da ilha deve fazer-lhe bem.211Silêncio. No areal, um bando de gaivotas ergueu-se da linha de maré, guinchando.- E o Marin e os miúdos! GrosJean deve ter ficado feliz por ver os netos depois deste tempo todo.Silêncio.- Às vezes ponho-me a pensar que tipo de avô é que eu teria dado. - Soltou um longo suspiro. - Mas nunca tive a oportunidade de ser verdadeiramente pai.Aquela conversa sobre Adrienne e os filhos começava a deixar-me constrangida e sabia que Brismand se apercebia.

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- Ouvi dizer que encomendou outro ferry - disse eu abruptamente.Por momentos, vi estampada no seu rosto uma expressão de verdadeira surpresa.- A sério? Quem é que te disse?- Alguém na aldeia - respondi, sem querer revelar a minha visita ao estaleiro. - É verdade?Brismand acendeu um Gitane.- Tenho pensado nisso. Agrada-me a ideia, mas é difícil de pôr em prática, não é? Não há aqui espaço suficiente tal como está. - Recompusera-se por completo, e os olhos cor de ardósia brilhavam divertidos. - Se fosse a ti não espalhava esse boato - aconselhou-me. - Só ias causar frustrações.Foi-se embora pouco depois, com um vislumbre de sorriso e uma exortação calorosa para vir visitá-lo mais vezes. Interrogava-me se tinha sido imaginação minha aquele momento de descon forto, de genuína surpresa. Se estava a construir um ferry, por que razão o mantinha em segredo? E para quê construir um ferry se, como o próprio Brismand dissera, não tinha onde o pôr?Já ia a meio caminho de Les Salants quando tomei consciência de que nem ele nem Jojo tinham feito qualquer menção à erosão da praia. Ao fim e ao cabo, talvez fosse natural, disse para comigo Talvez isso sucedesse sempre no Inverno.Ou talvez não. Talvez tivéssemos sido nós a provocá-la.A ideia era inquietante e perturbadora. De todo o modo, não havia quaisquer certezas; as minhas horas de estudo, as minhas experiências com os flutuadores, os dias gastos a observar LesImmortelles não significavam nada. Mesmo o Bouch'ou talvez não212tivesse nada a ver com aquilo. É preciso mais do que um pequeno artifício de um engenheiro amador para refazer o contorno de uma costa. E mais do que uma ligeira cobiça para roubar uma praia.21336lynn rejeitou as minhas suspeitas.- Que outra coisa podia ter sido senão a maré? - perguntou ele enquanto caminhávamos ao longo da costa desde Pointe Griznoz. O vento soprava de oeste, como eu gosto, com mil quilómetros de mar aberto como pista. Quando descíamos a vereda paralela à costa, constatei que já conseguia distinguir o pálido crescente arenoso do alto da pequena falésia, com cerca de trinta metros de comprimento e cinco de largura.- Há muita areia nova aqui - berrei contra o vento.Flynn inclinou-se para inspeccionar um bocado de madeira entalada entre duas rochas.- Sim? É bom, não é?Mas quando abandonei o trilho e desci para a praia fiquei pasmada ao ver que a areia seca não cedia sob as minhas botas, como se não houvesse apenas uma leve camada de areia a cobrir as pedrasamontoadas, e sim uma camada generosa. Enterrei a mão e descobri uma camada de três ou quatro centímetros; talvez não fosse muito para uma praia já antiga, mas nas nossas circunstâncias era quase miraculoso. Também tinha sido limpa desde a beira-mar até à duna como se se tratasse de terra preparada para plantio. Alguém trabalhara no duro.- Qual é o problema? - perguntou Flynn, ao ver a minha surpresa. - Apenas aconteceu um pouco mais depressa do que prevíamos, só isso. Não era isto que tu querias?214Claro que era. Mas queria saber como.- Tu és demasiado desconfiada - disse Flynn. - Precisas de descontrair um pouco. Goza este momento. Aspira o aroma das algas. - Ria e gesticulava com o pedaço de madeira na mão, e o seuar absurdo de mágico de cabelo revolto e casaco preto a esvoaçar despertou em mim um súbito afecto e comecei a rir também.- Olha - gritou ele tentando abafar o ruído do vento. Puxou-me pela manga para eu olhar para a baía, fixando a linha ininterrupta e pálida do horizonte. - Mil milhas de oceano; não há maisnada entre isto aqui e a América. E nós vencemo-lo, Mado. Não é fantástico? Não merece uma

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pequena celebração?O entusiasmo dele era contagiante. Eu assenti com a cabeça, ainda sem fôlego por causa do riso e do vento. Ele rodeou-me os ombros com o braço; as abas do casaco dele esvoaçavam contra aminha coxa. O cheiro a mar, aquele odor a ozone misturado com sal era irresistível. O vento jubiloso distendia-me os pulmões e apetecia-me gritar. Mas em vez de gritar, virei-me impulsivamente para Flynn e beijei-o; foi um beijo demorado, sôfrego, com sabor a sal, a minha boca colada à dele como uma lapa. Eu continuava a rir, embora já não soubesse porquê. Por momentos senti-me perdida; era uma pessoa diferente. Ardia-me a boca e sentia formigueiros na pele. Sentia electricidade estática nos cabelos. Pensei que era isto que se devia sentir um segundo antes de se ser fulminada por um raio.Uma vaga ergueu-se entre nós, encharcando-me até aos joelhos. Saltei para trás, arquejando num misto de surpresa e de frio. Flynn olhava para mim com uma expressão curiosa, aparentementeinconsciente das botas encharcadas. Pela primeira vez naqueles meses sentia-me constrangida na sua presença, como se o solo entre nós tivesse mudado, revelando algo que eu ignorara por completo até àquele momento.Depois, subitamente, ele afastou-se.Foi como se me tivesse desferido um soco. Senti-me invadida por uma onda de calor, num misto de embaraço e de mortificação. Como é que tinha sido tão estúpida? Como era possível tê-lo interpretado tão mal?- Desculpa - disse eu, tentando rir, embora sentisse o rosto a arder. - Não sei o que me passou pela cabeça há bocado.215Flynn olhou-me com uma expressão gelada. O brilho parecia ter-se desvanecido por completo dos seus olhos.- Tudo bem - disse numa voz neutra. - Está tudo bem. Vamos esquecer isto, de acordo?Eu assenti, só desejava encarquilhar-me como uma folha e desaparecer no ar.Flynn pareceu descontrair-se um pouco, abraçou-me ao de leve, só com um dos braços, como o meu pai costumava fazer às vezes quando estava satisfeito comigo.- Pronto - repetiu de novo. E a conversa voltou a pisar um terreno menos perigoso.Á medida que a Primavera se aproximava, habituei-me a ir examinar a praia todos os dias à procura de eventuais sinais de danos ou de mudança. Estava especialmente preocupada no início de Março; o vento voltara a rodar para sul, com a promessa de marés altas. Mas as marés altas provocaram escassos danos em Les Salants. A enseada aguentou-se, a maior parte dos barcos estavam bem resguardados e mesmo La Goulue parecia não ter sido afectada, a não ser os montículos de algas escuras pouco atraentes trazidos pelas ondas e que Omer recolhia todas as manhãs para usar nos campos. O Bouch'ou mantinha-se estável. Num período de calmaria entre marés fortes, Flynn foi até La Jetée no seu barco e informou que a barreira não tinha sofrido nenhum dano grave. A nossa sorte continuava firme.Aos poucos, foi voltando a Les Salants um novo tipo de optimismo. Não era apenas uma questão de tempos mais propícios, nem sequer dos rumores que corriam sobre La Houssinière. Era mais do que isso. Era o modo como as crianças já não arrastavam os pés no caminho para a escola, era o chapéu novo e vistoso de Toinette, era o bâton cor-de-rosa e o cabelo solto de Charlotte. Mercédès já não passava tanto tempo em La Houssinière. A perna amputada de Aristide já não lhe doía tanto nas noites chuvosas. Eu continuava a restaurar o estaleiro de GrosJean, a limpar o velho hangar, a pôr de lado todo o material utilizável, a desenterrar cascos meio soterrados na areia. E nas casas espalhadas um pouco por toda a parte em Les Salants as camas eram arejadas, os jardins tratados,216os quartos vazios mobilados de novo à espera de visitas há muito aguardadas. Ninguém falava deles - os desertores raramente são mencionados na aldeia, menos ainda do que os mortos - mas de qualquer modo, as fotografias foram retiradas das gavetas, as cartas relidas, os números de telefone memorizados. Clo, a filha de Capucine, tencionava vir na Páscoa. Désirée e Aristide tinham recebido um postal do filho mais novo. Estas mudanças não tinham a ver apenas com o Bouch'ou.

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Era como se a Primavera tivesse chegado cedo, fazendo brotar novos rebentos nos cantos pulvurentos e nas fendas salgadas.O meu pai também se deixou cativar por aquela atmosfera. A primeira vez que suspeitei disso foi quando, ao regressar de La Goulue, encontrei uma pilha de tijolos em frente do alpendre. E ao pé havia também pedras e sacos de cimento.- O teu pai está a pensar fazer umas obras - disse Alain, quando o encontrei na aldeia. - Um chuveiro, julgo eu, ou um anexo.A notícia não me surpreendeu: nos velhos tempos, GrosJean andava sempre absorvido com uma obra ou outra. Foi só quando Flynn apareceu com um carregador, uma betoneira e outro carregamento de tijolos e de pedras que comecei a prestar atenção.- O que é isto? - perguntei.- Uma obra - disse Flynn. - O teu pai quer fazer umas coisas.Parecia curiosamente relutante em falar do assunto; uma casa de banho nova, disse ele, para substituir a antiga nas traseiras do hangar. E se calhar mais algumas coisas. GrosJean pedira-lhe para fazer o trabalho de acordo com os seus planos.- É óptimo, não é? - perguntou Flynn, ao ver a minha expressão. - Significa que se interessa por qualquer coisa.Fiquei perplexa. As férias da Páscoa seriam daí a dois meses e eu ouvira falar da visita de Adrienne, para aproveitar as férias escolares dos rapazes. Podia ser um estratagema para a atrair. Mas haviaas despesas: o material, o aluguer das máquinas, a mão-de-obra. GrosJean nunca me dera a entender que tinha dinheiro posto de parte.- Quanto? -perguntei.217Flynn disse-me. Era um preço razoável, embora estivesse certa de que era mais elevado do que o meu pai podia pagar.- Eu pago - disse eu. Ele abanou a cabeça.- Não pagas nada. Já está tudo combinado. Além disso acrescentou -, não tens um cêntimo.Encolhi os ombros. Não era verdade; ainda tinha algumas economias. Mas Flynn mostrou-se inflexível. Os materiais já tinhann sido pagos. O trabalho era de borla.O material de construção ocupava a maior parte do espaço do " estaleiro. Flynn pediu desculpa, mas não havia mais nenhum sítio onde o pôr e era só por uma semana ou duas. Assim, abandonei asminhas tarefas lá dentro temporariamente e dirigi-me, com o bloco de esboços na mão, para La Houssinière. Porém, ao chegar, deparei com o edifício de Les Immortelles revestido de andaimes. Talvez se tratasse de um problema de humidade provocado pelas marés altas.A maré começava a encher. Desci até à praia deserta e sentei-me no chão de costas para o paredão para a contemplar. Estava ali sentada há alguns minutos, deixando correr o lápis, preguiçosamente, pelo papel, quando reparei numa tabuleta pregada na rocha por cima de mim, uma placa branca com letras pretas que dizia:LES IMMORTELLES. Praia privativa. Constitui uma VIOLAÇÃO remover AREIA desta praia. Quem o fizer fica sujeito a ACÇÃO JUDICIAL. Ordem assinada por P. Lacroix (Gendarmerie Nationale) G. Pinoz (Prefeito) C. Brismand (Proprietário)Levantei-me e fiquei a olhar para as palavras, perplexa. Era verdade que já tinha havido casos de furto de areia antes, uns sacos aqui e ali, normalmente para a construção ou para a limpeza de umjardim. O próprio Brismand costumava fechar os olhos. Para quê agora aqueles avisos? Mas ao recordar a minha última visita, o certo era que a praia perdera uma quantidade considerável de areia. Muito mais do que poderia ser imputado a uns roubos fortuitos.As barracas de praia que tinham sobrevivido ao Inverno encavalitavam-se nos suportes de madeira, um metro ou mais acima do nível do areal. Em Agosto, os seus bojos rasavam a areia. Comecei a desenhar rapidamente: as barracas sobre estacas altas, a curva da linha de maré; a fiada de seixos por detrás do quebra-mar; a maré enchente com a sua vanguarda de bruma.Estava tão absorta no meu trabalho que só passado algum tempo é que me apercebi da presença de

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Soeur Extase e de Soeur Thérèse, sentadas mesmo por cima de mim, no paredão. Desta vez,não estavam a comer gelados, mas Soeur Extase segurava um pacote de rebuçados, que de vez em quando passava a Soeur Thérèse. As duas freiras mostraram-se encantadas ao ver-me.- Vejam só, é a Mado, ma sceur...- A pequena Mado com o seu bloco de desenho. Vieste ver o mar, hem? Sentir o cheiro do vento sul? - perguntou Soeur Thérèse.- O vento sul, o vento que arruinou a nossa praia - declarou Soeur Extase. - É o que diz Claude Brismand.- Um homem inteligente, o Claude Brismand.Eu estava distraída a escutar as vozes delas que eram como que o eco uma da outra, deslizando suavemente como o gorjeio trinado de duas aves.- Muito muito inteligente.- Eu diria antes demasiado inteligente - comentei, sorrindo. As freiras riram.- Ou então não suficientemente inteligente - disse Soeur Thérèse. Desceram do seu poleiro em cima do paredão e começaram a encaminhar-se na minha direcção, arregaçando os hábitos quando pisaram a areia.- Estão à espera de alguém?- Não há ninguém para esperar, Mado GrosJean, absolutamente ninguém.- Quem é que ia sair com este tempo? Era o que costumava-os dizer ao teu pai...- Ele estava sempre a olhar para o mar, como sabes... - Mas ela nunca voltou.As velhas freiras sentaram-se perto, numa rocha lisa e miravam-me atentamente com os seus olhos de pássaro. Olhei para elas,218219assustada. Sabia da existência de uma aura de romance à volta do meu pai: os nomes dos seus barcos eram prova disso, mas a ideia de que ele estivesse ali à espera, perscrutando o horizonte à espera do regresso da minha mãe, era inesperada e singularmente comovente.- Apesar de tudo, ma sceur - disse Soeur Extase, tirando um rebuçado - a pequena Mado voltou, não voltou?- E as coisas estão a correr melhor em Les Salants. Graças à santa, claro.- Ah, sim. A santa. - As freiras soltaram uma risadinha.- Para nós as coisas não são tão auspiciosas - disse Soeur Extase, olhando para os andaimes de Les Immortelles. - Aqui não temos tido tanta sorte.A maré avançava veloz como sempre sucede em Le Devin, arremetendo através dos baixios a uma velocidade enganadora. Mais de um pescador vira-se obrigado a abandonar a pescaria e a nadar ao ser apanhado por aquele silencioso fluxo de água. Conseguia distinguir uma corrente, e uma corrente forte pelo seu aspecto, infiltrando-se em direcção à praia. Não era uma característica invulgar numa ilha assente em bancos de areia; a mais ínfima mudança pode desviar uma corrente, transformando um braço de mar protegido num promontório desolado durante um Inverno, transformando os baixios em limo, em praia e depois em dunas no espaço de poucos anos.- Para que é aquilo? - perguntei às freiras, apontando a tabuleta.- Foi uma ideia do Sr. Brismand. Ele pensa que... - Alguém tem andado a roubar areia.- A roubar? - Pensei na recente camada de areia em La Goulue.- Com um barco, talvez; ou com um tractor. - Soeur Thérèse sorriu radiante do alto do seu poleiro. - Ofereceu uma recompensa.- Isso é uma estupidez - disse eu, rindo. - Ele devia saber que ninguém podia remover tanta areia. São as marés. As marés e as correntes. Só isso.Soeur Extase voltara a concentrar-se no pacote de rebuçados. Ao ver que eu a observava, estendeu-mo.220- Bem, o Brismand não acha que seja estúpido - comentou placidamente. - Brismand está

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convencido que alguém tem andado a roubar a sua praia.Soeur Thérèse confirmou com um aceno de cabeça. ..... Porque não? - chilreou. - Já foi feito antes.22137M arço deu-nos um presente de marés vivas mas de bom tempo. Os negócios corriam bem. Omer obtivera excelentes lucros com a venda dos legumes de Inverno e planeava uma colheita mais ambiciosa no ano seguinte. Angélo, depois de fazer algumas renovações no bar, tinha reaberto e estava a fazer bom negócio mesmo com os houssins. A aliança entre os Guénolés e os Bastonnets fornecia-lhe as ostras. Xavier começara a restaurar uma pequena casa abandonada perto de La Bouche e já fora visto por diversas vezes de mãos dadas com Mercédès Prossage. A própria Toinette ia retirando uma receita considerável das visitas ao santuário da santa em La Griznoz, que ganhara popularidade junto de alguns dos houssins mais velhos, depois das inundações.No entanto, nem todas as mudanças tinham sido para melhor. A aliança Guénolé-Bastonnet sofreu um revés temporário quando Xavier foi assaltado no regresso de La Houssinière com o dinheiro de um fornecimento de lagostas. Três homens em motorizadas fizeram-no parar mesmo à saída da povoação, partiram-lhe os óculos e o nariz e fugiram com a receita de uma quinzena. Xavier não reconhecera nenhum dos seus assaltantes, porque usavam capacetes de motos.- Trinta lagostas a cinquenta francos cada - lamentava-se Matthias para Aristide. - E o teu neto deixa-as escapar!Aristide ficou indignado.- Achas que o teu neto tinha feito melhor?222O meu neto ao menos tinha lutado - disse Matthias.- Eram três tipos - murmurou Xavier, mais tímido do que nunca, com um ar estranho de coelho sem os óculos.- E depois? - perguntou Matthias. - Sabes correr, ou não? - Atrás de uma moto?- Deviam ser houssins - disse Omer apaziguador, ao sentir a discussão azedar. - Xavier, eles disseram-te alguma coisa? Alguma coisa que te possa ajudar a identificá-los?Xavier abanou a cabeça.- E as motos? Eras capaz de as reconhecer, ou não? Xavier encolheu os ombros.- Talvez. - Talvez?Finalmente, Xavier, Ghislain, Aristide e Matthias foram a La Houssinière para falarem com Pierre Lacroix, o único polícia, embora nenhum dos lados confiasse no outro para contar a história correctamente. O polícia mostrou-se compreensivo, mas não se manifestou muito optimista.- Há tantas motos na ilha - disse ele, com uma palmadinha amistosa no ombro de Xavier. - Até podia ser gente do continente que veio cá passar o dia no Brismand 1.Aristide abanou a cabeça.- Eram houssins - disse, obstinado. - Sabiam que o rapaz trazia o dinheiro.- Qualquer pessoa em Les Salants podia saber - disse Lacroix.- Sim, mas nesse caso ele teria reconhecido as motos. - Lamento. - O seu tom era peremptório.Aristide fitou Lacroix.- Uma das motos era uma Honda vermelha - disse. - É um modelo vulgar - disse Lacroix, sem o olhar. - O teu filho Joël não tem uma Honda vermelha? Seguiu-se um silêncio súbito e ameaçador.- Está a querer sugerir, Bastonnet, que o meu filho... que o meu filho... - O rosto de Lacroix explodia de cólera debaixo do bigode. - É uma acusação mal-intencionada. Se não fosses um velho, Bastonnet, e se não tivesses perdido o teu filho...Aristide saltou da cadeira, apertando com força a bengala.223

- O meu filho não é para aqui chamado! - Nem o meu!Olhavam um para o outro, Aristide lívido e Lacroix ruborizado, ambos a espumar de raiva. Xavier segurou o velho pelo braço para que não caísse.

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- Pépé, não vale a pena... - Larga-me, hem! Suavemente, Ghislain pegou-lhe no outro braço. - Por favor, Sr. Bastonnet, temos de ir.Aristide fulminou-o com o olhar. Ghislain não desviou os olhos. Seguiu-se um silêncio longo e irado.- Muito bem - disse Aristide por fim. - Há muito tempo que um Guénolé não me tratava por senhor. A geração mais nova não deve estar tão perdida como eu pensava.Abandonaram La Houssinière, fazendo apelo a toda a sua dignidade. Joël Lacroix observava-os da porta do café Chat Noir, com um Gitane entre os dentes e um leve sorriso nos lábios. A Honda vermelha estava estacionada cá fora. Aristide, Matthias, Ghislain e Xavier passaram por ele sem o olhar, mas ambos ouviram-no comentar para a rapariga pendurada a ele.- Lá vêm outra vez aqueles salannais! Para arranjarem outro problema, imagino eu! Esperava que tivessem aprendido de vez. Xavier olhou furibundo para a entrada do café, mas Matthias segurou-o pelo braço e sibilou-lhe ao ouvido:- Nem te atrevas, filho! Nós havemos de o apanhar... havemos de os apanhar a todos... noutra altura.Xavier olhou para Matthias, com estupefacção. Talvez por ser tratado por "filho" pelo rival do avô, ou talvez fosse a expressão no rosto do velho, mas foi o suficiente para que recuperasse a razão.Nenhum deles duvidava agora que Joël estivera por detrás do assalto e do roubo, mas aquele não era o momento certo para o dizer. Regressaram devagar a Les Salants e quando finalmente chegaram, o inimaginável acontecera: pela primeira vez em várias gerações, os Bastonnets e os Guénolés estavam cordialmente de acordo sobre uma coisa.Concordavam que desta vez era a guerra.

o final da semana, a aldeia era percorrida por um sussurro de boatos e de especulações; até as crianças já tinham ouvido a história, que passara de boca em boca, com muitas contradições e aditamentos, até alcançar proporções insuspeitadas. Mas numa coisa todos estavam de acordo: já chegava!- Nós estávamos dispostos a esquecer coisas passadas - disse Matthias durante uma partida amigável de belote no Angélo. - Estávamos satisfeitos por negociarmos com eles. Mas eles viciaramo baralho... é sempre a mesma coisa quando se lida com os houssins.Omer assentiu.- É altura de lhes respondermos - concordou. - De fazermos qualquer coisa que lhes dê que pensar.- É fácil de dizer - observou Toinette, que estava a ganhar, por cima de uma pilha de notas e de moedas. - Mas no fim é sempre a mesma coisa... só conversa. É como cuspir para o vento...- Pff! - Matthias emitiu um som explosivo. - Desta vez não. Desta vez foram demasiado longe.22422538Seguiu-se uma campanha acérrima contra os houssins. O recém-conquistado sentimento comunitário exigia-o. O Preço das lagostas e dos caranguejos subiu em flecha; Angélo começou a cobrar um extra a todos os houssins que apareciam pelo café; o minimercado de La Houssinière recebeu um fornecimento de legumes já cediços da quinta dos Prossage (Omer desculpou-se com o tempo); e certa noite, alguém entrou à socapa no hangar onde Joël Lacroix guardava a sua preciosa Honda e meteu areia no depósito de gasolina. Toda a gente em Les Salants ficou à espera que o polícia por lá aparecesse furioso, mas nunca apareceu.- Há demasiado tempo que as coisas têm corrido bem para os, houssins - declarou Omer. - Pensam que pelo facto de terem tido sorte durante algum tempo, nada mudará jamais.O simples facto de ninguém ter contestado esta afirmação dá bem a medida dos progressos que tínhamos feito. O próprio Matthias, que não acreditava muito em mudanças, concordou veementemente.- Nunca é tarde demais para mudar - disse ele.- Hem, e às vezes a maré precisa de uma pequena ajuda.

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- Devíamos fazer publicidade - sugeriu Capucine. - Especarmo-nos no cais em La Houssinière com um grande cartaz quando os turistas chegarem. Ajudava a atrair o negócio. E enfiar outro debaixo do nariz daqueles houssins!226Há seis meses atrás, uma ideia tão ousada e ainda por cima vinda de uma mulher teria suscitado risos e troça. Mas agora, Aristide e Matthias mostraram-se interessados. Outros imitaram-nos.- Porque não, hem?- Parece-me uma boa ideia.- Seria um bom motivo para os houssins se irritarem. - Pensem na cara do Brismand!Houve quem abanasse a cabeça. Foram emborcados vários tragos de devinnoise. Era um passo gigantesco para Les Salants desafiar La Houssinière com tamanha frontalidade. Seria interpretado, e com toda a razão, como uma declaração de guerra.- E que mal há nisso, afinal? - perguntou Aristide, que não esquecera o assalto ao neto. - É uma guerra. Sempre houve guerra. Só que até agora eles ganharam sempre.Os outros reflectiram nisso por momentos. Não era a primeira vez que alguém transmitia por palavras esse pensamento, mas a ideia de competir com os houssins em pé de igualdade, fosse em que fosse, sempre se afigurara absurda. Agora, pela primeira vez, a vitória parecia possível.Matthias falou por todos nós.- Cobrar um preço extra pelo peixe é uma coisa - disse lentamente. - Mas o que estão a sugerir significaria...Aristide bufou.- La Houssinière não é o banco de ostras de ninguém, Guénolé - disse com uma certa dose da sua antiga ira. - Os turistas são boa caça. Não pertencem a La Houssinière. Também podem ser nossos.- E nós merecemo-los - acrescentou Toinette. - Temos a obrigação de pelo menos tentar. Estás com medo dos houssins, Matthias, é isso? Achas que são melhores do que nós?- Claro que não. Só não sei se estaremos preparados. A velha encolheu os ombros.- Podemos preparar-nos. A estação começa daqui a quatro meses. Podíamos receber meia dúzia de turistas por dia até Setembro, à espera apenas que os tragam até cá. Ou talvez mais. Pensa nisso!227- Precisávamos de um sítio para alojar as pessoas - disse' Matthias. - Não temos nenhum hotel. Nem temos nenhuma área onde possam acampar.- Lá está a velha cobardia do Guénolé a falar, hem - volveu Aristide. - Deixa que um Bastonnet te mostre um pouco de imaginação. Tens um quarto livre, não tens?Toinette assentiu.- Hem! Toda a gente tem um ou dois quartos desocupados. A maior parte de nós tem um bocado de terreno que pode ser usado para acampar. Juntem a isso o pequeno-almoço e o jantarcom a família e é tão bom como qualquer outro lugar na costa. Se calhar, melhor. A gente da cidade está disposta a pagar bom dinheiro para ficar numa casa típica da ilha. Ponham umas achas nas lareiras, pendurem umas vasilhas de cobre nas paredes.- Façam umas devinnoiseries num forno de argila. - Tirem para fora dos baús os trajes da ilha.- Música tradicional... eu tenho o meu biniou algures no sótão.- Objectos de artesanato, bordados, passeios de pesca. Depois de desencadeadas, torna-se difícil suster as ideias. Tentei parar de rir à medida que a excitação geral aumentava, embora, apesar de divertida, me sentisse de algum modo emocionada. Até os cépticos Guénoés se deixaram entusiasmar, cada um gritando sugestões, martelando nos tampos das mesas, chocalhando os copos. O consenso era de que os veraneantes comprariam qualquer coisa que considerassem típica ou artesanal. Durante anos tínhamos lamentado a falta de facilidades modernas em Les Salants, observando com inveja La Houssinière com o seu hotel, a sala de jogos e o cinema. Víamos, pela primeira vez, como a nossa aparente fragilidade podia vir a dar bons lucros. Tudo de que precisávamos era de alguma iniciativa e de alguns investimentos.À medida que a Páscoa se aproximava, o meu pai atirou-se ao seu projecto de construção com renovado entusiasmo. Não estava sozinho; viam-se sinais de actividade um pouco por todo o lado

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na aldeia. Omer começou a transformar o velho celeiro abandonado outros plantavam flores nos pátios despidos ou penduravam cortinas228bonitas nas janelas. Les Salants parecia uma mulher simples enamorada, que, pela primeira vez, começa a descobrir que pode ser atraente.Depois da sua partida a seguir ao Natal, não tínhamos recebido mais notícias de Adrienne. Para mim era um alívio; o regresso dela trouxera uma pequena frota de recordações desagradáveis e oscomentários que fizera ao partir ainda me deixavam perturbada. Se GrosJean estava desapontado, não dava o menor sinal disso. Parecia completamente embrenhado no seu novo projecto, e eu estava grata por isso, apesar de se manter reservado. E nesse aspecto eu responsabilizava a minha irmã.Nas últimas semanas, Flynn também se mostrara mais distante. Em parte porque andava a trabalhar muito; além da obra para GrosJean, também dava uma ajuda na aldeia. Tinha instalado umalavandaria em casa de Toinette para ser usada pelos campistas e ajudou Omer a transformar o celeiro num apartamento de férias. Continuava a dizer as mesmas piadas e observações jocosas, jogava às cartas e xadrez com a mesma precisão invencível, lisonjeava Capucine, arreliava Mercédès, fascinava as crianças com as histórias incríveis das suas viagens pelo mundo e, assim, encantando, bajulando ou jurando em falso ia penetrando cada vez mais fundo no coração de Les Salants. No entanto, mostrava-se indiferente aos planos e alterações a longo prazo.Já não arriscava mais ideias ou inspirações. Talvez porque, agora que os salannais tinham aprendido a pensar pelas suas cabeças, já não precisasse de o fazer.Ainda me perturbava a recordação do que acontecera entre nós em La Goulue. Flynn, porém, parecia ter esquecido por completo e, depois de ter evocado repetidamente o episódio naquele recantodo meu espírito reservado para essas coisas, decidi finalmente fazer o mesmo. Era verdade que o achava atraente. Essa constatação apanhara-me de surpresa, e fizera-me comportar como uma tola. Mas a sua amizade era mais importante para mim, especialmente agora, embora jamais o admitisse a quem quer que fosse, mas desde a transformação de Les Salants e da concretização dos projectos do meu pai, sentia-me estranhamente esquecida.Não era nada de definido. As pessoas eram afáveis e amáveis. Não havia uma única casa na aldeia, nem sequer a de Aristide, onde229não fosse imediatamente bem recebida. E no entanto, de uma maneira algo subtil, continuava a ser uma estranha. Havia um certo formalismo no modo como lidavam comigo, que achava estranhamente opressivo. Se eu aparecia para tomar uma chávena de chá, serviam-me na melhor porcelana. Se ia comprar legumes a Oraer, ele juntava sempre mais qualquer coisa do que eu tinha pago. Isso fazia-me sentir constrangida. Fazia-me sentir diferente. Quando o manifestei a Capucine, ela limitou-se a rir. Eu achava que Flynn era a única pessoa que me podia compreender.Por causa disso, passava mais tempo com ele do que nunca. Ele era um excelente ouvinte e possuía a capacidade de ir ao fundo dos meus problemas com um simples sorriso ou um comentário irreverente. E o que era mais importante ainda, compreendia a minha outra vida, os anos vividos em Paris e quando conversava com ele, nunca precisava de escolher o vocabulário à procura de uma palavra mais simples, nem de me esforçar para explicar uma noção complexa, como sucedia muitas vezes com os salannais. Eu nunca o admitiria, mas por vezes os meus amigos da aldeia faziam-me sentir como uma mestre-escola com uma turma turbulenta. Tão depressa me encantavam como me exasperavam; tinham momentos de extrema infantilidade uns com os outros; e momentos de singular sabedoria. Era pena que não pudessem alargar os seus horizontes.- Agora já temos uma praia a sério - disse-lhe um dia em La Goulue. - Talvez consigamos que venham alguns turistas.Flynn estava deitado de costas na areia, olhando o céu.- Quem sabe - continuei. - Ainda podemos vir a ser uma estância elegante. - Era uma observação despreocupada, mas ele nem sequer esboçou um sorriso. - Pelo menos demos uma lição ao Brismand. Depois dos êxitos dele ao longo dos anos, é tempo de Les Salants ter a sua oportunidade.

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- Achas que é isso que está a acontecer, não achas? - disse ele. - Que estão a ter a vossa oportunidade?Sentei-me.- Que se passa? O que é que não me contaste?Flynn continuava a olhar para o céu. Tinha os olhos enublados. - Então?

- Está toda a gente tão satisfeita consigo própria. Basta uma ou duas pequenas vitórias para pensarem que podem fazer tudo. A seguir ainda se convencem que podem caminhar sobre as águas.- E depois? - Não gostei do tom da sua voz. - Que tem de mal se formos um pouco empreendedores?- O que tem de mal, Mado, é que tudo tem sido demasiado bem sucedido. Demasiado bem sucedido e demasiado depressa. Quanto tempo julgas que vai demorar até passarem palavra? Quanto tempo até que todos queiram a sua fatia do bolo?Encolhi os ombros.- Não podemos guardar uma praia eternamente só para nós. Numa ilha, a verdade acaba por se saber. Não se pode guardar para sempre um segredo. Além do mais, o que é que alguém podia fazer?Flynn fechou os olhos.- Espera e verás - disse com inesperada frieza. - Não tardarás a descobrir.Mas eu estava demasiado ocupada para perder tempo com aquele tipo de pessimismo. Faltavam três meses para o início da época de turismo e a aldeia inteira estava a trabalhar com mais afinco e entusiasmo do que quando tínhamos construído o Bouch'ou. O êxito tornara-nos ousados; por outro lado, tínhamos começado a saborear todas as possibilidades que o projecto suscitara entre nós.Flynn, que podia ter vivido dos louros conquistados durante um ano se quisesse, aceitando os favores de todos em Les Salants e sem nunca ter de pagar uma bebida, continuava a manter as distâncias. Foi a santa que gozou desses favores em vez dele, e o santuário erigido por Toinette estava a abarrotar de ofertas. Em Abril, no Dia das Mentiras, Damien e Lolo provocaram um pequeno escândalo ao embelezarem o altar com um peixe morto, embora de um modo geral houvesse uma genuína veneração pela recuperada Sainte-Marine, e Toinette recebia a sua quota-parte.No ano anterior, não passava pela cabeça de nenhum salannais investir dinheiro, e muito menos pedir emprestado. Não existe nenhum banco em Le Devin, nem a possibilidade de dar as garantias necessárias para um empréstimo se fosse caso disso. Mas agora as coisas eram diferentes. As poupanças começavam a sair de caixas230231e guarda-fatos. Começávamos a ver possibilidades onde não tinham existido antes. A expressão "empréstimo a curto prazo" foi pronunciada pela primeira vez por Omer e acolhida com prudência. Alain revelou que também ele andava a pensar nesses termos. Alguém ouvira falar numa organização no continente, alguém ligado ao Ministério da Agricultura, talvez, que podia ser contactada para solicitar um subsídio.À medida que o entusiasmo aumentava, os preparativos tornavam-se mais ambiciosos. Pediram-me que fizesse várias tabuletas, aproveitando pranchas e peças artísticas de madeira dada à costa:Sal marinho local (SOF cada saco de S Kg) Trabalhos em corda da ilha de Bastonnet Café-Restaurante Angélo (Prato do Dia 30F) Quarto de Hóspedes - Quartos para alugar - Ambiente Familiar AcolhedorGaleria Prasteau - Artista LocalSantuário de Sainte-Marine-de-la-Mer (10F, Visita Guiada)Durante várias semanas a aldeia andou num frenesim de gente a martelar, a sachar, a gritar, a limpar como rodo, a pintar, a caiar, a beber (o trabalho provocava sede) e a discutir.- Devíamos mandar alguém a Fromentine para fazer publicidade - sugeriu Xavier. - Para distribuir folhetos e passar palavra. Aristide concordou.

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- Vamos os dois. Eu fico no cais, de olho no ferry. Tu ocupas-te do resto da cidade. Mado, és capaz de fazer um cartaz do tipo de transportar às costas e também alguns folhetos? Podemos ficar uns dias em regime de cama e pequeno-almoço. Tão fácil como acertar em galinhas num poleiro! - Soltou um riso casquinado de satisfação.Xavier mostrou-se menos entusiasta. Talvez perante a ideia de deixar Mercédès, mesmo por poucos dias. Porém, o entusiasmo de Aristide, uma vez ateado, era inextinguível. Emalou algumas pou cas coisas, incluindo o cartaz publicitário, e pôs a correr a notícia de que tinha de ir resolver um assunto de família.232- Não convém que os houssins saibam das coisas demasiado cedo - observou ele.Tive de escrever à mão uma centena de pequenos cartazes, por não dispormos de meios para os imprimirmos. Xavier recebeu instruções para colar um em todas as montras de lojas e em todos os cafés de Fromentine.VISITE LES SALANTSIgual desde há 100 Anos Prove a Deliciosa Cozinha Local da Ilha Goze a nossa intacta Praia Dourada A Nossa Hospitalidade Calorosa e Cordial LES SALANTS '- DESCUBRA A DIFERENÇA!

A redacção tinha sido ponderada e afinada pelos Bastonnets, os Guénolés e os Prossages até ficarem satisfeitos. Eu corrigi os erros ortográficos. Pusemos a circular a notícia de que os Bastonnets iamaté à costa para ajudarem um parente em dificuldades em Pornic, certificando-nos de que a informação chegava aos ouvidos certos. Basta contar qualquer coisa a Jojo-le-Goëland, para que toda La Houssinière fique a saber num abrir e fechar de olhos. A opinião corrente em Les Salants era a de que os houssins só saberiam o que lhes tinha caído em cima quando já fosse demasiado tarde.O nosso ataque ia apanhá-los completamente desprevenidos. No Verão, dizia Aristide triunfante, a guerra teria terminado mesmo antes de começar.23339Chegou a Páscoa e o Brismand 1 voltou a fazer o percurso duas vezes por semana. Era bom para Les Salants, porque os trabalhos de reconstrução e de decoração tinham-nos deixado desfalcados e ninguém se queria arriscar a ser descoberto a encomendar material em La Houssinière. Aristide e Xavier tinham tido um excelente acolhimento em Fromentine, distribuindo todos os folhetos e deixando indicações detalhadas nos postos de turismo locais. Poucas semanas mais tarde, voltaram a sair, dessa vez até Nantes, com o dobro de folhetos para distribuírem. Todos nós aguardávamos ansiosos por notícias, dando os últimos retoques e mantendo sob apertada vigilância eventuais espiões dos houssins. Porque havia espiões. Jojo-le-Goëland tinha sido avistado por várias vezes a rondar à volta de La Goulue, de binóculo em punho, tinham ouvido o ruído de motos nas imediações da aldeia e Joël Lacroix adquirira o hábito de deambular pelas dunas à noite ou pelo menos até alguém ter descarregado dois tambores de sal-gema. Deu-se início a uma investigação tíbia, mas Alain fez notar a Pierre Lacroix, com uma expressão de profunda sinceridade, que eram tantos os ilhéus que possuíam espingardas de sal que era impossível descobrir o culpado, mesmo presumindo que se tratava de um salannais.- Pode muito bem ter sido alguém do litoral Aristide. - Ou até um houssin.Lacroix cerrou os lábios, desagradado.- concordou- Tem cuidado, Bastonnet - avisou.- Quem, eu? - disse Aristide, chocado. - Com certeza não pensas que eu tenho alguma coisa a ver com o ataque de que o teu filho foi vítima?Não houve quaisquer represálias. Talvez Lacroix tivesse falado com o filho, ou talvez os houssins estivessem muito ocupados com os preparativos para a nova estação, mas La Houssinière estava singularmente silenciosa para aquela época do ano. Mesmo o bando das motos desaparecera

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momentaneamente de circulação.- Óptimo, hem! - dizia Toinette, que também tinha a sua espingarda escondida atrás da porta de entrada, junto à pilha de lenha. - Que me apareça aqui algum desses vadios a rondar aporta e despejo-lhe em cima os dois tambores da Grossel de preferência no cu.Nesta altura, para o triunfo de Aristide só faltava uma coisa: o anúncio oficial do noivado do neto com Mercédès. Havia alguma razão para o antever: os dois andavam sempre juntos, Xavier mudode admiração, o objecto da sua paixão em poses de tranquila coquetaria, ostentando toda uma colecção de roupas ousadas. Isto só por si era suficiente para alimentar as conjecturas na aldeia. Ainda por cima, havia o facto de Omer favorecer a união. Como pai cioso, não fazia segredo disso. Afirmava complacentemente que o rapaz tinha boas perspectivas. Era um salannais com o coração no seu lugar. Respeitador dos mais velhos. E com dinheiro suficiente para iniciar a vida. Aristide já tinha dado a Xavier uma quantia desconhecida - os boatos circulavam desenfreados, mas constava que o velho devia ter economias escondidas algures - para começar a vida, independente, e Xavier tinha realizado extraordinários progressos a restaurar o casinhoto abandonado, em tempos pouco maior do que um casebre, para onde planeava mudar-se.- É tempo de ele assentar, hem - dizia Aristide. - Nós não estamos a ficar mais novos e gostava de conhecer os meus bisnetos antes de morrer. Xavier é tudo o que me resta do sangue do meu pobre Olivier. Conto com ele para não deixar morrer o nome.Mercédès era uma bela rapariga e uma salannaise. Omer e os Bastonnets eram amigos há anos. E Xavier estava apaixonado por ela da proa até à popa, dizia Aristide com um brilho lascivo nos olhos; iria ter bisnetos.234235- Quero uma dezena - dizia, complacente, desenhando com' as mãos os contornos de uma ampulheta. Quadris largos, bons jarretes. Aristide conhecia tão bem o seu gado como qualquer habitante da ilha. Costumava dizer que um Devinnois devia escolher a mulher como uma égua para criação. E se fosse bonita, tanto melhor. - Uma dezena - repetia bem disposto, esfregando as mãos. . - Ou talvez mais.Mas, apesar de tudo, havia uma espécie de desesperança no meio da nossa animação. Para aguentar uma guerra não basta apenas conversa acesa e os nossos rivais de La Houssinière pareciamdemasiado calmos, demasiado desinteressados para podermos estar tranquilos. Claude Brismand foi visto por diversas ocasiões nas imediações de La Goulue, acompanhado por Jojo-le-Goëland e pelo prefeito Pinoz. Se ficou perturbado com o que viu, não deu mostras disso. Continuou despreocupado, acolhendo todos os visitantes com o habitual sorriso benevolente e paternal. Não obstante, já tinham chegado até nós alguns rumores. Segundo parecia, os negócios não corriam às mil maravilhas em La Houssinière.- Ouvi dizer que Les Immortelles teve de cancelar algumas reservas - disse Omer. - Por causa da humidade nas paredes.No final da semana, não resisti à curiosidade que me espicaçava sobre Les Immortelles. Fui até lá, servindo-me de um pretexto - artigos de pintura que queria mandar vir do continente - mas so bretudo para confirmar os boatos, cada vez mais insistentes, sobre os pretensos danos sofridos pelo hotel.Claro que tinham sido exagerados. De qualquer modo, a situação em Les Immortelles tinha-se deteriorado desde a minha última visita. O aspecto do hotel era o mesmo, a não ser devido aos andai mes num dos lados, mas a camada de areia era ainda mais reduzida, com uma inclinação acentuada até à praia pedregosa.Percebia-se claramente como aquilo tinha acontecido. O encadeamento de acontecimentos que levara àquela situação, todas as obras realizadas em Les Salants, a conjugação de inércia e de arro gância dos houssins que ocultava a verdade, apesar de a terem mesmo diante dos olhos. A proporção, a audácia do nosso logro tornava impossível encará-la. O próprio Brismand, a despeito das suas investigações, ainda não conseguia ver o que estava debaixo do nariz.Uma vez iniciada, a deterioração seria rápida e inexorável. As vagas ao embaterem no paredão

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acabariam por arrastar a areia que restava na corrente, expondo as rochas e os seixos até não ficar maisnada senão o declive liso do antigo dique. Bastariam poucos anos e não restaria nada. Dois Verões, se os ventos ajudassem.Olhei à volta à procura de Jojo, de Brismand ou de alguém que lie desse notícias, mas não se via vivalma. A Rue des Immortelles estava praticamente deserta. Avistei um casal de turistas a comprarum gelados num quiosque onde uma rapariga de ar enfadado mascava pastilha elástica debaixo de um chapéu-de-sol desbotado com reclames à Choky.Ao aproximar-me do paredão, reparei num grupo de turistas precoces na praia descarnada, com todo o ar de serem uma família, com um bebé pequeno e um cão, todos enroscados e friorentosdebaixo de um chapéu-de-sol batido pelo vento. Abril é um mês incerto nas ilhas e naquele dia soprava um vento marítimo que varria o calor do ar. Uma garota de cerca de oito anos, de caracóis e olhos redondos como amores-perfeitos, trepava pelas rochas na ponta mais afastada da praia. Viu que eu a estava a observar e acenou-me com a mão.- Estás aqui a passar as férias? - gritou-me. Abanei a cabeça.- Não. Vivo aqui.- Então, já estiveste de férias? Vais para a cidade passar as férias quando nós vimos para cá? Vens nadar no mar nos fins-de-semana e só vais à piscina de vez em quando?- Laetitia - repreendeu-a o pai, virando-se para ver o que se passava. - Não faças perguntas inconvenientes.Laetitia olhou para mim apreciativamente. Pisquei-lhe o olho. Não precisava de outro incentivo; no espaço de um segundo galgou a vereda até à esplanada e veio sentar-se precariamente ao meu lado no molhe, com uma perna dobrada.- Tens uma praia perto da tua casa? É maior do que esta? Podes ir até à praia sempre que quiseres? Podes construir um castelo de areia no Dia de Natal?Sorri.- Se quiseres. - Zen!236237Fiquei a saber que Gabi era a mãe e Philippe o pai. Pétrole era o cão. Enjoava sempre nos barcos. Laetitia tinha um irmão já cresci do, Tim, que frequentava a Universidade de Rennes. Tinha outroirmão, Stéphane, mas era ainda bebé. Fez um leve trejeito de desaprovação.- Nunca faz nada. Às vezes dorme. É tão chato. Eu venho à praia todos os dias - anunciou, mais animada. - E vou cavar até encontrar barro. Depois vou fazer coisas. O ano passado fizemos isso em Nice - explicou. - Foi zen. Super zen.- Laetitia! - Chamou uma voz distante da praia. - Laetitia, o que é que eu te disse?Laetitia soltou um suspiro teatral.- Bofa A Mamã não gosta que eu venha cá para cima. É melhor eu descer.Deslizou pela parede do molhe sem se preocupar com os cacos de vidro que se tinham acumulado na base do paredão.- Adeus! - e no momento seguinte já estava à beira-mar, atirando algas às gaivotas.Fiz-lhe um aceno e continuei a minha investigação da esplanada. Desde a minha última visita, algumas das lojas ao longo da Rue des Immortelles tinham reaberto, mas à parte Laetitia e a família,parecia não haver eventuais compradores. Soeur Thérèse e Soeur Extase, austeras nos seus hábitos negros, estavam sentadas num banco virado para o mar. A moto de Joël Lacroix estava estacionada negligentemente do lado oposto, mas não se viam sinais do dono. Disse adeus com a mão às duas freiras e fui sentar-me ao lado delas.- Cá temos de novo a nossa pequena Mado - disse uma das freiras. - Naquele dia usavam as duas as coifas brancas, e quase não as conseguia distinguir uma da outra. - Hoje não vens desenhar?Abanei a cabeça.- Está muito vento.- Maus ventos, hem, para Les Immortelles - disse Soeur Thérèse, baloiçando os pés.

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- Não são tão maus para Les Salants - acrescentou Soeur Extase. - Ouvimos dizer...- Muitas coisas. Ficarias surpreendida com...238- As coisas que temos ouvido dizer por aí.- Eles acham que nós somos como os pobres residentes daqui, demasiado velhas e senis para percebermos o que se está a passar. E a verdade, sceur, é que nós somos velhas como as colinas, isto é, se houvesse...- Colinas aqui, mas não há, só dunas...- Embora já não haja tanta areia como dantes, ma sceur, não, á não há tanta.Fez-se silêncio, enquanto as duas freiras me observavam atentamente, como pássaros, por debaixo das suas coifas.- Ouvi dizer que o Brismand teve de cancelar algumas reservas este ano - disse eu, cuidadosa. - É verdade?As freiras assentiram em uníssono.- As reservas todas, não. Mas algumas...- Sim, algumas. Ele ficou muito muito aborrecido. Houve aquela inundação, não foi, ma sceur, deve ter sido logo depois das...- Marés da Primavera. Alagou as adegas e chegou até à frontaria. O arquitecto diz que a humidade se infiltrou nas paredes por causa do...- Vento marítimo. Vai ser preciso fazer obras no próximo Inverno. Até lá...- Só há quartos nas traseiras para os turistas, sem vista para o mar, e sem praia. É...- Muito muito triste.Concordei, bastante constrangida. - Mas, se a santa quiser...- Ah sim. Se a santa quiser...Deixei-as a acenarem-me de longe, ainda mais parecidas com duas aves, com as coifas transformadas num par de gaivotas flutuando sobre as ondas pacientes.Quando atravessei a rua, avistei Joël Lacroix que me observava da porta do Chat Noir. Fumava um Gitane, com o cigarro fechado na concha da mão à maneira dos pescadores. Os nossos olhares en contraram-se e ele saudou-me secamente, com um aceno, hem, mas não disse nada. Lobriguei mesmo por detrás dele, no vão da porta do café, o vulto de uma rapariga, toldado pelo fumo: longos cabelos negros, vestido vermelho, pernas bem lançadas com sandálias239de saltos altos, que me pareceu vagamente familiar. Mas no preciso momento em que eu estava a olhar, Joël afastou-se da porta e a rapariga também. Achei na altura que havia algo de furtivo na maneira como se afastou, ocultando a rapariga de vista.Só mais tarde, quando regressava a Les Salants, é que me ocorreu porque é que a rapariga me parecera tão familiar.Tinha quase a certeza de que era Mercédès Prossage.24040O bviamente não contei nada a ninguém sobre o assunto. Mercédès tinha dezoito anos e era livre de ir aonde bem entendesse. Mas sentia-me apreensiva; Joël Lacroix não era amigo de Les Salants e não me agradava pensar o que é que Mercédès, inocentemente, podia ter contado sobre os nossos planos.Mas, daí a pouco, ia ter outras coisas com que me preocupar. Ao regressar de La Houssiniere, fui encontrar o meu pai sentado à mesa da cozinha com Flynn, a examinarem uns desenhos em folhas de papel pardo. Por instantes, observei os seus rostos sem que se apercebessem - o do meu pai vibrante de excitação, o de Flynn com aquela expressão concentrada, como um rapazinho a observar um formigueiro. Depois levantaram os olhos e viram que os observava.- É outra obra - explicou Flynn. - O teu pai quer que eu oajude a fazer uma reconversão. O hangar dos barcos. - A sério?GrosJean deve ter pressentido a minha desaprovação, porque fez um gesto de impaciência. Pareceu-

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me que a minha interferência não era apreciada. Virei-me para Flynn, que encolheu os ombros.- Que posso fazer? - disse ele. - A casa é dele. Não o incentivei.Claro que era verdade. GrosJean podia fazer o que quisesse na sua própria casa. Mas eu ignorava donde vinha o dinheiro. E o241estaleiro, apesar de decrépito, constituía ainda uma ligação ao passado. Detestava a ideia de perdê-lo.Examinei com mais atenção os desenhos. Eram bons; o meu pai possuía um jeito especial para os pormenores e percebi nitidamente o que ele pretendia - uma casa de Verão ou um estúdio talvez, com uma área de convívio, uma pequena cozinha e uma casa de-banho. O hangar era espaçoso; construindo um piso, um alçapão e uma escada, ficava-se com um quarto de cama agradável por baixo do telhado.- É para a Adrienne, não é? - perguntei, sabendo a resposta. Aquele quarto com o alçapão, a cozinha, o amplo salão com a janela rasgada. - Para a Adrienne e os rapazes.GrosJean limitou-se a olhar para mim, com os olhos límpidos de porcelana azul, e depois voltou a concentrar-se nos desenhos. Virei-me desabrida e voltei a sair, sentindo-me indisposta. No instante seguinte, senti a presença de Flynn, parado atrás de mim.- Quem é que vai pagar isto tudo? - perguntei, sem olhar para ele. - GrosJean não tem dinheiro.- Talvez tenha economias que tu desconheças. - Tu costumavas mentir melhor, Flynn.Silêncio. Continuava a senti-lo atrás de mim, a observar-me. Um bando de gaivotas ergueu-se da duna num ruidoso bater de asas.- Talvez tenha pedido o dinheiro emprestado - disse por fim. - Mado, ele é adulto. Não podes ser tu a gerir a vida dele.- Eu sei.- Fizeste tudo o que podias. Ajudaste-o...- Para quê? - Virei-me furiosa. - De que serviu? A única coisa que lhe interessa é brincar às casinhas com a Adrienne e os rapazes.- Põe os pés na terra, Mado - disse. Flynn. - Não esperavas que te agradecesse, pois não?Silêncio. Com o pé tracei uma linha na areia dura.- Quem é que lhe emprestou o dinheiro, Flynn? Foi o Brismand?Flynn mostrou-se impaciente. - Como queres que eu saiba? - Foi o Brismand?242Ele soltou um suspiro.- Provavelmente. Que importa? Afastei-me sem sequer olhar para ele.Não voltei a manifestar qualquer interesse pelas obras no hangar. Flynn trouxe um carregamento de material de La Houssinière e passou um fim-de-semana a desmantelar o hangar. GrosJean esteve com ele durante todo o tempo, observando e consultando os diagramas. Mesmo sem querer, comecei a sentir inveja do tempo todo que ele passava com Flynn; como se, pressentindo a minha desaprovação, o meu pai tivesse começado a evitar-me.Soube que Adrienne tencionava voltar nas férias de Verão, trazendo consigo os rapazes. A notícia provocou excitação na aldeia, onde várias famílias aguardavam há muito visitas dos seus.- Estou convencida de que desta vez ela vai mesmo cumprir a promessa - disse Capucine. - Ela não é má rapariga, a minha Clo. Não tem grande cabeça, mas tem um bom coração.Também Désirée Bastonnet se mostrava esperançosa; vi-a na estrada para La Houssinière com um casaco novo, verde e um chapéu com flores na fita. Achei que parecia mais nova na sua roupa primaveril, de costas direitas, de rosto inusitadamente rosado e sorriu-me quando passei por ela. Era de tal modo surpreendente que me virei e fui ao seu encontro para me certificar de que não a tinha confundido com outra pessoa.- Vou ter com o meu filho Philippe - disse-me na sua voz calma. - Está de visita a La Houssinière com a família. Faz trinta e seis anos em junho.Por momentos pensei em Flynn, interrogando-me se também teria uma mãe como Désirée, à espera do seu regresso.

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- Fico muito satisfeita por ir estar com ele - disse-lhe eu. - E espero que faça as pazes com o pai.Désirée abanou a cabeça.- Sabes muito bem como_ o meu marido é casmurro. Finge que não sabe que eu tenho estado em contacto com o Philippe; acha que a única razão por que Philippe quis voltar depois de todos estes anos é porque quer dinheiro. - Suspirou. - Mas - acrescentou num tom determinado - se Aristide quiser desperdiçar243esta oportunidade, o problema é dele. Eu ouvi a santa falar naquela noite na Pointe. A partir de agora - disse ela - somos nós que construímos a nossa felicidade. E eu tenciono fazê-lo.Sorri. Milagre falso ou não, a verdade é que tinha transformado a Désirée. Mesmo que o Bouch'ou tivesse falhado, a ilusão criada por Flynn pelo menos tinha conseguido isso, e senti uma súbitaternura por ele. Apesar do seu pretenso cinismo, não era indiferente.Gostaria de me sentir mais optimista com a chegada da minha irmã. À medida que a reconversão do hangar ia avançando, GrosJean parecia ganhar mais ânimo em cada dia que passava. Esse ânimo estava presente em tudo o que fazia - na sua renovada energia, na sua vivacidade, no facto de não ficar sentado na cozinha olhando macambúzio para o mar. Também tinha começado a falar mais, embora em grande parte fosse sobre o regresso de Adrienne, pelo que não me entusiasmava tanto como aconteceria se fosse sobre outras coisas. Era como se alguém tivesse ligado um interruptor, despertando-o de novo para a vida. Tentava sentir-me feliz por ele, mas descobri que não era capaz.Por isso, embrenhei-me com um entusiasmo febril na pintura. Pintei a praia de La Goulue, as casas caiadas de branco com os telhados de telhas vermelhas, o bunker em Pointe Griznoz com as - tamargueiras cor-de-rosa agitando-se delicadamente sob o vento 'marítimo, os rabos-de-coelho das dunas ondeando ao vento, os' barcos na maré baixa, lençóis de aves cavalgando as ondas, pescadores de cabelos compridos nas suas vareuses rosa desbotado) Toinette Prossage com a sua coifa branca e o negro de viúva à pro- cura de caracóis debaixo da pilha de lenha. Dizia para mim mesma que quando os turistas chegassem, haveria compradores para os meus quadros e que as despesas com as telas, as tintas e outro material representavam um investimento. Assim esperava; as minhas economias começavam a esgotar-se de modo alarmante e embora eu e GrosJean tivéssemos relativamente poucas despesas com a casa, os gastos com as obras criavam-me alguma ansiedade. Efectuei algumas prospecções locais e contactei uma pequena galeria em Fromentine, cujo proprietário aceitou vender alguns dos meus quadros em troca de uma percentagem. Teria preferido qualquer244

coisa mais perto de casa, mas era um princípio. Aguardava ansiosamente o início da estação.Não demorei muito tempo a voltar a encontrar a família de turistas. Estava em La Goulue com o meu bloco de desenho, tentando captar o aspecto da água na maré baixa, quando eles apareceram de repente, Laetitia a correr à frente com o cão Pétrole, os pais Gabi e Philippe um pouco mais atrás com o bebé num porta-bebés. Philippe trazia um cesto de piquenique e um saco de praia cheio de brinquedos.Laetitia acenava-me desenfreadamente.- Olá! Encontrámos uma praia! - Correu para mim ofegante, com o rosto radioso. - Uma praia e sem ninguém! Parece uma ilha deserta. É a ilha deserta mais zeníssima que ia vi!Com um sorriso, tive que admitir que sim.Gabi saudou-me com um aceno amistoso. Era uma mulher baixa, roliça e morena, envolta num pareo amarelo por cima do fato-de-banho.- Isto aqui é seguro? - perguntou. - Pode-se nadar à vontade? Não vejo nenhuma bandeira verde nem nada.Ri.- Oh, é seguro - tranquilizei-a. - Acontece é que não costuma haver muitos visitantes deste lado da ilha.- Nós gostamos mais deste lado - anunciou Laetitia. - É melhor para nadar. E eu sei nadar -

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acrescentou com dignidade - mas não posso perder o pé.- A praia de Les Immortelles não é segura para as crianças - explicou Gabi. - Tem um desnível pronunciado e corrente.- Aqui é muito melhor - disse Laetitia, começando a descer a vereda da falésia. - Tem rochas e tudo. Anda, Pétrole!O cão seguiu-a, ladrando excitado. La Goulue ressoava com os sons insólitos da exuberância infantil.- A água está um bocado fria - disse eu, olhando para Laetitia, que estava agora junto à linha de maré, remexendo a areia com um pau.- Não há problema - disse Philippe. - Eu conheço este sítio.245- A sério? - Agora que o via mais de perto, percebi que parecia quase Devinnois, com o cabelo preto e os olhos azuis da ilha. Desculpe, mas eu conheço-o? Parece-me... familiar.Philippe abanou a cabeça.- Não me conhece - disse ele. - Mas talvez conheça a minha mãe. - Os seus olhos desviaram-se para um ponto atrás de mim e sorriu... um sorriso muito familiar. Automaticamente virei-me.- Avó! - gritou Laetitia à beira de água e começou a correr para a praia. Esparramava água por toda a parte. Pétrole não parava de ladrar.- Mado - disse Désirée Bastonnet, de olhos brilhantes. - Estou a ver que já conheces o meu filho.Viera passar as férias da Páscoa. Ele, Gabi e as crianças estavam alojados numa casa de férias por detrás do Clos du Phare e depois do nosso encontro na estrada para La Houssinière, Désirée viera ter com eles por diversas vezes.- É zen - declarava Laetitia, mordiscando satisfeita um pain au chocolat que tirara do cesto de piquenique. -- Durante todo este tempo tinha uma Avó e nem sequer sabia que ela existia! Também tenho um Avô, mas ainda não o vi. Vamos vê-lo mais tarde.Désirée olhou para mim e abanou levemente a cabeça.- Aquele velho maluco e casmurro - disse ela, não sem uma ponta de afecto. - Ainda não esqueceu aquela história antiga. Mas nós não vamos desistir.A reconversão do hangar estava quase concluída. Flynn trouxera dois homens de La Houssinière para ajudarem e as obras progrediam rapidamente. Não houvera ainda nenhuma alusão ao seu financiamento.Quando falei com Aristide sobre os custos, mostrou-se filósofo.- Os tempos mudam - disse-me ele. - Se o teu pai está a usar mão-de-obra dos houssins, é porque o negócio não é mau. Se não fosse assim, não se metia nisto.Esperava que fosse verdade; não me agradava a ideia de o meu pai se endividar com o Brismand.- Faz sentido contrair um pequeno empréstimo agora - disse Aristide, bem disposto. - Para investir no futuro. Tal como as coisas estão agora, não teremos problemas em pagar.246

Interpretei isto como se também ele tivesse pedido dinheiro emprestado. Claro que os casamentos na ilha não saem baratos e eu sabia que ele queria do bom e do melhor para Xavier e Mercédès,depois de fixada a data. Mas apesar de tudo, continuava a sentir-me intranquila.24741

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Na primeira semana de junho, a escola fechou para as férias de Verão. Este acontecimento assinalava tradicionalmente o início da época e observávamos a chegada do Brismand 1 com renovado interesse. Podíamos contar sempre com Lolo para estar de olho atento ao porto, e ele e Damien faziam turnos para vigiarem a esplanada com uma displicência exagerada. Se alguém reparara na sua vigilância, não se deram por achados. La Houssinière esturricava tranquilamente sob um sol abrasador; o sítio de Clos du Phare, antes inundado, estalava debaixo dos pés, tornando o caminhar penoso e os passeios de bicicleta acidentados. O Brismand 1 chegava todos os dias com pouco menos de uma mão-cheia de veraneantes de cada vez e Les Salants afligia-se e exasperava-se como uma noiva à espera demasiado tempo na igreja. Estávamos prontos, mais do que prontos; tínhamos tempo para reflectir sobre toda a energia e dinheiro que tínhamos investido na recuperação de Les Salants e no que estava em jogo. Começava a sentir-se uma certa crispação no ar.- Se calhar não distribuíste folhetos em número suficiente - rosnava Matthias para Aristide. - Eu bem sabia que devíamos ter mandado outra pessoa!Aristide bufava.- Distribuímos todos! Até fomos a Nantes.- Óptimo, andaram a divertir-se em vez de zelarem pelos nossos negócios.248- Sua cabra velha! Vou mostrar-te onde é que vais meter os teus folhetos. - Aristide levantou-se precipitadamente, de bengala em riste. Matthias fez menção de pegar numa cadeira. Podia terdescambado numa briga violenta entre velhos se Flynn não tivesse intervindo, sugerindo nova expedição até Fromentine.- Pode ser que descubram o que é que se passa por lá - disse, moderador. - Ou talvez os turistas precisem de um pouco de persuasão.Matthias mostrava-se céptico.- Eu não estou disposto a deixar que os Bastonnets se andem a divertir em Fromentine à minha custa - atirou ele. Era evidente que imaginava a inofensiva cidade do litoral como um poço de vícios e de tentações.- Podem ir os dois - sugeriu Flynn. - Ficam com um olho um no outro.- É uma ideia.A periclitante aliança foi restabelecida. Ficou decidido que Matthias, Xavier, Ghislain e Aristide apanhavam todos o ferry de sexta-feira de manhã para Fromentine. As sextas-feiras eram bons dias para os turistas, disse Aristide, o início das multidões dos fins-de-semana. Os cartazes publicitários estavam muito bem, mas não havia nada que pudesse bater um homem com um megafone na prancha de embarque. Prometeram que na sexta-feira à noite todos os nossos problemas estariam resolvidos.Ficávamos assim com quase uma semana pela frente sem nada para fazer. Esperávamos impacientes, os mais velhos a jogar xadrez e a beber cerveja no Angélo, os mais novos à pesca em La Goulue, onde os resultados eram sempre mais lucrativos do que em La Pointe.Mercédès habituara-se a ir para ali apanhar banhos de sol nos dias quentes, com as suas curvas generosas metidas num fato-de-banho a imitar pele de leopardo. Surpreendi por diversas vezes o Damien a observá-la com um binóculo. Suspeitava que não era ele o único.Nas tardes de sexta-feira, meia aldeia aguardava no cais o regresso do Brismand 1. Désirée. Omer. Capucine. Toinette. Hilaire. Lolo e Damien. Flynn lá estava, ligeiramente distante como sempre, e piscava-me o olho quando os nossos olhares se cruzavam.249

Até Mercédès lá ia, aparentemente para receber Xavier, num vestido cor-de-laranja muito curto e numas sandálias com uns saltos inacreditavelmente altos. Omer observava-a atentamente, com um misto de sobressalto e de aprovação. Mercédès fingia não perceber.Claude Brismand também ficava a observar, sentado por cima de nós na esplanada de Les Immortelles. Eu via-o do molhe, monolítico na sua camisa branca e gorro de marinheiro, com um

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coponuma das mãos. A sua postura era descontraída, expectante. Estava demasiado longe para lhe ver o rosto. Capucine reparou que eu o observava e riu animada.- Ele nem sonha o que lhe vai acontecer quando o ferry chegar.Eu não estava tão certa. Brismand sabia a maior parte das coisas que se passavam na ilha e embora não pudesse mudar nada, eu tinha a certeza de que fosse o que fosse que acontecesse não o apanharia desprevenido. Esse pensamento deixou-me constrangida, como a sensação de que estamos a ser observados; de facto, quanto mais eu observava a imobilidade daquele vulto na esplanada, mais convencida ficava de que ele estava realmente a observar-me, com uma intensidade peculiar, consciente.Aquilo não me agradava nada. Alain olhou para o relógio. - Está atrasado.Só quinze minutos. Mas enquanto esperávamos, transpirando e pestanejando com o reflexo da água, os minutos pareciam horas. Capucine meteu a mão no bolso para tirar uma barra de chocolate e comeu-a em três dentadas rápidas e nervosas. Alain voltou a olhar para o relógio.- Eu também devia ter ido - resmungou. - Não confio neles.Omer estava carrancudo.- Não te ouvi ofereceres-te para ires, hem?- Estou a ver qualquer coisa! - gritou Lolo da beira de água. Todos olharam. Um rasto esbranquiçado contra o horizonte leitoso.- O ferry!- Não empurrem, hem!- Está ali! Mesmo atrás da bóia.250

Passou mais meia hora até podermos ver com clareza os pornnenores. Lolo tinha um binóculo, que fomos pedindo emprestado por turnos. O molhe flutuante baloiçava sob os nossos pés. O pequeno ferry dirigia-se para Les Immortelles descrevendo um amplo arco, deixando atrás de si uma esteira branca. Quando se aproximou ainda mais, pudemos ver que o convés estava cheio de gente. - Veraneantes!- Tantos!- A nossa gente.Debruçado sobre o parapeito, em risco de cair, estava Xavier. A sua voz fina e distante chegou até nós através do porto enquanto ele acenava desenfreadamente da balaustrada precária.- Conseguimos, hem! Conseguimos! Mercédès! Conseguimos! Da esplanada de Les Immortelles, Claude Brismand observava impassível, levando ocasionalmente o copo aos lábios. Finalmente, o Brismand 1 baixou o passadiço e os turistas começaram a apinhar-se no molhe. Aristide, apoiando-se pesadamente no neto, mas triunfante, desceu a prancha e foi erguido no ar por Omer e Alain, quando estes se juntaram ao coro. Capucine desdobrou um cartaz que dizia "Por aqui para Les Salants". Lolo, que nunca perdia pitada para ganhar uns cobres, foi atrás do muro buscar um carrinho de mão e começou a gritar: "Bagagem! Transporte de bagagem para Les Salants quase de

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borla!"Deviam vir cerca de trinta pessoas a bordo do ferry, ou talvez mais. Estudantes, famílias, um casal idoso com um cão. Crianças. Ouvia risos vindos do molhe, vozes a falar alto, algumas em línguas estrangeiras. No meio dos abraços e palmadas nas costas, os heróis explicaram o misterioso fracasso das nossas primeiras tentativas publicitárias: o desaparecimento dos nossos cartazes, a perfídia do funcionário do posto de informação turística de Fromentine (que se revelara ser cúmplice dos houssins) e que, simulando estar do nosso lado, ia fazendo o relatório detalhado dos nossos planos a Brismand ao mesmo tempo que se esforçava por dissuadir os turistas de visitarem Les Salants:Da rua, eu podia ver Jojo-le-Goëland, boquiaberto, com um morrão de cigarro esquecido a deslizar-lhe dos dedos. Os donos das lojas também se tinham reunido para ver o que se passava.Avistei o prefeito Pinoz parado à entrada do Chat Noir e Joël251Lacroix escarranchado na moto vermelha, ambos a olharem a nossa pequena multidão com crescente estupefacção.- Bicicletas para alugar! - anunciava Omer Prossage. - Ao fundo da estrada, bicicletas para Les Salants!Xavier, excitado pelo triunfo, desceu a prancha em direcção a Mercédès e fê-la rodopiar nos seus braços. Se houve pouco entusiasmo no abraço dela, pelo menos Xavier pareceu não notar. Tanto ele como Aristide brandiam mãos-cheias de papéis.- Reservas! Berrava Aristide por cima dos ombros de Omer. - A tua casa, Prossage, e a tua, Guénolé, e cinco campistas para ti, Toinette, e...- Onze reservas, hem! E vêm mais a caminho! - Funcionou - disse Capucine, rendida.- Eles conseguiram! - grasnou Toinette, abraçando Matthias Guénolé e pespegando-lhe um sonoro beijo.- Nós conseguimos! - corrigiu Alain, fazendo-me voltear entre os seus braços numa inesperada exuberância. - Les Salants! - Les Salants, hem!- Les Salants!Não sei por que razão olhei para trás nessa altura. Por curiosidade, talvez, ou por mera vaidade. Era o nosso triunfo, o nosso momento. Ou talvez quisesse simplesmente ver o rosto dele.Fui a única. Enquanto os meus amigos se afastavam, cantando, gritando, chamando, festejando, virei-me, por um breve momento, para olhar para a esplanada do hotel onde Brismand estava sentado. Um artifício da luz iluminava-lhe o rosto com extrema nitidez. Estava de pé agora, erguendo o copo num brinde mudo e irónico. - A Les Salants!E olhava-me frontalmente nos olhos.252TERCEIRA PARTE - Na Crista da onda42A minha irmã e a família apareceram três dias depois. O hangar (rebaptizado de "estúdio") estava quase pronto e GrosJean estava sentado num banco no pátio, fiscalizando os retoques finais. Flynn estava lá dentro, a examinar a instalação eléctrica. Os dois houssins que tinham estado a trabalhar na obra já se tinham ido embora.O estaleiro, agora separado do estúdio por uma sebe de giesteiras, fora dividido em dois. Metade servia de jardim e GrosJean embelezara-o com alguns bancos, uma mesa e vasos de flores. O resto do pátio continuava ocupado com material de construção. Não sabia quanto tempo demoraria até que GrosJean decidisse desatravancar o seu velho espaço de trabalho.Não devia ter-me perturbado tanto como perturbou. Mas era superior a mim; o estaleiro tinha sido o nosso lugar, o único lugar donde a minha mãe e Adrienne tinham sido excluídas. Havia ali fantasmas. Eu própria, sentada de pernas cruzadas debaixo da banca; GrosJean a moldar uma peça de madeira no torno mecânico; GrosJean cantarolando baixinho a ouvir o rádio enquanto trabalhava; GrosJean e eu a partilharmos uma sandes enquanto ele me contava uma das suas raras histórias; GrosJean a perguntar-me, com um pincel comprido na mão, "Como é que lhe vamos

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chamar? Odile ou Odette?"; GrosJean a rir com as minhas tentativas de coser à vela; GrosJean recuando para admirar a sua obra... Mais ninguém partilhara aquelas coisas: nem a Adrienne, nem a Mãe.255Elas nunca tinham percebido. Em vez disso, a Mãe sempre o censurara constantemente por deixar coisas por acabar - projectos abandonados a meio, prateleiras por fazer, uma calha por remendar. No fim acabara por vê-lo como uma zombaria do destino, um construtor que começava as coisas mas nunca as acabava, um artesão que só fazia um barco por ano, um preguiçoso que passava o dia inteiro enfronhado na confusão e na desordem para depois emergir à espera de encontrar a refeição na mesa. Adrienne tinha vergonha das suas roupas com nódoas de tinta e da falta de boas maneiras e evitava ser vista com ele em La Houssinière. Eu era a única de nós que o via a trabalhar. Era a única que me orgulhava dele. O meu fantasma deambulava confiante pelo estaleiro, segura de que ali, pelo menos, podíamos ser os dois o que não ousávamos ser em mais sítio nenhum.Na manhã em que a minha irmã chegou, eu estava no pátio, a pintar o retrato do meu pai a guache. Era uma dessas manhãs de Verão sem nuvens em que tudo está ainda verde e húmido, e o meu pai estava descontraído e bem disposto, a fumar e a beber café ao' sol, com a ponta do gorro de pescador tombada sobre os olhos.De súbito, ouviu-se o ruído de um carro na estrada por detrás da casa e eu soube, com uma certeza inquietante, quem era.A minha irmã vestia uma blusa branca e uma saia de seda vaporosa que me fizeram sentir desmazelada e mal vestida. Beijou-me na face enquanto os rapazes, vestidos de igual de calções e t-shirts, pararam indecisos, segredando, com os olhos escuros muito abertos. Marin fechava a fila, com a ama. O meu pai permaneceu onde' estava, mas os olhos brilhavam-lhe.Flynn estava à porta do hangar, ainda de fato-macaco. Eu desejava que ele ficasse - por qualquer razão, a ideia dele a trabalhar ali por perto animava-me um pouco - mas ao avistar Adrienne e a família ficou imóvel, refugiando-se quase instintivamente na sombra da porta. Fiz um gesto discreto com a mão, como se quisesse retê-lo ali, mas nessa altura já ele tinha saído para o pátio e, evitando o portão, saltou por cima do muro para a estrada. Acenou-me com a mão sem se virar, galgou a crista da duna e depois começou a correr ao longo do trilho rumo a La Goulue.Marin seguia com o olhar o vulto que se afastava.256- Que está ele a fazer aqui? - perguntou. Eu olhei para ele, surpreendida pelo tom ríspido da sua voz.- Tem estado a trabalhar para nós. Porquê, tu conhece-lo?- Tenho-o visto em La Houssinière. O meu tio... - deteve-se, com a boca crispada numa linha fina e cerrada. - Não, não o conheço - disse, afastando-se.Vieram almoçar connosco. Eu tinha preparado um estufado de carneiro e GrosJean comeu com o seu habitual entusiasmo silencioso, acompanhando cada colherada com um bocado de pãomolhado no molho. Adrienne petiscava delicadamente, mas comeu pouco.- Que bom estar de novo em casa - disse ela, inclinando-se para GrosJean. - Os meus filhos estavam ansiosos por vir. Desde a Páscoa que andam loucos de entusiasmo.Olhei para os rapazes. Nenhum deles me pareceu especialmente entusiasmado. Loïc brincava com um pedacinho de pão, esmigalhando-o dentro do prato. Franck olhava para lá da janela.- E fez um apartamento de férias tão bonito para eles, Papá - continuou Adrienne. - Vão passar aqui um tempo maravilhoso. No entanto, não tardámos a saber que Adrienne e Marin ficariam em Les Immortelles. Os rapazes podiam ficar no estúdio com a ama, mas Marin tinha negócios a tratar com o tio e não sabia quanto tempo as coisas iam demorar. GrosJean manteve-se impassível perante a notícia e continuou a comer no seu jeito moroso e reflexivo, com os olhos fixos nos rapazes. Franck segredou qualquer coisa ao irmão em árabe e os dois miúdos riram baixinho.- Fiquei surpreendido por encontrar aqui aquele inglês ruivo - disse Marin a GrosJean, servindo-se do vinho. - É vosso amigo?- Porquê, o que é que ele fez? - perguntei, desagradada com o seu tom azedo.Marin encolheu os ombros e não disse nada. GrosJean parecia não ter ouvido.

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- Seja como for, ele fez aqui um belo trabalho no apartamento de férias - disse Adrienne, com vivacidade. - Vamo-nos divertir todos imenso!Acabámos a refeição em silêncio.257 43Com a chegada dos rapazes, GrosJean estava no seu elemento. Ia sentar-se no jardim e observava em silêncio as suas brincadeiras, ou ensinava-os a fazer barquinhos com aparas de madeira e bocadinhos de lona, ou passeava com eles pelas dunas e jogavam às escondidas no meio da erva alta. Adrienne e Marin apareciam de vez em quando, mas raramente se demoravam; desculpavam-se que os negócios de Marin eram mais complicados do que esperavam e iam demorar algum tempo.Entretanto, Les Salants entrara no seu ciclo estival. As obras na aldeia estavam quase concluídas: os jardins limpos, com arbustos de malva-rosa, alfazema e rosmaninho crescendo no solo arenoso, as venezianas e as portas pintadas de fresco, as ruas varridas e as frontarias arranjadas, as casas resplandecentes com os telhados de telhas cor de ocre e as paredes caiadas de branco. Os quartos disponíveis e os anexos convertidos à pressa já começavam a encher-se.Um grupo de turistas que se instalara no parque de campismo perto de La Houssinière, precipitava-se para Les Salants por causa das dunas e do panorama. Philippe Bastonnet e a sua jovem família regressaram no Verão e vinham até La Goulue quase todos os dias. Apesar de Aristide continuar a manter a distância, Désirée encontrava-se lá com eles e era vista com frequência à sombra de um grande chapéu-de-sol, enquanto Laetitia chapinhava exuberante nas poças de água entre as rochas.

258Toinette abrira no terreno por detrás da sua casa um parque de campismo não oficial a metade do preço dos houssins e um jovem casal parisiense já ali montara a tenda. As comodidades eram rudimentares - a casa de banho exterior de Toinette e a lavandaria, além de uma mangueira e de uma torneira para a água doce - mas havia comida vinda da quinta de Omer, havia o Angélo e, evidentemente, havia a praia, por enquanto uma estreita faixa de areia mas que ia aumentando ao ritmo de cada maré. Com as pedras já cobertas, o terreno era suave e liso. Os rochedos para além da linha de maré proporcionavam repouso e abrigo. Havia braços de mar e poças de água que faziam as delícias da criançada. Notei que Laetitia fazia amizade com muita facilidade com as crianças salannaises. De início havia uma leve dose de desconfiança: era raro verem turistas e mostravam-se circunspectas, mas a sua maneira de ser sociável não tardava a afrouxar as reservas que tinham. No espaço de uma semana tornou-se habitual vê-las juntas, correndo descalças por Les Salants, espetando paus no canal, rebolando e brincando nas dunas com o Pétrole excitadíssimo atrás delas. O rechonchudo e zeloso Lolo mostrava-se especialmente atento a ela, e divertia-me vê-lo imitar a sua linguagem citadina e a sua pronúncia.Os meus sobrinhos não se juntavam a eles. Em vez disso, apesar dos esforços do meu pai para os manter por perto, passavam a maior parte do tempo em La Houssinière. Havia lá uma sala de jogos, perto do cinema, onde gostavam de ir jogar. Aborreciam-se facilmente, dizia Adrienne em jeito de desculpa. Em Tânger tinham muito mais coisas para fazer.O outro rapazinho que parecia desinteressado na praia era Damien. Além de ser o mais velho dos miúdos salannais, era também o mais reservado; já o tinha encontrado sozinho por diversas ocasiões, a fumar cigarros e a bambolear-se no alto da falésia. Quando lhe perguntava se tinha discutido com Lolo, limitava-se a encolher os ombros e a abanar a cabeça. Coisas de miúdos, declarava em tom desdenhoso. Outras vezes, apenas sentia a necessidade de estar sozinho.Eu acreditava nele só em parte. Possuía o feitio irascível e o espírito rancoroso do pai. Não sendo sociável por natureza, devia irritá-lo o facto de Lolo, antes o seu mais leal companheiro, ter transferido a sua lealdade tão rapidamente e, ainda por cima, para259

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Laetitia, uma miúda do continente apenas com oito anos. Algo divertida, reparei que Damien assumia progressivamente maneirismos de adulto, imitando a pose displicente, de gola subida, de Joël Lacroix e dos seus camaradas houssins. Charlotte comentara que o jovem Damien parecia ter mais dinheiro do que devia ter um rapaz da idade dele. Corriam rumores na aldeia de que o gang das motos tinha sido visto com um novo membro sentado no assento traseiro. Um garoto, segundo constava.As minhas suspeitas confirmaram-se quando o encontrei em La Houssinière no fim dessa semana, deambulando nas imediações do Chat Noir. Eu tinha ido esperar o Brismand 1 para mandar mais umas telas para a galeria de Fromentine e vi-o com Joël e outros jovens houssins, a fumar ao sol perto da esplanada. Também havia algumas raparigas; jovens de mini-saias a mostrar as pernas. Mais uma vez, reconheci Mercédès.Viu-me quando eu passei pelo grupo e ficou ligeiramente perturbada perante o meu exame minucioso. Estava a fumar - nunca fumava em casa - e pareceu-me pálida apesar do bâton vermelho, com os olhos negros cansados e olheirentos. Riu alto, demasiado estridente, quando eu passei e aspirou o fumo do cigarro com um ar de desafio. Damien desviou os olhos, embaraçado. Não falei a nenhum deles.La Houssinière estava pacata. Não estava morta como alguns salannais vaticinavam com alegria, mas sonolenta. Os cafés e os bares estavam abertos mas quase todos meio vazios; havia talvez uma dúzia de pessoas na praia de Les Immortelles. Soeur Extase e Soeur Thérèse estavam sentadas ao sol nos degraus do hotel e fizeram-me adeus com a mão.- Olá, Mado!- O que é que levas aí?Sentei-me ao lado delas e mostrei-lhes a pasta onde guardava as minhas pinturas. As freiras acenavam apreciativamente.- Porque é que não experimentas vender alguns ao Senhor Brismand, Mado?- Não nos desagradava ter uma coisa agradável para olhar, não era, ma sceur? Passamos o tempo a olhar para os mesmos velhos...260

- Um martírio há tempos infindos. - Soeur Thérèse correu os dedos por um dos quadros. Era uma vista de Pointe Griznoz, com a igreja em ruínas destacando-se contra um céu do entardecer.- Olhos de artista - disse ela, sorrindo. - Herdaste o jeito do teu pai.- Dá-lhe os nossos cumprimentos afectuosos, Mado.- E fala com o Senhor Brismand. Neste momento está numa reunião, mas...- Sempre teve um fraquinho por ti.Ponderei a sugestão. Talvez fosse verdade, mas não me agradava a ideia de fazer negócio com Claude Brismand. Tinha-o evitado desde o nosso último encontro; sabia que ele estava curioso quantoà duração da minha estadia e não queria abrir-me com ele se me fizesse perguntas. Estava convencida de que ele sabia mais sobre o que se estava a passar em Les Salants do que nós supúnhamos e embora nunca tivesse apanhado ninguém a roubar areia de Les Immortelles,

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continuava convencido de que os furtos continuavam. A praia de La Goulue não podia ser ocultada aos houssins e eu sabia que era apenas uma questão de tempo até alguém deixar escapar o segredo da nossa barreira flutuante. Quando isso acontecesse, pensei para comigo, gostava de estar o mais longe possível de Brismand.Ia levantar-me quando de súbito avistei um pequeno objecto no chão à minha frente. Era um colar vermelho de coral como os que o meu pai costumava pôr nos seus barcos. Muitos habitantes da ilha ainda continuam a usá-los; alguém devia tê-lo perdido.- Tens uma excelente vista - observou Soeur Extase, ao ver-me apanhá-lo.- Fica com ele, Mado - disse Soeur Thérèse. - Usa-o... para te dar sorte.Despedi-me das freiras e preparava-me para ir embora (o Brismand 1 tinha soado o aviso dos dez minutos para a partida e não o queria perder) quando chegou até mim o ruído de uma portaa bater e uma súbita explosão de vozes vindas do átrio de Les Immortelles. Não percebi o que diziam, mas pude detectar o tom de irritação, e um atroar crescente como se alguém saísse furioso. Eram várias vozes, mas o tom grave de Brismand fazia contraponto às outras. Em seguida, um homem e uma mulher emergiram do261

vestíbulo quase por cima de nós, com idênticas expressões de raiva, As freiras desviaram-se para os deixar passar, e voltaram a aproximar-se como dois reposteiros, sorrindo.- Os negócios estão a correr bem? - perguntei a Adrienne. Mas nem ela nem Marin se dignaram responder-me.44O Verão aportou. O tempo manteve-se bom como de costume nesta época nas ilhas, quente e soalheiro mas com a brisa marítima de oeste conservando a temperatura amena. Agora éramos sete a acolher turistas, incluindo quatro famílias, alojadas em quartos de hóspedes e em dependências adaptadas. Toinette já não podia receber mais campistas. Trinta e oito pessoas até àquele momento, e chegavam mais sempre que o Brismand 1 deitava âncora.Charlotte Prossage adquiriu o hábito de fazer paelha uma vez por semana, com caranguejos e lagostins do novo viveiro. Preparava uma tachada enorme que levava para o bar do Angélo, que vendia para fora em caixas de folha de alumínio. Os turistas adoraram a ideia, pelo que se viu obrigada a contratar Capucine para lhe dar uma ajuda. Foi ela quem teve a ideia de propor uma lista em que cada um preparava um prato uma vez por semana. E passámos a ter: paelha ao domingo, gratin devinnois (salmonete assado com vinho branco, batatas às rodelas e queijo de cabra) às terças e caldeirada às quintas. Houve outras pessoas na aldeia que praticamente deixaram de cozinhar.No dia do solstício de Verão, Aristide anunciou finalmente o noivado do neto e de Mercédès Prossage, e para comemorar levou o Cécilia a dar uma volta de honra em redor do Bouch'ou. Charlotte entoou um hino enquanto Mercédès se sentava à proa de vestido branco queixando-se em voz baixa do cheiro a algas e dos espirros de água que a molhavam sempre que o barco se inclinava.262263

O Eleanore 2 ultrapassara todas as expectativas. Alain e Mat_ thias estavam encantados; o próprio Ghislain recebeu a notícia do noivado de Mercédès com surpreendente dignidade e congeminoudiversos projectos engenhosos e improváveis, a maior parte dos quais implicava a participação do Eleanore 2 em regatas ao longo da costa e ganhar uma fortuna com o dinheiro dos prémios.Toinette realizou um sonho e vendeu dezenas de pequenos saquinhos de sais de banho (perfumados com alfazema brava e rosmaninho).

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- É tão simples - dizia ela, com os olhos pretos muito brilhantes. - Estes turistas compram tudo. Ervas selvagens atadas com fitas. Até limo. - Casquinava, mal podendo acreditar naquilo. - Basta meter em frasquinhos e escrever na etiqueta creme para a pele - talassoterapia. A minha mãe aplicava-o na cara durante anos. É um velho segredo de beleza da ilha.Omer La Patate descobriu um comprador no continente para o excedente de legumes a um preço muito mais caro do que o que costumava cobrar em La Houssinière. Reservou uma parte do terreno cultivável para flores outonais, depois de ter achado durante anos que essas coisas frívolas eram pura perda de tempo. Mercédès desaparecia com frequência durante horas para La Houssinière, pretensamente para ir ao salão de beleza.- O tempo que tu gastas ali - dizia-lhe Toinette - já deves transpirar perfume Chanel N° 5. - E ria.Mercédès sacudia o cabelo, impertinente. - És tão rude, Vóvó.Aristide continuava a ignorar teimosamente a presença do filho em La Houssinière e embrenhou-se com mais afinco, e com uma espécie de desespero, nos planos que tinha para Xavier e Mercédès.Désirée mostrava-se contristada, mas não estava surpreendida. - Não quero saber - repetia, sentada debaixo do chapéu-de-sol junto de Gabi e do bebé. - Vivemos todos demasiado tempo à sombra do túmulo de Olivier. O que eu quero agora é a companhia dos vivos.Desviava os olhos até ao cimo da falésia, onde Aristide se sentava muitas vezes a observar o regresso dos barcos de pesca. Reparei que o seu binóculo não estava assestado para o mar, mas para a linha de maré onde Laetitia e Lolo construíam um forte.264- Vai sentar-se ali todos os dias - disse Désirée. - Já quase não troca uma palavra comigo. - Pegou no bebé e endireitou-lhe o chapéu. - Acho que vou dar um passeio à beira de água - disse, animada. - Preciso de ar.

Os turistas continuavam a chegar. Uma família inglesa com os três filhos. Um casal idoso com o cão. Uma velha senhora elegante de Paris, sempre vestida de rosa e branco. Várias famílias de campistas com crianças.Nunca tínhamos visto tantas crianças. A aldeia inteira ressoava com os gritos delas, berravam, riam, vivas e exuberantes como as suas brincadeiras de praia, vestidas de verde claro, de turquesa e de rosa fúcsia, a cheirarem a creme solar e a óleo de coco e a algodão doce e a vida.Nem todos os visitantes eram turistas. Observei, divertida, que os nossos garotos, Damien e Lolo entre outros, ao associarem-se tinham conquistado um certo prestígio e chegavam mesmo a receber subornos dos jovens houssins em troca do acesso à praia.- Miúdos empreendedores - comentou Capucine, quando eu comentei o facto. - Não tem mal fazer um pouco de negócio. Em especial se se tratar de sacar dinheiro aos houssins. - Sorriu, serena. - É agradável ter qualquer coisa que os outros querem, para variar, hem? Porque é que não havemos de os obrigar a pagar? Durante algum tempo, o mercado negro prosperou. Damien Guénolé coleccionava cigarros de filtro que fumava com um secreto desagrado, como eu suspeitava, mas Lolo, mais sabiamente, só aceitava subornos em dinheiro. Confidenciou-me que estava a juntar umas economias para comprar uma motorizada.- Com uma motorizada podemos arranjar todo o dinheiro que quisermos - disse-me com ar sério. - Biscates, recados, trabalhos de todo o género. Nunca falta que fazer desde que se possua transporte.É espantosa a diferença que uma dezena de crianças pode fazer. De repente, Les Salants revivera. Os velhos já não eram a maioria. - Gosto disto - declarou Toinette, quando mencionei o facto em conversa com ela. - Faz-me sentir jovem.

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Ela não era a única. Encontrei o rabugento Aristide no alto da falésia a ensinar dois rapazitos a fazer nós. Alain, habitualmente tão ríspido com a família, levou Laetitia à pesca no barco dele. Désiréedistribuía rebuçados, em segredo, às mãos que se estendiam ávidas e sujas. Como é evidente, toda a gente queria os veraneantes. Mas as crianças preenchiam uma necessidade essencial. Estragávamo-las com subornos e mimos, inexoravelmente. Velhas macambúzias tornaram-se doces. Velhos casmurros redescobriram os prazeres da infância.Flynn era o preferido da miudagem. Era verdade que sempre atraíra as nossas crianças, talvez por nunca ter tentado fazê-lo. Mas aos olhos da gente que vinha no Verão tornara-se uma espécie deflautista mágico: havia sempre criançada à volta dele, a falar com ele, a observá-lo enquanto ele fazia esculturas com bocados de madeira trazidos pelo mar ou escolhia os detritos que davam à praia. Perseguiam-no desapiedadamente, mas ele parecia não se importar. Traziam-lhe os seus troféus de La Goulue e contavam-lhe as suas histórias. Disputavam despudoradamente a sua atenção. Flynn aceitava a admiração das crianças com a mesma indiferença jovial que demonstrava a toda a gente.Contudo, depois da chegada dos turistas, achei que Flynn parecia mais retraído por detrás do seu bom-humor. No entanto, tinha sempre tempo para mim e passávamos muitas horas sentados no telhado do bunker ou lá em baixo, à beira da água, a conversar. Eu estava-lhe grata por isso, agora que Les Salants estava a caminho da recuperação começava a sentir-me estranhamente supérflua, como uma mãe que vê os filhos começarem a crescer e a tornar-se independentes. Claro que era absurdo, ninguém se podia sentir mais feliz do que eu com as mudanças ocorridas em Les Salants, mas, apesar disso, por diversas vezes dei comigo quase a desejar que alguma coisa viesse interromper a nossa tranquilidade.Flynn riu-se quando lhe falei nisso.- Tu não foste feita para viver numa ilha - disse, com jovialidade. - Precisas de viver num estado de crise permanente para sobreviveres.Era um comentário irreverente, que na altura me fez rir. - Não é verdade! Eu gosto de uma vida tranquila!Ele fez uma careta.266

- Isso é uma coisa que não existe quando tu estás por perto..é.. Mais tarde pensei no que Flynn dissera. Teria razão? Do que eu precisava era de uma sensação de perigo, de crise? Fora sobretudo isso que me atraíra para Le Devin? E para o próprio Flynn?Nessa noite, na maré baixa, sentia-me intranquila e desci até La Goulue para arejar as ideias. Havia uma generosa meia-lua, ouvia o sibilar silencioso das ondas na margem escura e sentia a brisa suave.Quando olhei para trás da borda de La Goulue avistei o bunker, uma mole escura contra o céu estrelado e, por momentos, tive a certeza de ver um vulto destacar-se do quadrado negro e desaparecer nas dunas. Pelo modo como se movia, reconheci Flynn.Talvez tivesse ido à pesca, pensei para mim, embora não levasse nenhuma lanterna. Eu sabia que ele, às vezes, continuava a roubar lagostas dos viveiros dos Guénole, para não perder a mão. Era uma tarefa mais apropriada no escuro.Depois desse breve vislumbre, não vi mais sinais dele e, sentindo frio, comecei a dirigir-me para casa. Ao longe, ainda ouvia o som de cantos e de gritos vindos da aldeia e uma luz amarelada que se projectava na estrada defronte do Angélo. Por baixo de mim, na vereda, estavam dois vultos quase invisíveis na sombra da duna. Um era corpulento e de ombros largos, com as mãos enfiadas negligentemente nos bolsos da vareuse, o outro era menos robusto e uma réstia de luz do café iluminou-lhe por instantes o cabelo.Vi-os apenas por um breve instante. Um som indistinto de vozes segredadas, uma mão que se

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levantou, um abraço. Depois separaram-se, Brismand a caminho da aldeia, a sua sombra prolon gando-se ao longo da duna e Flynn regressando pela vereda em passos largos e silenciosos, na minha direcção. Não tinha tempo para o evitar; ele estava diante de mim num abrir e fechar de olhos, com o rosto iluminado pela luz pálida da lua. Senti-me satisfeita por o meu estar na sombra.- É tarde para andares por aí - disse ele, bem disposto. Era evidente que não se apercebera que eu o tinha visto com o Brismand.- Então és tu - disse eu. Sentia-me confusa e não estava certa do que tinha visto... ou julgava ter visto. Precisava de pensar qual o significado daquilo.Ele sorria.267- Belote - disse ele. - Vim-me embora quando estava a ganhar, para variar. Ganhei uma dúzia de garrafas de vinho a Omer. A Charlotte é capaz de o matar quando ele estiver sóbrio. - Passou_ -me a mão pelos cabelos. - Bons sonhos, Mado.E com isto foi-se embora, assobiando entre dentes, seguindo o caminho que eu tinha feito.Descobri inesperadamente que era difícil provocar Flynn a propósito do seu encontro com Brismand. Dizia a mim mesma que podia tratar-se de um encontro absolutamente casual; Les Salantsnão estava interdito aos houssins e Omer, Matthias, Aristide e Alain, todos eles confirmaram que Flynn tinha estado a jogar belote nessa noite no Angélo. Não me tinha mentido. Além disso, como Capucine gostava de acentuar, Flynn não era um salannais. Não tomava partido. Talvez Brismand lhe tivesse pedido muito simplesmente para lhe fazer qualquer trabalho, De qualquer modo, subsistia uma suspeita: um pequeno fragmento numa concha de ostra, um ligeiro mal-estar.No meu espírito, revia repetidamente o átrio de Les Immortelles, o encontro turbulento de Brismand com Marin e Adrienne; o pendente de coral que encontrara nos degraus do hotel. Muitos insulanos ainda os usam; mesmo o meu pai, como sucede com muitos pescadores.Gostava de saber se Flynn ainda usava o dele.45À medida que julho se aproximava do fim, sentia-me cada vez mais preocupada com o meu pai. Com a ausência da minha irmã e da família, GrosJean parecia ainda mais abstracto do que de costume e menos comunicativo. Eu estava habituada, mas havia algo de novo nos seus silêncios. Uma espécie de ambiguidade. O estúdio estava concluído. A desordem provocada pelos operários já há muito que tinha sido removida. Já não havia qualquer razão para GrosJean ficar lá fora a supervisionar as coisas e, para minha consternação, voltou a afundar-se na sua habitual apatia, agora pior do que dantes, ficando sentado a olhar pela janela ou a beber café na cozinha, à espera que os rapazes chegassem.Aqueles rapazes. Eram o único motivo que o fazia abandonar aquele estado de sonolência e de indiferença. Só se animava quando eles lá estavam, o que me enchia de fúria e de comiseração. Ver a cara deles, as caretas dissimuladas, ouvir as suas confidências segredadas, as piadas à custa dele. Pelas costas, chamavam-lhe Pépère Gros Bide. O Velho Barrigudo. Macaqueavam-no às escondidas, imitando o seu andar arrastado, com os pés para fora e espetando os ventres arredondados num divertimento simiesco. Diante dele, mostravam-se afectados e risonhos, de olhos baixos e as mãos estendidas à espera de dinheiro ou de guloseimas. Mas também havia presentes mais caros. Fatos-de-treino novos: vermelho o de Franck e azul o de Loïc, vestidos uma vez e depois deixados ao abandono, amarrotados, no jardim das traseiras no meio dos cardos. Inúmeros269brinquedos: bolas, baldes e pás, jogos electrónicos que deve ter mandado vir do continente, porque nenhuma das nossas crianças podia usufruir dessas coisas. O aniversário de Loïc era em Agosto e ouvia-se falar num barco. Voltava a interrogar-me, com crescente inquietação, donde vinha o dinheiro.Em parte para minorar essa ansiedade, eu pintava cada vez mais depressa e com mais entusiasmo do que nunca. Nunca me tinha sentido tão próxima do meu tema. Pintei Les Salants e os salannais;a bela Mercédès nas suas mini-saias; Charlotte Prossage a estender a roupa tendo como pano de

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fundo uma faixa negra azulada de nuvens prenunciadoras de trovoada; rapazes, de troncos nus, a trabalharem nas salinas, rodeados por cones de sal branco como uma paisagem alienígena; Alain Guénolé, sentado à proa do seu Eleanore 2 como um comandante celta; Omer e o seu rosto franco e cómico; Flynn de mochila à beira de água ou no seu pequeno veleiro de um mastro, ou a retirar potes de lagostas da água, com o cabelo preso atrás com um bocado de tecido, uma mão em pala sobre os olhos para os proteger do sol...Possuo uma aptidão especial para os pormenores. A minha mãe sempre o disse. Pintava quase sempre de memória: de facto, ninguém tinha tempo para posar para mim, e encostava as telas já montadas contra a parede do meu quarto para secarem antes de as emoldurar. Sempre que Adrienne vinha de La Houssinière visitar-nos, observava-me com um interesse crescente que, sentia-o, não era inteiramente benevolente.- Estás a usar muito mais cores do que dantes - comentou. - Alguns destes quadros são bastante berrantes.Era verdade. Em comparação, as minhas primeiras pinturas eram desoladas e tristes, os tons muitas vezes limitados aos cinzentos e castanhos de um Inverno na ilha. Mas agora o Verão irrompe ra na minha paleta do mesmo modo que invadira toda a aldeia, trazendo consigo o rosa pulverulento das tamargueiras, o amarelo cromado das giestas, do tojo e das mimosas, o branco quente do sal e da areia, o laranja das bóias de pesca, o céu azul forte e as velas vermelhas dos barcos da ilha. Mesmo essa luminosidade era tétrica à sua maneira, mas era uma luminosidade de que eu gostava. Sentia que nunca tinha feito nada tão bom.270Flynn dizia o mesmo, com um breve aceno de admiração que me ruborizava de orgulho.- Estás a trabalhar muito bem - disse ele. - Dentro de pouco tempo poderás ser independente.Estava sentado de perfil para mim, encostado à parede do bunker, com o rosto meio oculto pela aba do chapéu mole. Por cima da sua cabeça, um pequeno lagarto agitou-se sobre a pedra quente.Tentei captar a expressão dele: a curvatura da boca, a sombra obliquada projectada pelo malar. Atrás de nós, da duna azulada sob a luz estival vinha o canto dos grilos. Flynn viu que eu o estava a desenhar e endireitou-se.- Mexeste-te - lamentei-me.- Sou supersticioso. Nós, os irlandeses, acreditamos que os lápis nos roubam um pedaço da alma.Eu sorri.- Sinto-me lisonjeada por pensares que sou assim tão boa.- Suficientemente boa para abrires uma galeria tua. Talvez em Nantes, ou em Paris. Estás a perder-te aqui.. Longe de Le Devin? - Não acho.Flynn encolheu os ombros.- As coisas mudam. Não se sabe o que pode acontecer e não te podes refugiar aqui para sempre.- Não percebo o que queres dizer. - Eu usava o vestido vermelho que Brismand me oferecera; a seda era tão leve que quase não a sentia ao contacto da pele. Era uma sensação estranha depois de tantos meses enfiada em calças e camisas de lona, quase como se estivesse outra vez em Paris. Os pés descalços estavam cobertos de areia da duna.- Percebes muito bem. És talentosa, inteligente, bonita... - calou-se e por momentos ficou quase tão embaraçado como eu. - Sim, sabes tudo isso - disse finalmente, na defensiva.Lá ao fundo, La Goulue fervilhava de vida: dezenas de pequenos barcos mosqueavam a água. Reconhecia-os pelas velas: o Cécilia; o Papa Chico; o Eleanore 2; o Marte Joseph de Jojo. Mais ao fundo, para lá dos barcos, a vasta extensão azul da baía.- Não trazes o teu coral da sorte - reparei de súbito. Flynn levou a mão ao pescoço num gesto automático.271

- Não - disse, com indiferença. - Sou eu que faço a minha sorte. - Desviou os olhos para a baía. - Parece tão pequena vista daqui, não parece?

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Não respondi. Dentro de mim, qualquer coisa começava a cerrar-se como um punho, cortando-me a respiração. Levei a mão à algibeira, tacteei o pendente de coral que tinha apanhado em LesImmortelles, não era maior do que um caroço de cereja. Flynn pôs a mão em frente da cara e fechou os dedos, tapando a vista de La Goulue.- Estas terreolas pequenas - disse, suavemente. - Trinta casas e uma praia. Pensas que és capaz de lhes resistir. És cuidadoso. És inteligente. Mas é como enfiar um dedo num desses tuboschineses, que quanto mais se puxa mais aperta. Antes que te apercebas, estás apanhado. Ao princípio, são apenas pequenas coisas. Pensas que não são importantes. Até que um dia compreendes que essas pequenas coisas significam tudo.- Não compreendo - disse eu, aproximando-me mais. O aroma da duna era agora intenso: a cravos bravos, a funcho e ao odor adamascado das giestas aquecidas pelo sol. A expressão deFlynn continuava semiencoberta por aquele ridículo chapéu mole; apetecia-me tirar-lho e olhar os olhos dele, tocar as sardas na cana do nariz. Dentro da algibeira do vestido, os meus dedos voltaram a apertar a conta de coral e depois afastaram-se. Flynn achava-me bonita. Essa ideia era estrondosa como uma explosão de fogo de artifício.Flynn abanou a cabeça.- Estou aqui há demasiado tempo - disse, numa voz suave. - Mado, estavas à espera que eu ficasse cá para sempre?Talvez esperasse. Apesar da sua inquietação, nunca imaginara que pudesse partir. Além disso, era a estação alta. Les Salants nunca tinha estado tão movimentado.- Chamas a isto movimentado? - disse Flynn. - Já conheci estas terras do litoral... já lá vivi. Mortas no Inverno e com um punhado de gente no Verão. - Suspirou. - Pequenos lugares. Pouca gente. É deprimente.A boca era tudo o que eu conseguia ver agora do rosto na sombra. Sentia-me fascinada pelos seus contornos, pela sua textura; pelo volume do lábio superior; pelas pequenas rugas na comissura272dos lábios quando sorria. O meu assombro adejava ainda como o sol impertinente nas minhas retinas; Flynn achava-me bela. Confrontadas com esta realidade, as palavras que ele pronunciava pareciam-me inconsistentes: uma ninharia brilhante destinada a desviar-me de uma verdade mais importante. Estendi os braços, com firmeza, e tomei o seu rosto entre as minhas mãos.Por momentos senti-o hesitar. Mas a pele dele era quente como a areia sob os meus pés; os olhos dele eram cor de mica e eu sentia-me diferente, como se o presente de Brismand contivesse vestígiosdo fascínio daquele homem, transformando-me, naquele momento, numa pessoa diferente.Selei o protesto de Flynn com um beijo. A boca dele sabia a pêssegos, a lã, a metal e "a vinho. Todos os meus sentidos pareciam subitamente despertos; o odor do mar e das dunas; os ruídos dasgaivotas, da água e das vozes distantes na praia e os leves estalidos da erva a crescer; a luz. Submergiam-me. Subjugavam-me. Rodopiava vertiginosamente; sentia que em qualquer momento podia explodir como um foguete, rabiscando o meu nome em estrelas no céu deslumbrante.Deve ter sido um tanto ou quanto embaraçante. Talvez tenha sido, mas para mim foi natural. O vestido vermelho deslizou quase sozinho. A camisa de Flynn foi fazer-lhe companhia; por baixo dela, a sua pele era pálida, apenas levemente mais escura do que a areia e ele devolvia-me os beijos como um homem sorve golfadas de água depois de andar vários dias perdido no deserto. Sofregamente, sem fazer uma pausa para respirar até ao momento em que a consciência se afunda. Nenhum de nós falou até saciarmos a nossa sede; emergimos de uma espécie de torpor e encontrámo-nos estendidos, cobertos de areia e suor, com as ervas secas da duna baloiçando sobre as nossas cabeças e a parede branca e ardente do bunker e o mar ao fundo tremeluzente como uma miragem.Ainda entrelaçados, ficámos a olhá-lo num silêncio longo e complexo. Isto alterava tudo. Eu sabia-o e, apesar disso, queria reter aquele momento o mais possível, com a cabeça pousada no peito de Flynn e uma mão rodeando-lhe os ombros. Havia mil e uma perguntas que queria fazer-lhe, mas sabia que fazê-las significava admitir a mudança; confrontarmo-nos com o facto de eu e ele já não

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sermos simplesmente amigos, mas algo infinitamente mais273perigoso. Pressentia que ele estava à espera que fosse eu a quebrar a tensão, talvez para me seguir o exemplo; por cima de nós um bando de gaivotas planava em círculo, protestando.Nenhum de nós falou.

46As marés de meados do mês trouxeram tempestades secas, mas como estas se limitavam essencialmente a extravagantes exibições de relâmpagos e a alguns fortes aguaceiros durante a noite, os negócios não foram afectados. Celebrámos o nosso êxito com um espectáculo de fogo-de-artifício organizado por Flynn e pago por Aristide com a colaboração de Pinoz, o prefeito. Não foi o género de espectáculo grandioso a que se pode assistir no litoral, mas era com certeza a primeira vez que Les Salants assistia a uma coisa daquelas e todos saíram para ver. Três girândolas gigantescas, destinadas a resplandecer sobre a água, estavam ancoradas no Bouch'ou, apenas acessíveis de barco. Havia fogos-de-bengala na duna. Foguetes engrinaldavam o céu com enormes flores flamejantes. O espectáculo não durou mais do que poucos minutos, mas a miudagem estava maravilhada. Lolo nunca tinha visto fogo-de-artifício e, conquanto Laetitia e os outros pequenos turistas não se deixassem impressionar tão facilmente, todos concordaram que era a melhor exibição de fogo-de-artifício que a ilha jamais vira. Capucine e Charlotte tinham preparado doces para a ocasião, pequenas devinnoiseries e rolos entrançados, pastéis folhados cobertos de mel e crepes ensopadas em manteiga salgada, para serem distribuídos durante a festa.Flynn, que planeara e montara o espectáculo praticamente sozinho, recolheu a casa cedo. Não o detive; desde o nosso encontro no bunker que praticamente nem sequer falava com ele. Em274275parte por suspeição, mas sobretudo devido a uma profunda e indefinida raiva. Contudo, todas as vezes que passava pelo bunker, reparava se havia sinais de vida - fumo na chaminé, roupa a secar no telhado - e sentia um ligeiro abrandamento da tensão sob as costelas quando percebia que ainda lá estava. Mas quando o encontrava no Angélo, ou a pescar no canal, ou sentado no telhado a olhar para o mar, quase não era capaz de lhe retribuir a saudação. Se , estava magoado ou surpreendido com a minha atitude, dissimulava muito bem. Para ele, pelo menos, a vida corria normalmente.O meu pai esteve ausente das celebrações. Adrienne veio com os rapazes, embora se mostrassem enfadados e indiferentes com os divertimentos que deliciavam as outras crianças. Encontrei-os mais tarde junto de uma das fogueiras ao ar livre. Damien estava com eles, com ar contrariado e irritado; soube pelo Lolo que tinha havido qualquer espécie de desavença entre eles.- Por causa de Mercédès - confidenciou Lolo, desconsolado. - Ele é capaz de fazer o que quer que seja para a impressionar. É a única coisa que lhe interessa.Era verdade que Damien estava mudado. O seu mau humor inato parecia ter-se sobreposto por completo e agora evitava por completo o seu velho amigo. Alain também andava com problemas com ele. Admitia-o com um misto de contrariedade e de orgulho relutante.- Sabes que sempre fomos assim - disse-me. - Os Guénolés têm a cabeça dura. - No entanto, eu percebia que ele estava preocupado. - Não consigo fazer nada daquele rapaz. Ele não fala comigo. Ele e o irmão costumavam ser unidos como caranguejos, mas nem o Ghislain consegue arrancar-lhe um sorriso ou uma palavra. Mas eu era como ele na sua idade. Há-de passar-lhe.Alain acreditava que talvez uma motorizada nova fizesse esquecer a Damien os seus problemas.- E talvez o mantenha afastado também dos houssins - acrescentou. - E o traga de volta para a aldeia, e lhe dê algo novo com que se preocupar.Eu desejava que assim fosse. Sempre gostara de Damien apesar das suas reservas. Lembrava-me um pouco eu própria na sua idade desconfiada, melindrosa, sorumbática. E aos quinze anos, o primeiro amor é um relâmpago de Verão: incandescente, impetuoso e fugaz.276Mercédès também causava preocupações. Desde que fora anunciado o noivado, tornara-se mais

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caprichosa do que nunca, passando horas a fio metida no quarto, recusando-se a comer; tão depressabajulava como repreendia severamente o seu infeliz prometido pelo que Xavier já não sabia o que fazer para lhe agradar.Aristide atribuía aquilo aos nervos. Mas era mais do que isso; eu achava que a rapariga parecia doente e nervosa, fumava demasiado e desatava em pranto ou respondia com rispidez à observaçãomais banal. Toinette contou que Mercédès e Charlotte tinham discutido por causa do vestido de casamento e agora não se falavam.- Pertence à Désirée Bastonnet - explicava Toinette. - É um vestido de renda antiga cortado na cintura, muito bonito. Xavier queria que Mercédès o usasse.Désirée conservara o vestido, amorosamente embrulhado em lençóis perfumados com alfazema, desde o casamento. A mãe de Xavier também o usara no dia em que casara com Olivier. Mas Mercédès recusara-se terminantemente a usá-lo e quando Charlotte insistiu timidamente, teve um acesso de fúria épico.Os rumores maliciosos de que Mercédès só recusara o vestido porque estava demasiado gorda para caber dentro dele não contribuíram em nada para restabelecer a paz na família Prossage.Durante todo esse tempo, eu e Flynn tínhamos estabelecido entre nós uma espécie de rotina. Não falávamos da mudança que ocorrera entre nós, como se o facto de admitir a sua existência pudesse de algum modo comprometer-nos mais do que desejávamos. Assim, a nossa intimidade era de uma natureza ilusoriamente despreocupada, como se se tratasse de uma aventura de férias. Existíamos dentro de uma teia de linhas invisíveis que nenhum de nós se atrevia a transpor. Conversávamos, fazíamos amor, nadávamos juntos em La Goulue, íamos à pesca, grelhávamos o produto da nossa pescaria no pequeno grelhador que Flynn improvisara numa cavidade por detrás da duna. Respeitávamos as fronteiras que ambos nos tínhamos imposto. Às vezes interrogava-me se tinha sido a minha cobardia que impusera esses limites, ou a dele. Mas Flynn nunca mais voltara a falar em partir.Ninguém ouvira dizer mais nada sobre Claude Brismand. Tinha sido visto algumas vezes com Pinoz e Jojo-le-Goêland, umas vezes em La Goulue e outras na aldeia. Capucine contou que277tinham andado a rondar perto da sua rulote e Alain vira-os fora do bunker. Mas tanto quanto se sabia, Brismand continuava demasiado atarefado a tratar dos problemas de humidade em Les Immortelles para se preocupar com outros projectos. Não houvera qualquer alusão a um novo ferry e a maior parte das pessoas mostrava-se inclinada a acreditar que toda aquela conversa sobre o Brismand 2 tinha sido uma brincadeira de alguém, provavelmente de Ghislain.- Brismand sabe que perdeu a jogada - dizia Aristide alegremente. - Já era tempo de os houssins saberem também o que é estar na mó de baixo. A sorte deles mudou e eles sabem-no.Toinette assentia com a cabeça.- Agora ninguém nos pode deter. Temos a santa do nosso lado. Porém, o nosso optimismo era prematuro. Apenas alguns dias mais tarde, quando regressava da aldeia com umas cavalas para o almoço de GrosJean, encontrei Brismand sentado debaixo do chapéu-de-sol, no pátio, à minha espera. Continuava a usar o gorro de pescador, mas para dar maior dignidade à ocasião vestira um casaco de linho e pusera gravata. Como de costume, tinha os pés enfiados numas sapatilhas desbotadas. Segurava um Gitane entre os dedos.O meu pai estava sentado à frente dele, com uma garrafa de Muscadet ao alcance da mão. Havia três copos à espera.- Olá, Mado. - Brismand levantou-se com dificuldade da cadeira. - Esperava que não te demorasses.- O que está a fazer aqui? - A surpresa fez com que a minha pergunta soasse abrupta e ele pareceu ficar magoado.- Vim ver-te, como é evidente. - Por detrás da expressão pesarosa, havia uma ponta de divertimento. - Eu gosto de estar a par do que se vai passando.- Assim ouvi dizer.Serviu-se de outro copo de vinho e encheu um para mim.- Vocês, salannais, têm tido mais sorte do que é habitual, não têm? Devem estar satisfeitos.

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Mantive o meu tom neutro. - Cá nos vamos aguentando. Brismand sorriu, com o seu bigode áspero de gangster.- Gostava de ter alguém como tu lá no hotel. Uma pessoa jovem e enérgica. Devias pensar nisso.- Uma pessoa como eu? Para fazer o quê?278- Ficarias surpreendida. - O seu tom era animador. - Uma artista, uma designer... podia ser-me muito útil neste preciso momento. Podíamos pensar nisso Penso que acharias proveitoso.- Sinto-me feliz assim.- Talvez. Mas as circunstâncias alteram-se, hem? Talvez te agradasse ter uma certa independência. Salvaguardar o futuro. - Sorria abertamente e empurrou o copo na minha direcção. - Toma. Bebe um pouco de vinho.- Não, obrigada. - Apontei o embrulho do peixe. - Tenho de o ir pôr no forno. Está a fazer-se tarde.- Cavala, hem? - disse Brismand, levantando-se. - Conheço uma maneira magnífica de as preparar, com sal e rosmaninho. Vou ajudar-te e conversamos mais um bocadinho.Seguiu-me até à cozinha. Era mais ágil do que a sua corpulência sugeria: cortou e amanhou o peixe com um único movimento rapido.- Como vão os negócios? - perguntei, acendendo o forno.- Não vão mal - disse Brismand, com um sorriso. - Para dizer a verdade, o teu pai e eu estávamos a celebrar.- A celebrar o quê?O rosto de Brismand abriu-se num sorriso enorme. - Uma venda.Tinham-se servido dos rapazes, claro. Eu sabia que o meu pai faria tudo para manter os rapazes por perto. Marin e Adrienne tinham jogado com o seu afecto, falado de investimentos, incenti vado GrosJean a endividar-se para lá da sua capacidade. Ignorava a porção de terrenos que ele alienara.Pacientemente, Brismand aguardava que eu falasse. Podia sentir o seu divertimento enorme e reservado enquanto esperava, com os olhos cor de ardósia concentrados como os de um gato. Depois, sem me perguntar nada, começou a preparar a marinada para o peixe, com azeite, ervas aromáticas, sal e raminhos de rosmaninho que foi colher aos arbustos ao lado da porta da frente.- Madeleine. Devíamos ser amigos, sabes? - O seu ar era pesaroso de queixada caída e bigode triste, mas havia um assomo de riso na sua voz. - Na realidade, não somos assim tão diferentes.279Somos ambos lutadores. E com jeito para o negócio. Não devias ter tantos preconceitos em aliares-te a mim. Tenho a certeza que terias êxito. E, como sabes, desejo sinceramente ajudar-te. Sempre desejei.Não olhei para ele enquanto salgava o peixe, o envolvia em papelotes de folha de alumínio e em seguida o metia no forno aquecido.- Esqueceste-te da marinada.- Não é assim que o costumo cozinhar, Senhor Brismand. Ele suspirou.- É pena. Terias gostado.- Quanto? - perguntei por fim. - Por quanto é que ele lho deu?Brismand soltou uma expressão de desaprovação.- Mo deu? - repetiu, de modo repreensivo. - Ninguém me deu nada. Porque haviam de dar?Os documentos legais tinham sido preparados no continente. Tudo o que envolvesse selos e assinaturas sempre intimidara o meu pai. A terminologia jurídica amedrontava-o. Embora Brismand se mostrasse vago nos pormenores, percebi que tinha aceite terrenos como garantia de um empréstimo. Como de costume. Constituía uma mera variante da sua velha técnica: empréstimos a curto prazo a redimir com bens numa data posterior.Ao fim e ao cabo, como teria dito Adrienne, os terrenos não tinham qualquer utilidade para o meu pai. Uns poucos quilómetros de dunas entre La Bouche e La Goulue, um estaleiro em ruínas,sem préstimo, pelo menos até ao momento.Como eu sempre suspeitara, o estúdio não tinha sido pago com economias. As obras da casa, os presentes para os rapazes, as bicicletas novas, os jogos de computador, as pranchas de vela...

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- Foi você que pagou isso tudo. Emprestou-lhe o dinheiro. Brismand encolheu os ombros.- Evidentemente. Quem havia de ser? - Temperou uma salada de alface com molho vinaigrette e salicórnia, uma erva polpuda da ilha usada com frequência nos picles, e pô-la na escudela de madeira enquanto eu começava a cortar os tomates às rodelas. - Devíamos juntar umas chalotas - observou no mesmo tom suave. - Não há nada que acentue mais o sabor de um tomate bem maduro. Onde é que tu as guardas?280Ignorei-o.- Ah, cá estão elas, no cesto dos legumes. Umas belas chalotas. Estou a ver que o Omer deve estar a fazer bom negócio com a quinta dele. Foi um ano de ouro para Les Salants em peso, não foi? peixe, legumes, turistas.- Não foi mau.- És muito modesta. Hem. É quase um milagre. - Cortou as rodelas de chalotas com uma mão experiente e hábil. O aroma era pungente como o do mar. - E tudo graças àquela bela praia que tu nos roubaste. Tu e o esperto do teu amigo, o Ruivo.Pousei delicadamente a faca em cima da mesa. A mão tremia-me levemente.- Tem cuidado, não te cortes. - Não sei o que quer dizer.- Quero dizer que deves ser mais cuidadosa com essa faca, Mado. - Riu-se. - Ou queres tentar convencer-me que não sabes de nada sobre aquela praia?- As praias movem-se. A areia move-se.- Sim, é verdade, e às vezes até se move espontaneamente. Mas não foi o caso desta vez, hem? - Estendeu as mãos, ainda sujas de sangue de peixe, num gesto amplo. - Mas não penses que eu guardo ressentimento contra ti. Só sinto admiração pelo que tu fizeste. Tiraste outra vez Les Salants de dentro do mar. Fizeste disto um sucesso. Só estou a zelar pelos meus interesses, Mado, quero salvaguardar a minha quota-parte nisto. Chama-lhe compensação, se quiseres. Deves-me isso.- Foi você o primeiro a provocar as inundações - respondi-lhe furiosa. - Ninguém lhe deve nada.- Devem sim. - Brismand abanou a cabeça. - Donde é que pensas que veio o dinheiro, hem? O dinheiro para o café do Angélo, para o moinho de Omer, para a casa do Xavier? Quem é que pensas que forneceu o capital? Quem é que lançou os alicerces disto tudo? - Fez um gesto na direcção da janela, abarcando La Goulue, a aldeia, o céu, o mar cintilante na palma da mão suja.- Talvez tenha sido você - disse eu. - Mas agora acabou-se. Estamos a aguentar-nos. Les Salants já não precisa do seu dinheiro. - Chhh. - Com exagerada concentração Brismand verteu a marinada sobre os tomates. Era aliciante e aromática. Conseguia281antever o seu perfume sobre o peixe quente, o vinagre de rosmaninho a evaporar-se e o azeite a fervilhar. - Ficarias surpreendida como as coisas se alteram quando se trata de dinheiro - disse ele. - Porquê contentarmo-nos com um casal de turistas num quarto das traseiras se, com pouco capital, podes converter uma garagem num apartamento de férias ou construir uma fiada de vivendas num terreno baldio? Tu tiveste um gostinho de êxito, Mado. Achas realmente que as pessoas se contentam com tão pouco?Reflecti naquelas palavras em silêncio, por momentos.- Talvez tenha razão - disse por fim. - Mas ainda não percebi o que é que ganha com isso. Não pode construir grande coisa no bocado de terreno do meu pai.- Madeleine. - Brismand curvou os ombros de modo expressivo, e havia recriminação em cada linha do seu corpo. - Por que razão há-de haver sempre outro motivo? Porquê não aceitar sim plesmente que eu quero ajudar? - Estendeu as mãos num gesto de súplica. - Tem havido tão pouca confiança entre as nossas duas comunidades. Tantos antagonismos. Até tu foste arrastada para isso. O que é que eu fiz para merecer a tua suspeição? Adianto dinheiro ao teu pai em troca de terras de que ele não precisa: suspeitas. Ofereço-te um emprego em Les Immortelles... mais suspeitas. Tento reparar as pontes entre as nossas comunidades por amor à minha família... a maior de todas as suspeições. Hem! - Agitou os braços dramaticamente. - Diz-me lá. De que é que suspeitas de mim agora?Não respondi. O seu fascínio, completamente à solta, era imenso e palpável. Apesar disso, eu sabia

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que tinha razões para não confiar nele. Ele tinha um plano qualquer -lembrei-me do Bris mand 2, semiacabado há seis meses atrás e agora pronto para ser lançado ao mar, e interroguei-me uma vez mais qual seria o plano dele. Brismand suspirou pesadamente e desabotoou o colarinho.- Eu sou um homem velho, Mado. E um solitário. Tive mulher e um filho pequeno. Sacrifiquei ambos à minha ambição. Admito que houve um tempo em que atribuía mais valor ao dinheiro do que a qualquer outra coisa. Mas o dinheiro envelhece. Perde o seu fulgor. Agora quero aquilo que o dinheiro não pode comprar. Uma família. Amigos. Paz.- Paz!282- Tenho sessenta e quatro anos, Madeleine. Durmo mal. Bebo demais. A máquina começa a falhar. Pergunto a mim mesmo se valeu a pena, se fazer fortuna me fez feliz. Faço estas perguntas amim mesmo cada vez com mais frequência. - Deitou uma espreitadela ao forno. O temporizador estava no zero. - Madeleine, acho que os teus peixes já estão prontos.Calçou as luvas e tirou as cavalas do forno. Retirou-as da folha de alumínio e despejou o resto da marinada por cima. O aroma era tal como eu imaginara: doce, condimentado e delicioso.- Vou deixar-vos comer em paz, hem. - Suspirou de modo teatral. - Como sabes, como normalmente no meu hotel. Posso escolher a mesa que me apetecer e qualquer prato da lista. Mas o meu apetite - deu uma palmadinha tristonha no estômago - o meu apetite já não é o que era dantes. Talvez por ver aquelas mesas todas vazias...Não sei o que me levou a convidá-lo. Talvez porque nenhum Devinnois recusa jamais a hospitalidade. Talvez porque as suas palavras tocaram nalguma corda sensível.- Porque é que não come connosco? - sugeri, num impulso. Há comida que chegue para todos.Mas Brismand riu-se, forte e inesperadamente, agitando o ventre na sua hilaridade gigantesca. Senti as faces ruborizarem-se, consciente de que tinha sido manipulada para mostrar simpatia quando esta não era necessária e que a minha atitude o divertira.- Obrigado, Mado - disse por fim, limpando as lágrimas dos olhos com a ponta do lenço. - Foi um convite muito amável. Mas tenho de ir andando, hem? Hoje tenho outro peixe para fritar.28347uando passei pelo bunker na manhã do dia seguinte, não vi sinais de Flynn em parte nenhuma. As gelosias estavam fec fiadas, o gerador desligado e não havia nenhum dos sinais habituais da sua presença. Espreitei pela janela, mas não vi a loiça do pequeno almoço no lava-loiça, nenhuma colcha na cama, nenhuma roupa. Uma espreitadela rápida ao interior - poucas pessoas fecham a porta à chave em Les Salants - apenas revelou o cheiro a mofo de uma casa desabitada. E pior ainda, o pequeno barco que ele guardava na embocadura do canal desaparecera.- Provavelmente saiu para a pesca - disse Capucine, quando lhe fui bater à porta da rulote.Alain concordou, dizendo que julgava ter visto o barco de Flynn sair de manhã cedo. Angélo também não parecia preocupado. Mas Aristide mostrava-se pensativo.- Os acidentes acontecem - disse-nos ele, sombrio. Lembrem-se do Olivier.- Hem - disse Alain. - O Olivier nunca teve sorte. Angélo concordou.- É mais provável que o Ruivo cause sarilhos do que se meta neles. Onde quer que esteja, há-de chegar a terra pelo seu pé.Mas o dia foi passando e Flynn não aparecia. Comecei a sentir-me ligeiramente angustiada. Não me teria dito alguma coisa se planeasse estar fora durante algum tempo? Quando vi que nãotinha regressado ao fim da tarde, fui até La Houssinière, onde o284Brismand 1 se preparava para partir. Uma fila de turistas esperava abrigados do sol debaixo do toldo do Chat Noir; malas e mochilas alinhavam-se na prancha de embarque. Automaticamente, dei por mim a examinar a fila à procura de um homem de cabelo ruivo.Claro que Flynn não estava entre os turistas que iam partir. Mas quando me preparava para regressar à esplanada, reparei numa figura familiar que aguardava na fila. O cabelo comprido obscure

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cia-lhe o rosto, mas os jeans apertados e o top cor-de-laranja eram inconfundíveis. Tinha aos pés uma enorme mochila que lembrava um cão.- Mercédès?Ela virou-se ao ouvir a minha voz. Tinha o rosto pálido e sem maquilhagem. Parecia ter estado a chorar.- Deixa-me em paz - disse ela e virou-se para o Brismand 1. Fiquei preocupada.- Mercédès! Estás bem?Sem olhar para mim, abanou a cabeça.- Não é nada contigo, La Poule. Não te metas. - Não me mexi, mas fiquei parada ao lado dela, calada, à espera. Mercédès alisou o cabelo. - Tu sempre me odiaste. Deves ficar feliz por meveres pelas costas. Agora deixa-me em paz, `tá bem? - O rosto dela era uma mancha desfocada e infeliz sob a cortina de cabelos. Pousei-lhe a mão no ombro magro.- Nunca te odiei. Vem comigo, ofereço-te um café e podemos conversar. E depois disso, se ainda quiseres partir...Mercédès soltou um soluço furioso sob a espessa cabeleira. - Eu não quero partir!Peguei-lhe na mala.- Então vem comigo.- Para o Chat Noir não - disse Mercédès rapidamente quando eu me dirigia para o café. - Vamos para outro sítio. Mas para ali não.Descobri um pequeno snack bar nas traseiras do Clos du Phare e mandei vir café e donuts para as duas. Mercédès mostrava-se ainda frágil e à beira das lágrimas, mas a hostilidade desaparecera.- Porque é que querias fugir? - perguntei-lhe finalmente. - Tenho a certeza de que os teus pais devem estar preocupados contigo.285- Eu não volto para casa - disse-me, obstinada.- Porque? É por causa daquela estúpida história do vestido de casamento?Manifestou surpresa. Depois, com relutância, sorriu. - Sim, foi assim que começou.- Mas tu não podes fugir de casa por causa de um vestido que não te agrada - disse eu, tentando não rir.Mercédès abanou a cabeça.- Não é por isso - disse ela. - Então porquê?- Porque estou grávida.Consegui arrancar-lhe a história com uma certa dose de persuasão e outra cafeteira de café. Ela era uma mistura estranha de arrogância e de ingenuidade de rapariguinha, parecendo muito mais velha e ao mesmo tempo muito mais nova do que a idade que tinha. Imaginei que fosse isso o que primeiro atraiu Joël Lacroix, aquela ostentação coquete de confiança. Mas apesar das mini-saias e do exibicionismo sexual, no fundo continuava a ser uma rapariga da ilha, comovente e alarmantemente ignorante.Aparentemente, tinha confiado na santa para conseguir a contracepção.- Além disso - disse ela - pensei que não podia acontecer da primeira vez.Percebi que só tinha acontecido uma vez. Ele fizera-lhe sentir que a culpa era dela. Antes, apenas tinha havido beijos, passeios em segredo na moto dele, uma sensação de deliciosa rebeldia.- Ele era tão encantador, ao princípio - disse melancolicamente. - Toda a gente pensava que eu ia casar com Xavier e ser', apenas a mulher de um pescador, engordar e usar um lenço nacabeça como a minha mãe. - Limpou os olhos com o canto do guardanapo. - Agora foi tudo por água abaixo. Eu disse-lhe que podíamos fugir, talvez para Paris. Podíamos alugar um apartamento. Eu arranjava emprego... E ele... - Repuxou o cabelo para trás, com indiferença. - Ele limitou-se a rir.Contara aos pais logo, seguindo o conselho do padre Alban. Surpreendentemente, fora a tranquila Charlotte quem reagira pior: Omer La Patate limitara-se a sentar-se à mesa como um homem em estado de choque. Charlotte dissera que Xavier tinha de ser286informado, porque havia um contrato que já não podia ser honrado. Mercédès soluçava baixinho e

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desesperadamente enquanto me ia contando.- Não quero ir para o continente. Mas agora tenho de ir. Ninguém me vai querer aqui depois do que aconteceu.- Omer podia falar com o pai de Joël - sugeri. Ela abanou a cabeça.- Eu não quero o Joël nem nunca quis. - Limpou as lágrimas com as costas das mãos. - E não quero voltar para casa - disse, debulhada em lágrimas. - Eles obrigam-me a falar com o Xavier se eu voltar. E eu preferia morrer.O apito do ferry soou ao longe. O Brismand 1 ia partir.- Bom, ficas aqui até amanhã, pelo menos - disse eu, decidida. - Vamos procurar um sítio para tu ficares.28748Fui encontrar Toinette Prossage no jardim, sachando bolbos de alho selvagem do solo arenoso. Acenou-me num gesto amistoso ao mesmo tempo que se endireitava, e naquela manhã o seu rosto não estava protegido do sol pela quichenotte, mas por um largo chapéu de palha atado ao lado da cabeça por uma fita vermelha. No telhado relvado da casa, uma cabra mordiscava erva.- Ora então, o que te traz por cá esta manhã?- Preciso de algum motivo? - Tirei o grande pacote de bolos que tinha comprado em La Houssinière e estendi-lho. - Pensei que talvez lhe apetecesse um pain au chocolat.Toinette pegou no pacote e inspeccionou o conteúdo avidamente.- És uma excelente rapariga - declarou. - É evidente que traz água no bico. Diz lá, sou toda ouvidos. Pelo menos, enquanto não acabar o que estou a fazer.Eu sorri quando ela encetou o primeiro pain au chocolat e enquanto comia, contei-lhe o que se passava com Mercédès.- Pensei que talvez a pudesse acolher aqui durante algum tempo - disse eu. - Até a poeira assentar.Toinette examinou uma torta de açúcar e canela. Os olhos negros brilhavam penetrantes sob a aba do chapéu. - É uma rapariga muito cansativa, a minha neta - comentou, suspirosa. - Desde odia em que ela nasceu que eu soube que ia trazer problemas. E agora estou demasiado velha para estas coisas. Mas estes bolos288são muito bons - acrescentou, dando uma dentada na torta com deleite.- Pode comer todos - disse eu. - Hem.- O Omer não lhe contou nada sobre a Mercédès - arrisquei. - Por causa do dinheiro, hem?- Talvez. - Toinette leva uma vida frugal, mas correm rumores de que tem uma fortuna escondida. A velha não faz nada para os confirmar nem para os desmentir, mas o seu silêncio é normal mente interpretado como uma espécie de assentimento. Omer gosta imenso da mãe, mas sente-se secretamente consternado ante a sua longevidade. Toinette tem consciência disso e planeia viver eternamente. Casquinou divertida.- Pensa que eu o vou deserdar se houver um escândalo, hem? Pobre Omer. Digo-te uma coisa, aquela rapariga é mais parecida comigo do que com qualquer outra pessoa. Eu fui a perdição dos meus pais.- Significa que não mudou muito.- Hem! - Voltou a inspeccionar o cartucho de papel. - Pão de nozes. Sempre gostei de pão de nozes. Graças a Deus que ainda conservo os dentes todos, hem? Mas é melhor com mel. Ou com um bocado de queijo de cabra.- Eu vou buscar-lho.Toinette ficou a olhar para mim por momentos, entre divertida e cínica.- Traz-me lá a rapariga, já que fazes tanto empenho nisso. Espero que ela me poupe. Na minha idade, preciso de paz e tranquilidade. Os jovens não compreendem isso. Só se preocupam com os problemas deles.A sua pretensa fragilidade não me iludiu. Imaginei Mercédès, dez minutos depois de chegar, a limpar, a cozinhar e a arrumar a casa. Talvez lhe fizesse bem.

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Toinette leu os meus pensamentos.- Deixa estar que não demoro a tirar-lhe certas ideias da cabeça - anunciou, imperiosa. - E se aquele rapaz aparecer por aí a rondar... hem! - Fez um gesto no ar com o pão de nozes, parecendo a mais velha fada madrinha do universo. - Eu dou-lhe o que ele merece. Hei-de mostrar-lhe como é uma salannaise.289Deixei Mercédès com a avó. Passava da uma e o sol estava no zénite. Les Salants estava deserta no seu brilho vítreo, com as persianas fechadas e uma réstia ínfima de sombra na base das paredescaiadas de branco. Teria gostado de me estender calmamente à sombra de um chapéu-de-sol, talvez com uma bebida, mas os rapazes deviam estar em casa, pelo menos até a sala de jogos voltar a abrir, e depois da visita de Brismand, eu não confiava em mim na presença do meu pai. Por isso, preferi dirigir-me para as dunas. Estaria mais fresco por cima de Lã Goulue, e àquela hora do dia sem turistas. A maré estava cheia e o mar de uma refulgência brilhante. O vento refrescar-me-ia as ideias.De caminho, não pude deixar de deitar uma olhadela ao bunker. Continuava deserto como antes. Mas Lã Goulue não estava totalmente deserta. Um vulto isolado destacava-se à beira da água, com um cigarro apertado entre os dentes.Ignorou a minha saudação e quando me aproximei dele, desviou a cara, embora não suficientemente depressa para dissimular os olhos vermelhos. As notícias acerca de Mercédès tinham corrido céleres.- Só queria vê-los mortos - disse Damien em voz baixa. - Só queria que o mar tragasse a ilha inteira. Que arrastasse tudo. Que não ficasse ninguém. - Debruçou-se para apanhar uma pedra entre os pés e arremessou-a com toda a força para as ondas.- Talvez agora sintas assim - comecei a dizer, mas ele interrompeu-me.- Eles nunca deviam ter construído aquela barreira. Deviam ter deixado o mar à vontade. Pensavam que estavam a ser muito espertos. Que iam ganhar dinheiro. Rir-se dos houssins. Todos demasiado preocupados a pensar no dinheiro e sem verem o que se estava a passar mesmo debaixo do nariz. - Deu um pontapé na areia com a biqueira da bota. - Lacroix nunca teria olhado para ela duas vezes se não fosse isto, ou tinha? Teria partido no fim do Verão. Não haveria nada para o prender aqui. Mas pensou que podia ganhar dinheiro connosco. - Pousei-lhe a mão no ombro' mas ele afastou-a. - Fingia ser meu amigo. Fingiam os doisServiam-se de mim para mandar mensagens. Para ser o espião deles290na aldeia. Pensei que se pudesse fazer qualquer coisa por ela, talvez ela...- Damien. Tu não tens culpa. Não podias saber.- Mas é... - Damien interrompeu-se bruscamente e pegou noutra pedra. - Oh, o que é que tu sabes, hem? Nem sequer és uma verdadeira salannaise. Tu desenrascas-te, aconteça o que acontecer. A tua irmã é uma Brismand, não é?- Não estou a ver o que...- Deixa-me sozinho, OK? O problema não é teu.- Claro que é. - Peguei-lhe no braço. - Damien, eu pensava que éramos amigos.- Era o que eu pensava do Joël - disse Damien, sombriamente. - O Ruivo tentou avisar-me. Devia ter-lhe dado ouvidos, hem? - Pegou noutra pedra e atirou-a para a rebentação. - Tentei con vencer-me que a culpa era do meu pai. Refiro-me ao negócio das lagostas e tudo o resto. Ter-se associado aos Bastonnets. Depois de tudo o que eles fizeram à nossa família. Fingir que estava tudo bem outra vez, só por causa de uma ou duas boas pescarias.- E depois havia Mercédès - disse eu, delicadamente. Damien fez um gesto de assentimento.- Os Prossages mal lhes cheirou o dinheiro do velho Bastonnet... eles estão enterrados em dívidas até aos olhos... pensaram logo em casá-los. Antes disso, ele nem sequer pusera os olhos em Xavier. Por amor de Deus, eles cresceram juntos.- O gang das motos - disse eu. - Foste tu? Foste tu que lhes falaste no dinheiro? Para te vingares dos Bastonnets?

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Damien assentiu, desolado.- Mas não estava previsto que Xavier ficasse ferido. Eu pensei que ele entregaria logo o dinheiro. Mas depois do que aconteceu, Joël disse que eu podia juntar-me ao grupo, não tinha nada a perder.Não espantava que ele se mostrasse tão infeliz.- E tu guardaste isso só para ti durante todo este tempo? Não contaste a ninguém?- Ao Ruivo. Às vezes, pode-se desabafar com ele. - O que foi que ele te disse?- Disse-me para pôr tudo em pratos limpos com o meu pai e com os Bastonnets. Disse que se não o fizesse, as coisas só iam291agravar-se. Eu disse-lhe que ele estava louco. O meu pai dava cabo de mim se eu lhe contasse metade das coisas que fiz.Sorri.- Acho que ele teria razão, sabes.Damien encolheu os ombros, com indiferença. - Talvez, mas agora é demasiado tarde.Deixei-o na praia e regressei pelo mesmo caminho. Quando olhei para trás, o vulto solitário dava pontapés na areia com uma energia furiosa, como se ao fazê-lo pudesse fazer voltar a praia inteira para La Jetée, a que pertencia.

Quando cheguei a casa, Adrienne estava lá com Marin e os rapazes a acabarem de almoçar. Levantaram os olhos quando entrei. GrosJean não; manteve a cabeça baixa sobre o prato, acabando a salada com movimentos lentos e metódicos.Fui fazer café, sentindo-me uma intrusa. Fez-se silêncio enquanto eu o bebia, como se a minha presença tivesse suspendido a conversa. Iria passar a ser assim a partir de agora? A minha irmã e a família dela, GrosJean e os seus rapazes, e eu, a intrusa, a hóspede indesejada que ninguém ousava expulsar? Sentia que a minha irmã me observava, com os seus olhos do azul da ilha semicerrados. De quando em quando, um dos rapazes sussurrava qualquer coisa demasiado baixo para eu poder ouvir.- O tio Claude disse que tinha falado contigo - disse Marin por fim.- Ainda bem que falou - disse eu. - Ou estavam a planear contar-me só quando lhes conviesse?Adrienne olhou para GrosJean.- É o Papá que tem de decidir o que faz com os terrenos dele. - Já tínhamos discutido isso antes - disse Marin. - GrosJean sabia que não tinha meios para desenvolver a propriedade. Achou mais sensato deixar que fôssemos nós a tratar disso.- Nós?- Claude e eu. Estamos a pensar fazermos sociedade.292293Olhei para o meu pai, aparentemente absorvido a molhar pão no azeite no fundo da saladeira. - Sabias disto, Pai?Silêncio. GrosJean nem sequer deu sinal de me ter ouvido. - Só estás a perturbá-lo, Mado - murmurou Adrienne.- E eu? - Começava a elevar a voz. - Alguém pensou em consultar-me? Ou era isso o que Brismand queria dizer quando disse que me queria do lado dele? Era isso que ele queria? Ter a certeza de que eu fechava os olhos quando vocês lhe entregassem a terra em troca de nada?Marin lançou-me um olhar eloquente. - Talvez possamos discutir isto outro...- Foi por causa dos rapazes, não foi? - A raiva agitava-se dentro de mim como um pássaro numa gaiola. - Foi com eles que vocês o subornaram? GrosJean e P'titJean, ressuscitados dos mor tos? - Olhei para o meu pai, mas ele tinha-se fechado dentro de si, fixando placidamente o espaço, como se nenhum de nós estivesse ali.Adrienne olhava-me reprovadora.- Oh, Mado. Tu viste-o com os rapazes. Eles são uma terapia para ele. Já lhe fizeram tanto bem.- E o terreno não servia para nada - disse Marin. - Todos nós achámos que tinha mais sentido

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concentrar-se na casa, fazer disto uma casa para a família, que todos nós pudéssemos usufruir no Verão.- Pensa no que significaria para o Franck e para o Loïc - disse Adrienne. - Uma maravilhosa casa de férias junto ao mar.- E um investimento seguro - acrescentou Marin - para quando... compreendes.- Uma herança - explicou Adrienne. - Para as crianças.- Mas não é uma casa de férias - protestei, sentindo-me levemente nauseada.A minha irmã inclinou-se para mim, de rosto resplandecente. - Esperamos que venha a ser, Mado - disse. - O facto é que pedimos ao Papá para ir connosco para nossa casa em Setembro. Queremos que viva connosco durante todo o ano.294Parti como chegara, com a minha mala e a pasta com os meus desenhos, mas desta vez não me dirigi para a aldeia. Meti pelo outro caminho, o que levava ao bunker por cima de La Goulue. Flynn continuava ausente. Instalei-me e estendi-me na velha cama de campanha, sentindo-me de súbito muito só, muito longe de casa. Naquele momento era capaz de dar quase tudo para estar no apartamento de Paris com a cervejaria lá fora e o ruído do Boulevard Saint-Michel flutuando na atmosfera quente e pardacenta. Pensei que talvez Flynn tivesse razão. Talvez fosse altura de pensar em ir-me embora.Podia ver agora claramente como o meu pai tinha sido manipulado. Mas fizera uma opção e eu não ia detê-lo. Se queria viver com Adrienne, podia ir. A casa de Les Salants passaria a ser uma casa de férias. Eu seria sempre bem-vinda quando quisesse vir e Adrienne simularia surpresa se me mantivesse afastada. Ela e Marin passariam ali todos os Verões. Talvez alugassem a casa fora de época. Veio-me ao espírito uma súbita imagem de mim e de Adrienne em crianças, brigando por causa de um boneco qualquer, despedaçando-lhe os membros e pondo-lhe o recheio a descoberto, despreocupadamente, enquanto lutávamos ambos pela sua posse. Disse para mim mesma que não precisava da casa.Encostei o meu porte 'o contra a parede e enfiei a mala debaixo da cama articulada e voltei a sair em direcção à duna. Agora eram perto das três da tarde, o sol abrandara um pouco e a maré295começava a baixar. Ao fundo da baía, apenas se avistava uma vela contra o reflexo do sol, muito para lá do anel protector de La Jetée. Não conseguia distinguir com clareza a sua forma nem imaginava quem podia andar a velejar àquela distância àquela hora. Comecei a descer para La Goulue, deitando ocasionalmente uma olhadela à baía. As aves gritavam e voavam em círculos. Era difícil sob aquela luz turva identificar a vela distante; de qualquer modo, não era ninguém da aldeia. Nenhum salannais era tão desajeitado ao leme, bordejando, desperdiçando o vento, para acabar à deriva, com a vela solta, frouxa e pendente, enquanto a corrente afastava a embarcação.Ao aproximar-me da parede da falésia, avistei Aristide observando do seu posto habitual. Lolo estava sentado ao lado dele com uma geladeira com fruta para venda e um binóculo à volta do pescoço.- Mas quem é que anda ali? Por este andar vai acabar em La Jetée.O velho assentiu. O seu rosto denotava desaprovação. Não em relação ao marinheiro descuidado - nas ilhas cada um aprende a tomar conta de si e pedir ajuda é algo de vergonhoso - mas pelo belo barco à deriva. As pessoas vêm e vão. Os bens perduram.- Acha que é alguém de La Houssinière?- Não. Mesmo um houssin sabe que não se pode afastar tanto. Talvez algum turista com mais dinheiro do que miolos. Ou qualquer coisa à deriva. Não se pode ter a certeza a esta distância.Olhei para baixo para a praia cheia de gente. Lá estavam Gabi e Laetitia. Laetitia estava sentada em cima de uma das velhas estacas ao lado do rochedo.- Queres uma fatia de melão? - sugeriu Lolo, olhando invejoso lá para baixo para Laetitia. - Já só me restam duas.- OK. - Sorri-lhe. - Fico com as duas. - Zen!O melão era doce e soube-me bem ao contacto com a garganta seca. Longe de Adrienne, descobri

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que recuperara o apetite e comi lentamente, sentada na sombra do carreiro sinuoso da falésia. Pareceu-me que a vela não identificada estava agora um pouco mais perto, embora talvez fosse um efeito da luz.

` - Tenho a certeza de que conheço aquele barco - disse Lolo, espreitando pelo binóculo. - Há horas que estou de olho nele.- Deixa-me ver - disse eu, dando alguns passos na sua direcção. Lolo estendeu-me o binóculo e assestei-o sobre a vela distante. Era uma típica vela vermelha, quadrangular, mas não ostentava quaisquer marcas visíveis. O próprio barco, comprido e estreito, na verdade pouco maior do que um esquife, estava meio submerso, como se estivesse cheio de água. Senti um baque súbito no coração. - Estás a reconhecê-lo? - pressionou Lolo.Fiz que sim com a cabeça.- Penso que sim. Parece o barco de Flynn.- Tens a certeza? Podíamos perguntar a Aristide. Ele conhece todos os barcos. Ele é capaz de o reconhecer.O velho olhou pelo binóculo em silêncio, durante alguns momentos.- É ele, hem - declarou por fim. - Ao largo e à deriva, mas aposto que é ele.- O que anda ele a fazer ali? - perguntou Lolo. - Saiu de La Jetée. Acha que está encalhado?- Não - rosnou Aristide. - Como é que podia encalhar? De qualquer modo - o velho levantou-se - parece estar metido em sarilhos.A identificação da embarcação alterara as coisas. O Ruivo não era um turista desconhecido, embriagado ao leme de um barco alugado, mas um de nós, quase um salannais. No espaço de poucos minutos, reunira-se um pequeno grupo no cimo da falésia, observando o barco à distância, com uma ansiedade curiosa. Um salannais em apuros? Tinha que se fazer qualquer coisa.Aristide quis levar imediatamente o Cécilia, mas Alain levou a melhor com o Eleanore 2. Não foi o único. Ao Angélo chegara a notícia de que havia um problema em La Goulue e dez minutos mais tarde já havia meia dúzia de voluntários na praia, armados com ganchos, varas e braçadas de corda. Lá estava também o próprio Angélo, a vender doses de devinnoise a quinze francos cada, e Omer, Toinette, Capucine e os Guénolés. Mais ao fundo, na praia, alguns turistas observavam e especulavam. Visto da falésia, o mar era verde-prateado e sedoso, praticamente imóvel.296297A operação de salvamento demorou quase duas horas no total. Pareceu-me muito mais. Demora algum tempo a alcançar La Jetée, mesmo de barco a motor, e o pequeno esquife do Ruivo estavaainda mais para lá, demasiado próximo dos baixios que rodeiam os bancos de areia para que os barcos maiores pudessem chegar até ele com facilidade. Alain teve de manobrar o Eleanore 2 à volta dos bancos de areia salientes, enquanto Ghislain puxava o barco de Flynn, servindo-se de ganchos e de varas para o manter a uma distância segura do casco do Eleanore, e depois em conjunto, rebocaram a embarcação resgatada para o mar aberto. Aristide, que insistira em ir também, mantinha-se no seu posto, ao leme, dando voz ao seu pessimismo a intervalos regulares.Fora da baía o vento soprava forte, o mar estava cavado e eu tive de ficar ao lado de Alain na popa do Eleanore 2 para controlar o aumento do balanço sempre que o pequeno barco descaía e balançava. Até àquele momento não havia sinais de Flynn, quer no barco quer na água.Estava satisfeita por ninguém ter comentado a minha presença. Além disso, eu fora a primeira pessoa a reconhecer a vela. Isso, aos olhos deles, dava-me um certo direito a estar ali. Alain, sentado na proa do Eleanore 2, tinha a melhor perspectiva das operações e ia tecendo comentários enquanto Ghislain manobrava o barco de Flynn de modo a manter uma certa distância. Tinha prendido dois pneus velhos na ilharga do Eleanore 2 para proteger o casco contra uma eventual colisão.Aristide mostrava-se taciturno, como era tradicional nele.- Eu sabia que havia problema - declarou pela quinta vez. - Tinha tido essa intuição como na noite em que a tempestade levou o meu Péoch ha Labour. Uma espécie de pressentimento.- Parece mais uma indigestão - murmurou Alain. Aristide ignorou-o.

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- Temos tido sorte demais, é o que é - disse ele. - Estava condenada a mudar, mais tarde ou mais cedo. Por que outra razão havia isto de acontecer e, ainda por cima, logo ao Ruivo, aquele sortudo?- Pode ser que não seja nada - disse Alain. Aristide levou as mãos ao ar.

- Há sessenta anos que eu ando no mar e já vi acontecer vinte vezes ou mais. Um tipo sai sozinho, descuida-se, vira as costas à barra... o vento vira... e boa noite! - Levou o dedo à garganta num gesto expressivo.- Você não sabe se foi isso que aconteceu - disse Alain obstinado.- Eu sei o que sei - replicou Aristide. - Aconteceu a Ernest Pinoz em 1949. Atingiu-o em cheio de lado. Morreu antes de cair à água.Finalmente, conseguimos pôr o pequeno barco ao alcance do Eleanore e Xavier saltou para bordo. Flynn jazia inerte no fundo da embarcação. Já devia estar assim há horas, calculava Xavier, por que tinha um vergão provocado por uma queimadura solar de um dos lados da cara. Com alguma dificuldade, Xavier ergueu Flynn segurando-o por debaixo dos braços, debatendo-se para o arrastar de modo a ficar ao alcance do Eleanore, que não parava de balançar, enquanto Alain tentava segurar o barco. À volta deles, a vela inutilizada do pequeno esquife oscilava e batia, com as cordas soltas esvoaçando perigosamente em todas as direcções. Embora não soubesse o que era, Xavier achou melhor não tocar na coisa enrolada à volta do braço de Flynn, que em parte arrastava filamentos pela água e pareciam os restos encharcados de um saco de plástico.Finalmente, depois de várias tentativas, conseguiram prender o barco.- Eu tinha-vos dito, hem? - anunciou Aristide com uma satisfação sombria. - Quando chega a nossa hora, não basta um talismã de coral para nos salvar.- Ele não está morto - disse eu numa voz que não reconheci. - Não está. - Alain arfava, içando o corpo inconsciente de Flynn do esquife inundado para o Eleanore 2. - Pelo menos, por enquanto.Estendêmo-lo na popa do barco e Xavier içou a bandeira de perigo. Com as mãos trémulas, mantive-me ocupada com as velas do Eleanore até readquirir confiança em mim e ser capaz de olhar para Flynn sem tremer. Ele ardia em febre. Abria os olhos de quando em quando, mas não respondia quando falavam com ele. Através daquela coisa semitransparente que se lhe colava à pele, distinguia linhas vermelhas de uma infecção que lhe alastrava pelo298299

braço. Tentei controlar a tremura da minha voz, mas apesar disso sentia--me gritar, perigosamente à beira do histerismo.- Alain, temos de lhe arrancar aquela coisa!- Isso é tarefa para o Hilaire - disse Alain, conciso. - Temos de levar o barco para a costa o mais depressa possível. Protege-o do sol. Confia em mim; aqui não podemos fazer mais nada.Era um conselho avisado e nós obedecemos. Aristide segurava um pedaço de lona por cima do rosto do homem inconsciente, enquanto Alain e eu manobrávamos o Eleanore tão velozmente quanto possível rumo a La Goulue. Mesmo assim, e com vento favorável de oeste a soprar de trás, levámos quase uma hora. Nessa altura, havia mais voluntários à espera na praia, pessoas com cantis, cordas, cobertores. A notícia já tinha começado a circular. Alguém fora a correr chamar Hilaire.Ninguém tinha a certeza do que fosse exactamente aquela coisa que continuava enrolada à volta do braço de Flynn. Aristide pensava que era uma medusa água-viva, arrastada de águas mais quentespela rota caprichosa da Corrente do Golfo. Matthias, que viera com Angélo, rejeitou essa hipótese com desdém.- Não é nada - rosnou ele. - Estás cego? É uma caravela portuguesa. Lembras-te de as termos visto ao largo de La Jetée? Em 1951, hem, deviam ser centenas delas junto a Nid'Poule. Algumas fizeram o percurso todo até La Goulue e tivemos de as arrastar para longe da linha de costa com ancinhos e rodos.- É uma água-viva - disse Aristide com firmeza, abanando a cabeça. - Aposto.Matthias pegou-lhe na palavra e apostaram cem francos. Outros imitaram-nos.

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O que quer que aquilo fosse, não era tarefa fácil a sua remoção. Os tentáculos, se é que aquelas fitas plumosas, semelhantes a folhas de fetos, eram tentáculos, aderiram à pele nua em todos os pontosde contacto. Grudavam-se à pele, desafiando todas as tentativas para os remover por completo.- Devia parecer um bocado de plástico, hem, a flutuar na água - especulava Toinette. - E ele inclinou-se para o apanhar...- Foi uma sorte não estar a nadar, hem. Senão cobria-o todo. Aqueles tentáculos devem ter uns dois metros de comprimento, pelo menos.300- É uma medusa água-viva - repetiu Aristide com uma satisfação sombria. - Aquelas marcas são do sangue envenenado. já vi antes.- Uma caravela portuguesa - protestou Matthias. - Quando é que já se viu uma água-viva tão a norte, hem?- Cigarros. É o que nós usamos para as sanguessugas - disse Omer La Patàte.- Talvez uma dose de devinnoise - sugeriu Angélo. Capucine aconselhou vinagre.Aristide mostrava-se fatalista, dizendo que se aquilo era de facto uma água-viva, então o Russo estava arrumado. Não havia nenhum antídoto para aquele veneno. Dava-lhe doze horas no máximo. Foi então que chegou Hilaire com Charlotte, que trazia uma garrafa de vinagre.- Vinagre - disse Capucine. - Eu bem disse que isso resultava.- Deixem-me passar - resmungou Hilaire. Estava mais aspero do que o habitual, escondendo a sua ansiedade por detrás de uma máscara de irritação. - As pessoas pensam que eu não tenho mais nada que fazer, hem. Tenho de ir ver a cabra da Toinette e os cavalos de La Houssinière. Porque é que as pessoas não são capazes de prestar atenção? Pensam que eu me divirto com este género de coisas? - O pequeno grupo observava apreensivo, enquanto Hilaire removia os tentáculos urticantes com o auxílio de pinças e vinagre.- Uma água-viva - disse Aristide, contendo a respiração. - Cabeça dura - replicou Matthias.Levaram Flynn para Les Immortelles. Era o local mais indicado, insistia Hilaire, com camas e recursos médicos. Uma injecção de adrenalina, administrada ali mesmo, era tudo o que Hilaire podia fazer, mostrando-se relutante, naquela fase, em adiantar um prognóstico. Do consultório, telefonou para a costa, primeiro à procura de um médico - havia um barco a motor rápido em Fromentine em caso de emergência - e depois para a guarda costeira a alertar para a presença de medusas. Até àquele momento, não tinham sido detectadas mais daquelas criaturas em La Goulue,301mas já estavam a ser tomadas medidas de segurança na nova praia; com um cordão e flutuadores estendidos ao longo da área onde era permitido nadar, e uma rede para afastar eventuais visitantes indesejados. Mais tarde, Alain e Ghislain iriam de barco até La Jetée para verem como corriam as coisas por lá. É uma operação que costumamos fazer às vezes depois das tempestades de Outono.Eu hesitava, afastada do pequeno grupo, sentindo-me a mais agora que não havia nada de útil que pudesse fazer. Toinette prontificou-se para acompanhar o Ruivo até Les Immortellés. Houve quem falasse em chamar o padre Alban.- É assim tão grave?Hilaire, que não estava familiarizado com nenhum dos dois controversos tipos de medusa, não podia afirmá-lo com certeza. Lolo encolheu os ombros.- Aristide diz que amanhã saberemos de uma maneira ou de outra.Não acredito em presságios. Nesse aspecto, não sou uma insulana típica. No entanto, a atmosfera estava cheia de presságios nessa noite; cavalgavam as ondas como gaivotas. A maré estava a virar algures, uma maré negra. Senti-a a virar. Tentei imaginar Flynn moribundo; Flynn morto. Era inimaginável. Ele era nosso, da ilha, era um bocado de Les Salants. Nós tínhamo-lo moldado e ele a nós.Ao cair da noite, dirigi-me ao santuário de Sainte-Marine na Pointe, salpicado agora de cera de velas e de guano. Alguém deixara a cabeça de uma boneca de plástico em cima do altar, junto das oferendas. A cabeça era de um cor-de-rosa forte e o cabelo louro. Já havia velas acesas. Meti a mão no bolso e retirei o pendente de coral vermelho. Virei-o na palma da mão por momentos e depois

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coloquei-o em cima do altar. Sainte-Marine olhava para baixo, e o seu rosto de pedra era mais ambíguo do que nunca. Era um sorriso que lhe aflorava as feições toscas? Erguia o braço numa bênção?santa Marina. Leva outra vez a praia, se e isso que queres. Leva tudo o que quiseres. Mas isto não. Por favor. Isto não.Qualquer coisa, talvez um pássaro, soltou um grito nas dunas. Soava como uma gargalhada.Toinette Prossage foi dar comigo ainda ali sentada. Tocou-me no braço e eu levantei os olhos; atrás dela, dirigindo-se para a302303Pointe na minha direcção, distinguia mais pessoas. Algumas traziam lanternas. Reconheci os Bastonnets, os Guénolés, Omer, Angélo, Capucine. Atrás deles, avistei o padre Alban como bastão feito de lenho trazido pela corrente e Soeur Thérèse e Soeur Extase, com as coifas bamboleando-se como pássaros, em contra-luz.- Não me interessa o que diz Aristide - disse-me Toinette. - Sainte-Marine está aqui há mais tempo do que qualquer de nós e não sabemos que outros milagres ela pode fazer. Ela trouxe-nos a praia, não trouxe?Assenti, incapaz de falar. Atrás de Toinette, os aldeões iam chegando em fila, alguns deles trazendo flores. Avistei Lolo um pouco distanciado e, na aldeia, alguns turistas a olhar curiosos.- Eu nunca disse que queria que ele morresse - protestava Aristide. - Mas se morrer, terá merecido o seu lugar em La Bouche. Arranjo-lhe uma sepultura ao lado da do meu filho.- Vamos acabar com essa conversa de mortes e enterros =disse Toinette. - A santa não vai permitir. Ela é Marine-de-la-Mer e a santa protectora dos salannais. Não nos vais deixar desprotegidos.- Hem, mas o Ruivo não é um salannais - observou Mathias. - Sainte-Marine é uma santa da ilha. Talvez não se interesse pelos forasteiros.Omer abanou a cabeça.- Talvez tenha sido a santa que nos devolveu a praia, mas foi o Ruivo que construiu o Bouch'ou.Aristide soltou um rosnido.- Vocês vão ver - disse ele. - A má sorte nunca se afasta muito de Les Salants. Os acontecimentos de hoje só vêm prová-lo. Medusas na baía, depois destes anos todos. Não me venham dizer que assim os negócios vão melhorar, hem?- Os negócios? - Toinette estava indignada.- É a únicacoisa que te interessa? Pensas que a santa se preocupa com isso?- Talvez não - disse Matthias -, mas de qualquer modo é um mau sinal. A última vez que isso aconteceu foi no Ano Negro. - O Ano Negro - repetiu Aristide, sombrio. - E a sorte muda como a maré.- A nossa sorte não mudou! - protestou Toinette. - Em Les Salants, somos nós que fazemos a nossa sorte. Isto não prova coisa nenhuma.O padre Alban abanava a cabeça em desaprovação.- Não percebo porque é que vocês todos queriam que eu viesse até aqui - disse ele. - Se querem rezar, vão a uma igreja que ainda esteja de pé. Se não... hem! Mas este comportamento supersticioso! Eu nunca o devia ter incentivado.- Só uma oração - pediu Toinette. - Só a Santa Marina.- Está bem, está bem. Depois volto para casa e deixo-vos aqui a augurar um mau ano. O tempo ameaça chuva.- Não me interessa o que dizem - murmurou Aristide. - Os negócios são importantes. E se ela é a nossa santa, então tem que perceber isso. É a sorte para Les Salants.- Senhor Bastonnet!- Pronto, hem, pronto.Baixámos as cabeças como crianças. O latim da ilha é um latim macarrónico, mesmo segundo os padrões da igreja, mas todas as tentativas para actualizar o serviço litúrgico tinham sido rejeitadas.

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Há algo de mágico nas antigas palavras, algo que se perderia numa tradução. Há muito tempo que o padre Alban desistiu de tentar explicar que não são as palavras em si mesmas que possuem poder, mas o sentimento que lhes subjaz. A ideia é incompreensível para a maior parte dos salannais, senão mesmo algo blasfema. O catolicismo deitara raízes aqui nestas ilhas, regressando às suas origens pré-cristãs. Os fetiches, os símbolos, a magia, os rituais é o que permanece mais fortemente enraizado aqui nestas comunidades onde tão poucos livros, incluindo a Bíblia, são lidos. A tradição oral é forte, com pormenores acrescentados a cada nova narrativa, mas gostamos mais de milagres do que de números e de regras. O padre Alban sabe isso e faz o jogo, sabendo que sem ele a igreja se tornaria completamente redundante.Foi-se embora mal concluiu a oração. Ouvi o rangido das suas botas de pesca sobre a areia enquanto se afastava do pequeno círculo de lanternas. Toinette cantava numa voz aguda de mulher idosa; percebia algumas palavras, mas era num dialecto antigo da ilha que, tal como o latim, eu não compreendia.304305As duas velhas freiras tinham ficado e, uma de cada lado do altar de madeira, dirigiam as preces. Silenciosamente, os aldeões esperavam em fila. Várias pessoas, entre elas Aristide, retiraram ostalismãs do pescoço e colocaram-nos no altar sob o olhar fixo e ambíguo de Sainte-Marine.Deixando-os entregues às suas orações, desci para La Goulue, que se estendia vasta e rubra sob os últimos raios de sol. Ao longe, muito ao longe junto à linha de água, quase oculto pelo brilho dosbaixios, destacava-se um vulto. Caminhei na sua direcção, gozando a frescura da areia molhada debaixo dos pés e a carícia suave da maré vazante. Era Damien.Olhou para mim, e os seus olhos reflectiam o pandemónio rubro do sol. Ao fundo, uma linha negra que atravessava o céu de uma ponta à outra prometia chuva.- Estás a ver? - disse ele. - Está tudo a desmoronar-se. Acabou-se tudo.Eu estremeci. Ao longe, atrás de nós, ouvia-se o gorjeio lúgubre do canto de Toinette.- Não acredito que vá ser assim tão mau - disse eu.- Não acreditas? - Encolheu os ombros. - O meu pai saiu para La Jetée na platt. Diz que viu mais coisas daquelas. As tempestades devem tê-las trazido do Golfo. O meu avô diz que é um mau agouro. Que se aproximam tempos difíceis.- Nunca pensei que fosses supersticioso.- Não sou. Mas é a isso que eles se agarram quando não resta mais nada. É o que eles fazem para fingir que não têm medo. Cânticos, orações e grinaldas à santa. Como se alguma coisa dessas pudesse ajudar o Ru... Ru... - A voz dele entrecortou-se e fixou o mar com renovada fúria.- Ele vai safar-se - disse eu. - Sempre se safou.- Não me interessa - volveu Damien, inesperadamente, sem levantar a voz. - Foi ele quem começou isto tudo. Não me importo que morra.- Não estás a falar a sério!Damien parecia estar a falar com alguém no horizonte.- Eu pensava que ele era meu amigo. Pensava que era diferente de Joël e de Brismand e dos outros. Mas afinal só sabe mentir melhor do que eles.

- Que queres dizer com isso? - perguntei. - O que é que elefez?- Eu pensava que ele e Brismand se odiavam - disse Damien. - Foi o que ele sempre disse. Mas são amigos, Mado. Ele e os Brisrnands. Estão todos a trabalhar juntos. Ontem ele estava a trabalhar para eles quando teve o acidente. Foi por isso que se afastou tanto. Ouvi o Brismand dizer isso!- A trabalhar para o Brismand? A fazer o quê?- Uns cálculos quaisquer perto de Le Bouch'ou - disse Damien. - Tem andado o tempo todo a trabalhar nisso. O Brismand tem-lhe andado a pagar para ele nos enganar. Ouviu-o falar sobre isso com Marin ao pé do Chat Noir.- Mas Damien - protestei eu. - Tudo o que ele tem feito por Les Salants...

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- O que é que ele tem feito, hem? - a voz de Damien era áspera; de repente parecia muito novo. - Construiu aquela coisa na baía? - Apontou para a distante Bouch'ou, onde apenas conse gui avistar os dois sinais luminosos que piscavam como decorações de Natal. - E para quê? Para quem? Não foi para mim, de certeza. Nem para o meu pai, endividado até aos olhos e ainda à espera da sorte grande. Pensa que vai fazer fortuna com uns poucos peixes... como é que se pode ser tão estúpido? Nem para os Grossels, ou os Bastonnets, ou os Prossages. Nem para a Mercédès!- Isso não é justo. A praia não é responsável por isso. E Flynn também não.O sol já se pusera. O céu estava lívido, de contornos pálidos.- E há outra coisa - disse Damien, olhando para mim. - O nome dele não é Flynn. E também não é Ruivo. É Jean-Claude. Como o pai.306307QUARTA PARTE O Homem de Areia

52Subi a correr o trilho da falésia, com as ideias entrechocando-se dentro do cérebro como sementes numa cabaça. Não fazia sentido. Flynn, filho de Brismand? Era impossível. Damien devia ter ouvido mal. E, no entanto, algo dentro de mim impelia-me a acreditar: o meu sentido do perigo, finalmente alertado, tocava o seu alerta muito mais alto do que La Marinette.Reflectia que tinha havido algumas pistas, se eu as tivesse querido ver: os encontros clandestinos; o abraço; a hostilidade de Marin; a lealdade dividida de Flynn. Até a sua alcunha, o Ruivo, como que um eco da de Brismand, a Raposa. À maneira da ilha, partilham o mesmo nome.Mas, ao fim e ao cabo, Damien não passava de um rapazinho; um rapazinho a viver as dores de uma paixão adolescente. Não era seguramente o informador mais fiável. Não, eu precisava de saber mais antes de condenar Flynn no meu coração. E sabia aonde ir.O átrio de Les Immortelles estava deserto com excepção de Joël Lacroix, sentado com as botas de vaqueiro pousadas em cima do balcão de recepção, a fumar um Gitane. Pareceu desconcertado ao ver-me.- Hem, Mado. - Sorriu pouco à vontade e esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro. - Vens à procura de quarto?- Ouvi dizer que o meu amigo está cá - disse eu.- O Inglis? Sim, está cá. - Acendeu outro cigarro com um gesto pomposo, exalando o fumo numa espiral lenta, como nosfilmes. - O médico disse que não era aconselhável mudá-lo. Querias vê-lo, hem?Assenti.- Mas não podes. O Senhor Brismand disse ninguém e esse, minha linda, também te inclui a ti. - Piscou-me o olho e aproximou-se mais um bocadinho. - O médico chegou num barco espe cial, talvez há uma hora. Disse que tinha sido uma picada de uma espécie de alforreca portuguesa. Uma coisa grave.Portanto, o tétrico prognóstico de Aristide estava errado. Foi com relutância que uma sensação de alivio me invadiu.- Então, não era uma água-viva?Joël abanou a cabeça, pareceu-me que com pena. - Ná. Mas grave, de qualquer maneira.- Grave como?- Bof. Estes médicos não sabem nada de nada, hem? - Inalou o fumo do Gitane. - E também não ajudou ele ter estado inconsciente debaixo de sol durante horas. Uma insolação pode ser um sarilho se não se tiver cuidado. E a gente do continente não sabe isso. - O tom de Joël implicava que ele, Joël, era demasiado duro para que lhe acontecesse esse tipo de coisa.- E a medusa?- Aquele estúpido puxou-a para fora de água, não foi, hem? - Joël abanou a cabeça como se lhe custasse a acreditar. - Tu acreditas numa coisa destas? O médico diz que o efeito do veneno dura vinte e quatro horas. - Sorriu. - Portanto, se o teu amigo ainda aqui estiver amanhã de manhã, hem...

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- Voltou a piscar o olho e a aproximar-se mais.Afastei-me para o lado.- Nesse caso, preciso de falar com Marin Brismand. Está cá? - Hem, o que é que se passa contigo? - Joël parecia ofendido. - Não gostas de mim?- Gosto de ti à distância, Joël. Considera isto como se fosse direitos de pesca. Águas territoriais. Mantém-te afastado das minhas.Joël rosnou.- Julga que é a Santa Marina - murmurou entre dentes. - O Marin saiu há uma hora. Com a tua irmã.- Para onde?- Vá-se lá saber.Acabei por encontrar Marin e Adrienne no Chat Noir. Começava a ficar tarde e o café estava cheio de fumo e de barulho. A minha irmã estava sentada no bar e Marin jogava às cartas numa mesa pejada de houssins. Mostrou-se surpreendido ao ver-me.- Mado! Não costumamos ver-te muito por estas bandas. Aconteceu alguma coisa? - Semicerrou os olhos. - Não é o GrosJean, pois não?- Não, é o Flynn.- Sim? - Pareceu assustado. - Não morreu, pois não? - Claro que não.Marin encolheu os ombros. - Seria bom demais.- Acaba com os teus jogos, Marin - disse-lhe, com brusquidão. - Estou ao corrente sobre ele e o teu tio. E sobre as vossas negociatas.- Oh. - Esboçou um sorriso e eu era capaz de garantir que não lhe desagradava totalmente. - Está bem. Vamos para um sítio mais recatado. Convém que isto fique em família, hem? - Pousou as cartas e levantou-se. - De qualquer modo, estava a perder. Não tenho a sorte do teu amigo às cartas.Saímos para a esplanada onde estava mais fresco e menos gente. Adrienne veio atrás de nós. Sentei-me no paredão e virei-me para os dois, com o coração a bater descompassado mas com a voz calma.- Contem-me o que sabem do Flynn - disse eu. - Ou melhor, falem-me do Jean-Claude.31231353- Como sabes, devia ficar tudo para mim. - A expressão de Marin, por detrás do sorriso, era azeda. - Eu era o único parente que restava ao velho. Tenho sido mais do que um filho para ele. Pelo menos, mais do que o filho dele alguma vez foi. Devia ser para mim. Les Immortelles. Os negócios. Tudo.Durante anos Brismand deixara que ele contasse com tudo isso. Um empréstimo aqui, uma pequena oferta ali. Mantivera Marin debaixo de olho, tal como fizera comigo, fazendo projectos para o futuro, sem contudo se comprometer. Nunca mencionara a mulher que se fora embora, nem o filho desaparecido. Levara Marin a subentender que lavara as mãos em relação aos dois, que eles tinham ido para Inglaterra, que o rapaz não sabia uma palavra de francês, e era tão Brismand como qualquer outro inglês daquela grande ilha de rosbife e de chapéus de coco.Mas claro que tinha mentido. Brismand a Raposa jamais perdera a esperança. Mantivera-se em contacto com a mãe de Jean-Claude; mandara dinheiro para os estudos; jogara um jogo duplo anos a fio, à espera do momento oportuno. Sempre fora sua intenção, quando chegasse a altura, de passar os negócios para Jean-Claude. Mas o filho revelara-se pouco colaborante; sempre pronto a aceitar o dinheiro que Brismand mandava mas menos entusiasta quando este propunha envolvê-lo nos negócios. Brismand fora paciente, deixando que o rapaz cometesse os seus disparates de juventude, tentando não pensar no tempo que se ia escoando. Mas314agora Jean-Claude já tinha mais de trinta anos e os seus planos, se é que tinha alguns, continuavam vagos. Brismand começava a pensar que o filho nunca mais voltaria..- E tudo teria acabado assim - disse Marin, de modo conclusivo. - O Claude pode ser um obcecado com a família, mas nunca deixaria o seu dinheiro a alguém que não o merecesse. Deixou muito claro que se Jean-Claude quisesse ver um chavo da sua herança, teria de vir antes para cá.Como é evidente, Brismand não manifestara nenhuma das suas preocupações a Marin nem a

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Adrienne. Durante esse período de incertezas, precisava mais do que nunca de manter Marin tranquilo. Marin era o seu seguro; a sua segunda amarra para o caso de Jean-Claude não voltara aparecer. E, ao fim e ao cabo, Marin era um contacto valioso, uma vez que estava casado com a filha de GrosJean.- Ele queria laços mais estreitos entre ele e Les Salants. Queria sobretudo comprar a casa de GrosJean, juntamente com os terrenos. Mas GrosJean recusava-se a vender. Havia qualquer querela entre eles... nunca soube o motivo. Ou talvez fosse apenas a teimosia dele.De qualquer modo, com Adrienne e Marin em posição de herdarem quando chegasse o momento, Brismand só precisava de esperar por uma oportunidade. Tinha sido mais do que generoso com o jovem casal, ajudando-os a montar um negócio com uma quantia considerável.Reparei que Adrienne dava sinais de crescente agitação à medida que Marin falava.- Espera um minuto. Estás a dizer que o teu tio te subornou para casares comigo?- Não sejas absurda. - Marin parecia pouco à vontade. - Ele apenas tirou partido dessa oportunidade, foi tudo. O que eu quero dizer é que teria casado contigo de qualquer maneira. Mesmo se não fosse o dinheiro.O preço dos terrenos na próspera La Houssinière eram proibitivos. Em Les Salants ainda estavam baratos. Possuir ali uma base seria imensamente valioso para Brismand. A casa de GrosJean coma extensão de terreno que se estendia até La Goulue representaria para alguém suficientemente esperto para a explorar um património315considerável. E por isso Brismand se mostrara generoso com Marin e Adrienne. Mandava presentes aos miúdos. E eles reconfortavam-se na expectativa de uma parte da sua fortuna, vivendo durante anos muito além das suas posses.E então, apareceu Flynn.- O filho pródigo - disse Marin com malevolência. - Com trinta anos de atraso, quase um estranho, mas deu a volta à cabeça do velho por completo. Quase que acreditava que era capaz de caminhar sobre a água.E de súbito Marin voltou a ser apenas o sobrinho. Agora que o filho regressara, o negócio em Tânger deixara de interessar a Claude e os empréstimos e os investimentos de que Marin e Adrienne estavam dependentes foram suspensos.- Ele não nos disse logo o motivo. Disse que Les Immortelles precisava de obras de restauro. De novas protecções contra o mar para proteger a praia. De melhoramentos. E, ao fim e ao cabo, eratambém no nosso interesse, uma vez que nós acabaríamos por vir a herdar Les Immortelles.Em público, não fora feita ainda qualquer referência a Jean-Claude. A breve trecho, a prudência natural de Brismand prevaleceu e o velho mostrou-se renitente em abrir mão dos negócios antes de se certificar de que o filho pródigo era na verdade o seu filho. As investigações preliminares pareciam confirmá-lo. A mãe de Jean-Claude regressara para a sua antiga casa na Irlanda quando abandonou Le Devin. Casada de novo, com uma nova família, contara a Brismand que Jean-Claude partira há alguns anos e que tivera poucos contactos com ele desde então, apesar de sempre lhe fazer chegar às mãos os cheques de Brismand, o que confirmava em certa medida a história de Flynn. Mas o mais importante era que havia cartas escritas por Brismand, fotografias da mulher que o abandonara com Jean-Claude, certidões de nascimento. E por último havia episódios que apenas Jean-Claude e a mãe poderiam conhecer. Marin aconselhara um teste ao sangue. Mas Brismand sabia no fundo do coração que não precisava de confirmações. Flynn tinha os olhos da mãe.Contratou Flynn para o ajudar a resolver os problemas causados pela erosão, dando a entender que se ele desse boas provas ernLes Immortelles, o faria seu sócio nos negócios. Era uma forma de o manter debaixo de olho e apalpar o terreno.- O meu tio não tem nada de parvo - disse Marin com um laivo amargo de satisfação. - Mesmo que Jean-Claude fosse quem afirmava ser, era óbvia a razão por que voltara. Queria o dinheiro. por que outra razão esperara todo este tempo para aparecer?Era uma situação que Brismand, tal como todos os habitantes de Le Devin, conhecia bem. Os

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desertores são recebidos de braços abertos mas com as bolsas fechadas, dado que é sabido que aquilo que volta nem sempre fica.- Ele arranjou-lhe trabalho. Disse-lhe que se queria herdar os negócios era melhor começar de baixo. - Marin riu-se. - A única coisa que me dá alguma satisfação em toda esta história e imaginara cara daquele filho da mãe quando o meu tio lhe disse que tinha de merecer o nome que tinha.Houvera uma discussão. O rosto de Marin iluminou-se ao recordá-la.- O velho contou-me tudo. Estava furioso. Jean-Claude percebeu que tinha ido longe demais e tentou acalmá-lo, mas naquela altura já era demasiado tarde. O meu tio disse que ou ele fazia por merecer o seu lugar ou nunca veria um chavo e despachou-o para Les Salants.A explosão de ira fora, porém, controlada de ambos os lados. Jean-Claude dera tempo ao pai para se acalmar, ao mesmo tempo que trabalhava para voltar a ganhar a sua confiança. Pouco a pouco, Brismand começou a compreender algumas das vantagens de ter um espião em Les Salants.- Jean-Claude ouvia tudo. Quem precisava de dinheiro, a quem é que os negócios corriam mal, quem é que andava com a mulher de quem, quem estava endividado. Ele possuía um jeito especial para que as pessoas se abrissem consigo. Confiavam nele.No espaço de poucos meses, Brismand estava a par de todos os segredos da terra. Graças às protecções que mandara instalar em Les Immortelles, os negócios em Les Salants estavam virtualmenteenl ponto morto. A pesca acabara. Várias pessoas já estavam endividadas com ele. Podia pressioná-las quando quisesse.GrosJean era um deles. Flynn tinha-o adoptado desde o princípio e tornara-se seu amigo de várias maneiras subtis, funcionando316317como intermediário para lhe conseguir o empréstimo de que precisava depois de esgotadas as suas economias. Brismand estava entusiasmado com o plano. Se era possível comprar GrosJean, então dentro de um ou dois anos Les Salants, ou o que restasse da terra, poderia ser seu.- Foi então que tu voltaste - disse Adrienne.E isso alterara tudo. GrosJean, antes tão manobrável, deixou de cooperar. A minha interferência fora demasiado evidente. O subtil trabalho de sapa de Flynn ficara comprometido.- Por isso, Jean-Claude mudou de orientação - disse Adrienne, com um sorriso malicioso. - Em vez de ter o Papá como alvo, passou a concentrar a atenção em ti. Para descobrir as tuas fraquezas. Adulou-te Cortejou-te...- Isso não é verdade - cortei rapidamente. - Ele ajudou-me. Ajudou-nos a todos.- Ajudou-se a si próprio - disse Marin. - Mal a areia começou a aparecer em La Goulue, contou tudo a Brismand sobre a barreira. Pensa nisso, Mado - disse, ao ver a minha expressão. - Não pensaste que ele estava a fazer aquilo por ti, pois não?Eu olhava para ele, desolada.- Mas Les Immortelles - protestei. - Desde o princípio que ele sabia o que estava a fazer à praia de Claude.Marin encolheu os ombros.- Isso pode ser reparado. E uma ligeira pressão sobre Les Immortelles era exactamente do que o Ruivo precisava para forçar a mão do meu tio. - Marin olhava para mim, sarcástico. - Para béns, Mado. O teu amigo fez finalmente jus ao seu nome. Agora ele é um Brismand, com um livro de cheques da empresa para o provar e uma quota de cinquenta por cento na sociedade Brismand e Filho. E tudo graças a ti.54Les Immortelles estava mergulhada no escuro. Uma luz fraca iluminava o vestíbulo, mas a porta estava fechada à chave e só depois de tocar à campainha ininterruptamente durante cinco minutos é que obtive resposta. Brismand tinha as mangas da camisa enroladas e um Gitane ao canto dos lábios. Abriu ligeiramente os olhos quando me viu através do vidro, depois tirou um molho de chaves do bolso e abriu a porta.

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- Mado. - Transparecia cansaço na sua voz e fadiga na sua postura, nas papadas macilentas, no bigode descaído, nos olhos semicerrados. Tinha os ombros curvados sob a vareuse amarrotadae parecia mais primitivo e maciço do que nunca, uma estátua de si mesmo esculpida em granito. - Não me parece que esta seja muito boa altura, hem?- Compreendo. - A raiva invadia-me como uma rocha incandescente, mas tentei controlar-me. - Deve estar desolado. Pareceu-me ver um lampejo momentâneo nos seus olhos.- Referes-te às medusas? É mau para os negócios, hem. Como se os negócios pudessem correr pior.- Sim, é natural, as medusas devem ser um problema - disse eu. - Mas referia-me ao acidente do seu filho.Brismand observou-me desoladamente durante breves segundos, e depois soltou um dos seus profundos suspiros. - Ele foi muito imprudente. Cometeu um erro estúpido. Nenhum verdadeiro insulano cometeria tal erro. - Sorriu. - Mas eu disse-te que318319mais cedo ou mais tarde havia de o ter de volta, não disse, hem? Levou tempo, mas acabou por vir. Eu sabia que viria. Na minha idade um homem precisa do filho ao lado. De alguém em quem se apoie. Alguém que tome conta das coisas quando eu desaparecer.Naquele momento, pareceu-me reconhecer uma certa semelhança; algo no sorriso, na postura, nos gestos, nos olhos.- Deve sentir-se muito orgulhoso - observei, sentindo-me nauseada.Brismand arqueou uma sobrancelha.- Agrada-me pensar que ele tem algo de mim, é verdade.- Mas porquê todo este fingimento? Porquê escondê-lo de todos nós? Porque é que ele nos ajudou... porque é que você nos ajudou... se ele esteve sempre do seu lado?- Mado, Mado. - Brismand abanou a cabeça, tristemente. _ Porque havemos de encarar isto como uma questão de partidos? É alguma guerra, hem? Tem de haver sempre uma segunda intenção?- Fazer o bem em segredo? - trocei.- Isso magoa-me, Mado. - A atitude dele reflectia as suas palavras, virando as costas e afastando-se com as mãos enfiadas nos bolsos. - Acredita que só desejo o melhor para Les Salants. Foi sempre o que eu quis. E vê o que os "segredos" conseguiram fazer até agora: desenvolvimento, comércio, negócios, hem! Achas que eles me deixavam dar-lhes tudo isso? Desconfiança, Mado. Desconfiança e orgulho. É o que está a dar cabo de Les Salants. Agarrados às rochas, vão envelhecendo, tão receosos de mudanças que preferem deixar-se arrastar pelo mar do que tomar uma decisão razoável e mostrar uma ponta de iniciativa. - Abriu as mãos num gesto largo. - Que desperdício! Sabiam que era inútil, mas ninguém quis vender. Iam deixar que o mar os submergissem antes de usarem um pouco de bom senso.- Agora até parece ele a falar - disse eu.- Estou cansado, Madeleine. Demasiado cansado para me sujeitar a um interrogatório. - E de súbito voltou a parecer um velho, esgotadas as energias. As mandíbulas descaíram-lhe. - Eu gosto de ti. O meu filho gosta de ti. Nunca deixaríamos que te acontecesse nada de grave. Agora vai para casa e descansa- aconselhou com gentileza. - Vai ser um longo dia.32055Portanto era daquilo que eu andava à procura sem o saber. De Brismand e do filho há muito desaparecido. A trabalharem juntos em segredo, de um lado e outro da ilha, a fazerem planos... a planearem o quê? Recordei o discurso sentimentalista de Brismand sobre o que significava envelhecer. E se Flynn, de algum modo, o tivesse persuadido a arrepiar caminho? Seria possível que os dois estivessem realmente a trabalhar do nosso lado? Não. Eu sabia que não. No mais fundo de mim mesma, onde nada fica oculto, compreendi que sempre o tinha sabido, desde o início.Corri o caminho todo até ao bunker. Havia em mim uma sensação de distanciamento que reconhecia vagamente; sentira-a uma vez antes, no dia em que a minha mãe morreu. Como se um mecanismo subtil, concebido apenas para esses momentos de crise, tivesse começado a funcionar, distanciando-

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me de tudo excepto do que tinha em mãos. Iria pagar por isso mais tarde: com sofrimento, talvez com lágrimas. Mas por enquanto, mantinha o controlo. A traição de Flynn era algo que acontecera em sonhos a outra pessoa; uma calma assustadora varreu-me o coração tal como uma onda varre as palavras escritas na areia.Pensei em GrosJean e no estúdio recentemente construído. Pensei em todos os salannais que tinham contraído empréstimos para custearem os melhoramentos, nos novos negócios, em todos os pequenos investimentos que tínhamos feito no nosso novo futuro. Por detrás das paredes pintadas de fresco, dos jardins renovados,321

dos quiosques, dos reluzentes balcões das lojas, dos barcos de pesca recuperados, das despensas bem aprovisionadas, dos vestidos de Verão novos, das gelosias de cores vivas, dos canteiros floridos, dos copos de cocktail, das barbecues, dos tanques de lagostas, dos baldes e das pás, estava o brilho oculto do dinheiro de Brismand, o poder de Brismand.E o Brismand 2, meio acabado há seis meses atrás? Agora já devia estar acabado, pronto para fazer parte do plano: a quota de Jean-Claude na sociedade de Brismand. Via agora o papel de Flynn,um ponto vital no triunvirato de Brismand. Claude, Mann, o Ruivo. La Houssinière, Les Salants, o continente. Havia uma simetria indesmentível em tudo isto - os empréstimos, a barreira artificial, o interesse de Brismand pelos terrenos alagados. Eu intuíra uma parte dos seus planos numa fase inicial da jogada; a única coisa que ainda me faltava para completar a equação era o conhecimento da traição de Flynn.No meu lugar, a minha mãe, com o seu feitio expansivo, teria espalhado a notícia de imediato; mas eu tinha muito de GrosJean na minha maneira de ser. Somos mais parecidos do que eu imaginara, ele e eu; alimentamos os nossos rancores em segredo. Conservamo-los dentro de nós durante muito tempo. Os nossos corações são espinhosos e compactos como alcachofras. Prometi a mim mesma que não diria nada. Primeiro, tinha de saber a verdade. Tinha de a analisar com calma e escrupulosamente. Fazer um diagnóstico.Mas precisava de falar com alguém. Não com Capucine, a primeira pessoa com quem instintivamënte falaria. Era demasiado confiante, demasiado condescendente. Não estava na sua natureza ser desconfiada. Além disso, adorava o Ruivo, e eu não a queria alarmar desnecessariamente, pelo menos, até apurar a extensão da sua traição. Era certo que ele nos mentira. Mas as suas razões continuavam obscuras. Ainda podia revelar-se miraculosamente inocente. Era evidente que era isso que eu queria. Mas o meu lado sincero e cândido, o lado GrosJean, lutava inexoravelmente contra esse desejo. Mais tarde, dizia para mim própria. Teria tempo para isso mais tarde.ToiAette? A idade tornara-a particularmente desapaixonada observava as rivalidades em Les Salants com uma indiferença ociosa322e há muito que deixara de achar qualquer coisa nova e interessante. De facto, era possível que até tivesse reconhecido o Ruivo, mas tivesse guardado silêncio apenas para seu gozo pessoal e imperscrutável.Aristide? Matthias? Bastava uma palavra a uma das duas famílias de pescadores e na manhã seguinte já toda Les Salants sabia a verdade. Tentei imaginar as reacções. Omer? Angélo? Igualmenteimpossível. Mas eu precisava de confiar em alguém. Quanto mais não fosse para me convencer que não estava a ficar louca.Através da janela aberta chegavam até mim os ruídos nocturnos da duna. Ao largo de La Goulue chegava um cheiro intenso a sal, a terra fria, a.um milhão de pequenas coisas vivas sob as estre las. GrosJean devia estar agora na cozinha, com uma chávena de café à mão, olhando a janela como era seu costume, numa expectativa silenciosa...Era óbvio. Iria contar ao meu pai. Se ele não era capaz de guardar um segredo, quem seria?

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Levantou os olhos quando entrei. Tinha o rosto opado e cansado e recostava-se pesadamente na pequena cadeira da cozinha como um boneco. Senti um impulso súbito de amor e de piedade por ele, pobre GrosJean, com os seus olhos tristes e os seus silêncios. Pensei para comigo que desta vez ia correr bem. Desta vez, só precisava que ele me escutasse.Beijei-o antes de me sentar à mesa à sua frente. Passara muito tempo desde a última vez que o fizera e pareceu-me ver uma sombra de surpresa percorrer-lhe o rosto. Dei-me conta que desde achegada da minha irmã quase deixara de falar com o meu pai. Ao fim e ao cabo, ele raramente falava comigo.- Lamento, Papá - disse eu. - Nada disto é culpa tua, pois não?Servi café para os dois, adoçando o dele automaticamente, como ele gostava, e recostei-me para trás na cadeira. Ele devia ter deixado uma janela aberta porque havia borboletas a esvoaçar debaixo doquebra-luz, fazendo a luz tremeluzir. Aspirava o cheiro a mar ao longe e soube que a maré estava a virar.323Não tenho a certeza do que contei em voz alta. Nos tempos do estaleiro, às vezes comunicávamos sem palavras, com uma espécie de empatia, ou pelo menos eu assim o entendia. Um movimento dacabeça, um sorriso, a ausência de sorriso. Tudo isso podia ser eloquente para quem estivesse interessado em interpretar os sinais. Em criança, o silêncio dele era algo místico para mim, quase divino. Eu lia nos seus gestos como quem lê nas vísceras. O modo de pou' sar uma chávena de café ou um guardanapo podia significar agrado ou desagrado; uma côdea de pão recusada podia alterar o curso do dia.Isso agora acabara. Tinha-o amado e tinha-o odiado. Mas na realidade nunca o entendera. Agora sim, um velho triste e silencioso sentado à mesa. Como o amor faz de nós loucos. E cruéis.O meu erro tinha sido pensar que o amor tem de ser ganho. Merecido. Claro que é a ilha a falar em mim; a ideia de que tudo tem um custo, de que tudo tem de ser pago. Mas o mérito não tem nada a ver com isso. Se assim fosse, só amávamos os santos. E é um erro que cometi várias vezes. Com GrosJean. Com a minha mãe. Com Flynn. Talvez, até, com Adrienne. E sobretudo comigo própria: esforçara-me tanto para o merecer, para ser amada, para ganhar o meu lugar ao sol, o meu punhado de terra, que negligenciara o mais importante.Pousei a mão em cima da dele. A pele era macia e emaciada, como um velho bocado de madeira à deriva.O amor da minha mãe era exuberante; o meu sempre foi contido, reservado. É mais uma vez a ilha em mim, GrosJean em mim. Fechamo-nos como moluscos. A expansividade assusta-nos. Revi o meu pai no alto da falésia a olhar o mar. Tantas horas gastas à espera que Sainte-Marine cumprisse a sua promessa. No fundo, GrosJean nunca acreditara que P'titJean se fora para sempre. O corpo recuperado no Eleanore em La Goulue, liso e informe como o de uma foca esfolada podia ser de qualquer pessoa. O seu voto de silêncio era um pacto com o mar, uma espécie de oferenda, a voz em troca do regresso do irmão? Ou tornara-se simplesmente um hábito, um capricho permanente até a fala se tornar tão difícil que, em momentos de tensão, era quase impossível?Os olhos dele fixaram os meus. Os lábios moveram-se sem emitirem qualquer som.324- Como? O que é que disse?Pareceu-me ouvir então; um fragmento de som rouco, que quase não chegava a ser uma palavra. P'titjean. Cerrava as mãos expressivas num gesto de frustração face à resistência da língua.- P'titJean?Estava ruborizado pelo esforço do que me tentava dizer, mas não conseguiu articular mais nada. Apenas os seus lábios se moviam. Apontava as paredes, a janela. As mãos adejavam ágeis,mimando o fluxo da subida da maré. Gesticulava na sua extraordinária precisão: enterrou as mãos nas algibeiras, curvado. Brismand. Depois apontou para o ar, em dois níveis, com insistência. O grande Brismand, o pequeno Brismand. Em seguida, um gesto amplo na direcção de La Goulue.Rodeei-o com os braços.

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- Está tudo bem. Não precisa de dizer nada. Está tudo bem. - Parecia uma figura de madeira nos meus braços, uma caricatura cruel talhada por um escultor desleixado. Movia a boca contra o meu ombro numa aflição enorme e incompreensível, o hálito acre a tabaco e café. Enquanto o abraçava, continuava a sentir as suas mãos grandes a agitarem-se, estranhamente delicadas, numa tentativa de comunicar qualquer coisa demasiado urgente para a expressar por palavras.- Está tudo bem - repeti. - Não precisa de dizer nada. Não tem importância.Voltou a mimar: Brismand. P'titjean. E de novo o gesto largo em direcção a La Goulue. Um barco? O Eleanore? Os olhos dele imploravam. Puxava-me a manga, repetia o gesto com mais insis tência. Nunca o tinha visto tão agitado antes. Brismand. P'titjean. La Goulue. Eleanore.- Escreva, se é assim tão importante - disse eu, por fim. - Vou buscar um lápis. - Remexi uma gaveta da cozinha e finalmente encontrei um toco de lápis vermelho e um bocado de papel. O meu pai ficou a olhá-los, mas não lhes tocou. Empurrei-os na sua direcção, sobre o tampo da mesa.GrosJean abanou a cabeça.- Vá lá, coragem. Por favor. Escreva.Ele olhava para o papel. O toco de lápis parecia ridiculamente pequeno entre os seus dedos enormes. Escrevia concentrado,325desajeitadamente, sem um vestígio da antiga agilidade que possuía quando cosia as velas ou fazia brinquedos. Eu soube o que ele tinha escrito mesmo antes de olhar. Era a única coisa que me lembrava de o ter visto escrever. O seu nome, Jean-François Prasteau, numa caligrafia grande e insegura. Esquecera que o seu nome completo era Jean-François. Para mim, como para toda a gente, sempre fora GrosJean. Nunca o vi ler, preferindo revistas de pesca com ilustrações coloridas, nem escrever, e lembrei-me das cartas de Paris que ficaram sem resposta. Sempre supus que o meu pai não estava interessado em escrever. Percebia agora que ele não sabia escrever.Interrogava-me que outros segredos ele conseguira ocultar. Interrogava-me se a minha mãe alguma vez soubera. Estava sentado imóvel, com as mãos pendentes, como se o esforço de escrever o nome lhe tivesse roubado as energias que lhe restavam. Percebi que a sua tentativa de comunicação chegara ao fim. A frustração, ou a indiferença, suavizavam-lhe as feições numa serenidade de Buda. Voltou a olhar na direcção de La Goulue.- Está tudo bem - repeti, beijando-lhe a testa fria. - A culpa não é tua.Lá fora, a chuva há muito anunciada começara a cair. No espaço de segundos, a duna por detrás de nós encheu-se de mil rumores, que sibilavam e sussurravam através de pequenos regos cavados na areia em direcção a La Bouche. Os maciços de cardos reluziam, coroados pela chuva. No horizonte distante, a noite arvorava a sua única vela negra.

56As noites de Verão nunca são totalmente escuras e o céu começava já a clarear quando me dirigi devagar para La Goulue. Atravessei a duna, sentindo os rabos-de-coelho macios roçarem-me ao de leve os tornozelos nus e trepei para o telhado do bunker para olhar a maré enchente. No Bouch'ou brilhavam duas luzes, uma verde e outra vermelha, a assinalar a posição da barreira.Parecia tão segura. Solidamente ancorada, tal como Les Salants. No entanto, agora tudo mudara. Já não nos pertencia. Nunca fora nossa verdadeiramente. Fora o dinheiro de Brismand que construírao nosso sonho; o dinheiro de Brismand, o engenho de Brismand... as mentiras de Brismand.Mas porque o fizeram?Para se apossarem de Les Salants. Fora Brismand quem arquitectara tudo. Aqui a terra ainda é barata; devidamente explorada pode ser lucrativa. O único obstáculo continuam a ser os habitantes da ilha, apegados obstinadamente à terra que não podem usar nem apreciar; resistindo sem outros pensamentos ou ambições que não sejam os crustáceos que apanham.Mas o lingueirão, apreciado pelos amantes da cozinha e que se enterra até três metros de profundidade na areia molhada, pode ser facilmente apanhado quando a maré vira, quando deita a cabeça defora para aspirar o mar aberto. Foi o que os Brismands e o dinheiro deles fizeram viraram a maré a

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nosso favor e ficaram à espera que326327saíssemos do buraco. Como as lagostas no viveiro dos Guénolé. -Bastonnets, engordámos e enchemo-nos de esperanças, sem nunca suspeitarmos do motivo por que tínhamos sido poupados.Em Le Devin as dívidas são sagradas. Pagá-las é uma questão de honra. Falhar é impensável. A praia tinha tragado todas as nossas economias, os rolos de moedas escondidas sob o soalho e as latas com notas postas de lado para os dias maus. Embalados pelo êxito, tínhamos hipotecado as nossas expectativas. Começámos a acreditar na nossa sorte. Ao fim e ao cabo, tinha sido um bom ano.Voltei a pensar no "porco de metal" no estaleiro de Fromentine e lembrei-me de Capucine me perguntar por que razão estaria Brismand interessado em comprar terrenos alagados. Provavel mente o que lhe interessava não era construir naqueles terrenos, ocorreu-me de súbito. Se calhar o que ele queria desde o princípio eram as terras alagadas.Terrenos alagados. Mas para quê? Que utilidade podiam ter para ele? E de repente, fez-se luz. "Um porto para o ferry."Se Les Salants ficasse submersa, ou melhor ainda, se ficasse separada de La Houssinière na zona de La Bouche, a enseada podia ser alargada de modo a permitir a entrada e o acostamento de um ferry. Demoliam-se as casas e alagava-se toda a área. Haveria espaço para dois ferries, talvez mais. Desse modo, Brismand, se quisesse, poderia explorar um serviço para todas as ilhas ao longo da costa, assegurando um fluxo constante de turistas a Le Devin. Um serviço de naveta nos dois sentidos faria com que nenhum espaço precioso em La Houssinière fosse desperdiçado.Voltei a contemplar o Bouch'ou, com as luzes tremeluzindo calmamente no meio da água. Aquilo era propriedade de Brismand, disse para mim. Doze módulos de pneus de carros usados e cabosde aeroplanos, ancorados no leito do mar. Antes parecera-me tão estável, mas agora assustava-me a sua fragilidade. Como tinha sido possível depositar tanta confiança numa coisa daquelas? Naturalmente, tinha sucedido quando pensávamos que Flynn estava do nosso lado. Achávamos que tínhamos sido muito espertos. Tínhamos roubado o nosso bocado de Les Immortelles debaixo do nariz de Brismand. E durante todo esse tempo, Brismand consolidara a sua posição, observando-nos, estimulando-nos, ganhando a nossa328confiança, subindo as paradas de modo que quando fizesse a sua jogada...De repente, senti-me muito cansada. Doía-me a cabeça. Algures, lá em baixo em La Goulue ouvi um som, um débil zunido de vento por entre as rochas, uma mudança de tom no ar, um som ressonante semelhante ao de um sino naufragado, e depois, numa breve pausa entre as ondas, uma acalmia insólita.À semelhança de todas as ideias inspiradas, o plano de Brisrnand era na verdade muito simples, depois de se saber para onde olhar. Compreendia agora como a nossa prosperidade se convertera na forma de nos vencer. Como tínhamos sido manipulados, induzidos aos poucos a acreditar na nossa independência à medida que nos enterrávamos cada vez mais da armadilha. Fora isso que GrosJean tentara dizer-me? Era esse o segredo escondido por detrás daquele olhar triste da cor do Verão?O ar soprava quente de oeste e cheirava a sal e a flores. Lá em baixo, via os seixos da margem brilhando no falso crepúsculo; para lá dela o mar era uma faixa cinzenta escura um pouco mais clara do que o céu. O Eleanore 2 já se encontrava ao largo, e o Cécilia seguia na sua esteira a uma certa distância. Pareciam anões sob os bancos de nuvens, silenciados pela distância.Pensei numa outra noite, há muito tempo; na noite em que tínhamos montado a barreira. Nessa altura, o nosso plano parecera-nos inacreditavelmente extraordinário, impondo respeito à sua escala. Roubar uma praia. Alterar uma linha de costa como se fôssemos deuses. Mas o plano de Brismand, a ideia subjacente a tudo o resto, tornava as minhas pequenas ambições irrisórias.Roubar Les Salants.Agora a única coisa que tinha de fazer era mover a sua última peça e a aldeia seria sua.329

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57- Imagino porque é que tu passaste por aqui tão cedo - disse Toinette.Passei pela casa dela no caminho para a aldeia. Com a maré a encher, o nevoeiro subira do mar e havia uma névoa que velava o sol e podia trazer chuva mais tarde. Toinette usava uma capa espessa e luvas enquanto dava à cabra os restos de verdura. A cabra lambia, impúdica, a manga da minha vareuse, que eu puxei com alguma irritação.Toinette riu entre dentes.- Uma insolação, minha menina, não foi mais nada, mas mesmo isso pode ser grave por causa do sangue frágil do norte, mas não é fatal, hem. Não é fatal. - Sorriu. - Dá-lhe mais um dia ou dois, e está de volta tão fugidio como sempre. Agora já ficas descansada, rapariga? Era isso que me vinhas perguntar?Levei algum tempo a perceber o que ela queria dizer. De facto, tinha estado tão embrenhada nos meus pensamentos que a doença de Flynn, agora que sabia que estava livre de perigo, se transformara numa espécie de dor surda num recesso da minha mente. O facto de a virem despertar tão inesperadamente apanhou-me de surpresa e senti as faces ruborizarem-se.- O que eu queria saber é como é que estava a Mercédès.- Mantenho-a ocupada - confidenciou a velha, com um olhar de esguelha para a casa. - Trabalho a tempo inteiro. E também temos as visitas para atender... o jovem Damien Guénolé arondar por perto a todas as horas, e Xavier Bastonnet que não quer ficar longe e a mãe dela a barafustar como as fúrias do Inferno. Juro que se aquela mulher volta a pôr os pés aqui perto outra vez... E tu? - lançou-me um olhar perscrutador. - Estás com mau aspecto. Não estás preocupada com nada, pois não?Abanei a cabeça.- Não dormi muito a noite passada.- Nem eu. Mas diz-se que os homens ruivos têm mais sorte do que toda a gente. Não te preocupes. Não me admirava se ele voltasse para casa esta noite.- Hei, Mado!Alguém me chamava, nas minhas costas; virei-me, grata pela interrupção. Eram Gabi e Laetitia com as provisões do dia. Laetitia acenava-me imperiosamente do cimo da duna.- Viste o barco grande? - gritava ela.Abanei a cabeça. Laetitia fez um gesto vago na direcção de La Jetée.- É zen! Vem ver! - Depois correu para a praia, arrastando Gabi atrás dela.- Um beijo meu à Mercédès - disse para Toinette. - Diga-lhe que tenho pensado nela.- Hem. - pareceu-me que Toinette se mostrava desconfiada. - Se calhar vou contigo. Vamos ver o barco grande, hem?- Está bem.Da aldeia, avistava-se claramente o barco: uma forma comprida e baixa apenas semivisível na névoa esbranquiçada de Pointe Griznoz. Demasiado pequeno para ser um petroleiro, um vulto estranho para barco de passageiros, devia tratar-se de uma espécie de barco pesqueiro de alto mar, se não fosse o facto de conhecermos todos os barcos que costumam passar por ali e não era nenhum deles.- Talvez esteja com problemas - sugeriu Toinette, a olhar para mim. - Ou à espera da maré.Aristide e Xavier estavam a limpar as redes na enseada e perguntei-lhes qual era a sua opinião.- Deve ter alguma coisa a ver com as alforrecas - declarou Aristide, retirando um grande caranguejo-eremita de dentro de um dos potes. - Está ali desde que nos fizemos ao mar. Mesmo ao330331largo de Nid'Poule, um barco grande, hem, com máquinas e todo o tipo de equipamento. É do governo, segundo diz Jojo-le-Goëland. Xavier encolheu os ombros.- Parece um exagero só por causa de umas alforrecas. Afinal não é o fim do mundo.Aristide deitou-lhe um olhar sombrio.- Umas alforrecas, hem? Tu não fazes ideia. A última vez que isto aconteceu... - Interrompeu a

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observação abruptamente e voltou a concentrar-se na rede.Xavier soltou uma gargalhada nervosa.- Pelo menos o Ruivo vai ficar bom. Disse-me o Joio esta manhã. Mandei-lhe uma garrafa de devinnoise.- Já te disse para não andares a tagarelar COM o Jojo-le -Goëland - disse Aristide.- Eu não andei a tagarelar.- Era melhor que te preocupasses com as tuas coisas. Se tivesses feito isso desde o início, talvez ainda tivesses uma hipótese com a rapariga dos Prossage.Xavier desviou os olhos, corando sob os óculos. Toinette ergueu os olhos para o céu.- Deixa o rapaz em paz, hem, Aristide - disse num tom de repreensão.- Está bem - rosnou Aristide. - Sempre pensei que o filho do meu filho tivesse mais juízo.Xavier fingiu não ouvir.- Tu falaste com ela, não falaste? - perguntou-me calmamente, quando eu fiz menção de me afastar. Assenti. - Como é que a achaste?- O que é que interessa como é que ela está, hem? - perguntou Aristide. - Ela fez-te fazer o papel de um grandessíssimo idiota, essa é que é essa. E quanto à avó dela... - Toinette atirou alíngua de fora a Aristide com tão súbita petulância que não pude deixar de sorrir.Xavier ignorou os dois, a sua timidez desaparecera face à sua ansiedade.- Ela estava bem? Quer ver-me? A Toinette não me quer dizer.332- Está confusa - disse eu. - Não sabe o que quer. Dá-lhetempo.Aristide bufava.- Não lhe dás nada! - vociferou. - Ela teve uma oportunidade, hem. Há outras raparigas melhores do que aquela. Raparigas decentes.Xavier não disse nada, mas eu vi a sua expressão. Toinette tomou o freio nos dentes.- Não é uma rapariga decente? A minha Mercédès? Rapidamente, pus-lhe o braço à volta dos ombros. - Vamos embora. Não vale a pena.- Só quando ele retirar o que disse!- Por favor, Toinette. Vamos embora. - Voltei a olhar para o barco, uma presença estranhamente ameaçadora no horizonte pálido. - Quem são? - perguntei mais para mim do que para os outros. - Que fazem aqui?

Naquela manhã, toda a gente na aldeia parecia inquieta. Ao entrar na loja dos Prossage para comprar pão, não encontrei ninguém a atender ao balcão e ouvi vozes excitadas na divisão do fundo. Peguei naquilo de que precisava e deixei o dinheiro ao lado da gaveta da caixa registadora. Atrás de mim Omer e Charlotte continuavam a discutir e as suas vozes ressoavam estridentes no ambiente calmo. A mãe de Ghislain e de Damien lavava os potes de lagostas junto do viveiro, com um trapo enrolado à volta da cabeça. O bar de Angélo estava vazio com excepção de Matthias, sentado sozinho diante de um café-devinnoise. Viam-se poucos turistas, talvez por causa do nevoeiro. O ar estava opressivo e cheirava a fumo e a chuva iminente. Ninguém parecia com predisposição para conversas.Ao regressar a casa com as minhas provisões, cruzei-me com Alain. Tal como a mulher, tinha um ar tenso e pálido. Apertava entre os dentes uma beata de Gitane. Saudei-o com um aceno de cabeça.- Hoje não há pesca? Alain abanou a cabeça.333- Ando à procura do meu filho. E quando o encontrar juro que ele vai lamentar que eu o tenha encontrado. - Segundo parecia, Damien não voltara a casa durante toda a noite. A irritação e apreocupação tinham cavado rugas profundas entre as sobrancelhas de Alain e à volta da boca.- Ele não pode ter ido longe - disse eu. - Quanto é que uma pessoa se pode afastar numa ilha?- Bastante - respondeu Alain numa voz sombria. - Ele levou o Eleanore 2.Tinham deixado o barco fundeado ao largo de La Goulue. Alain tencionava ir com Ghislain até La

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Jetée de manhã para inspeccionar as medusas.- Pensei que talvez o rapaz também gostasse de ir connosco - disse com azedume. - Achei que podia desviar-lhe o pensamento de outras coisas.Porém, quando chegaram à praia, o Eleanore 2 já lá não estava. Não havia sinais do barco e o pequeno platt que usavam para acesso na maré alta estava atracado ao lado da bóia de sinalização.- O que é que ele julga que anda a fazer? - perguntou Alain. - Aquele barco é demasiado grande para ele o manobrar sozinho. Vai afundá-lo. E para onde diabo o levou ele num dia como o de hoje?Percebi que devia ser o Eleanore 2 que eu vira do meu posto de observação no bunker, naquela manhã. Há quantas horas? Três? Quatro? O Cécilia também saíra para o mar, mas apenas para dar uma espreitadela aos potes de lagostas na baía; mesmo nessa altura o nevoeiro começava a cerrar e os Bastonnets não se queriam arriscar nos bancos de areia naquelas condições.Alain empalideceu quando eu lhe contei.- Mas qual é a ideia do rapaz, hem? - resmungou ele. - Quando eu o encontrar... achas que ele fez qualquer coisa realmente estúpida, como tentar chegar ao continente?Certamente que não. O Brismand 1 demora quase três horas a chegar até à ilha desde Fromentine, e há alguns pontos difíceis no percurso.- Não sei. Porque é que havia de fazer? Alain mostrava-se inquieto. 334- Eu disse-lhe algumas verdades. Sabes como são os rapazes. Ficou a examinar os nós dos dedos por momentos. - Talvez eu tenha ido longe demais. Além disso, ele levou algumas coisas com ele.- Ah. - O assunto parecia mais sério.- Como é que eu podia imaginar que ele ia fazer esta loucura? _ explodiu Alain. - Digo-te, quando lhe puser as mãos em cima... - Calou-se, com um ar cansado e envelhecido. - Se lhetiver acontecido alguma coisa, Mado, se tiver acontecido alguma coisa a Damien... Se o vires, dizes-me, hem? - Olhava-me com uma expressão veemente, os olhos atormentados pela angústia. - Ele confia em ti. Diz-lhe que eu não me vou zangar. Só quero sabê-lo são e salvo.- Eu digo-lhe - prometi. - Tenho a certeza que não se afastou muito.335

58Por volta do meio-dia o nevoeiro tinha levantado um pouco. O céu mudara para um cinzento deslavado, levantara-se vento e a maré voltara a subir. Caminhei devagar em direcção a La Goulue, sentindo-me mais ansiosa do que a minha despedida optimista a Alain deixava transparecer. Desde o dia das medusas, era como se tudo estivesse à beira do colapso; até o tempo e as marés conspiravam contra nós. Como se Flynn fosse o Flautista Mágico, que ao ir-se embora levava consigo a nossa boa sorte.Quando cheguei a La Goulue, a praia estava quase deserta. Por momentos, fiquei surpreendida, mas depois lembrei-me dos avisos sobre as medusas e avistei os rufos esbranquiçados à beira de águademasiado espessos para serem espuma. A maré deixara no areal dezenas de medusas, que adquiriam uma tonalidade mais opaca à medida que iam morrendo. Teríamos de organizar mais tarde uma operação de limpeza com a ajuda de rodos e redes. Sabendo como aquilo era perigoso, quanto mais depressa melhor.Mesmo acima da linha de maré avistei alguém que perscrutava a água quase no mesmo sítio em que encontrara Damien na noite anterior. Podia ser qualquer pessoa: uma vareuse desbotada, o rosto oculto sob as abas largas de um chapéu de palha. De qualquer modo, era alguém da ilha. Mas eu sabia quem era.- Olá, Jean-Claude. Ou devemos passar a chamar-te Brismand 2 ?Devia ter-me ouvido aproximar, porque estava preparado.336- Mado, o Marin disse-me que tu sabias. - Apanhou um bocado de madeira da areia e espetou-o num dos animais agonizantes. Reparei que ele tinha o braço ligado por baixo da vareuse.- Não é tão mau como tu pensas - disse ele. - Ninguém vai ficar desprotegido. Acredita em mim,

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todas as pessoas em Les Salants vão ficar melhor do que estavam antes. Achas realmente que eu deixava que te acontecesse alguma coisa de terrível?- Não sei o que serias capaz de fazer - respondi, desolada. - Já nem sequer sei como te hei-de chamar.Pareceu ficar magoado.- Podes chamar-me Flynn - disse ele. - Era o nome da minha mãe. Nada mudou, Mado.A suavidade da voz dele quase me fez desatar em pranto. Fechei os olhos e deixei que a indiferença me invadisse de novo, satisfeita por ele não tentar tocar-me.- Tudo mudou! - Percebi que a minha voz subia de tom e não era capaz de me controlar. - Mentiste! Mentiste-me!A expressão dele endureceu. Pareceu-me doente, com o rosto pálido e atormentado. Apresentava uma queimadura de sol na face esquerda. A boca estava ligeiramente descaída.- Eu disse-te o que tu querias ouvir - disse ele. - Fiz o que tu querias. E tu. ficaste bastante satisfeita com o resultado nessa altura.- Mas não o fizeste por nossa causa, pois não? - Não podia acreditar que ele tentasse justificar a sua traição. - Só estavas a pensar em ti. E valeu a pena, não valeu? Uma quota-parte na sociedade Brismand com o correspondente saldo no banco.Flynn desferiu um pontapé num dos animais moribundos que jaziam aos seus pés num súbito assomo de agressividade.- Tu não fazes a mínima ideia de como estavam as coisas. Como é que podes fazer? Nunca desejaste nada a não ser este lugar. Nunca te incomodou o facto de viveres em casa de outra pessoa, sem ninguém se preocupar contigo, sem teres dinheiro teu, sem um emprego decente, sem futuro. Eu queria mais do que isso. Se quisesse viver assim tinha ficado em Kerry. - Baixou os olhos para a medusa encalhada na areia e deu-lhe outro pontapé. - Malditos bichos!. - Olhou para mim de repente com uma expressão de desafio. - Diz-me a verdade, Mado. Nunca te questionaste sobre337o que farias se as coisas fossem diferentes? Nunca te sentiste tentada, nem um bocadinho?Ignorei a pergunta.- Porquê Les Salants? Porque é que não ficaste sossegado em La Houssimère a tratar dos teus negócios?Contorceu a boca.- O Brismand não é um tipo fácil. Gosta de controlar as coisas. Sabes bem que não me recebeu de braços abertos. Tudo isso demorou tempo. Os planos. O trabalho. Ele era capaz de me deixar pendurado anos a fio, que para ele era igual.- Por isso deixaste que fôssemos nós a tomar conta de ti enquanto te servias de nós para o convenceres.- Eu paguei à minha maneira! - Agora a voz dele soava irritada. - Trabalhei. Não vos devo nada. - Fez um gesto abrupto com o braço são, provocando uma revoada de gaivotas que se afastaram aos guinchos. - Tu não sabes o que significa - repetiu numa voz mais calma. - Passei metade da minha vida pobre. A minha mãe...- Mas o Brismand mandava-te dinheiro - protestei.- Dinheiro para... - Não acabou a frase. - Não chegava - concluiu numa voz seca. - Quase não chegava. - Enfrentou o meu olhar de desdém com uma atitude de desafio.O silêncio abateu-se como nuvens.- Bom. - Tentei que a minha voz soasse inexpressiva. - Quando é que vai acontecer? Quando é que a vossa gente vai desmantelar o Bouch'ou?A pergunta apanhou-o desprevenido.- Quem é que te disse que isso ia acontecer? Encolhi os ombros.- É óbvio. Toda a gente deve dinheiro a Brismand. Toda a gente está a contar com bons lucros esta época. Com dinheiro suficiente para lhe pagarem. Mas sem a barreira, as pessoas serão forçadas a vender por uma ninharia para pagarem as dívidas; e no próximo ano Brismand entra em cena. Basta-lhe esperar que as marés retomem o seu curso normal para começar a construir o novo porto

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para o ferry. Estou muito enganada?- Não - admitiu ele.- És um patife - disse eu. - A ideia foi tua ou dele?338- Minha. Ou antes, na realidade, foi tua. - Encolheu os ombros. - Se é possível roubar uma praia, porque não uma aldeia? porque não uma ilha inteira? Brismand já é dono de metade dela. E na prática gere o resto. Vai fazer-me seu sócio. E agora... - Ao ver a minha expressão, franziu o sobrolho. - Não olhes para mim assim, Mado. Não vai ser tão mau como pensas. Há uma oportunidade para quem a quiser aproveitar.- Que oportunidade?Flynn virou-se para me olhar de frente, com os olhos brilhantes.- Ah, Mado, achas realmente que somos uns monstros? Ele precisa de operários. Pensa no que um porto pode significar para a ilha. Trabalho. Dinheiro. Vida. Haverá trabalho para toda a gente em Les Salants. Melhor do que aquilo que têm hoje.- Mas tem um preço, suponho. - Ambos conhecíamos as condições de Brismand.- E então? - Finalmente, pareceu-me detectar uma nota defensiva na voz dele. - Qual é o problema? Toda a gente a trabalhar... dinheiro, negócios. Aqui está tudo desorganizado, cada uma puxar para o seu lado. Os terrenos estão abandonados porque ninguém tem iniciativa nem capital para os poder usufruir. Brismand podia mudar tudo. Vocês todos sabem isso, mas é o orgulho e a teimosia que vos impedem de o admitir.Olhei-o fixamente. Parecia acreditar realmente no que estava a dizer. Por um breve segundo, quase me convenceu. Era sedutor: a ordem depois do caos. É um truque vulgar, esse encanto displicen te; como o breve reflexo da luz do sol na água que capta o olhar, apenas por um instante, mas o suficiente às vezes para desviar a atenção, de forma fatal, dos rochedos à nossa frente.- E que será dos velhos? - Eu detectara o ponto fraco no seu raciocínio. - Que será dos que não possam ou não queiram colaborar?Ele voltou a encolher os ombros.- Haverá sempre Les Immortelles.- Não aceitarão. São salannais. Sei que não aceitarão.- Achas que têm alternativa? De qualquer modo, não tardaremos a saber - acrescentou com mais suavidade. - Vai haver uma reunião esta noite no bar do Angélo.339- É preferível fazê-la depressa, enquanto os inspectores cos teiros ainda estão por cá.Lançou-me uma mirada apreciativa. - Quer dizer que viste o barco.- Vai ser difícil para vocês tirarem o Bouch'ou sem a ajuda dele - volvi, sarcástica. - Como me disseste uma vez, é uma construção ilegal. Não obedece a um plano. Provocou prejuízos. Basta-lhes fazer chegar uma palavra aos ouvidos certos, sentarem_ -se e deixarem que os burocratas lhes façam o trabalho. - Tinha de admitir que era uma solução elegante. Os salannais assustam-se com os burocratas, a autoridade intimida-os. O papel e uma caneta são bem sucedidos onde a dinamite não teria êxito.- Não tínhamos previsto agir já, mas teríamos de desencantar um motivo para os 'obrigar a intervir - disse-me Flynn. - Os alertas contra as medusas pareceram-nos um pretexto bastante bom. Só gostava de não ter sido eu a vítima. - Estremeceu e apontou para o braço ligado.- Vais estar presente na reunião de hoje à noite? - perguntei, ignorando as suas últimas palavras.Flynn sorriu.- Não creio. Talvez volte para o continente e passe a gerir a minha parte dos negócios de lá. Não acredito muito na minha popularidade em Les Salants quando ouvirem o que Brismand tem para lhes dizer.Por momentos, tive a certeza que ele esteve quase a pedir-me para ir com ele. O meu coração saltava como um peixe moribundo, mas Flynn virara já as costas. Tive consciência de uma vaga sensa ção de alívio por não mo ter pedido; pelo menos, tinha posto ponto final no assunto

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claramente, sem quaisquer dissimulações.O silêncio entre nós era como um oceano. Lá ao fundo, nos baixios podia ouvir o marulhar das ondas. Surpreendia-me sentir tão poucas emoções; estava vazia como um bocado de madeira ressequida, leve como espuma. A bruma traçava uma faixa nebulosa que encobria o sol. Ao perscrutar com os olhos semicerrados aquela luminosidade enganadora, pareceu-me ver um barco lá longe em La Jetée. Pensei no Eleanore 2 e olhei com mais atenção, mas já não se via nada.340- Vai correr tudo bem, fica descansada - disse Flynn. A voz dele trouxe-me de novo à realidade. - Haverá sempre trabalho para ti. O Brismand tem falado em abrir uma galeria para ti em LaHoussinière ou mesmo no continente. Eu tratarei que ele te arranje uma casa agradável. Vais sentir-te melhor do que alguma vez te sentiste em Les Salants.- O que é que isso te interessa? - perguntei, agressiva. - Tu estás bem, não estás?Olhou para mim, com uma expressão impenetrável.- Estou - disse por fim, numa voz dura e firme. - Estou óptimo. 34159Cheguei atrasada à reunião. Às nove horas já tudo chegara ao fim, excepto a berraria. Ouviam-se vozes excitadas e o ruído de bater de pés e de murros nas mesas desde a Rue de l'Océan. Quando espreitei pela janela, vi Brismand de pé junto do balcão com uma devinnoise na mão, com o ar de um professor indulgente com um grupo de alunos turbulentos e indisciplinados.Flynn não estava lá. Não esperava que estivesse; a sua presença teria sem dúvida transformado uma reunião já de si caótica num tumulto ou num massacre, mas tive consciência de uma estranha angústia perante a sua ausência. Tentei afastá-la, irritada comigo mesma.Notei a falta de outros rostos: os Guénoés e os Prossage, provavelmente ainda a vasculharem a ilha à procura de Damien, e também Xavier e Grosjean. De qualquer modo, Les Salants parecia estar presente na sua maioria, incluindo mulheres e crianças. As pessoas apinhavam-se junto às mesas e acotovelavam-se umas às outras; a porta estava escancarada para deixar mais espaço livre. Não admirava que Angélo se mostrasse como que entorpecido; as receitas daquela noite seriam certamente um recorde.Lá fora, a maré estava quase cheia e uns fiapos de nuvens cor de púrpura, ameaçadores de tempestade, obscureciam o horizonte. O vento também mudara ligeiramente, rodando para sul como sucede com frequência antes de uma trovoada. Um sopro gélido percorreu a atmosfera.342Apesar disso, deixei-me ficar junto à janela, tentando identificar as vozes, relutante em entrar. Avistei Aristide ali perto, com Désirée que lhe pegava na mão; ao lado deles, reparei em Philippe Bastonnet e na família, incluindo Laetitia e o cão Pétrole. Embora não visse Aristide falar com Philippe, achei que havia algo menos agressivo na sua postura, uma espécie de afrouxamento, como se tivesse sido removido um apoio vital. Depois das notícias acerca de Mercédès, grande parte da bazófia do velho desaparecera, e tinha um ar desnorteado e confuso sob a sua rudeza.De súbito, ouvi utri som na enseada, atrás de mim. Virei-me e vi Xavier Bastonnet e Ghislain Guénolé que desciam a duna juntos, numa passada acelerada, com os rostos tensos. Não me viram e dirigiram-se de imediato para o canal, agora submerso pela água salgada da maré alta, onde estava fundeado o Cécilia.- Vocês não pensam com certeza sair com o barco numa noite destas - gritei-lhes, ao ver Xavier começar a recolher as amarras.Ghislain tinha um ar soturno.- Foi avistado um barco ao largo de La Jetée - informou, lacónico. - Com este nevoeiro não se pode ter a certeza sem se ir até lá.- Não digas ao meu avô - disse Xavier, às voltas com o motor do Cécilia. - Ele ficava possesso se soubesse que eu ia para o mar com o Ghislain numa noite como esta. Está sempre a dizer que foi uma imprudência de um Guénolé que matou o meu pai. Mas se o Damien está ali e não consegue voltar...

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- E o Alain? - perguntei. - Não devia ir outra pessoa com vocês, ao menos?Ghislain encolheu os ombros.- Foi para La Houssinière com o Matthias. O tempo escasseia. Temos de chegar lá com o Cécilia antes que o vento se torne mais forte.Concordei.- Então, boa sorte. Tenham cuidado. Xavier sorriu-me timidamente.- Alain e Matthias já estão em La Houssinière. Devia ir alguém até lá avisá-los. Dizer-lhes que vamos resolver a situação.343O pequeno motor rugiu antes de começar a funcionar. Enquanto Ghislain segurava o botalós do Cécilia, Xavier pilotava a pequena embarcação por entre as margens escoradas com paus rumo a La Goulue e ao mar aberto.344

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A ristide estava ainda no bar do Angélo e, como preferia não dar explicações sobre o desaparecimento de Xavier e do Céulia, decidi ir eu própria transmitir a mensagem.Estava quase escuro quando cheguei a La Houssinière. Também estava frio; as rajadas de vento que se faziam sentir na concavidade de Les Salants agitavam os fios eléctricos num ruído estríduloe as bandeiras matraqueavam naquela parte mais meridional da ilha. O céu apresentava-se tumultuoso e a faixa pálida sobre a praia era rasgada pelos clarões violáceos dos relâmpagos; as vagas tinham franjas de espuma branca e as aves quedavam-se imóveis e expectantes. Joio-le-Goëland abandonava a esplanada transportando um cartaz avisando que devido às previsões meteorológicas, a viagem de regresso a Fromentine a bordo do Brismand 1 tinha sido cancelada. Alguns turistas de ar carrancudo seguiam-no, com as malas, protestando.Não havia sinais de Alain nem de Matthias na esplanada. Parei no molhe e semicerrei os olhos a observar Les Immortelles, tremendo ligeiramente e lamentando não ter trazido um casaco. Do café atrás de mim chegou uma súbita vaga de vozes, como se tivessem aberto uma porta.- Vejam só, é a Mado, ma sceur, hem, que nos veio fazer uma visita.- A querida Mado, que está cheia de frio, hem, muito muitofrio.345Eram as velhas freiras, Soeur Extase e Soeur Thérèse, ambas vindas do Chat Noir com chávenas que pareciam ser de ca fé-devinnoise.- Entra, Mado. Bebe uma bebida quente. Abanei a cabeça.- Não, obrigada. Estou bem.- Temos outra vez o terrível vento sul - disse Soeur Thérèse. - Foi ele que trouxe as medusas, disse o Brismand. Há uma praga delas...- De trinta em trinta anos, ma sceur, quando as marés vêm do Golfo. Uns animais horríveis.- Lembro-me da última vez - disse Soeur Thérèse. - Ele estava à espera, à espera em Les Immortelles, a observar as marés... - Mas ela nunca voltou, pois não, ma sceur? - As duas freiras abanaram as cabeças. - Não, nunca voltou. Nunca, nunca. Jamais. - A quem é que se referem, ela? - perguntei.- Àquela rapariga, claro. - As duas freiras olhavam para mim. - Ele estava apaixonado por ela. Estavam ambos, os dois irmãos.Irmãos? Eu fitava as freiras, desconcertada. - Referem-se ao meu pai e a P'titjean?- Foi no Verão do Ano Negro. - As freiras assentiram e sorriram. - Lembramo-nos perfeitamente. Éramos novas nesse tempo...- Mais novas, de qualquer modo...- Ela disse que se ia embora. Entregou-nos uma carta. - Quem? - perguntei, confundida.As freiras fixaram os seus olhos negros em mim.

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- A rapariga, claro - disse Soeur Extase, impaciente. - Eleanore.O nome apanhou-me de tal modo de surpresa que de início quase nem me apercebi do som do sino; ressoava arrastado e monótono através do porto, fazendo ricochete na água como um seixo. Um grupo de pessoas saiu em turbilhão do Chat Noir para ver o que estava a acontecer. Alguém esbarrou comigo e entornou uma bebida. Quando voltei a olhar depois da momentânea confusão, Soeur Thérèse e Soeur Extase tinham desaparecido.346- Qual é a ideia do padre Alban de se pôr a tocar o sino da igreja a esta hora? - inquiriu Joë1 indolentemente, com um cigarro pendente dos lábios. - Não vai haver missa, pois não?- Acho que não - disse René Loyon.- Talvez haja fogo - sugeriu Lucas Pinoz, o primo do prefeito.As pessoas pareciam acreditar que o fogo era a hipótese mais provável; numa ilha pequena como Le Devin não existe propriamente aquilo a que se possa chamar serviço de emergência e o sino da igreja é muitas vezes o meio mais rápido de tocar a rebate. Alguém gritou "Fogo!", o que gerou maior confusão, com os clientes do café a comprimirem-se uns contra os outros junto à entrada, mas como Lucas observou não se via nenhum clarão vermelho no céu nem cheirava a queimado.- Tocámos o sino em cinquenta e cinco, quando a velha igreja foi atingida por um raio - declarou o velho Michel Dieudonné.- Há ali qualquer coisa ao largo de Les Immortelles - disse René Loyon, que se mantivera postado no cimo do molhe. - Há qualquer coisa nas rochas.Era um barco. Agora que já sabíamos para onde olhar era fácil distingui-lo, a uma centena de metros, encalhado no mesmo emaranhado de rochas que deixara fora de combate o Eleanore no ano anterior. Contive a respiração. Sem nenhuma vela à vista e àquela distância, era impossível dizer se era algum dos barcos de Les Salants.- É um casco de embarcação - disse Joêl com autoridade. - Já lá deve estar há horas. Não há razão para se entrar em pânico agora. - Esmagou a ponta do cigarro com o tacão da bota. Jojo-le-Goëland não estava convencido.- Devíamos tentar iluminar o local - sugeriu. - Talvez seja necessário resgatar qualquer coisa. Vou buscar o tractor.As pessoas começavam a juntar-se na parte debaixo do quebra-mar. O sino da igreja emudeceu depois de dado o alarme. O tractor de Jojo avançava com dificuldade pela praia irregular até à beira do areal; o farol potente iluminava a água.- Já o consigo ver - disse René. - Está inteiro, mas não por muito tempo.Michel Dieudonné concordou.347- A maré está demasiado alta para se conseguir ir até lá agora, mesmo com o Marie Joseph. E com estas rajadas de vento... _ Abriu as mãos expressivamente. - Quem quer que seja o dono, o barco está perdido.- Meu Deus! - Era Paule Lacroix, a mãe de Joël, postada por cima de nós na esplanada. - Está ali alguém dentro de água! Alguns rostos viraram-se para ela. O farol do tractor era demasiado forte; no meio dos reflexos apenas era visível o casco escuro do barco naufragado.- Apaga essa luz! - gritou o prefeito Pinoz, que acabara de chegar com o padre Alban.Demorou algum tempo até os nossos olhos se habituarem à escuridão. Agora o mar era negro e o barco uma sombra azul escura. Semicerrando os olhos, tentávamos distinguir uma mancha pálida no meio das ondas.- Estou a ver um braço! Está um homem na água!A uma curta distância à minha esquerda alguém gritou, uma voz que reconheci. Virei-me e vi a mãe de Damien, com o rosto desfigurado pela angústia sob o espesso xaile da ilha. Alain estava .de pé no molhe com um binóculo, embora eu duvidasse que com o vento sul a bater-lhe na cara e as vagas cada vez mais altas ele pudesse ver mais alguma coisa do que os outros que ali estavam. Matthias estava ao lado dele, olhando impotente para a água.A mãe de Damien viu-me e desceu a praia a correr ao meu encontro, com o casaco a esvoaçar ao

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vento.- É o Eleanore 2! - Agarrava-se a mim, arfante. - Sei que é! Damien!Tentei acalmá-la.- Não sabe se é - disse eu com a calma possível. Mas não havia nada que a pudesse reconfortar. Começou a emitir um som lamentoso, meio pranto, meio palavras. Percebi o nome do filhopor diversas vezes, mas mais nada. Dei-me conta que não tinha mencionado o facto de Xavier e Ghislain terem levado o Cécilia; mas falar nisso agora só ia agravar a situação.- Se está ali alguém, temos de fazer um esforço para lá chegar, hem? - Era o prefeito Pinoz, meio embriagado mas tentando corajosamente assumir o controlo da situação.Jojo-le-Goëland abanou a cabeça.348- Mas não no meu Marie Joseph - disse ele, inflexível.Mas Alain corria já pelo carreiro que desce da esplanada até ao porto.- Experimenta só deter-me - berrou ele.O Marie Joseph era sem dúvida alguma a única embarcação com suficiente estabilidade de manobra para chegar perto do barco encalhado; apesar disso, a operação era quase impossível com aquele tempo.- Não está ninguém ali! - lamentou-se Jojo, indignado, indo atrás de Alain. - Não-podes levar o barco sozinho!- Então vai com ele! - insisti eu. - Se é o rapaz que está ali...- Se estiver, está morto - resmungou Joël. - Não faz sentido ir com o Alain.- Então vou eu! - Galguei os degraus dois a dois até à Rue des Immortelles. Havia um barco sobre os rochedos; um salannais estava em perigo. Apesar da minha ansiedade, o meu coração reju bilava. Uma alegria voraz apoderava-se de mim, porque me sentia uma insulana, sentia que pertencia à ilha. Não há mais nenhum lugar capaz de suscitar tamanha lealdade, um amor tão firme e inquebrável.Havia gente a correr ao meu lado. Vi o padre Alban e Matthias Guénole, que, como calculava, não podia estar longe; Omer seguia-os com dificuldade o mais depressa de que era capaz; Marin e Adrienne observavam da janela iluminada de La Marée. Grupos de houssins viam-nos correr, alguns confusos, outros incrédulos. Não me importei. Corri para o porto.Alain já lá estava. As pessoas olhavam-no embasbacadas do molhe, mas eram poucas as que se mostravam inclinadas a juntar-se a ele no Marie Joseph. Matthias gritava da estrada; distingui mais vozes excitadas atrás dele. Um homem com uma vareuse desbotada recolhia as velas do Marie Joseph, de costas voltadas para mim. Quando Omer chegou ao pé dele, sem fôlego, o homem virou-se e reconheci Flynn.Não tinha tempo para reagir. Os nossos olhares cruzaram-se, ele desviou os olhos, quase com indiferença. Alain já estava postado ao leme. Omer debatia-se com o motor que não conhecia. O padre Alban, de pé no molhe, procurava acalmar a mãe de Damien,349

que chegara poucos minutos depois dos outros. Alain lançou-me um olhar de raspão, como que a avaliar se eu era capaz de dar uma ajuda e depois fez um gesto de assentimento.- Obrigada.Havia uma multidão de gente à nossa volta, alguns tentando ajudar no que podiam. Foram atirados alguns objectos - quase à toa - para dentro do Marie Joseph: um gancho, uma braçada de corda, um balde, um cobertor; uma lanterna eléctrica. Alguém me estendeu uma garrafa de brandy; e alguém deu a Alain um par de luvas. Quando nos afastávamos do molhe, Jojo-le-Goëland atirou-me o casaco dele.- Vê se não o molhas, hem? - disse, de cenho franzido.A saída do porto foi ilusoriamente fácil. Embora o barco baloiçasse um bocado, o porto estava protegido e rumámos sem grande dificuldade através do estreito canal central para o mar aberto. À nossa volta agitavam-se bóias e pequenos escaleres e botes; eu inclinava-me na proa para os afastar

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do caminho à medida que avançávamos.Depois o mar atingiu-nos em cheio. No curto espaço de tempo que demorámos a organizar-nos, levantara-se vento e agora gemia através dos fios e os salpicos de água eram duros como cascalho. O Marie Joseph era um excelente cavalo de tracção, mas não fora construído para arrostar temporais. Assentava baixo na água, como um barco de apanha de ostras; as vagas fustigavam-lhe o bojo. Alain praguejava.- Já consegues vê-lo, hem? - berrou para Omer.- Vejo qualquer coisa - gritou contra o vento. - Mas continuo sem saber se é o Eleanore 2.Vamos virar! - berrava Alain. Eu quase não conseguia ouvir a voz dele. A água cegava-me. - Temos de avançar de proa! Vamos!Percebi o que ele queria dizer. Rumar contra o vento era traiçoeiro, mas as ondas eram suficientemente altas para nos fazer virar se deixássemos que nos apanhassem de lado. Avançávamos com uma lentidão exasperante, cavalgando uma onda para enfrentarmos logo a seguinte que se despenhava direita a nós. O Eleanore 2, se é que era o barco, era quase imperceptível se não fossem os remoinhos350de espuma à volta. Do vulto que pensávamos ter avistado na água, não se via qualquer sinal.Vinte minutos mais tarde, não tinha a certeza se tínhamos avançado sequer uma dezena de metros; à noite as distâncias enganam e o mar reclamava toda a nossa atenção. Tinha vagamente consciência de Flynn no fundo barco, tirando água do barco, mas não havia tempo para pensar nisso nem para recordar a última vez que estivéramos juntos numa situação idêntica.Ainda se viam as luzes em Les Immortelles; pareceu-me ouvir vozes vindas de muito longe. Alain apontava o archote para o mar. A água tinha uma tonalidade castanho-cinza sob a luz fraca, mas finalmente avistei o barco encalhado, agora mais próximo e reconhecível, quase partido ao meio sobre um amontoado de rochedos. - É ele! - O vento arrebatara a angústia da voz de Alain, que ressoava débil e distante, como um sussurro por entre os canaviais. - Baixa-te! - gritou para Flynn, de tal modo debruçado para a frente que estava prestes a cair da proa do Marie Joseph. Por breves segundos, tive um vislumbre de algo na água, qualquer coisa pálida que não era espuma. Foi visível por um breve instante, depois pareceu ser enrolado por uma onda.- Estou a ver alguém! - gritou Flynn.Alain saltou para a proa, deixando Omer no controlo do barco. Peguei numa corda e arremessei-a, mas uma rajada traiçoeira de vento atirou-ma contra a cara, completamente encharcada, fusti gando-me fortemente os olhos. Caí para trás, com os olhos fechados e cheios de lágrimas. Quando os consegui abrir outra vez, via tudo desfocado; distinguia os vultos indistintos de Flynn e de Alain, agarrados um ao outro como trapezistas desesperados enquanto, por baixo deles, o mar puxava e cavava. Estavam ambos completamente ensopados. Alain prendera uma corda à volta do tornozelo para não ser projectado borda fora; Flynn, que segurava uma laçada de corda, estava inclinado para fora, com um pé apoiado na boca do estômago de Alain e o outro assente com firmeza no rebordo do Marie Joseph, com os dois braços abertos para a turbulência lá em baixo. Houve um lampejo de algo esbranquiçado. Flynn inclinou-se para o apanhar mas falhou. Atrás de nós, Omer debatia-se para manter a proa do barco na direcção do vento. O Marie Joseph baloiçava de forma nauseante; Alain cambaleou, uma onda varreu351os dois homens e empurrou o barco para o lado. Um jorro de água fria molhou-nos as cabeças. Durante um breve segundo, receei que os dois homens tivessem sido atirados borda fora. A proa do Marie Joseph abateu-se ficando a um centímetro do miar. Eu fazia o que podia para despejar baldes de água enquanto os rochedos se aproximavam assustadoramente. Seguiu-se um ruído medonho no casco do barco, uma espécie de rangido e de estampido como se tivesse sido atingido por um raio. Quedámo-nos por instantes com a respiração suspensa, na expectativa, mas fora o Eleanore 2 que cedera, com a quilha finalmente quebrada, partida em dois pedaços sobre os rochedos cobertos de espuma. Apesar disso, estávamos longe de estar sãos e salvos, arrastados para os destroços flutuantes. Senti qualquer coisa embater fortemente no lado do barco. Parecia haver qualquer coisa

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a prender por baixo, mas nessa altura, uma onda levantou-nos e o Marie Joseph evitou a rocha mesmo a tempo, enquanto Omer usava um gancho para nos manter afastados dos destroços do naufrágio. Levantei os olhos. Alain mantinha-se na mesma posição na proa, mas Flynn desaparecera. Mas apenas por um momento; com um grito rouco de alívio, vi-o emergir de novo de baixo de uma muralha de água, segurando a braçada de corda nas mãos. Qualquer coisa agitou-se brevemente diante de nós, enquanto ele e Alain começavam a içá-la para bordo. Uma coisa esbranquiçada.Embora ansiasse saber o que se passava, não podia parar de despejar os baldes de água; o Marie Joseph estava inundado até ao limite. Ouvi gritos e atrevi-me a levantar os olhos, mas as costas de Alain impediam-me de ver o que se passava. Fui despejando água durante cinco minutos pelo menos até ficarmos fora do alcance daqueles terríveis rochedos. julguei ouvir uma aclamação, longínqua e vaga vinda de Les Immortelles.- Quem é? - gritei. O vento arrebatava-me a voz. Alain não se virou. Flynn debatia-se com um oleado no fundo do barco. O oleado obscurecia-me a visão quase por completo.- Flynn! - Eu sabia que ele me tinha ouvido; olhou para mim rapidamente e depois virou-se. Algo na sua expressão disse-me que as notícias não eram boas. - É o Damien? - berrei outra vez. - Está vivo?

Flynn empurrou-me para trás com uma mão ainda parcialmente enfaixada em ligaduras molhadas.- É inútil - gritou, quase inaudível devido ao rugido do vento. - Acabou-se.Com a maré pela popa, o regresso ao porto não teve grandes dificuldades; parecia-me sentir uma certa calmaria nas vagas. Omer dirigiu um olhar inquiridor a Alain, que lhe devolveu um olhar consternado, de angústia e de incompreensão. Flynn não olhava para nenhum deles; pegou num balde e começou a despejar água, apesar de já não ser necessário.Agarrei no braço de Flynn e obriguei-o a olhar para mim. - Por amor de Deus, Flynn, diz-me! É o Damien?Os três homens olharam para o oleado e depois para mim. A expressão de Flynn era estranha, impenetrável. Olhou para as mãos, feridas pelas cordas molhadas.- Mado - disse-me por fim. - É o teu pai.35235361E voco-o como um quadro, um Van Gogh alucinante de céus em turbilhão cor de púrpura e rostos indistintos. Em silêncio. Recordo o barco latejando como um coração. Lembro-me de levar as mãos ao rosto e de ver a pele pálida e encrespada pela água salgada. Penso que caí.GrosJean jazia meio tapado pelo oleado. Pela primeira vez, tomava verdadeiramente consciência da sua corpulência, do seu peso maciço. Perdera os sapatos algures durante aquelas horas e os pés pareciam pequenos em comparação com o resto, quase delicados. Quando se fala na morte, ouve-se dizer com frequência que os mortos parecem adormecidos, em paz. GrosJean assemelhava-se a um animal que morrera preso numa armadilha. A carne apresentava uma consistência gomosa e viscosa de um porco no talho; tinha a boca aberta, com os lábios repuxados para cima num esgar que deixava a descoberto os dentes amarelecidos, como se no último momento, perante a morte, tivesse finalmente encontrado a voz. Também não senti o torpor de que falam muitas pessoas desoladas pela perda de um parente; aquela sensação compassiva de irrealidade. Pelo contrário, senti um ímpeto de cólera terrível.Como ousara fazer aquilo? Depois de tudo o que tínhamos passado juntos, como ousara? Eu confiara nele, eu acreditava nele, eu tentara recomeçar de novo. Era isto o que ele pensava de mim? Era isto o que pensava de si próprio?Alguém me pegou no braço; eu batia com os punhos no corpo húmido e viscoso do meu pai. Parecia carne abatida.- Mado, por favor. - Era Flynn.Voltei a ter um assomo de fúria; sem pensar, virei-me de repente e desferi-lhe um golpe na boca. Ele

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recuou. Vacilei para trás e estatelei-me na coberta. Avistei num relance a Estrela Sírio atrás das nuvens. As estrelas duplicaram, triplicaram, e depois encheram céu.Soube mais tarde que tinham encontrado Damien escondido no hangar do Brismand 1, enregelado e esfomeado, mas são e salvo. Aparentemente tentara escapulir-se no ferry que fazia a ligação com o continente quando a viagem fora cancelada.Ghislain e Xavier nunca conseguiram chegar a Les Immortelles. Passaram horas a tentar, mas acabaram por se ver forçados a atracar o Cécilia em La Goulue e regressavam à aldeia no preciso momento em que os voluntários de La Houssinière voltavam para casa.Mercédès estava à espera. Encontrara-se com Aristide na aldeia e houvera uma troca azeda de palavras entre os dois, afastadas todas as inibições. O encontro dela com Xavier e Ghislain foi mais comedido. Os dois jovens estavam exaustos, mas estranhamente eufóricos. Os esforços feitos no mar não tinham resultado, mas era evidente que havia agora um entendimento novo entre ambos. Enquanto em tempos tinham sido acérrimos rivais, agora estavam prestes a ser amigos outra vez. Aristide começou a repreender o neto por levar o Cécilia, mas pela primeira vez Xavier não se mostrou minimamente intimidado. Pelo contrário, chamou Mercédès de lado, com um sorriso muito diferente da sua timidez habitual e embora fosse muito cedo para falar de uma reconciliação entre os dois, Toinette acalentava secretas esperanças de êxito.Eu apanhei um resfriado no Marie Joseph, que de um dia para o outro se transformou numa pneumonia. Talvez seja por isso que não me lembro praticamente de nada do que aconteceu depois; um ou dois instantâneos, é tudo, em sépia esmaecida. O corpo do meu pai a ser transportado num cobertor para o cais. Os reservados Guénolés abraçados uns aos outros com uma paixão veemente e sem restrições. O padre Alban aguardando pacientemente, com a sotaina repuxada acima das botas de pesca. E Flynn.354355Decorreu quase uma semana até eu tomar verdadeira consciencia do que se passava à minha volta. Até então as coisas eram vagas, com cores intensificadas e sons ausentes. Tinha os pulmões cheios de cimento e a febre não parava de subir.Fui levada imediatamente para Les Immortelles, onde permanecia o médico chamado de urgência. Aos poucos, à medida que a febre ia cedendo, fui tomando consciência do meu quarto de paredes brancas, das flores, dos presentes deixados como oferendas junto à porta por uma fila constante de visitas. De início, quase não prestava atenção. Sentia-me tão mal e tão fraca que era um esforço manter os olhos abertos. Respirar requeria um esforço consciente. Mesmo a recordação da morte do meu pai ocupava um lugar secundário perante o estado penoso em que me encontrava.Adrienne enchera-se de pânico ante a ideia de ter de cuidar de mim e escapara-se com Marin para o continente assim que o tempo o permitiu. O médico declarou que eu estava a recuperar bem e deixou que Capucine olhasse por mim, com o resmungão do Hilaire a administrar-me injecções de antibióticos. Toinette preparava infusões de ervas e obrigava-me a bebê-las. Noite após noite, o padre Alban ficava sentado ao meu lado, contou-me mais tarde Capucine. Brismand manteve-se à distância. Ninguém vira Flynn.Talvez tivesse sido bom para ele que não o vissem; no final da semana o seu papel nos acontecimentos tinha ficado claro para todos e, em Les Salants, a hostilidade contra ele era assustadora. Surpreendentemente, não era tão grande em relação a Brismand; no fim de contas, mostrara-se um verdadeiro houssin, depois de tudo esclarecido. Que era de esperar? Mas o Ruivo fora um de nós. Apenas os Guénolés ousavam defendê-lo: depois de tudo por que passara por causa do Eleanore 2 quando mais ninguém se oferecera; Toinette recusava-se a tomar o caso a peito, mas muitos salannais faziam sombrias ameaças de vingança. Capucine estava convencida de que Flynn regressara para o continente e abanava a cabeça, pesarosa com toda aquela história.A invasão de medusas estava sob controlo, com as redes estendidas ao longo dos bancos de areia para impedir que entrassem na baía e com um barco da guarda costeira a recolher as que restavam. A explicação oficial era que uma série de tempestades anómalas as arrastara pela Corrente do Golfo, provavelmente desde a Austrália;

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a tagarelice da aldeia inclinava-se mais para interpretar o caso como um aviso da santa.- Eu sempre disse que ia ser um Ano Negro - afirmava Aristide com uma satisfação rebarbativa. - Estão a ver o que acontece quando não me dão ouvidos?A despeito da sua fúria contra Brismand, o velho mostrava-se resignado. Os casamentos custam dinheiro, observava ele. No caso do louco do neto continuar a teimar na sua obstinação... Abanava a cabeça.- No entanto, eu não vou viver sempre. Consola-me pensar que o rapaz afinal vai poder herdar alguma coisa que não seja areia movediça e ruínas. Talvez a sorte volte a mudar.Nem todos pensavam do mesmo modo. Entre estes, como era previsível, os Guénolés mostravam-se firmemente renitentes contra o projecto de Brismand. Com cinco bocas a sustentar, uma delas um miúdo ainda na escola e outra um velho de oitenta e cinco anos, o dinheiro sempre escasseara. Agora atravessavam um período mau. Ninguém sabia exactamente quanto é que tinham pedido emprestado, mas era opinião generalizada de que ultrapassava uma centena de milhares. A perda do Eleanore 2 fora o golpe final. Alain manifestara-se veementemente depois da reunião, dizendo que não era justo, que a comunidade tinha responsabilidades, que por causa do desaparecimento de Damien ele não tinha participado na discussão; porém, de um modo geral ninguém ligou às suas objecções. O nosso precário sentido de comunidade esboroara-se; e mais uma vez era cada um por si, como sucedia sempre com os salannais.Naturalmente, Matthias Guénolé recusava-se a ir para Les Immortelles. Alain apoiava a sua decisão. Havia quem dissesse que eles iam abandonar a ilha. A hostilidade entre os Guénolés e os Bastonnets reacendera-se. Aristide, pressentindo uma certa fragilidade e a eventual partida do seu maior rival nas pescas, fizera tudo o que pudera para virar a restante população de Les Salants contra eles.- Eles vão estragar tudo com a sua teimosia, hem! É a nossa única oportunidade. É egoísmo, é o que é, e eu não vou permitir ~;, que o egoísmo dos Guénolé destrua o futuro do meu rapaz. Temos de salvar alguma coisa deste caos, ou então afundamo-nos todos!356357Muitos viram-se obrigados a admitir que ele tinha razão. Porém, a raiva de Alain, quando soube o que tinha sido dito, foi explosiva.- Com que então é isso? - barafustava ele. - É assim que zelamos pelos nossos interesses em Les Salants? E os meus rapazes? E o meu pai, que combateu na guerra? Vão abandonar-nos agora?Em troca de quê? De dinheiro? Em proveito dos malditos houssins?Há um ano atrás, podia ter sido um argumento convincente. Mas agora tínhamos tido um cheiro desse dinheiro. Sabíamos que as coisas já não eram como dantes. Fez-se silêncio e houve algunsrostos ruborizados. Mas foram poucos os que se comoveram. O que importava uma única família quando estava em jogo uma comunidade inteira? Ao fim e ao cabo, o porto para o ferry do Brismand era melhor do que nada.O meu pai foi sepultado enquanto eu estava internada em Les Immortelles. No Verão os cadáveres não aguentam muito tempo e os insulanos têm pouco a ver com os rituais do post-mortem e do embalsamamento do continente. Tínhamos um sacerdote, não tínhamos? O padre Alban oficiou o serviço fúnebre em La Bouche, como sempre, com a sua sotaina e as botas de pesca.A lápide é um bloco de granito rosa-cinza de Pointe Griznoz. Usaram o reboque do meu tractor para o transportarem. Mais tarde, depois de a areia assentar, vou mandar gravar uma inscrição. Sei que Aristide me faz isso se eu lhe pedir.- Porque é que ele fez aquilo? - Descobri que a minha raiva não se alterara desde aquela noite a bordo do Marie Joseph. - Porque é que ele levou o Eleanore 2 naquele dia?- Sabe-se lá! - disse Matthias, acendendo um Gitane. - Tudo o que sei é que encontrámos uma data de coisas estranhas no barco quando finalmente o trouxemos para a margem...- Não digas nada enquanto a rapariga estiver doente, grande idiota! - interrompeu Capucine, dando um piparote no cigarro com um movimento ágil dos dedos.- Que coisas? - perguntei, sentando-me na cama.- Cordas. Grampos de ferro. E meia caixa de dinamite. - O quê?

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O velho encolheu os ombros e suspirou.358- Acho que nunca saberemos ao certo o que e que ele tencionava fazer. Só queria que não tivesse escolhido o Eleanore 2 para levar a cabo o seu plano.O Eleanore 2. Tentei lembrar-me com exactidão do que as freiras me tinham dito na noite da tempestade.- Ela era alguém que eles conheciam - disse eu. - Alguém de quem ele e P'titjean gostavam. Essa tal Eleanore.Matthias abanou a cabeça num gesto de desaprovação.- Não vais dar ouvidos àquelas tagarelas. Elas são capazes de dizer o que lhes vem à cabeça. - Olhou para mim de soslaio e pareceu-me ligeiramente ruborizado. - Freiras, hem! Não há piores bisbilhoteiras do que elas. Além disso, essa história, fosse qual fosse, aconteceu há muito tempo. Que relação é que pode ter com o modo como GrosJean morreu?Talvez não tivesse a ver com o como, mas com o porquê. Não podia deixar de pensar nisso, de relacionar o suicídio do irmão há trinta anos e a sua morte no Eleanore 2. Teria o meu pai feito o mesmo? E por que razão transportava a dinamite?Atormentei-me tanto com o assunto que Capucine achou que estava a afectar a minha convalescença. Deve ter falado nisso ao padre Alban, porque o velho sacerdote, homem de poucas palavras, veio visitar-me dois dias depois, com o seu ar pesaroso de sempre.- Acabou, Mado - disse ele. - O teu pai descansa em paz. Deixa-o descansar agora.Nessa altura começava a sentir-me muito melhor, embora me sentisse ainda muito cansada. Apoiada nas almofadas, via o céu azul de Agosto por detrás do padre. Ia ser um excelente dia de pesca.- Padre Alban, quem era Eleanore? Conheceu-a? Hesitou.- Conheci-a, mas não posso discutir isso contigo. - Ela era de Les Immortelles? Era uma das freiras? - Acredita em mim, Mado, é melhor esquecê-la.- Mas se ele deu o nome dela a um barco... - Tentei explicar a importância que devia ter tido para o meu pai; que nunca mais voltara a fazer isso, nem sequer para a minha mãe. E não fora certamente por acaso que ele escolhera precisamente aquele barco. E qual seria o significado do que Matthias encontrara no barco?359Porém, o padre Alban estava ainda menos falador do que o habitual.- Não significa nada - repetiu pela terceira vez. - Deixa que GrosJean repouse em paz.

62Naquela altura já estava em Les Immortelles há mais de uma semana. Hilaire recomendou mais uma semana de repouso, mas eu começava a ficar impaciente. A vista do céu que eu tinha da janela alta representava um insulto para mim; partículas de poalha dourada filtravam-se até à minha cama. O mês estava quase a chegar ao fim; dentro de poucos dias seria lua cheia e mais uma vez teria lugar a festa de Sainte-Marine em La Pointe. Sentia-me como se todas essas coisas familiares tivessem lugar pela última vez; cada instante era um último adeus a que não podia faltar. Preparei-me para voltar para casa.Capucine protestou, mas eu rebati todos os seus argumentos, inflexível. Tinha estado fora demasiado tempo. Mais tarde ou mais cedo, tinha de enfrentar Les Salants. Nem sequer tinha visto a sepultura do meu pai.La Puce desistiu perante a minha determinação.- Ficas na minha rulote durante algum tempo - sugeriu. - Não te quero sozinha naquela casa vazia.- Está bem - prometi-lhe. - Não vou voltar para lá. Mas preciso de estar só algum tempo.Nesse dia não voltei a casa de GrosJean. Fiquei surpreendida ao descobrir que não sentia a mínima curiosidade, nem o menor desejo de entrar. Em vez disso, dirigi-me para as dunas sobranceiras a La Goulue e contemplei o que restava do meu universo.360361

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A maior parte dos veraneantes já partira. O mar parecia seda e o céu era de um azul cru como um desenho de criança. Les Salants languescia silenciosa sob o sol de fins de Agosto como acontecia hámuitos anos. Os jardins e os canteiros nas janelas, ultimamente votados ao abandono, estavam murchos e secos; as figueiras raquíticas davam frutos pequenos e atrofiados; os cães vadiavam fora das casas de postigos fechados; os rabos-de-coelho começavam a ficar brancos e quebradiços. Também as pessoas tinham voltado à antiga forma. Omer passava agora horas no bar do Angélo a jogar às cartas e a beber copos atrás de copos de devinnoise. Charlotte Prossage, que se mostrara tão amenizada com a chegada das crianças nas férias de Verão, voltara a esconder o rosto atrás de lenços cor de terra. Damien andava mal humorado e implicativo. No espaço de vinte e quatro horas depois do meu regresso, podia constatar que os Brismands não se tinham limitado a destruir Les Salants, mas ostinham devorado por completo.Poucas pessoas me dirigiam a palavra; já era bastante terem manifestado a sua preocupação com presentes e cartões. Agora que voltava a estar bem, sentia uma certa inércia neles, um retorno aos velhos hábitos. As saudações reduziram-se de novo a um simples aceno de cabeça. As conversas esmoreceram. Ao princípio, pensei que talvez estivessem ressentidos comigo; afinal, a minha irmã estava casada com um Brismand. Mas passado algum tempo comecei a perceber. Percebi pela forma como olhavam o mar, com o olhar constantemente fixo no objecto flutuador ao fundo da baía, o nosso Bouch'ou, a nossa espada de Dâmocles. Nem sequer tinham consciência do que faziam. Mas observavam-no, até as crianças, agora pálidas e abatidas, sem a vivacidade do Verão ainda recente. Dizíamos a nós próprios que aquilo era ainda mais precioso por causa dos sacrifícios que tínhamos feito. Quanto maior é o sacrifício mais precioso se torna. Tínhamo-lo amado antes; agora detestávamo-lo, mas era impensável perdê-lo. O empréstimo contraído por Omer comprometera a propriedade de Toinette, apesar de não ter o direito de a empenhar. Aristide hipotecara a casa por um valor muito superior ao real. Alain estava em riscos de perder o filho, talvez os dois filhos, agora que os negócios estavam em declínio; os Prossages tinham perdido a única filha. Xavier e Mercédès falavamem abandonar de vez Le Devin e fixarem-se algures, em Pornic ou Fromentine, onde o bebé pudesse nascer sem escândalos.Aristide estava desolado com a notícia, apesar de ser demasiado orgulhoso para o admitir. Pornic não fica longe, repetia a quem o queria ouvir. São três horas de ferry duas vezes por semana. Não se pode dizer que seja longe, hem?Continuavam a correr boatos sobre a morte de GrosJean. Soube-os em segunda mão através de Capucine - o protocolo da aldeia exigia que naquele momento eu devia ser deixada em paz -mas havia muita especulação. Muitos estavam convencidos de que ele se suicidara.Havia bons motivos para acreditar nessa hipótese. GrosJean sempre fora instável; talvez a percepção da traição de Brismand o tivesse levado a ultrapassar os limites. Ainda por cima tão próximo do aniversário da morte de P'titjean e da festa de Sainte-Marine... A história repete-se, comentavam em voz baixa. Tudo retorna. Outros, porém, não se convenciam tão facilmente. O significado da dinamite no Eleanore 2 não passara despercebido; a convicção de Alain era de que GrosJean estava a tentar demolir o quebra-mar em Les Immortelles quando perdeu o controlo do barco e foi atirado para os rochedos.- Sacrificou-se - repetia Alain a quem o quisesse ouvir. - Ele percebeu antes de qualquer de nós que era a única maneira de impedir Brismand de se apoderar de tudo.A explicação não era mais inverosímil do que qualquer outra: um acidente, suicídio, um gesto heróico... A verdade era que ninguém sabia; GrosJean não falara com ninguém sobre os seus planos, pelo que só nos restava especular. Na morte como na vida, o meu pai guardara para si os seus segredos.Desci até La Goulue na manhã seguinte ao meu regresso. Lolo estava sentado com Damien à beira de água, ambos silenciosos e imóveis como duas rochas. Pareciam estar à espera de alguma coisa. A maré alta estava prestes a virar; vírgulas escuras de areia molhada assinalavam a sua passagem. Damien apresentava uma nódoa negra na face. Encolheu os ombros quando lhe chamei a atenção.

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- Caí - disse, sem se preocupar em parecer convincente. Lolo olhou para mim.362363- Damien tinha razão - disse, carrancudo. - Nunca devíamos ter tido esta praia. Ela veio estragar tudo. Estávamos melhor dantes. - Disse-o sem ressentimento, mas com um profundo cansaço ainda mais perturbador. - Só que nessa altura não sabíamos. Damien assentiu.- Teríamos sobrevivido. Se o mar se aproximasse demasiado, bastava reconstruir mais acima.- Ou mudarmo-nos.Eu fiz um gesto de assentimento com a cabeça. De súbito, a ideia de nos mudarmos não me parecia uma alternativa tão terrível ao fim e ao cabo.- Afinal, é um lugar como outro qualquer, hem? - Claro. Há outros lugares.Interrogava-me se Capucine saberia o que pensava o neto. Damien, Xavier, Mercédès, Lolo... A este ritmo, no próximo ano não haveria uma única cara jovem em Les Salants.Os dois rapazes olhavam na direcção do Bouch'ou. Invisível' agora, começaria a assomar dentro de cinco horas, mais ou menos, quando a maré descobrisse os bancos de ostras.- E se eles o arrancassem, hem? - havia uma ponta de azedume na voz de Lolo.Damien concordou.- Podiam recuperar a areia. Nós não precisamos dela. - Não. Não queremos para nada a areia dos houssins. Senti-me perturbada ao dar por mim quase a concordar com eles.E no entanto, depois do meu regresso, reparei que os salannais passavam mais tempo na praia do que antes. Não iam para lá nadar nem apanhar banhos de sol - só os turistas é que fazem isso - nem sequer em ameno cavaqueio, como fazíamos tantas vezes no princípio desse Verão. Agora em La Goulue não havia barbecues nem fogueiras nem reuniões para tomar umas bebidas: andávamos pela praia, furtivos, de manhã cedo ou na viragem da maré, deixando escorrer a areia pelos dedos, sem nos olharmos nos olhos.A areia fascinava-nos. Víamo-la agora de um modo diferente; já não era uma poeira dourada mas os detritos de séculos: ossos, conchas, partículas microscópicas de matéria fossilizada, vidro pul verizado, pedras trituradas, fragmentos de tempos inimagináveis.Havia pessoas na areia: amantes, crianças, traidores, heróis. Havia telhas de casas há muito demolidas. Havia guerreiros e pescadores, havia aviões nazis e louça partida e deuses despedaçados. Havia rebelião e derrota. Havia tudo e tudo era igual.Percebíamos agora como era tudo inútil: a nossa luta contra as marés, contra os houssins. Víamos em que se iam transformar todas as coisas.36436563Foi dois dias antes da festa de Sainte-Marine que decidi finalmente visitar a sepultura do meu pai. A minha' ausência no funeral fora inevitável, mas agora estava de volta e era isso que esperavam de mim.Os houssins têm um cemitério à volta da igreja, bem tratado e relvado, com um jardineiro encarregado de cuidar de todas as sepulturas. Em La Bouche, somos nós que tratamos de tudo. Temde ser assim. Comparadas com as deles, as nossas lápides parecem pagãs, monolíticas. Mas zelamos por elas com esmero. Uma das sepulturas mais antigas é a de um jovem casal, assinalada simples- . mente "Guénolé-Bastonnet, 1861-1887". Alguém continua a depositar lá flores, embora não haja ninguém tão velho que se recorde dos seus ocupantes.Depositaram o corpo do meu pai ao lado de P'titJean. As pedras tumulares são quase gémeas no tamanho e na cor, embora a de P'titJean mostre a idade, com a superfície coberta- de líquenes. Ao aproximar-me, vi que tinha sido espalhado cascalho limpo à volta das duas sepulturas e que alguém já preparara a terra para as plantas.Eu trouxera alguns pés de alfazema para plantar à volta da pedra e uma pequena pá para cavar. O padre Alban parecia ter feito o mesmo; tinha as mãos sujas de terra e havia gerânios vermelhos plantados de novo sob as duas lápides.

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Ao ver-me, o velho sacerdote olhou-me assustado, como se o366tivesse apanhado em falta. Esfregou várias vezes as mãos cobertas de areia.- Fico satisfeito por te ver com tão bom aspecto - disse ele. - Deixo-te sozinha para fazeres as tuas despedidas.- Não se vá embora. - Dei um passo em frente. - Padre Alban, ainda bem que o encontro aqui. Queria...- Desculpa. - Abanou a cabeça. - Sei o que queres de mim. Pensas que eu sei alguma coisa sobre a morte do teu pai. Mas não te posso dizer nada. Esquece.- Porquê? Preciso de perceber! O meu pai morreu por uma razão qualquer e eu penso que o padre sabe qual foi!Olhou-me com severidade.- O teu pai morreu num naufrágio, Mado. Saiu no Eleanore 2 e foi atirado borda fora. Tal como o irmão.- Mas o senhor sabe qualquer coisa - disse eu, suavemente. - Não sabe?- Tenho... suspeitas. Tal como tu. - Que suspeitas?O padre. Alban suspirou.- Esquece, Madeleine. Não te posso dizer nada. O que eu eventualmente possa saber está sujeito ao segredo da confissão e não posso falar contigo sobre isso. - Pareceu-me, porém, detectar algo na sua voz, uma entoação estranha, como se as palavras que proferia estivessem em dissonância com qualquer coisa que tentava transmitir.- Mas há mais alguém que possa? - perguntei, pegando-lhe na mão. - É isso que me está a dizer?- Eu não te posso ajudar, Madeleine. - Era imaginação minha ou havia qualquer coisa na forma como ele disse "Eu não te posso ajudar", um ligeiro acentuar da primeira palavra? - Agora vou-me embora - disse o velho sacerdote, libertando suavemente a mão da minha. - Tenho de organizar uns registos antigos. Registos de nascimento e de óbito, sabes como é. É uma tarefa que tenho vindo a adiar há muito tempo. Mas tenho essa responsabilidade, que me aflige. - E lá estava ela outra vez, a tal entoação peculiar.- Papéis? - repeti.- Registos. Dantes eu tinha um sacristão. Depois as freiras. Agora não tenho ninguém.367Eu podia dar uma ajuda. - Não era imaginação minha; ele estava a tentar dizer-me algo. - Padre Alban, deixe-me ajudá-lo. Sorriu-me com uma doçura peculiar.- É muito simpático da tua parte, Madeleine. Seria uma grande ajuda.64Os ilhéus desconfiam de tudo o que tenha a ver com papelada. Foi por isso que confiámos a um padre a guarda dos nossos segredos, os nossos estranhos nascimentos e mortes violentas, que o encarregámos de zelar pelas nossas árvores genealógicas. As informações são do domínio público, como é óbvio, pelo menos em teoria. Mas sobre elas pairam as sombras do confessionário, sepultadas sob o pó. Jamais existiu aqui um computador, nem existirá. Há livros-razão, cuidadosamente escritos numa tinta castanho-avermelhada e grandes pastas cor de cogumelo que contêm documentos encarquilhados pelo tempo.As assinaturas que alastram demoradamente ou percorrem apressadas essas páginas contêm toda uma história: aqui foi uma mãe analfabeta que colou uma pétala de rosa na certidão de nasci mento da filha; ali uma mão de homem vacilou no registo da morte da mulher. Casamentos, crianças nadas-mortas, mortes. Aqui dois irmãos, abatidos a tiro pelos alemães por fazerem contrabando com produtos do mercado negro vindos do continente; ali uma família inteira dizimada pela gripe; numa página uma rapariga, outra Prossage, deu à luz uma criança de "pai desconhecido". Na página oposta, outra rapariga, uma criança de catorze anos, morreu ao dar à luz uma criança disforme que não sobreviveu.As inumeráveis variações nunca eram enfadonhas; por estranho que pareça, achava-as todas bastante exaltantes. Continuarmos como continuamos, a despeito de tudo, parece quase heróico,

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368369sabendo que tudo acabará assim. Os apelidos da ilha, Prossage, Bastonnet, Guénolé, Prasteau, Brismand, marchavam ao longo das páginas como soldados. Quase me esqueci da razão por que ali estava.O padre Alban deixara-me sozinha. Talvez não confiasse em si próprio. Durante algum tempo, embrenhei-me por completo nas histórias de Le Devin, até a luz começar a enfraquecer, lembrando -me por que viera. Demorei mais uma hora até encontrar a referência de que estava à procura.Ainda não estava totalmente certa do que procurava e perdi algum tempo com a árvore genealógica da minha família; a assinatura da minha mãe trouxe-me lágrimas aos olhos quando tropecei nela por acaso no cimo de uma página, ao lado da caligrafia atenta e iletrada de GrosJean. Depois o nascimento de GrosJean e do irmão, na mesma página embora separados por anos. A morte de GrosJean e do irmão, "Perdido no mar". As páginas, numa escrita cerrada ao ponto de serem quase ilegíveis, exigiam vários minutos para serem decifradas. Começava a duvidar se teria interpretado mal e, afinal, não havia nada para descobrir.E então, subitamente, lá estava. O registo de casamento entre Claude Saint-Joseph Brismand e Eleanore Margaret Flynn, duas assinaturas em tinta violácea: um conciso "Brismand" seguido de um exuberante "Eleanore", com uma voluta sobre o "l", que se prolongava quase ao infinito, entrelaçando-se como hera nos nomes que o precediam e o seguiam.Eleanore. Pronunciei o nome em voz alta, com um sobressalto. Tinha-a encontrado.- Então ela descobriu, ma sceur.- Eu sabia que ela ia encontrar, se não desistisse.As duas freiras estavam paradas à entrada da porta, sorrindo como bonecas. Na luz difusa, pareciam quase jovens outra vez, com os olhos brilhantes.- Tu lembras-nos ela, um bocadinho, não lembra, ma soeur? Ela lembra-nos...- Eleanore.Depois, foi fácil. Eleanore fora onde tudo começara e o Eleanore onde tudo acabara. Nós, as freiras e eu, deslindámos a históriana sala de registos da igreja, à luz de velas para iluminar os papéis antigos à medida que o dia morria.Eu já adivinhara uma parte da história. As freiras sabiam o resto. Talvez o padre Alban tivesse deixado escapar qualquer coisa, quando elas o ajudavam nos registos.É uma história da ilha, mais triste do que a maior parte das histórias, mas nós estamos de tal modo habituados a agarrarmo-nos a estas rochas que desenvolvemos uma certa capacidade de regenera ção ou, pelo menos, alguns de nós conseguiram-no. Tudo começa com dois irmãos, que andavam sempre juntos como caranguejos, Jean-Marin e Jean-François Prasteau. E, naturalmente, com a rapariga, fogosa e temperamental. Também havia nela paixão; estava patente no modo como a assinatura se expandia em volutas e alastrava pela página, com uma espécie de romantismo inquieto.- Ela não era daqui - explicou Soeur Thérèse. - O senhor Brismand trouxe-a com ele de uma das suas viagens ao estrangeiro. Não tinha pais, nem amigos, nem dinheiro. Era dez anos mais nova do que ele, quase uma adolescente...- Mas era uma beleza - disse Soeur Extase. - Bela e irrequieta, uma combinação explosiva...- O Senhor Brismand andava tão ocupado a ganhar dinheiro que depois do casamento parecia quase nem dar por ela.Ele queria filhos, aliás como toda a gente das ilhas. Mas ela queria mais. Não fez amizades entre as mulheres houssins, era demasiado jovem e estrangeira para o gosto delas, e adquirira o hábito de se ir sentar sozinha todos os dias em Les Immortelles, a olhar o mar e a ler.- Oh sim, adorava romances - disse Soeur Extase. - Gostava de os ler e de os contar...- Cavaleiros e donzelas... - Príncipes e dragões.Foi aí que os dois irmãos a viram pela primeira vez. Tinham vindo receber um fornecimento de material para o estaleiro naval que geriam com o pai, e ela estava lá à espera. Estava em Le Devin

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há menos de três meses.O impulsivo P'titJean ficou imediatamente enamorado. Passou a visitá-la em La Houssinière todos os dias e ficava sentado ao lado dela na praia a conversar. GrosJean observava impassível, ao princípio370371divertido, depois curioso, um pouco enciumado e, por último, fatalmente seduzido.- Ela sabia o que estava a fazer - disse Soeur Thérèse. - Ao princípio era um jogo... ela gostava de jogos. P'titjean era um rapaz; acabaria por esquecê-la. Mas GrosJean...O meu pai, um homem calado, de emoções profundas, era diferente. Ela pressentiu-o; ele fascinava-a. Encontravam-se em segredo, nas dunas ou em La Goulue. GrosJean ensinou-a a velejar e elacontava-lhe histórias. Os barcos que ele construía no estaleiro reflectiam a influência dela, com aqueles nomes bizarros tirados de livros e de poemas que ele nunca lera.Nessa altura, porém, Brismand tinha começado a alimentar suspeitas. Foi sobretudo por culpa de P'titJean; a sua adoração por ela não passara despercebida em La Houssinière e, apesar de ser muito novo, estava muito mais próximo de Eleanore em idade do que o marido. Para Eleanore acabaram-se os passeios sozinha a Les Salants e Claude passou a ter sempre uma freira em Les Immortelles para a vigiar. Alem disso, Eleanore estava grávida e Claude felicíssimo.O rapaz nasceu um pouco prematuramente. Ela deu-lhe o nome de Claude, como exige a tradição da ilha, mas com uma perversidade típica inscreveu outro nome, um nome mais secreto, ali na certidão de nascimento para quem quisesse ver.Ninguém estabelecera a ligação. Nem sequer o meu pai, aquela caligrafia complexa e floreada ultrapassava a sua capacidade de decifração, e durante alguns meses a inquietude de Eleanore foi refreada pelos cuidados que o bebé exigia.Entretanto Brismand tornara-se mais possessivo, agora que tinha um filho. Em Le Devin os filhos são importantes, muito mais do que no continente, onde as crianças saudáveis são uma coisa normal. Imaginava-o, imaginava como se devia sentir orgulhoso do seu rapazinho. Imaginei os dois irmãos a observarem-no, num misto de desprezo, de culpa, de inveja e de desejo. Sempre achara que o meu pai odiava Claude Brismand por causa de qualquer coisa que Brismand lhe fizera. E só agora é que compreendia que aqueles que mais odiamos são aqueles a quem fizemos mal.E Eleanore? Durante algum tempo, tentou realmente dedicar-se ao bebé. Mas era infeliz. Tal como a minha mãe, achava a vidana ilha insuportável. As mulheres olhavam-na com suspeição e inveja; os homens não se atreviam a falar com ela.- Ela lia e relia aqueles livros dela - contou-me Soeur Thérèse - mas nada conseguia ajudá-la. Emagreceu e perdeu o antigo fulgor. Era como algumas flores silvestres que nunca se devem apanhar porque definham e murcham numa jarra. Às vezes conversava connosco...- Mas nós éramos demasiado velhas para ela, mesmo nesse tempo. Ela precisava de vida.As duas freiras acenaram com a cabeça, com um brilho nos seus olhos perspicazes.- Um dia deu-nos uma carta para entregar em Les Salants. Estava muito muito nervosa...- Mas não conseguia parar de rir...- E no dia seguinte... pfft! Ela e o bebé foram-se embora. - Ninguém soube para onde nem porquê...- Embora tenhamos uma suspeita, não é verdade, ma sceur, nós não somos confessoras, mas...- As pessoas contam-nos coisas, de qualquer maneira.Quando é que P'titjean descobrira a verdade? Descobriu por acaso, foi ela própria que lhe disse, ou foi ele que viu, como sucedera comigo trinta anos mais tarde, escrito na certidão de nascimento da criança na sua caligrafia exuberante?As freiras olhavam para mim, expectantes, sorrindo ambas. Baixei os olhos para a certidão de nascimento em cima da secretária à minha frente; a tinta cor de púrpura, o nome escrito naquela caligrafia floreada e elaborada...Jean-Claude Désiré St jean François Brismand. O rapaz era filho de GrosJean.372

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37365Conheço o sentimento de culpa. Conheço-o muito bem. É a faceta do meu pai em mim, essa essência amarga que herdei dele. É paralisante e sufocante. Quando P'titjean e o barco dele foram atirados para a costa em La Goulue, deve ter sido assim que ele se sentiu. Paralisado. Emudecido. Sempre fora calado, mas agora era como se o silêncio nunca fosse demais. P'titjean vivo deve ter-lhe causado muita amargura; P'titjean morto era um obstáculo irremovível.Quando o meu pai tentou falar com Eleanore, ela já tinha partido, deixando uma carta dirigida a ele; GrosJean encontrou-a, aberta, no bolso do irmão.Descobri-a quando fazia a minha última busca à velha casa do meu pai. Foi a partir dessa carta que fui capaz de juntar os pormenores finais: a morte do meu pai; o suicídio de P'titjean; Flynn.Não pretendo compreender tudo o que se passou. O meu pai não deixou mais nenhuma explicação. Não sei porque esperava que o fizesse; em vida, nunca deu nenhuma. Mas discutimos o assunto durante muito tempo, as freiras e eu, e penso que nos aproximámos muito da verdade.Claro que Flynn foi o catalizador. Sem o saber, tinha posto a máquina em movimento. O filho do meu pai, o filho que GrosJean nunca tinha podido reconhecer, porque para o fazer teria de admi tir a sua responsabilidade no suicídio do irmão. Compreendia agora a reacção do meu pai quando soube quem era Flynn. Tudoretorna; de um ano negro para outro ano negro, de Eleanore para Eleanore, o ciclo estava completo; e a amarga poesia deste final deve ter seduzido o seu lado romântico.Talvez Alain tivesse razão e ele não tivesse a intenção de morrer, dizia eu a mim própria. Talvez tivesse sido um gesto desesperado, uma tentativa de redenção; o modo de o meu pai corrigir as coisas. Ao fim e ao cabo, o homem responsável por tudo aquilo era o seu filho.Eu e as freiras voltámos a guardar os papéis e os registos no seu lugar original. Sentia-me silenciosamente grata pela presença delas, pela sua tagarelice incessante que me impedia de analisar minuciosamente o meu papel na história.A noite caíra e voltei lentamente para Les Salants, escutando os grilos nos arbustos de tamargueira e olhando as estrelas. De vez em quando um vaga-lume luzia debilmente aos meus pés. Sentia-mecomo se tivesse dado sangue. A minha raiva desaparecera. A minha mágoa, também. Mesmo o horror do que tinha acabado de saber parecia terrivelmente irreal, tão remoto como as histórias que lera na infância. Algo dentro de mim soltara-se das amarras e pela primeira vez na minha vida senti-me capaz de abandonar Le Devin sem aquela terrível sensação de deriva, de leveza, de detrito humano de um naufrágio numa maré estranha. Finalmente, sabia para onde ia.A casa do meu pai estava silenciosa. Contudo, experimentava a sensação singular de não estar só. Era qualquer coisa no ar, um odor cediço a fumo de vela, uma ressonância estranha. Não tinha medo. Pelo contrário, sentia-me estranhamente em casa, como se o meu pai tivesse saído para a pesca à noite, como se a minha mãe ainda ali estivesse, talvez no quarto, a ler um dos seus romances baratos em edição económica.Hesitei durante um momento ao pé da porta do quarto do meu pai antes de a abrir. O quarto estava como ele o tinha deixado, talvez ligeiramente mais arrumado do que era habitual, com a roupa dobrada e a cama feita. Senti uma pontada de angústia ao ver a velha vareuse de GrosJean dependurada de um cabide atrás da porta, mas de resto sentia-me interiormente calma. Desta vez sabia o que devia procurar.374375Ele guardava os seus papéis secretos numa caixa de sapatos, como fazem os homens como ele, atada com um bocado de fio de pesca, na parte de trás do guarda-roupa. Uma pequena colecção; aoabanar a caixa, percebi que devia estar só meio cheia. Algumas fotografias, do casamento dos meus pais, ela de branco e ele com o traje da ilha. Sob o chapéu preto de aba lisa, o rosto dele era doloridamente jovem. Alguns instantâneos meus e de Adrienne; vários de P'titJean em diversas idades. A maior parte dos outros papéis eram desenhos.Costumava desenhar em papel pardo, sobretudo a carvão e a lápis preto grosso, e a passagem do

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tempo e o contacto dos papéis uns contra os outros tinham esborratado as linhas, mas apesar disso podia ver que GrosJean possuíra em tempos um talento notável. As feições eram representadas com uma concisão que quase competia com a da sua conversação, mas cada linha, cada mancha era expressiva. Aqui o seu polegar traçara uma linha espessa de sombra à volta do contorno de uma maxila; ali um par de olhos espreitava com uma estranha intensidade por detrás de uma máscara de carvão.Todos eles eram retratos e todos da mesma mulher. Eu sabia o nome dela; tinha visto o elegante rabisco da sua caligrafia no registo da igreja. E agora via também a sua beleza; a arrogância dos malares, a altivez da cabeça, a curvatura da boca.Compreendi que aqueles desenhos da rapariga eram as cartas de amor dele. O meu pai, silencioso e iletrado, encontrara por algum tempo uma voz belíssima. Do meio de duas folhas de papel pardo caiu uma flor seca: um cravo das dunas, amarelecido pelo tempo. Depois um pedaço de fita que talvez tivesse sido azul ou verde. E depois uma carta.Era o único documento escrito. Uma única página, rasgada nas dobras por ter sido tantas vezes dobrada e desdobrada. Reconheci logo a caligrafia dela, o rabisco floreado e a tinta violeta.Meu querido Jean-FrançoisTalvez tivesses feito bem em manteres-te longe de mim tanto tempo. Ao princípio, senti-me magoada e fiquei zangada, mas agora compreendo que foi para me dares tempo para pensar.Sei que este não é o meu lugar. Sou feita de uma substância diferente.Durante algum tempo acreditei que cada um de nós podia modificar o outro, mas era demasiado difícil para ambos. Decidi partir no ferry de amanhã. Claude não me vai impedir, partiu para Fromentine em negócios durante alguns dias. Espero por ti no molhe até ao meio-dia.Não te censuro se não partires comigo. Tu pertences a este lugar e seria errado da minha parte obrigar-te a partir. Mas de qualquer modo, tenta não me esquecer. Talvez um dia o nosso filho volte, mesmo que eu nunca mais regresse.Tudo retorna, EleanoreVoltei a dobrar a carta cuidadosamente e a guardá-la na caixa de sapatos. Então era verdade, disse para mim. A confirmação final, se era preciso alguma. Não sabia como é que tinha chegado às mãos de P'titJean, mas para um jovem impressionável e sensível, o choque da traição do irmão devia ter sido terrível. Fora suicídio ou um gesto dramático que correu mal? Ninguém tinha a certeza, a não ser porventura o padre Alban.Sabia que GrosJean devia ter ido falar com ele. Na sua qualidade de houssin e de sacerdote, era o único suficientemente distanciado do cerne da história para poder confiar nele na decifração da carta de Eleanore. O velho sacerdote considerara o seu pedido como uma confissão e guardara muito bem o segredo.GrosJean não contara a mais ninguém. Depois da partida de Eleanore, tornara-se ainda mais introvertido, passando horas em Les Immortelles, a olhar para o mar, fechando-se cada vez mais dentro de si. Durante algum tempo, pareceu que talvez o casamento com a minha mãe o fizesse sair da sua carapaça, mas a mudança fora de pouca duração. Substâncias diferentes, dissera Eleanore. Mundos diferentes.Voltei a colocar a tampa na caixa de sapatos e levei-a comigo para o jardim. Quando a porta se fechou nas minhas costas, fui assaltada por um sentimento de certeza: nunca mais voltaria a pôr os pés na casa de GrosJean.376377- Mado. - Ele estava à minha espera junto ao portão do estaleiro, quase invisível nos seus jeans e na camisola preta. - Pensei que acabarias por aparecer se ficasse à espera.As minhas mãos apertaram com força a caixa de sapatos. - O que é que queres?- Lamento o que aconteceu ao teu pai: - O rosto dele estava na sombra e havia sombras nos seus olhos. Senti uma espécie de estrangulamento dentro de mim.- O meu pai? - disse com rudeza. Vi-o retrair-se ante o meu tom de voz. - Mado, por favor.- Não te aproximes. - Flynn estendera a mão para me acariciar o braço. Embora tivesse um blusão

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vestido, imaginei sentir o seu contacto que queimava através do tecido forte e senti uma náu sea de horror perante o desejo que se enroscava como uma serpente dentro de mim. - Não me toques! - gritei, agredindo-o. - Que queres? Porque voltaste?Atingira-o na boca. Levou uma mão ao rosto, observando-me calmamente.- Sei que estás furiosa. - Furiosa?Normalmente não falo muito. Mas dessa vez a minha fúria tinha uma voz. Uma orquestra inteira de vozes. Falei-lhe de tudo: de Les Salants, de Les Immortelles, de Brismand, de Eleanore, do meu pai e dele próprio. No fim parei, sem fôlego, e meti-lhe a caixa de sapatos nas mãos. Não esboçou um gesto para a agarrar; caiu no chão, espalhando todas as tristes bagatelas da vida do meu pai numa confusão de papéis. Ajoelhei-me para as apanhar, com as mãos trémulas.A voz dele soava estupefacta.- Filho de Grosjean? Seu filho?- Eleanore não te contou? Não foi por isso que te mostraste tão preocupado em guardar segredo?- Não fazia a mínima ideia. - Estreitou os olhos e senti que estava a pensar muito depressa. - Não importa - disse por fim. - Não altera nada. - Parecia estar a falar mais consigo próprio doque comigo. Voltou-se outra vez para mim com um movimento rápido. - Mado - disse com ansiedade. - Nada mudou.- Que queres dizer? - Estava prestes a esbofeteá-lo de novo. - Claro que mudou. Tudo mudou. Tu és meu irmão. - Sentia que os olhos me começavam a arder e a garganta áspera e amarga. - Meu irmão - repeti, ainda com as mãos cheias dos papéis de GrosJean, e desatei numa explosão de gargalhadas que terminaram num acesso de tosse longo e doloroso.Fez-se silêncio. Depois Flynn começou a rir docemente no escuro.- Que mais agora?Ele continuava a rir. Não devia ser um som desagradável, masera.- Ah, Mado - disse por fim. - Teria sido tudo tão fácil. Tão belo. A maior partida que alguém jamais pregou. Não faltava nada: o velho, o dinheiro dele, a praia dele, a sua ânsia desesperada de encontrar um herdeiro. - Abanou a cabeça. - Estava tudo preparado. Só faltava um pouco de tempo. Mais tempo do que eu esperava, mas... enfim, bastava que os acontecimentos seguissem o seu curso. Passar um ano num buraco como Les Salants não era um preço demasiado elevado a pagar. - Brindou-me com um dos seus sorrisos perigosos, de luz do sol reflectida na água. - E foi então - disse ele - que tu apareceste.- Eu?- Tu, com as tuas grandes ideias. Com os teus nomes da ilha. Com os teus planos impossíveis. Tu, obstinada, ingénua, absolutamente incorruptível. - Afagou-me a nuca de raspão e eu senti como que um choque eléctrico sob a ponta dos seus dedos.Afastei-o.- A seguir vais dizer que foi por mim que fizeste isto. Sorriu.- Mas por quem é que pensas que o fiz? - Ainda sentia a respiração dele na minha testa. Fechei os olhos, mas o rosto dele estava gravado nas minhas retinas. - Oh, Mado. Se soubesses como tentei manter-te afastada. Mas tu és como este lugar, que, lenta e insidiosamente, se apodera de ti. E antes de teres consciência disso, estás apanhado.Abri os olhos.378379- Não podes - disse eu.- É demasiado tarde. - Suspirou. - Teria sido magnífico ser Jean-Claude Brismand - disse pesaroso. - Ter dinheiro, terra, para fazer tudo o que me apetecesse.- Ainda podes. Brismand não precisa de saber nunca. - Mas eu não sou Jean-Claude.- Que queres dizer? Está lá, na certidão de nascimento.Flynn abanou a cabeça. Os olhos dele eram indecifráveis, quase negros. Cintilavam como vaga-lumes.

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- Mado, o rapaz dessa certidão de nascimento não sou eu.66À medida que ia contando a sua história, parecia-me sinistramente familiar, uma história típica das ilhas e, contra vontade, escutava-o num fascínio crescente. Era esse afinal o seu segredo, o tal lugar para onde eu nunca tinha sido convidada, e agora finalmente acessível. A história de dois irmãos.Tinham nascido separados por mil milhas e pouco menos de dois anos de diferença. Apesar de serem apenas meios-irmãos, eram parecidos com a mãe e, por isso, tinham semelhanças espantosas, embora fossem muito diferentes em todos os outros aspectos. A mãe não sabia escolher os homens e mudava de ideias com frequência. Daí resultou que John e Richard tivessem tido vários pais.Mas o pai de John era um homem rico. Apesar de viver no estrangeiro, continuara a sustentar o rapaz e a mãe, mantendo-se em contacto apesar de nunca aparecer pessoalmente. Os dois irmãos acabaram por ter dele uma imagem benevolente ainda que vaga; a imagem de alguém a quem podiam recorrer em caso de necessidade.- Mas não era bem assim - disse Flynn. - Aprendi à minha custa no dia em que entrei para a escola.John tinha sido mandado, dois anos antes, para uma escola privada onde aprendeu latim e fazia parte da melhor equipa de críquete; mas Richard foi frequentar uma escola local, um sítio terrível onde as diferenças, sobretudo de inteligência, eram expostas em380381público sem piedade e sujeitas a uma série de perseguições engenhosas e brutais.- A nossa mãe nunca lhe falou de mim. Tinha receio que se lhe contasse sobre os outros homens que teve, ele deixasse de mandar dinheiro.Por isso, o nome de Richard nunca foi mencionado e Eleanore viu-se e desejou-se para dar a Brismand a impressão de que ela e John viviam sozinhos.- Quando havia dinheiro - prosseguiu Flynn - era sempre para o Menino de Ouro. Viagens escolares, uniforme escolar, equipamentos desportivos. Ninguém explicava porquê. John tinha uma conta-poupança no Correio. John tinha uma bicicleta. Eu só tinha as coisas de que John se cansava, que tinha partido ou que era demasiado estúpido para compreender como funcionavam. Nunca passou pela cabeça de ninguém que eu pudesse desejar algo só meu. - Por breves instantes, pensei em mim e em Adrienne. Assenti com a cabeça, quase inconscientemente.Depois do liceu, John foi para a universidade. Brismand concordara em financiar-lhe os estudos desde que ele escolhesse um curso útil para os negócios; mas John não tinha a menor queda nempara engenharia nem para gestão e não gostava que lhe dissessem o que devia fazer. Na realidade, a John não lhe agradava a ideia de ter de trabalhar, depois de lhe fazerem as vontades durante tanto tempo e abandonou a faculdade no segundo ano, passando a viver das suas economias e vadiando com um grupo de amigos de reputação duvidosa e constantemente falidos.Eleanore foi-o encobrindo enquanto pôde. Mas John escapava agora à sua esfera de influência, arranjando dinheiro de maneira fácil, vendendo rádios roubados e cigarros de contrabando, e vangloriando-se constantemente, depois de uns copos, de ter um pai rico.- Sempre a mesma história. Qualquer dia arranjava trabalho, o velhote tomava conta dele, não havia razões para preocupações, havia muito tempo. Penso que, secretamente, ele esperava queBrismand morresse antes de ter de tomar uma decisão. John nunca fora muito propenso a fixar-se no que quer que fosse e a ideia de se mudar para França, de aprender a língua, de ter de abandonar os companheiros e a sua vida fácil... - Flynn soltou uma gargalhadamagoada. - Quanto a mim, há muito tempo que trabalhava em estaleiros navais e na construção civil e o papel de Jean-Claude estava vago. O Menino de Ouro parecia não ter pressa.Era a oportunidade perfeita. Flynn dispunha de provas suficientes e conhecia bastantes episódios para se fazer passar pelo irmão, para além de uma evidente parecença com John. Deixou oemprego numa empresa construtora e aplicou as suas escassas economias para comprar um bilhete para Le Devin. De início, o seu plano era simplesmente o de sacar a Brismand todo o dinheiro a que conseguisse deitar a mão antes de se raspar.- Para começar um cartão de crédito teria sido óptimo, ou talvez um fundo fiduciário. É um acordo

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normal entre pai e filho. Mas os ilhéus são diferentes.Tinha razão. Os ilhéus desconfiam dos fundos. Brismand queria um maior empenhamento. Queria ajuda. Primeiro em Les Immortelles. Depois em La Goulue. Em seguida em Les Salants.- Les Salants encerrava o assunto - disse Flynn com uma ponta de pesar. - Teria sido a minha riqueza. Primeiro a praia, depois a aldeia... e por último toda a ilha. Eu podia ter ficado comtudo. Brismand estava disposto a retirar-se. Ia pôr-me à cabeça de todos os seus negócios e eu passaria a ter acesso total a tudo.- Mas não agora.Sorriu e tocou-me a face com a ponta dos dedos. - Não, Mado. Agora não.À distância podia ouvir o silvo da maré enchente vindo de La Goulue. E mais longe, os guinchos das gaivotas como se alguém tivesse perturbado um ninho. Mas os sons eram distantes, abafados pelo latejar violento do meu sangue. Esforçava-me para compreender a história de Flynn, que se esgueirava escorregadia. Sentia as têmporas latejar; parecia ter um obstáculo na garganta que me dificultava a respiração. Era como se tudo o resto tivesse sido ofuscado por uma realidade única e gigantesca.Flynn não era meu irmão.- O que é aquilo? - Sobressaltei-me quase sem me dar conta do que tinha ouvido. Um som de alerta, algo profundo e ressonante, quase inaudível sobre o marulhar do mar.382383Flynn olhou para mim. - O que é agora?- Chiu! - Levei a mão à boca. - Escuta.Lá estava outra vez, quase um sussurro no ar calmo do anoitecer; o toque de um sino submerso vibrando nos nossos tímpanos. - Não ouço nada. - Impaciente, esboçou o gesto de pôr o braço à volta dos meus ombros. Endireitei-me e afastei-o, desta vez com mais veemência. - Não ouves o que é? Não o reconheces?- Não quero saber.- Flynn, é La Marinette.

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110 assim que acaba, do mesmo modo como começou. O sino, não a legendária Marinette, como se veio a verificar, mas o sino da igreja de La Houssinière, tocando a rebate pela segunda vez naquele mês, numa voz que transportava a sua mensagem através dos pântanos salgados. À noite, um sino possui uma sonoridade diferente da do dia; havia uma urgência lúgubre no seu toque e eu reagi com uma precipitação instintiva. Flynn tentou deter-me, mas eu não estava disposta a aceitar interferências. Pressentia um desastre talvez ainda pior do que a perda do Eleanore 2, e corri pela duna em direcção a Les Salants antes de Flynn perceber para onde eu me dirigia.A aldeia era, evidentemente, o único lugar onde não me podia seguir; deteve-se na crista da duna e deixou-me partir. O bar de Angélo estava aberto e um grupo de clientes reunira-se cá fora, alertados pelo toque do sino. Vi Omer, Capucine e os Bastonnets.- É o alarme, hem - disse Omer numa voz espessa, mais entaramelada pelas muitas devinnoises que já tinha bebido. - É o alarme dos houssins.Aristide abanou a cabeça.- Então, não tem nada a ver connosco, hem? Ao menos uma vez que sejam os houssins a sofrer a crise, para variar. Não é por isso que a ilha se vai afundar, pois não?- De qualquer maneira, alguém devia ir ver o que se passa - sugeriu Angélo, inquieto.384385- Que vá até lá alguém de bicicleta, hem - disse Omer. Várias pessoas concordaram com a sugestão, mas ninguém se ofereceu como voluntário. Teceram-se várias hipóteses quanto à natureza da

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emergência, que iam desde uma nova invasão de medusas até Les Immortelles varrida por um ciclone anómalo. Esta possibilidade mereceu a concordância da maior parte da assembleia e Angélo propôs nova rodada de bebidas.Foi nesse preciso momento que Hilaire contornou a esquina da Rue de L'Océan, agitando os braços e berrando. Isto só por si já era fora do comum, porque o médico era uma pessoa reservada em todas as circunstâncias; mas o que era ainda mais bizarro era a sua estranha indumentária; na precipitação, parecia ter enfiado a vareuse por cima do pijama e enfiava os pés descalços numas sapatilhas desbotadas. Para Hilaire, habitualmente impecável mesmo no pino do calor, era muito estranho. Gritava qualquer coisa a propósito da rádio.Angélo tinha uma bebida à espera dele quando chegou e a primeira coisa que Hilaire fez foi emborcá-la de um trago e com sombrio deleite.- Todos nós vamos precisar de um copo - disse, sucintamente - se aquilo que acabei de ouvir for verdade.Tinha estado a ouvir a rádio. Gostava de ouvir o noticiário internacional das dez horas antes de ir para a cama, embora os ilhéus raramente acompanhem as notícias. Em Le Devin, os jornais chegam normalmente atrasados e apenas o prefeito Pinoz se vangloria de interessar-se pela política e pela actualidade, o que é de esperar dado o lugar que ocupa.- Ora bem, desta vez ouvi uma notícia - disse Hilaire não é agradável!Aristide assentiu com a cabeça.- Não me surpreende. Já vos tinha dito que é um ano negro. Era de esperar.- Um ano negro! Hem! - Hilaire resmungou e estendeu a mão para a sua segunda devinnoise. - E ao que parece, é capaz de ficar bastante mais negro!-eSuponho que terão lido sobre o assunto. Um petroleiro acidentado ao largo da costa da Bretanha, expelindo centenas de galões de petróleo por minuto. É o tipo de coisa que ocupa a imaginação do público durante alguns dias, talvez uma semana. As estações de televisão mostram imagens de aves marinhas mortas, estudantes indignados protestam contra a poluição, alguns voluntários vindos das cidades tranquilizam a sua consciência social limpando uma ou duas praias. O turismo ressente-se durante algum tempo, embora as autoridades costeiras normalmente tomem medidas para limparem as áreas mais lucrativas. Como é evidente, a pesca é afectada durante mais tempo.As ostras são muito sensíveis; basta um leve indício de poluição para as extinguir. O 'mesmo sucede com os caranguejos e as lagostas; quanto aos salmonetes, pior ainda. Aristide lembra-se dos sal monetes em 1945 com as barrigas intumescidas de petróleo; todos nós recordamos o derramamento ocorrido na década de setenta... muito, muito mais longe do que este... que nos obrigou a remover grandes manchas de alcatrão das rochas em Pointe Griznoz.Na altura em que Hilaire acabara o relato, várias outras pessoas tinham chegado ao bar do Angélo com informações contraditórias ou corroborantes, e encontrávamo-nos num estado de semipanico; o navio encontrava-se a menos de setenta quilómetros de distância - não, digamos antes cinquenta -, transportava diesel em rama, a pior coisa possível; o derrame atingia já vários quilómetros de extensão e estava completamente fora de controlo. Alguns de nós fomos para La Houssinière para nos encontrarmos com Pinoz, que talvez tivesse mais informações. Muitos dos restantes ficaram a ver se conseguiam saber mais pormenores através dos canais televisivos, ou tiraram velhos mapas das algibeiras especulando sobre os possíveis movimentos do derrame.- Se for aqui - disse Hilaire sombrio, indicando um ponto no mapa de Aristide - então não vejo como é que poderá não nos atingir, hem? Esta é a Corrente do Golfo.- Não se sabe se o derrame chegou ou não à Corrente do Golfo - disse Angélo. - Talvez o consigam deter antes disso. Ou pode contornar esta zona, nas imediações de Noirmoutier, e não nos atingir a nós.Aristide não estava convencido.386387- Se atingir o Nid'Poule - disse ele - pode afundar-se ali e envenenar-nos durante meio século.

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- Ora, isso é o que tu tens feito há quase o dobro do tempo - comentou Matthias Guénolé - e, apesar disso, conseguimos sobreviver.A observação foi acompanhada por umas risadas nervosas. Angélo serviu outra rodada de devinnoise. Então alguém pediu silêncio do interior do bar e fomo-nos juntar ao pequeno grupo de clientes apinhados à volta da televisão.- Chiu, malta! Cá estão elas!Há certas notícias que só podem ser recebidas em silêncio. Escutávamos como crianças, de olhos esbugalhados, enquanto o ecrã difundia a sua mensagem. Até Aristide permanecia calado. Continuávamos atónitos, pregados ao ecrã e à pequena cruz vermelha que assinalava o cenário do naufrágio.- A que distância está? - perguntou Charlotte, ansiosa. - Está perto - disse Omer em voz baixa, muito pálido.- Malditas notícias que vêm do continente - explodiu Aristide. - Não, são capazes de usar um mapa decente, hem? Aquele estúpido diagrama leva a crer que está a vinte quilómetros de distância! E onde estão os pormenores?- Que acontece se chegar aqui? - disse Charlotte num sussurro.Matthias tentou aparentar calma.- Havemos de pensar em qualquer coisa. Ajudamo-nos uns aos outros. Já o fizemos antes.- Mas nunca num caso como este! - disse Aristide. Omer murmurou qualquer coisa quase inaudível. - O que é que disseste? - perguntou Matthias.- Disse que quem me dera que o Ruivo ainda cá estivesse. Todos nós olhámos uns para os outros. Ninguém o contradisse.68Nessa noite, com a ajuda de devinnoises, começámos a fazer o que podíamos. Recrutaram-se voluntários para fazerem turnos diante dos aparelhos de televisão e de rádio, para reunirem todas as informações que houvesse sobre o derramamento. Hilaire, que tinha telefone, foi designado o nosso contacto oficial com o continente. A sua tarefa era estar em ligação com a guarda costeira e com os serviços marítimos para sermos avisados antecipadamente. Foram colocados observadores a intervalos de três horas em La Goulue; a haver qualquer coisa, disse Aristide mal-humorado, começaria ali. Além disso, a enseada estava a ser dragada para a bloquear e impedir o acesso ao mar aberto, utilizando rochedos de La Griznoz e cimento que sobrara do Bouch'ou.- Pelo menos, se conseguirmos manter o canal limpo já é alguma coisa - disse Matthias. Por uma vez, Aristide concordou sem se queixar.Xavier Bastonnet apareceu por volta da meia-noite - aparentemente ele e Ghislain tinham saído duas vezes no Cécilia - com a notícia de que o barco da guarda costeira ainda estava ao largo de La Jetée. Segundo parecia, o petroleiro acidentado já estava em perigo há algum tempo, mas as autoridades só tinham revelado as notícias nos últimos dias. As previsões, segundo Xavier, não eram optimistas. Esperava-se vento de sul, que, a confirmar-se, arrastaria o petróleo na nossa direcção. Se isso acontecesse, só um milagre nos podia salvar.388389A manhã da festa de Sainte-Marine veio encontrar-nos com o moral em baixo. Tinham sido feitos alguns progressos ao longo do canal, mas não os necessários. Na opinião de Matthias, mesmo com o material adequado demoraria pelo menos uma semana para o preservar devidamente. Às dez da manhã, chegaram à aldeia relatos de resíduos negros avistados a alguns quilómetros ao largo de La Jetée, que nos deixaram impotentes e apreensivos. Os bancos de areia já estavam negros e, embora ainda não tivesse atingido a costa, chegaria lá sem dúvida dentro de vinte e quatro horas.Não obstante, como observou Toinette, não convinha negligenciar a santa no dia da sua festa, pelo que na aldeia os preparativos habituais estavam já em marcha: a pintura do pequeno santuário; flores em La Pointe; a fogueira acesa junto às ruínas da igreja.Mesmo com o auxílio de binóculos ainda não era evidente o que era o resíduo, mas Aristide informou que era em grande quantidade e com a maré enchente dessa noite e o vento a soprar de

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sul, era provável que atingisse La Goulue a qualquer momento. A próxima preia-mar era aguardada para cerca das dez horas dessa noite, pelo que à tarde já havia alguns habitantes da aldeia de atalaia em Pointe Griznoz, com oferendas, flores e efígies da santa. Toinette, Désirée e muitos dos mais velhos inclinavam-se a pensar que a única solução estava na oração.- Ela já fez milagres antes - declarava Toinette. - A esperança é a última a morrer.A maré negra tornara-se visível a olho nu a partir do fim da tarde. Breves vislumbres sob uma vaga, algo que avançava dos bancos de areia, ou flutuava de modo inusitado entre as sombras de um rochedo. No entanto, não se via ainda nenhum sinal de petróleo na água, nem sequer uma leve camada, mas como dizia Omer, podia tratar-se de um tipo especial de petróleo, um tipo nocivo, ainda pior do que o que tínhamos tido no passado. Em vez de flutuar à superfície, formava coágulos, mergulhava, deslizava pelo fundo, envenenando tudo. A tecnologia era capaz de coisas terríveis, hem? As pessoas abanavam a cabeça ao ouvi-lo, mas ninguém sabia ao certo. Não era a nossa especialidade e, ao começo390da noite, já proliferavam histórias sobre a maré negra. Aristide afirmava que iam aparecer peixes com duas cabeças e caranguejos venenosos. Bastava tocar-lhes para nos arriscarmos a apanhar uma terrível infecção. As aves enlouqueceriam, os barcos seriam arrastados para o fundo pelo peso dos sedimentos da lama solidificada. Pelo que sabíamos, talvez tivesse sido a maré negra que provocara a invasão de medusas. Mas apesar de tudo isso, ou talvez por causa disso, Les Salants resistia firme e inabalável.A maré negra pelo menos dera-nos isso. Voltávamos a ter um desígnio, um objectivo comum. O ânimo de Les Salants - o núcleo duro no mais fundo de nós, que eu entrevira nas páginas dos livros do padre Alban - voltara. Eu podia senti-lo. As antigas ofensas foram esquecidas mais uma vez. Xavier e Mercédès tinham posto de lado o projecto de se irem embora, pelo menos por agora, e decidiram dar uma ajuda. Philippe Bastonnet, que estivera em La Houssimère à espera do próximo ferry, voltou com Gabi, Laetitia, o bebé e o cão Pétrole para Les Salants, onde, a despeito dos protestos cada vez menos convincentes de Aristide, ele estava decidido a ficar e a ajudar. Désirée arranjara espaço para eles na casa e, desta vez, Aristide não levantara objecções.À medida que caía a noite e a maré subia, ia-se juntando mais gente em La Griznoz. O padre Alban estava ocupado em La Houssinière, onde estava a ser celebrado um serviço litúrgico especial na igreja, mas as velhas freiras lá estavam, vivas e alerta como sempre. Acenderam-se fogueiras e as lanternas vermelhas, cor-de-laranja e amarelas tremeluziam-à volta da base da igreja em ruínas, e mais uma vez os Salannais, estranhamente comoventes com os seus chapéus típicos da ilha e trajes domingueiros, formavam uma fila aos pés de Sainte-Marine-de-la-Mer para rezarem e suplicarem em voz alta.Estavam lá os Bastonnets com François e Laetitia; os Guénolés, os Prossages. Capucine e Lolo; Mercédès, de mão dada com Xavier, um pouco timidamente, e com a outra mão pousada no ventre. Toinette cantava a Santa Marina na sua voz trémula e Désiree, de pé entre Philippe e Gabi aos pés da santa, tinha o ar viçoso e satisfeito de quem assistia a um casamento.- Mesmo que a santa decida não intervir - disse ela, serenamente - só o facto de ter aqui os meus filhos vale a pena.391Eu mantinha-me afastada dos outros, no cimo da duna, à escuta e evocando a festa do ano anterior. Estava uma noite serena e o trilo dos grilos ressoava nas cavidades quentes no meio da erva. Sentia a areia dura e fria debaixo dos pés. De La Goulue chegava o silvo da maré enchente. Sainte-Marine olhava para baixo no seu isolamento inexpressivo, com as feições animadas pelas labaredas tremeluzentes. Eu observava enquanto os salannais se aproximavam da beira-mar, um a um.Mercédès foi a primeira, deixando cair uma mão cheia de pétalas de flores na água.- Sainte Marine. Abençoa o meu bebé. Abençoa os meus pais e protege-os.- Santa Marina. Abençoa a minha filha. Que ela seja feliz com o seu homem e fique perto para nos visitar de vez em quando.- Marine-de-la-Mer, abençoa Les Salants. Abençoa as nossas costas.

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- Abençoa o meu marido e os meus filhos. - Abençoa o meu pai.- Abençoa a minha mulher.Lentamente fui tomando consciência de que estava a acontecer algo de extraordinário. Os salannais de mãos dadas à luz das fogueiras: Omer com o braço à volta de Charlotte; Ghislain de braço dado com Xavier; Capucine e Lolo; Aristide e François; Damien e Alain. As pessoas sorriam apesar da ansiedade; em vez das cabeças cabisbaixas e prostradas do ano anterior, via agora olhos brilhantes e rostos orgulhosos. Os lenços de cabeça atirados para trás e os cabelos soltos; via os rostos iluminados por algo mais do que as labaredas; vultos dançantes a atirarem mãos cheias de pétalas de flores, fitas e saquinhos de ervas para as ondas. Toinette recomeçara a cantar e desta vez juntaram-se-lhe mais pessoas e as vozes fundiam-se aos poucos numa única voz: a voz de Les Salants.Percebi que se escutasse com atenção quase poderia ouvir a voz de GrosJean no meio delas; e a da minha mãe; e a de P'titJean. De repente desejei juntar-me a eles, avançar para a luz da fogueira e rezar à santa. Mas em vez disso, murmurei a minha oração na duna, muito calmamente, quase para mim...- Mado? - Ele é capaz de caminhar num silêncio absoluto quando quer. É o seu lado de ilhéu... se e que existe um ilhéu pordetrás de todo o fingimento. Virei-me abruptamente, com o coração aos saltos.- Jesus, Flynn, que fazes aqui? - Estava parado atrás de mim na vereda da duna, oculto da vista da pequena cerimónia. Vestia uma vareuse escura e passaria quase invisível se não fosse a madeixa de luar no seu cabelo.- Onde é que tens estado? - perguntei num sussurro, olhando para trás nervosamente para os salannais, mas antes que ele tivesse tempo de responder, veio um grito agudo do posto de vigia em Pointe Griznoz, ecoado um ou dois segundos mais tarde por um gemido vindo de La Goulue.- Aiii! A maré! Aiii!No santuário, os cânticos ficaram suspensos. Seguiu-se um momento de confusão; alguns salannais precipitaram-se para a beira da Pointe, mas à luz incerta das lanternas não se distinguia grande coisa. Qualquer coisa cavalgava as ondas, uma massa escura e semiflutuante, mas ninguém era capaz de dizer exactamente o, que era. Alain pegou numa lanterna e começou a correr; Ghislain fez o mesmo. Em breve, um rasto de lanternas e de tochas oscilava através da duna na direcção de La Goulue e da maré negra.Flynn e eu estávamos perdidos no meio da confusão. A multidão passava ao nosso lado, gritando, interrogando-se e agitando lanternas, mas ninguém parecia reparar em nós. Todos queriam ser os primeiros a chegar a La Goulue. Alguns, passando pela aldeia, deitavam a mão a ancinhos e a redes, como que para iniciarem a operação de limpeza de imediato.- Que se passa? - perguntei a Flynn, enquanto nos deixávamos arrastar pela multidão.Ele abanou a cabeça. . - Vamos ver.Tínhamos chegado ao bunker, que era sempre um excelente ponto de observação. Por baixo de nós, La Goulue fervilhava de luzes. Avistei várias pessoas com os pés metidos nas poças de água, segurando lanternas, como uma fiada de pescadores à luz do candeio. À volta deles via manchas negras, dezenas delas, semiflutuantes, semi-submersas, arrastadas pelas vagas. À distância ouvia vozes excitadas e... mas não eram gargalhadas? As manchas negras eram demasiado imprecisas à luz das lanternas para as podermos392393identificar, mas por momentos pareceu-me entrever um padrão regular, demasiado geométrico para ser natural.- Repara naquilo - disse Flynn.Lá em baixo a excitação aumentara de volume; tinha-se juntado mais gente à beira de água, alguns metidos na água até aos ombros. A luz das lanternas varria a água; sobre os baixios pairava um tom esverdeado, irreal e lívido.- Continua a olhar - disse Flynn.O que se ouvia eram definitivamente gargalhadas. Lá em baixo em La Goulue via gente a chapinhar

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nas poças de água entre os baixios.- O que se passa? - perguntei. - É a maré negra? - Num certo sentido.Via agora Omer e Alain rolando uns objectos negros para fora da rebentação. Outros juntaram-se a eles. Os objectos tinham cerca de um metro de diâmetro e linhas regulares. De longe pareciam pneus de automóveis.- É exactamente o que são - disse Flynn calmamente. - É o Bouch'ou.- O quê? - Senti-me como se qualquer coisa dentro de mim se tivesse desprendido e andasse à deriva. - O Bouch'ou?Ele assentiu. A sua expressão estava iluminada de um modo estranho pela luminosidade que subia da praia.- Mado. Era a única coisa a fazer.- Mas para quê? Todo o nosso trabalho...- Neste momento, temos de deter o avanço em direcção a La Goulue. Se nos desembaraçarmos da barreira, as correntes desviam-se. Assim, se o petróleo se aproximar de Le Devin, poderá passar ao lago de Les Salants. Pelo menos, têm essa hipótese.Ele tinha saído na maré baixa. Servira-se de alicates para cortar os cabos de aviões que prendiam uns aos outros os vários módulos. Demorara meia hora nessa tarefa e a maré fizera o resto.- Tens a certeza de que vai funcionar? - perguntei por fim. - Estaremos agora em segurança?Encolheu os ombros. - Não sei.- Não sabes?- Oh, Mado, o que é que esperavas? - Parecia exasperado agora. - Não te posso dar tudo! - Abanou a cabeça. - Pelo menos agora podem defender-se. Les Salants não é obrigado a morrer. - E Brismand? - inquiri, sombria.- Está demasiado ocupado com o seu lado da ilha para prestar muita atenção ao que se passa aqui. Segundo as últimas notícias que ouvi, andava a dar voltas à cabeça a tentar descobrir como seriapossível remover em vinte e quatro horas um quebra-mar de cem toneladas. - Sorriu. - Afinal, talvez GrosJean tivesse razão.Por momentos as palavras deles foram incompreensíveis para mim. Tinha estado tão absorta nos meus pensamentos por causa da maré negra que esquecera de facto os planos de Brismand. Senti de súbito invadir-me uma onda de alegria selvagem.- Se Brismand também remover as defesas dele, tudo pode parar - disse eu. - As marés voltarão a ser como eram dantes. Flynn ria.- As pequenas barbecues na praia. Três hóspedes num quarto das traseiras. Três francos por cabeça para verem a santa. Contar os tostões. Nem dinheiro, nem construções, nem futuro, nem fortuna, nada.Abanei a cabeça.- Não tens razão. Haverá Les Salants. Ele voltou a rir, desenfreadamente.- É verdade. Les Salants.39439569Sei que ele não poderá ficar em Les Salants. Sou estúpida em acalentar essa esperança. Não pode ficar porque houve demasiadas mentiras e desilusões. Há muita gente que o odeia. E, no fundo, ele pertence ao continente. Sonha com as luzes das cidades. E mesmo que quisesse, não vejo como poderia ficar. Do mesmo modo, eu não me irei embora; é o meu lado de GrosJean, a ilha em mim. O meu pai amava Eleanore, mas no fim não partiu com ela. A ilha arranja maneira de nos prender. Desta vez é a maré negra. A mancha de petróleo está agora a dez quilómetros de distância, do lado de Noirmoutier. Ninguém sabe se nos vai atingir ou poupar, nem sequer a guarda costeira. Já há estragos graves na costa da Vendeia; a televisão traz-nos imagens do nosso possível futuro em tons exasperantemente granulosos e espalhafatosos. Ninguém pode predizer o que nos vai acontecer; em rigor, o derrame deveria seguir a Corrente do Golfo, mas agora é uma questão de poucos quilómetros e pode dirigir-se para qualquer dos lados.

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É quase certo que Noirmoutier será atingida. Quanto à ilha de Yeu ainda é incerto. As correntes agitadas que nos separam defrontam-se pelo controlo. Uma de nós, talvez apenas uma, irá apanharcom o petróleo. Porém Les Salants não perdeu a esperança. A verdade é que estamos a trabalhar com mais afinco do que nunca. A enseada está agora a salvo e o viveiro bem aprovisionado. Aristide, cuja perna de pau o impede de tarefas mais activas, ouve atentamente os noticiários televisivos enquanto Philippe ajuda Xavier.Charlotte e Mercédès tomam conta do bar de Angélo, preparando comida para os voluntários. Omer, os Guénolés e os Bastonnets passam a maior parte do tempo em Les Immortelles. Brismand recrutou toda a gente, tanto houssins como salannais, que esteja disposta a dar uma ajuda no moroso desmantelamento do quebra-mar em Les Immortelles; também alterou o testamento a favor de Marin. Damien, Lolo, Hilaire, Angélo e Capucine continuam a limpar La Goulue e planeamos voltar a usar os velhos pneus para construir barreiras de protecção contra o petróleo, no caso de se dirigir para as nossas praias. Já nos abastecemos com material de limpeza para essa eventualidade. Flynn ficou encarregado disso.É verdade, por enquanto, ele continua na ilha. Alguns homens ainda manifestam uma certa frieza em relação a ele, mas os Guénolés e os Prossages aceitaram-no de volta de coração nas mãos apesar de tudo e Aristide jogou xadrez com ele ontem, pelo que talvez ainda haja esperanças para ele. Não é certamente altura para recriminações inúteis. Trabalha com o mesmo empenho que qualquer de nós, senão mais, e em Le Devin é só isso que interessa neste momento. Não sei a razão por que continua cá. No entanto, é singularmente reconfortante vê-lo todos os dias, no seu lugar habitual em La Goulue, apanhando com um pau as coisas que o mar traz, deslocando a interminável maré de pneus para os guardar nas dunas. Ainda não perdeu as suas maneiras cáusticas, talvez nunca as perca, mas penso que está mais apaziguado, mais afável, em parte recuperado, quase um de nós. Comecei até a gostar dele, um bocadinho.Às vezes acordo e olho pela janela para o céu. Nunca está totalmente escuro nesta época do ano. Uma vez por outra, Flynn e eu esgueiramo-nos cá para fora para olhar La Goulue, onde o mar é glauco com aquela estranha fosforescência própria da Costa de Jade e ficamos ali sentados na duna. Crescem ali tamargueiras, cravos tardios e rabos-de-coelho que se agitam e estremecem lividamente sob a luz das estrelas. Do outro lado da água avistamos às vezes as luzes do continente; um farol de sinalização para oeste, a bóia luminosa para sul. Flynn gosta de dormir na praia. Gosta dos leves ruídos dos insectos na parede da falésia por cima da cabeça e do roçagar do esparto. Às vezes ficamos lá toda a noite.396397EPÍLOGOChegou o Inverno e a maré negra ainda não nos atingiu. A Ilha de Yeu foi um pouco afectada, Fromentine está imersa em petróleo, e Noirmoutier foi gravemente devastada. E continua a subir ao longo da costa em direcção a norte, insinuando-se nos baixios e invadindo promontórios. Ainda é muito cedo para dizer o que irá acontecer aqui. Mas Aristide mostra-se optimista. Toinette consultou a santa e afirma ter tido visões. Mercédès e Xavier mudaram-se para o pequeno chalé nas dunas, para prazer inconfessado do velho Bastonnet. Omer conseguiu uma série de vitórias sem precedentes na belote. E tenho a certeza que outro dia vi Charlotte Prossage sorrir. Não, não vou dizer que a nossa sorte mudou. Mas houve qualquer coisa que voltou a Le Devin. Uma espécie de desígnio. Ninguém pode virar a maré, pelo menos para sempre. Tudo retorna. Mas Le Devin resiste. Com inundações, com secas, com anos negros ou marés negras, resiste. Resiste porque nós, os Devinnois, resistimos: os Bastonnets, os Guénolés, os Prasteaus, os Prossages, os Brismands; e até, porventura, mais recentemente, os Flynns. Não há nada que nos possa abater. Tentá-lo seria como cuspir para o vento.398

AGRADECIMENTOSNenhum livro é uma ilha e eu gostaria de agradecer às seguintes pessoas, sem as quais nada disto

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teria sido possível. O meu caloroso obrigada à minha agente, Serafina, Princesa Guerreira; aJennifer Luithlen, Laura Grandi, Howard Morhaim e a todos os que negociaram, persuadiram, intimidaram e de algum modo pilotaram este livro para ser publicado. Obrigada também à minha formidável editora Francesca Liversidge; à minha dedicada publicista Louise Page; a todo o pessoal da Transworld; aos meus pais, ao meu irmão Lawrence, ao meu marido Kevin e à minha filha Anouchka por serem (quase sempre) um porto seguro; aos meus correspondentes via e-mail Curt, Emma, Simon, Jules, Charles e Mary por me manterem em contacto com o resto do mundo; a Christopher por estar presente, como sempre, e a Stevie, Paul e David pelo chá de hortelã, pelos crepes e pelas críticas construtivas. Obrigada aos inúmeros vendedores e livreiros que se têm esforçado por manter os meus livros nas prateleiras e, finalmente, obrigada aos habitantes de Les Salants, que, assim espero, me perdoarão a seu tempo...

Digitalizado porCarla Maria Ferreira dos Mártires

2003-01-08