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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE Volume XXIX aog/nov - 2010 ISSN 1517-5421 Capa: Eliaquim da Cunha EDITORES NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA HOLANDA - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia EDITORAÇÃO GRÁFICA ELIAQUIM DA CUNHA & SHEILA CASTRO Os textos devem conter no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, margens de 2 centímetros, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO ISSN 1517-5421 lathé biosa Volume XXIX aog/nov - 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

Volume XXIX aog/nov - 2010

ISSN 1517-5421

Capa: Eliaquim da Cunha

EDITORES

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA HOLANDA - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

EDITORAÇÃO GRÁFICA ELIAQUIM DA CUNHA & SHEILA CASTRO

Os textos devem conter no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, margens de 2 centímetros, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

ISSN 1517-5421 lathé biosa

Volume XXIX aog/nov - 2010

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Sumário

GESTAR I: UMA ALTERNATIVA PARA O LETRAMENTO ...............................................................................................2

Gustavo Aparecido da Silva EUCLIDES DA CUNHA, POLÍTICO ....................................................................................................................................... 13

Mauro Rosso ............................................................................................................................................................................. 13

AVALIAÇÃO PARASITOLÓGICA E CONDIÇÕES HIGIÊNICO-SANITÁRIAS DE HORTALIÇAS

COMERCIALIZADAS NA CIDADE DE CRUZEIRO DO SUL, ACRE, BRASIL............................................................... 40

Cavalcante, M, S ....................................................................................................................................................................... 40 Corrêa, E. A .............................................................................................................................................................................. 40

Ana Maria Tavares: A Imagem de um Mundo Flutuante ........................................................................................................ 52

Cyane Pacheco .......................................................................................................................................................................... 52

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GESTAR I: UMA ALTERNATIVA PARA O LETRAMENTO

1Gustavo Aparecido da Silva RESUMO

Na tentativa de se superar um ensino de Língua Portuguesa sinônimo de ensino de gramática normativa, muito tem se discutido sobre uma proposta pedagógica que privilegie esse ensino tendo por base o texto. Com efeito, a língua se realiza por meio de gêneros textuais, que circulam socialmente. Daí se falar em letramento, que, grosso modo, é o uso social que se faz da leitura e da escrita. E, para atingir o letramento, o Ministério da Educação – MEC concebeu o Programa Gestão da Aprendizagem Escolar – GESTAR I, curso de formação continuada. Os cadernos de Teoria e Prática – TP’s de Língua Portuguesa do GESTAR I trazem uma proposta em que se abordam vários gêneros textuais, como narrativa ficcional, história em quadrinhos, texto jornalístico, texto publicitário, texto epistolar e texto poético. A reflexão trazida nesses TP’s privilegia o contexto de cada gênero, suas condições de produção, seus elementos, o que faz com que o educando apreenda o necessário sobre os gêneros trabalhados e passe a utilizá-los nas mais diversas situações em que são exigidos.

PALAVRAS-CHAVE: letramento, ensino, Língua Portuguesa, GESTAR I.

ABSTRACT

In an attempt to overcome a teaching of Portuguese Language that is synonymous of normative grammar teaching, much has been discussed on a pedagogical proposal to focus the teaching based on the text. Indeed, the language is held by means of textual genres, moving socially. They speak about literacy, which, broadly, is the social use that is made of reading and writing. And to obtain the literacy, the Ministry of Education - MEC has the Program Management Learning School – GESTAR I, training courses. The books of Theory and Practice - TP's of Portuguese Language of the GESTAR I brings a proposal that focus various textual genres as narrative fiction, comics, journalism text, copy, text, epistolary and poetic text. The discussion brought in TP's favors the context of each genre, their conditions of production, its elements, so that the student learns the necessary work on the genres and will use them in several situations in which they are required. KEYWORDS: literacy, education, Portuguese language, GESTAR.

1 É professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia – IFRO e especialista em Alfabetização e Letramento e licenciado em Letras pela UNESC e bacharel em Direito pela UNIR.

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INTRODUÇÃO

Objetiva o presente trabalho fazer uma abordagem sobre a contribuição do Programa Gestão da Aprendizagem Escolar – GESTAR I para o

letramento, caracterizando este como uma alternativa para aquele.

Para tanto, é feita uma exposição do que é, na teoria e na prática, o letramento, como é considerado na escola e na sociedade. De igual

modo, faz-se uma análise de alguns cadernos de Teoria e Prática - TP do GESTAR, evidenciando que sua proposta para o ensino de Língua Portuguesa

vai ao encontro do que se entende por letramento.

LETRAMENTO

Letramento: teoria e prática

Se há algo que se possa afirmar, com toda convicção, da sociedade atual é o fato de que ela se caracteriza como “grafocêntrica”, isto é, tudo

é estabelecido por intermédio da palavra escrita. Assim, ler e escrever são ações necessárias a todo momento.

Há que se ressaltar, no entanto, que esses dois verbos merecem uma reflexão cuidadosa quanto ao seu sentido. Em que perspectiva ler e

escrever? São atividades de mera codificação e decodificação?

Para responder a essas indagações, necessária se faz uma conceituação da palavra letramento. Segundo Soares (2004, p. 47), ela é entendida

como “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita.” Ainda, conforme

Batista2, “ela serve para designar o conjunto de conhecimentos, de atitudes e de capacidades necessários para usar a língua em práticas sociais.”

2 BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Alfabetização e letramento: os desafios contemporâneos. In: BRASIL – Alfabetização, leitura e escrita. MEC/SEED/TV ESCOLA/SALTO PARA O FUTURO.

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Em ambas as conceituações, aparecem a locução “práticas sociais” e os núcleos verbais “cultiva e exerce” e “usar”, respectivamente. Ora,

isso nos basta para fazer uma consideração acerca das indagações feitas anteriormente.

Claro está que a locução e os núcleos verbais mencionados implicam num domínio que permite o uso da leitura e da escrita em práticas

sociais, o que é suficiente para afirmar que não se trata simplesmente de codificar ou decodificar a palavra escrita. Nesse sentido, Soares (2004, p. 39)

faz uma importante observação:

Ter-se apropriado da escrita é diferente de ter aprendido a ler e a escrever: aprender a ler e escrever significa adquirir uma tecnologia, a de codificar em língua escrita e de decodificar a língua escrita; apropriar-se da escrita é tornar a escrita “própria”, ou seja, é assumi-la como sua propriedade.

Assim sendo, letrado é aquele que adquirindo a tecnologia de ler e escrever é capaz de produzir um discurso do qual se assuma como

sujeito, conseguindo, dessa forma, interagir socialmente, posicionando-se de acordo com seu ponto de vista. Aqui, parece-nos pertinente

rememorarmos Bakhtin (1929) para o qual “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência.” Isto é, ao se assumir como sujeito de seu discurso, o

indivíduo terá assimilado o postulado bakhtiniano, revelando sua consciência de que a palavra é poder.

Como ser social, o indivíduo é condicionado cotidianamente a preencher formulários, redigir cartas, ofícios, ler bulas de remédio, manuais

etc. E nesse condicionamento, é possível verificar se o sujeito é, ou não, letrado. É nessa contextualização que faz sentido falar em letramento.

Letramento como prática social

A vida em sociedade condiciona a atuação do indivíduo na sua realidade circundante. Como ser social, ele é exigido a interagir socialmente.

Contudo, essa inter-relação exigida entre o indivíduo e o meio social nem sempre se dá de forma equitativa. Isso porque não raro esse

sujeito não detém instrumentos básicos necessários para uma interação paritária com a superestrutura, caracterizando-se, é claro, como a parte frágil

dessa relação.

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Esse condicionamento se dá, sobretudo, em situações que exigem do sujeito expressão apreendida na instituição formal – a escola. Ou seja,

o indivíduo é submetido a demonstrar domínio sobre a leitura e a escrita, o que em muitas situações se torna impossível, dada a não exposição desse

indivíduo à palavra escrita, ou mesmo a uma exposição precária.

Essa relação inóspita torna-se mais premente à medida que se considera como “grafocêntrica” a sociedade atual.

Nesse contexto, a palavra escrita monopoliza as relações interindividuais, interinstitucionais etc., ficando à margem delas quem não

demonstra efetivo domínio sobre ela.

O letramento na educação contemporânea

Com base no que dissemos anteriormente, parece-nos que o desafio da escola é o de proporcionar aos educandos uma formação ideológica

– com a qual possam atuar como sujeitos nas inter-relacões sociais – o que implica dizer que é seu dever educar letrando.

Todavia, isso nem sempre ocorre. A escola, não raro, vem apenas fornecendo a seus alunos o simples domínio da tecnologia de ler e

escrever. Esses, uma vez dominando a técnica, não entendem que o processo deve ser contínuo e, assim, embora alfabetizados, não estabelecem uma

prática dialógica com o meio, não são letrados. Segundo Amaral (1998, p.76),

À medida que um número cada vez maior de pessoas aprende a ler e a escrever, um novo fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escrever. As pessoas se alfabetizam, mas não necessariamente incorporam a prática da leitura e da escrita, para envolver-se com as práticas sociais de escrita: não lêem livros, jornais, revistas, não sabem redigir um ofício, um requerimento, uma declaração, não sabem preencher um formulário, sentem dificuldade para escrever um simples telegrama, uma carta, não conseguem encontrar informações num catálogo telefônico, num contrato de trabalho, numa conta de luz, numa bula de remédio...

É necessário que a escola exponha os alunos a situações problematizadoras, exigentes de solução. O educando deve entender que conhecer é

um ato contínuo e necessário com o qual poderá manter um diálogo com a sociedade.

Sem essa capacidade de diálogo, o que se verifica são cidadãos analfabetos funcionais, ou seja, sujeitos que dominam a tecnologia de

codificar e decodificar a palavra escrita, mas que não lançam mãos de seu uso efetivo nas relações sociais.

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O que se vê, infelizmente, na educação contemporânea é uma profusão de cursos, nos diferentes níveis – fundamental, médio, superior –,

oferecidos sem a devida qualidade, com a finalidade, aparente, de políticas governamentais, de mostrar à comunidade internacional que o País cumpre

os compromissos dos quais se tornou signatário. Assim, há, hipoteticamente, uma “fábrica” de diplomas cujos portadores, embora teoricamente

destinatários de um currículo formal, demonstram-se deficitários quanto ao conhecimento curricular que deveriam possuir. O letramento, em suma, é

termo, na prática, alienígena na nossa educação.

GESTAR I: UMA ALTERNATIVA PARA O LETRAMENTO

Como se afirmou antes, letrada é a pessoa que, além de dominar a tecnologia da leitura e da escrita, faz dela uso efetivo nos diversos

contextos sociais, sabendo lançar mãos, de forma adequada, dos elementos constitutivos de um texto, considerando suas condições de produção, enfim,

assumindo-se como sujeito de um discurso por meio do qual se faz inserir na sociedade grafocêntrica. Despiciendo é dizer que isso implica num

domínio dos diversos gêneros textuais.

No entanto, a realidade da sociedade brasileira apresenta um quadro bastante alarmante, no sentido de que ainda predominam os chamados

analfabetos funcionais. Isso se deve, em grande parte, à escola que se pautou por um ensino, sobretudo de Língua Portuguesa, mecânico, em que se

priorizou a memorização, o domínio das regras gramaticais, no uso do texto como pretexto para o ensino justamente dessas regras, etc.

Na tentativa de se superar tal ensino, o Ministério da Educação – MEC concebeu o Programa Gestão da Aprendizagem Escolar, doravante

denominado GESTAR, cuja proposta pedagógica3

[…] orienta-se pelas recomendações expressas nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Dessas recomendações, retém, particularmente, o que estabelece a Lei de Diretrizes e Bases (Lei Federal 9.394), inspirada na Constituição de 1988, sobre os fins da educação: o pleno desenvolvimento do educando e o seu preparo para o exercício da cidadania e para o trabalho.

3 BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, guia geral. Brasília: 2005, p. 9.

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Claro está que o pleno desenvolvimento do educando e o seu preparo para o exercício da cidadania e para o trabalho implicam a formação

letrada do aluno, sem a qual dificilmente são esses fins alcançados.

Para contribuir com a contemplação desses objetivos, os pressupostos do ensino de Língua Portuguesa concebido pelo GESTAR indicam

como objetivo geral4:

[…] o desenvolvimento pelos alunos de uma competência discursiva e textual, quer em processos de recepção/leitura, quer em processos de produção textual. Como bem expressam os Parâmetros Curriculares Nacionais, a escola deve formar indivíduos capazes de adaptar-se às diversas situações discursivas, expressando-se oralmente e por escrito em diferentes padrões de linguagem, especialmente o culto, adquirindo a competência leitora para obter informações, interpretar dados e fatos, recrear-se, recriar, observar, comparar e compreender textos. (grifo meu)

Em outras palavras, o objetivo geral para o ensino de Língua Portuguesa concebido pelo GESTAR é direcionado, pura e simplesmente,

para o letramento do educando. Ao asseverar que é dever da escola “formar indivíduos capazes de adaptar-se às diversas situações discursivas,

expressando-se oralmente e por escrito em diferentes padrões de linguagem”, está se afirmando que, com isso, o educando receberá uma educação pela

qual se tornará produtor dos mais diversos gêneros textuais – exigidos nas mais diferentes situações sociocomunicativas –, o que vem plenamente ao

encontro do ideal de letramento.

A proposta do GESTAR para o ensino de Língua Portuguesa

Na proposta do GESTAR, o ensino de Língua Portuguesa é planejado a partir de determinados temas, consignados em cadernos de Teoria e

Prática - TP, dos quais mencionaremos os cadernos de 3 a 6, por trazerem de forma mais incisiva a abordagem que ora nos ocupa, deixando de analisar

os cadernos 1, 2, 7 e 8. Assim, seguem algumas considerações sobre alguns recortes que tratam diretamente de práticas voltadas para o letramento5:

4 Op. cit., pp. 24-5. 5BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, guia geral. Brasília: 2005, p. 33.

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Teoria e Prática 3 – Processos de leitura e produção de texto

Este TP tem como objetivo geral “reconhecer a natureza dos diferentes procedimentos envolvidos nos atos de leitura e de produção de

textos, a fim de desenvolver estratégias pedagógicas para facilitar a compreensão de textos lidos e escritos”.

Uma leitura que se quer significativa não é feita sem critérios, de qualquer maneira. Um leitor competente sabe eleger estratégias

apropriadas para um melhor entendimento, uma melhor exploração do texto. De igual modo, a construção de um gênero textual demanda todo um

planejamento; quem não sabe o que, como e para quem escrever certamente não conseguirá produzir um texto adequado ao seu contexto.

Para se abordar o que aqui se propõe, far-se-ão recortes que bem ilustram o letramento concebido pelo GESTAR nesse caderno:

Unidade I – Procedimentos envolvidos no ato de leitura

Seção 1 – Fatores envolvidos no processo de leitura: os conhecimentos prévios do leitor e os objetivos para a leitura

Se letramento pode ser, grosso modo, definido como o uso social que se faz da leitura e da escrita, pode-se afirmar seguramente que a

mobilização dos conhecimentos prévios se faz extremamente necessária. Isso porque o educando trava contato diário com textos que o circundam, que

circulam socialmente. Assim, no trabalho com a leitura, propõe o GESTAR que esses conhecimentos devem ser considerados, possibilitando que o

novo faça sentido e se some ao já adquirido de forma não sistematizada. Noutro dizer, isso, de certo modo, exemplifica o processo de subsunção

abordado por Ausubel (1982).

De igual modo, os objetivos para a leitura influenciam no modo como ela deve ser realizada. A leitura de um mesmo poema, por exemplo,

pode ser feita de modos diferentes: pode-se lê-lo por mera fruição, por prazer, situação em que a leitura é realizada de forma mais despreocupada,

assim como pode se fazer uma leitura com maior acuidade, para planejar uma aula sobre as características do texto poético, por exemplo.

Sobre os fatores envolvidos no processo de leitura, essa seção6 traz as seguintes considerações:

6 BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, caderno de teoria e prática 3 (Língua Portuguesa). Brasília: 2005, p. 11.

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A leitura deve ser entendida como um processo dinâmico que envolve a compreensão e a transformação de informações, de conhecimentos. Não basta simplesmente aprender a decodificar os sinais gráficos. O leitor deve compreender o significado do que lê, apoderar-se desse conhecimento e transformá-lo a partir de sua experiência pessoal. Ler para aprender é, então, ampliar os conhecimentos a partir da leitura de um determinado texto. (grifo meu)

Nota-se assim que a proposta de leitura é inteiramente voltada para o letramento, considerando para isso fatores imprescindíveis à formação

de bons leitores, quais sejam, a mobilização de conhecimentos prévios e a considerações de objetivos para a leitura.

Unidade II – Procedimentos envolvidos no ato de produção de textos

Seção 1 – O planejamento do texto no ato da produção

O sujeito letrado planeja o texto que deseja escrever. No ato da produção, ele considera elementos necessários ao contexto, evitando assim

inadequações que podem causar ruídos na mensagem e dificultar a comunicação. Essa seção propõe justamente o ensino de produção pautado por um

planejamento em que são considerados7: condições para a mobilização dos conhecimentos prévios dos produtores e a definição de tema, finalidade,

motivo, interlocutor, modalidade de texto adequada, linguagem adequada, revisão e correção da produção. Desnecessário é dizer que um ensino de

Língua Portuguesa voltado para o letramento deve considerar esses aspectos, sob pena de se cair nas infrutíferas técnicas de redação que pouco ou nada

contribuem para a formação do sujeito produtor de textos.

Unidade III – Interação leitura-escrita

Seção 1 – A leitura como condição para o domínio da escrita

Leitura e escrita não são processos distintos, excludentes. Antes, há entre elas uma inter-relação, em que uma contribui de forma

significativa na realização da outra. Vejamos uma consideração8 nesse sentido:

7 BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, caderno de teoria e prática 3 (Língua Portuguesa). Brasília: 2005, p. 40. 8 Op. cit., p. 67.

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A releitura do próprio texto deve seguir o mesmo caminho: o aluno deve rever a intenção que tinha ao escrever e a imagem que fazia do seu leitor e avaliar se a escolha feita (modalidade de texto, tipo de linguagem, elementos coesivos, articulação das partes do texto etc.) foi a mais adequada.

Se se observar bem, na leitura dos mais variados tipos de textos, encontrar-se-ão aqueles fatores previstos no planejamento da produção e

chegar-se-á à conclusão de que todo texto bem escrito é sempre resultado de um planejamento. Segue esse sentido a consideração acima, com a qual se

pode argumentar que até no ato da produção a leitura se faz necessária, mormente na revisão da leitura.

Teoria e prática 4 – Leitura e produção de textos narrativos ficcionais

Esse TP se propõe a apresentar uma proposta de ensino de leitura e produção de textos narrativos ficcionais. A proposta, norteando-se pelas

considerações gerais feitas no TP 3 sobre o planejamento envolvido no ato de leitura e produção de texto, vai muito além de um ensino meramente

mecânico do texto narrativo ficcional, oportunizando ao educando a oportunidade de apreender de fato as características desse tipo de texto, o que

resulta numa melhor leitura e produção de narrativas. Para o GESTAR9,

Na escola, a leitura participativa e a produção de narrativas podem ser momentos mais que propícios para a prática do lúdico e para a descoberta do “prazer” que um bom texto pode oferecer. Afinal, a experiência com a narração acende a imaginação e provoca uma atitude criativa e transformadora. É preciso que, na escola, essas possibilidades oferecidas pela narrativa sejam aproveitadas ao máximo. Os alunos devem perceber como é construída uma história; que estratégias narrativas são empregadas; que recursos lingüísticos são usados e para que fins. Devemos, então, apresentar à criança textos que possam despertar seu interesse pela leitura e oferecer modelos e sugestões para a produção de seus próprios textos.

Um ensino de leitura e produção de textos narrativos que contemple esses pressupostos fará certamente com que os alunos dominem os

elementos envolvidos na construção desse texto, tornando-os produtores de textos narrativos ficcionais.

Teoria e Prática 5 – Leitura e produção de textos: história em quadrinhos, textos jornalísticos e textos publicitários

9 BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, caderno de teoria e prática 4 (Língua Portuguesa). Brasília: 2005, p. 40.

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Nesse TP, seguindo a lógica do planejamento esposado no TP 3, aborda-se o ensino de leitura e produção de história em quadrinhos, textos

jornalísticos e publicitários. Vejamos a apresentação que esse caderno10 faz dos assuntos tratados.

Na unidade 1, vamos identificar os elementos constitutivos da história em quadrinhos: a narrativa por meio de imagens; os códigos verbal e não-verbal; os sinais gráficos (balões e traços indicadores de movimento). Em seguida, analisaremos a organização interna e as condições de produção da história em quadrinhos. Depois, os recursos lingüísticos e não lingüísticos próprios desse tipo de texto.

Trataremos, na unidade 2, dos elementos que constituem o texto jornalístico, em especial, a notícia e a reportagem: a diagramação, o tipo de linguagem, os títulos, as manchetes. Analisaremos, também, as condições de produção, a organização interna e os recursos lingüísticos que contribuem para a construção de sentido do texto jornalístico.

O texto publicitário será estudado na unidade 3. Vamos identificar as estratégias de sedução, o apelo visual, a organização espacial das frases, os elementos verbais e não-verbais, as condições de produção e os recursos lingüísticos próprios desse tipo de texto.

Observe-se que, nesse TP, se aborda uma diversidade de textos que circulam socialmente, em que se evidenciam as informações

necessárias desses gêneros textuais, de modo a propor uma reflexão sobre as condições de produção de cada um deles.

Teoria e Prática 6 – Leitura e produção de texto poético, texto epistolar e texto informativo

Objetivando trabalhar os mesmos aspectos já expostos em relação aos gêneros textuais de que vimos tratando até aqui, esse TP amplia o

repertório do educando, tornando-o mais letrado, na medida em que se considera letrada é a pessoa que consegue ler e produzir os mais diversos textos,

concebidos nas mais diferenciadas situações sociocomunicativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

10 BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, caderno de teoria e prática 5 (Língua Portuguesa). Brasília: 2005, p. 7.

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Feita uma exposição do que vem a ser o letramento, como ele é considerado na escola e na sociedade, e analisada a proposta para o ensino

de Língua Portuguesa concebida pelo GESTAR, tem-se a oportunidade de se tecerem algumas considerações.

Sendo o letramento o uso social que se faz da leitura e da escrita e considerando que para contemplá-lo a escola tem de propor um ensino

de Língua Portuguesa que se dá com base no texto e, de forma mais incisiva, na diversidade textual, pode-se afirmar se constitui o GESTAR numa

alternativa para o letramento, senão vejamos.

Como exposto, o conteúdo programático contempla uma diversidade de gêneros textuais: narrativa ficcional, história em quadrinho, texto

jornalístico, texto publicitário, texto poético, texto epistolar e texto informativo.

Há que se ressaltar que a proposta do GESTAR não se contenta em apenas ofertar a diversidade textual. De outro norte, ela contempla um

ensino em que se apreendem as condições de produção, os elementos constitutivos de cada gênero trabalhado e, enfim, o planejamento que se deve

observar na leitura e produção de cada gênero textual.

Em síntese, é o GESTAR um legítimo instrumento para o letramento. O professor que adotá-lo em seu fazer pedagógico certamente

contribuirá de forma significativa na formação de alunos letrados, capazes de se assumirem como sujeitos leitores e produtores dos mais diversos

gêneros textuais, exigidos nas diferentes situações sociocomunicativas.

REFERÊNCIAS

AUSUBEL, D. P. A aprendizagem significativa: a teoria de David Ausubel. São Paulo: Moraes, 1982. BAKTHIN, Michail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1998. BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Alfabetização e letramento: os desafios contemporâneos. In: BRASIL – Alfabetização, leitura e escrita. MEC/SEED/TV ESCOLA/SALTO PARA O FUTURO. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, guia geral. Brasília, 2005. ________. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, caderno de teoria e prática 3 (Língua Portuguesa). Brasília, 2005.

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________. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, caderno de teoria e prática 4 (Língua Portuguesa). Brasília, 2005. ________. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, caderno de teoria e prática 5 (Língua Portuguesa). Brasília, 2005. ________. Programa gestão da aprendizagem escolar: gestar I, caderno de teoria e prática 6 (Língua Portuguesa). Brasília, 2005. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. EUCLIDES DA CUNHA, POLÍTICO

Mauro Rosso [email protected]

Resumo: O centenário de morte, a determinar este 2009 como o ‘ano Euclides da Cunha’, constitui per se a grande oportunidade de justa reverência a um dos maiores intelectuais do País, um excepcional pensador a merecer olhar, estudo e difusão mais acurados e mais abrangentes, porquanto poucos como ele, em seu tempo, dedicaram-se tanto à reflexão e interpretação do Brasil, inclusive sob diversas lentes – da literária à política, da artística à sociológica – em algumas delas manifestando-se um verdadeiro pioneiro, anunciador, prenunciador e antecipador de muitas questões hoje existentes e debatidas nas searas da política, da história, e – para quem não sabe, até mesmo da ecopolítica, da etnopolítica, da geopolítica. Palavras chave: História – República – liberalismo social – socialismo – sertão – Amazônia

Euclides da Cunha - não um, mas muitos e múltiplos Euclides da Cunha: matemático, politécnico, engenheiro, geólogo e geógrafo

autodidata e prático; positivista, cientificista, evolucionista – socialista, jornalista, articulista, ensaísta, escritor, poeta – sobretudo pensador

e intelectual; na obra, a literatura, a ciência, a história, a filosofia, e ainda a geografia, a geologia, a botânica, a engenharia, a técnica;

propugnador do primado da ciência e das “elites dotadas”- mas empenhado nas questões sociais; ardoroso republicano, desapontado,

desiludido, cáustico crítico depois; Euclides dos primeiros tempos, Euclides de Canudos, Euclides de São José do Rio Pardo\Vale do Paraíba,

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Euclides da Amazônia; Euclides político, Euclides ecopolítico, Euclides etnopolítico, Euclides geopolítico’. Acima de tudo, um brasileiro de

primeiríssima linha na história cultural – também política, social – do País.

uma obra eclética - e brasileira

Construiu uma obra eclética em conteúdo, temática e variedade genética, e brilhante em forma, escrita e linguagem. Obra, em todas

suas partes e no conjunto não só adiantada para seu tempo como dotada de impressionante atualidade. Aliava a riqueza e excelência de

suas linguagem e escrita, seu vocabulário apurado, sua sintaxe precisa, à ‘riqueza’ da observação, compreensão e perfeita interpretação

dos elementos sociais e da condição humana do brasileiro, seus dramas e vicissitudes, aspirações e necessidades. A par das questões

políticas, a questão social inscreve-se no pensamento euclidiano como um dos componentes, ou ingredientes, ou constituintes mais

intensos e atuantes.

Até porque confesso admirador do teatro e da literatura grega, o trágico se faz presente na obra euclidiana: notoriamente em Os

sertões, aparece na percepção de que a epopéia apologética da República assumia caráter de tragédia na violenta ação militar, na chacina,

no verdadeiro genocídio praticados em Canudos, por ele testemunhados; da mesma forma, na condição social do sertanejo, do garimpeiro,

do seringueiro, também na seca, na agricultura predadora, na destruição das matas e florestas, nos fazedores de desertos – tópicos

descritos, comentados e denunciados por ele nos escritos referentes a ecopolítica e etnopolítica. Como duas linhas paralelas, a literatura

euclidiana é permeada e movida, a par do racionalismo derivado do determinismo, pela imagem do homem e da humanidade submetidos

ao elemento maior do universo mítico, o destino.

Sua obra – a estimular o desenvolvimento de uma literatura firmada na observação, na análise e estudo dos elementos

caracteristicamente nacionais – constitui uma das mais completas sínteses entre ciência e literatura, nela confrontando-se duas formas

básicas de conhecimento: de um lado, a dedução e a indução, a utilização de métodos e conceitos em voga nas Ciências Sociais, com o

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objetivo de analisar e propor alternativas viáveis para os problemas sociais, econômicos e políticos do país; de outro, a observação mais

direta da realidade, a qual por sua vez, não se explicava pelas significações convencionais. Seus textos expressam sempre a realidade

social, política e mesmo filosófica de seu tempo, uma espécie de realismo impregnado de historicidade que o distingue claramente de seus

contemporâneos, mesmo daqueles de formação positivista. A Euclides da Cunha coube a tarefa de valorização e de compreensão do povo

brasileiro nos moldes do cientificismo do século XIX, presente por exemplo na interpretação euclidiana a Canudos, ainda que muito

discutido nos meios literários e históricos o teor excessivamente cientificista de seus argumentos – o que não impede que Os sertões seja

consensualmente classificado como um dos primeiros tratados de sociologia no Brasil.

Os escritos euclidianos têm como pano de fundo os acontecimentos políticos, institucionais e sociais que se deram como um processo

evolutivo: acreditava e sustentava ter sido a República um processo, uma revolução ocorrida no decorrer do século XIX, não como um fato

pontual ligado à Abolição ou a imediata queda do Império. Seus textos abrangem observações, reflexões, indagações, questionamentos,

confrontações não apenas sobre esse processo evolutivo propriamente dito mas também sobre a injunções étnicas, formação e

características da mestiçagem, diferenças entre o homem do sertão e do litoral e sobre a natureza e o meio ambiente e suas correlações

com a política.

Equilibrada síntese entre literatura, filosofia, história e ciência – qual um trapézio, imagem que de resto representa significativos

‘elementos geométricos euclidianos’, como adiante se explana – também cruzamento não só de gêneros, entrosando e integrando também

a geografia, a geologia, a ecologia, a etnografia, a botânica, a engenharia, mas de dicotomias, contrastes e confrontos, sínteses e antíteses,

tudo porém em absoluta coesão, a obra refletindo à perfeição sua estrutura intelectual, seu pensamento, consciência e ideologia. Na sólida

coesão convive, no entanto, um intelecto dividido – talvez nisso o vetor pujante da efervescência e ebulição criativas – entre sua formação

num século XIX idealista, literário, e a vivência ativa (ainda que por pouquíssimo tempo) num século XX materialista, racional, cientificista.

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Uma ‘existência múltipla’, digamos assim, que tem política e filosoficamente sua origem e base no binômio positivismo (então

ideologia prevalente sobretudo nas camadas sociais mais elevadas e entre a intelectualidade)11 - cientificismo (emprestado do ‘darwinismo

social’, buscando encontrar leis de organização da sociedade brasileira) – cultuado a partir da Escola Militar e praticado na sua crença

devota na República – e detém seus corolário e conclusão no socialismo – sob um processo de geração de outros níveis de consciência –

ecopolítica e etnopolítica – a partir de Canudos e em seguida de São José do Rio Pardo\Vale do Paraíba e da Amazônia, três basilares

vetores, ou vivências, de inflexão em sua vida intelectual e profissional. Na trajetória, um primeiro Euclides ardoroso, doutrinário,

propagandista, devotado à República e crente no futuro; depois, desiludido, desalentado, cético com o regime e os políticos; em seguida,

estarrecido com o que testemunhara em Canudos e profundamente reflexivo e revisionista; por fim, ao mesmo tempo extasiado e

preocupado com a Amazônia, “um paraíso perdido”, “deslumbrante palco onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do

globo”. Em todos eles um Euclides lúcido, consciente, empenhado em formular rumos e destinos para o País, um Euclides pioneiro e

precursor no trato de questões absolutamente atuais.

a política em Euclides

A política desde cedo exerceu irresistível atração em Euclides, sua biografia e sua bibliografia se confundem com a própria história

social e política brasileira do final do século XIX e início do século XX. Como ser político, preocupava-se e envolvia-se com tudo – não

apenas a ordem institucional, o regime político, mas com o homem brasileiro, o habitante do litoral , do interior, do sertão e da Amazônia,

com o povo, com a história e geografia brasileiras e sul-americanas, com o Brasil como nação, com a nacionalidade (cuja definição exata

constituía a seu ver “nossa missão”).

11 Em artigo a 29 março 1892, que inaugura a série “Dia a dia”, em O Estado de S. Paulo, chega a comparar o Positivismo, como “religião do futuro”, “consórcio da religião e da ciência”, ao Cristianismo.

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Euclides tratou de política sob as mais variadas formas – até mesmo na cogitação para candidatura a deputado constituinte de São

Paulo, formulada por Julio Mesquita em 1890, e deputado federal por Minas Gerais, sugerida por Francisco Escobar em 1908 – e

expressões, entre artigos publicados originalmente em jornais (como A Província de São Paulo – origem de O Estado de S. Paulo, onde

publicou a maioria de seus artigos –Democracia, O Paiz, Jornal do Commercio, Revista Brasileira, O Rio Pardo, Kosmos, Revista Americana),

textos e ensaios integrados às coletâneas Contrastes e confrontos (1907), À margem da história (1909), Peru vs. Bolívia (1907) – esta,

repleta de novos dados para a história e geografia sul-americanas - inseridos na Obra completa (1966) – em “Outros contrastes e

confrontos”, “Fragmentos e relíquias” – na poesia – haja vista os poemas dedicados a Danton, Marat, Robespierre e Sain-Just, líderes

jacobinos da Revolução Francesa – bem como em conferências, como “Castro Alves e seu tempo” (1907), e discursos, em sua posse na

Academia Brasileira de Letras (1906) e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1903), em cartas a amigos e correligionários, ao Barão

de Rio Branco, nas marcantes correspondências com o sogro Sólon Ribeiro, nas duas cartas de protesto endereçadas à Gazeta de Notícias

em 1894, e especificamente quando de sua vivência (1898-1901) em São José do Rio Pardo, no programa do jornal O Proletário(1899) e o

manifesto de 1º de maio de 1899 .

Dedicava-se tanto à política brasileira quanto à política internacional, rigorosamente ‘antenado’ e em conexão com as transformações

que se verificavam no mundo, desde a seara sul-americana – como nos artigos “Conflito inevitável”, “Contra os caucheiros”, “Conjecturas”,

“Contrastes e confrontos”, “Solidariedade sul-americana”, “Temores vãos”, “Peru vs. Bolívia” – até a área mundial – exemplo dos artigos “O

Kaiser”, “A arcádia da Alemanha”,“A missão da Rússia”, “Transpondo o Himalaia”, “O ideal americano”. A atenção dirigida para a política

internacional, sempre manifesta por Euclides, aparece em vários escritos – quer de abordagem direta de um assunto, quer indireta, tecendo

comparativos e remissividades para a expressão de sua opinião, caso p. ex. no 2º artigo “A nossa Vendéia”, de 17 julho 1897, onde

estabelece um paralelo entre a insurreição em Canudos e as invasões colonialistas das potências européias no território de outros povos

(seu ardor republicano, a crença no novo regime como avanço da civilização e do progresso, turvando sua interpretação e fazendo-o

esquecer de que não se tratava propriamente de uma guerra imperialista, os canudenses brasileiros e não estrangeiros). Neste particular,

Euclides procurara essencialmente diagnosticar o imperialismo sem interpretá-lo com profundidade: tinha noção de sua presença nos

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“interesses de países estrangeiros” no anti-republicanismo dos insurreitos de Monte Santo e na restauração da monarquia brasileira –

interpretação depois radicalmente corrigida, no revisionismo pós-Canudos – e na “cobiça das potências estrangeiras desenvolvidas” com

relação à Amazônia (vide “a ecopolítica em Euclides”).

A ‘devoção’ de Euclides à República (no estágio primeiro) tem como essência ‘medular’ o cientificismo, que forneceu seu conceito da

República, para ele uma forma de organização social, mais do que um simples regime de governo, lastreada numa ‘filtragem’ democrática

dos talentos ‘superiores’ nas várias camadas sociais, o sistema por excelência dos mais bem dotados intelectualmente, das grandes

capacidades: só uma “elite justa e esclarecida” poderia conduzir adequada e competentemente os destinos do país – não pelo poder em si,

mas para fazer o País superar seus problemas e diferenças sociais, esta a maior de suas preocupações e empenho na busca de soluções, ao

menos a nível intelectual. Uma ‘elite dotada, justa e esclarecida’ formada e proveniente da Escola Militar, “o primeiro estabelecimento

científico do mundo” [sic] – que teve sua mais notável participação na vida pública do País justo na década precedente à Abolição e à

República, período de extraordinário ativismo político da instituição, plenamente aliciada para as duas campanhas; só esse contingente

social condensaria os atributos políticos, científicos, racionais, culturais e morais para cumprir sua missão. Convém observar, neste

particular, que Euclides não foi um militante na campanha republicana pré-1889, como tantos intelectuais e literatos seus contemporâneos

(e amigos): da mesma forma quanto à Abolição12. Vale também notar que para Euclides o Império, mormente do II Reinado, reunia parte

desses pressupostos – de ‘talentos superiores de uma elite esclarecida e preparada’ – assim como o próprio imperador Pedro II, um homem

“de espírito científico e intelectual”, mas em contrapartida não era capaz de promover justiça social, de criar uma sociedade humanitária,

democrática: havia o absolutismo do poder, compadrios e conchavos políticos, corrupção eleitoral – absolutamente abomináveis para 12Da mesma forma que não fora ativo participante da campanha republicana, pré-1889, Euclides não se envolveu de modo explícito e atuante com o movimento abolicionista -- no qual, como naquele, se empenharam muitos intelectuais e literatos, alguns amigos seus, como José do Patrocínio, Silva Jardim, Luis Gama, Vicente de Carvalho -- e sua relação com o abolicionismo constitui tópico a ser apreciado sob ótica bastante específica: se, de um lado, no marcante artigo “O Brasil no século XIX”, originalmente de 31 dezembro 1900, publicado em O Estado de S. Paulo, depois re-intitulado “Da Independência à República”, na Revista do IHGB, 1906, procura sem chegar a ‘justificá-la’ ou enfocá-la em profundidade considerar a escravidão como “dolorosa fatalidade histórica”, de outro, basta ler com acurada atenção trechos de Os sertões em que descreve, estarrecido e indignado, o estado escravagista dos sertanejos que testemunhara em Canudos e o quanto o negro dos sertões, sobrevivente do quilombola colonial, sai engrandecido ao descrever a morte e velório de um deles (vide “a etnopolítica em Euclides”), assim como o prefácio do livro Poemas e canções, de Vicente de Carvalho, em que clama por justiça para “uma raça humilhada e sucumbida” e redenção “à imensa desventura do africano abatido pelo traficante”, e passagens da conferência “Castro Alves e seu tempo”, publicada no Jornal do Commercio a 3 dezembro 1907. Sob todos os prismas e aspectos, importa essencialmente saber que Euclides tinha o abolicionismo como efetiva conquista das forças liberais e das práticas do liberalismo social entre nós.

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Euclides, que os tinha como “demônios dos vícios políticos”; mais tarde, sabemos, constataria o mesmo quadro nos primeiros anos de sua

‘idealizada’ República...

O propagandismo republicano que engendrou e praticou - pelo menos até o final da década de 1890 - era para Euclides antes e

acima de tudo propagandismo científico, irrevogavelmente convicto da superioridade da ciência sobre todas as demais formas do saber. A

par desse duplo propagandismo, propugnava pelos ideais de uma sociedade humanitária, justa, democrática, moderna e civilizada – seu

projeto de “Pátria humana”, como resultado possível e desejável do progresso material e científico engendrado no século XIX, a intensificar-

se no século XX – sob uma evolução, sustentava ele, contínua, linear, conjugando o industrialismo com a edificação de uma sociedade

progressista, justa: era convictamente entusiasta do “curso irresistível do movimento industrial”, para ele a lídima consumação do

liberalismo econômico, indissoluvelmente acoplado ao liberalismo social que sustentava com tanta ênfase – o liberalismo, advindo do

positivismo e cientificismo, na verdade muito mais evoluído, pois segundo Euclides “as novas correntes, forças conjugadas de todos os

princípios e todas as escolas – do comtismo ortodoxo ao positivismo desafogado de Littré, das conclusões restritas de Darwin às

generalizações ousadas de Spencer – o que nos trouxeram de fato, não foram os seus princípios abstratos, ou leis incompreensíveis à

grande maioria, mas as grandes conquistas liberais do nosso século”. Para ele, somente o progresso, gerador do crescimento material,

econômico, tecnológico, seria capaz de propiciar e garantir o equilíbrio e a justiça social – e somente um regime de cientistas e técnicos o

poderia prover.

Paralelamente, seu modelo idealizado formulava uma sociedade baseada na meritocracia, na ascensão do indivíduo pelo talento,

competência, e não por suas origens aristocráticas – a ‘aristocracia do mérito’ substituindo a ‘aristocracia de berço’. Daí acreditava que o

advento da República não significava apenas e exclusivamente a vitória de um partido ou de um movimento, mas simbolizava o nascimento

dessa nova sociedade. Tudo sob a égide e escopo de um elemento-vetor fundamental, basilar em Euclides, em seu pensamento filosófico-

ideológico: o liberalismo social – rigorosamente afinado, por um viés, com o próprio histórico do pensamento social brasileiro no decorrer

do século XIX, presente e atuante também nas aspirações com vistas à implantação da República.

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Neste particular, Euclides provavelmente recebeu influência intelectual e ideológica, nesse sentido,do francês Emile Durkheim (1858–

1917); do inglês Thomas Hill Green (1836–1882); do norte-americano John Dewey (1859–1952); do britânico Leonard Hobhouse (1864–

1929), um dos teóricos do novo liberalismo (liberalismo social) juntamente com Thomas Hill Green (que sustentava o verdadeiro liberal ser,

por natureza, um reformador social, o paladino do humilde explorado e o adversário de todos os altos interesses dominantes e predatórios)

e John Atkinson Hobson—com este, formando ‘os dois Hob’, que defendiam a necessidade de unir liberdade e igualdade. É possível – e

crível – que Euclides, ao unir as duas ‘pontas’ de sua ideologia, fosse um precursor do social-liberalismo contemporâneo, a convergência

entre a herança liberal e a socialista, e, por ser o resultado natural de um processo histórico, surge desprovido de preconceitos e

antagonismos abstratos, obedecendo às exigências e conjunturas de cada povo rumo à democracia social. Devendo ser o efetivo criador da

nacionalidade brasileira, o liberalismo social de Euclides, assim formulado, constituía e consistia em proposta de ordenamento do Estado

brasileiro, sob novos conceitos, formas e fórmulas ,essencial e radicalmente diferentes das anteriores tentativas ,dos Inconfidentes em

1789, da Sabinada de 1798, da Confederação do Equador de 1824 – sob o ‘liberalismo radical’, com Frei Caneca, e depois também Cipriano

Barata (1762 -1838), Diogo Feijó (1784- 1843), Teófilo Ottoni (1807-69) – de Hipolito da Costa (1774-1823) -- primeiro grande divulgador

do ideário liberal, assim explicitado, em seu Correio Braziliense -- de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) -- e sua reflexão sobre a

“doutrina da representação” – e do modelo de exercício de poder durante o Império, tanto no I Reinado, tendo José Bonifácio como

‘construtor’ político, como no II Reinado – mas com o poder absolutista do Imperador. O ‘liberalismo doutrinário’ – seqüente ao ‘liberalismo

radical’, sob o lema da conjugação “da ordem com a liberdade”, que teve em Benjamin Constant um inspirador, veio a ser substituído pelo

‘liberalismo cientificista’, na década de 1870, com Gaspar Silveira Martins (1835-1901), Tavares Bastos (1839-75), Tobias Barreto (1839-

89), Joaquim Nabuco (1849-1910), Clóvis Beviláqua (1859-1944), ampliando a preocupação política dos doutrinários com a ênfase nos

temas sociais,econômicos e culturais, traduzido por defesa do federalismo, pregação do abolicionismo imediato, crença total no Progresso,

defesa intransigente da democracia, aceitação do liberalismo econômico mas gestado pelo Estado, e “abertura social do liberalismo aos

desamparados”. Nesse contexto, convive Euclides nas décadas de 1880 e seguintes, até (pós-fundação da República) à sumária superação

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do liberalismo pelo autoritarismo, tudo se diluindo com a Constituição republicana, implementada por elites conservadoras, autoritárias e

anti-liberais o que perdura até o fim da chamada República Velha, na década de 1930.

Mas Euclides, no que tange ao liberalismo social, avança e ‘ultrapassa’ seus pares e correligionários de doutrina porque o projeta e

integra, depois, à postura socialista, algo inovador a sugerir reflexões e interpretações por estudiosos e especialistas. O liberalismo social

constitui-se justamente no ‘link’ que primeiro emoldura, consubstancia e define suas proposições referentes ao primado de uma ‘elite

cientificamente dotada de atributos superiores’, posteriormente lastreia, embasa e molda seu ‘abraçar’ o socialismo - “(...) temo-lo como

uma idéia vencedora (...)”. Nisso, a chave de um possível – e instigante – enigma, ou teorema, euclidiano: o que faz e o que conduz um

pensador a fazer uma travessia, por assim, dizer de um pólo a outro do espectro ideológico? Certamente não há como deixar de traçar o

naturalmente inevitável paralelo com trajetórias razoavelmente comuns entre intelectuais de todos os matizes, épocas e contextos (ir do

socialismo ou similar para uma posição ‘conservadora’), no caso de Euclides com sinal trocado, digamos...

Outro elemento revelador de elos comuns entre o início e o fim em Euclides encontra-se no cerne desse liberalismo social: o Estado,

tido como “o grande catalisador de energias sociais” e primordial incentivador do desenvolvimento - sabendo-se que um dos propósitos

básicos embutidos nesse projeto, no lastro combinado do cientificismo-liberalismo, era exatamente construir o Estado-nação, o Estado

então existente completamente remodelado em sua estrutura institucional, política e social, com vistas a uma sociedade progressista,

moderna, civilizada; mas devendo ‘recuar’ progressivamente tão logo se consolide este processo específico, restringindo-se à ordenação

institucional e administrativa da sociedade e a garantia da ordem – advogando, e antecipando, o conceito contemporâneo do ‘Estado

mínimo’, portanto. Aqui, mais uma vez vai além de seus correligionários históricos do liberalismo social, os quais tendo o mesmo

entendimento de o Estado como cerne e catalisador, de outro lado não postulavam tal estágio de restrição.

Havia em Euclides essencialmente uma espécie de romantismo libertário, combustível de sua crença política na República – acima

mesmo de interesses pessoais – ou no republicanismo, como o único meio de o Brasil vir a ser uma Nação desenvolvida e moderna e o

único modelo de organização política e social verdadeiramente democrático por eliminar privilégios e permitir ascensões e inclusões sociais;

romantismo libertário, combustível também de um inconformismo diante dos impasses quanto as possibilidades de mudança social no Brasil

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e superação dos isolamentos sociais, pelas dificuldades, que por vezes via intransponíveis, diante do que considerava “a questão nacional”:

a consolidação e sedimentação da nacionalidade conjugadas com a inserção e integração da sociedade brasileira numa ordem humanitária,

e como ordená-la para a efetiva transformação do Brasil numa Nação.

A posterior desilusão com a República foi muito mais e antes de tudo o desalento com o fracasso do ideário de liberalismo social e a

certeza da não-consecução do projeto político-ideológico-científico. Talvez na sensibilização anos depois, com as teses socialistas visse nelas

o suporte ideológico, não o socialismo per se, que propiciasse a realização daquele ideário – em comum, o elo humanitário e o ideal de

justiça social.

da devoção à desilusão, e ao revisionismo

A República, primeiramente sua pregação e exaltação, depois sua revisão, é tema central na vida13 e na obra de Euclides: não foi

pré-1889, um militante ativo, discursivo e pregador, atuante em comícios e protestos, a exemplo de muitos intelectuais e literatos, cuja

geração , arraigada nas teorias cientificistas de 1870, e todo o espírito progressista da época pareciam estar com a República, apoiada pela

maçonaria, pelo positivismo e pelas correntes que se julgavam “desassombradas de preconceitos”, as idéias circulando mais livremente

num ambiente que Evaristo de Moraes [MORAES,1936; p. 78] qualificou de “porre ideológico”, um verdadeiro mosaico no qual era

predominante o liberalismo - manifestando-se especialmente como abolicionismo e republicanismo, entre os republicanos ‘históricos’ como

Benjamin Constant, José do Patrocínio, Silva Jardim, Lopes Trovão, Alberto Sales, Joaquim Serra – mas que abrigava alguma voga de

anarquismo em Elisio de Carvalho (até escrever o Five o’clock), Curvelo de Mendonça, Fabio Luz, Afonso Schmidt, e um anti-racismo

declarado em Alberto Torres e Manuel Bonfim. Sob os princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira a tarefa que lhes

cabia; contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação conjunta para construir a nação – no campo da produção intelectual

13 Foi em encontros republicanos na casa do então major Sólon Ribeiro que conheceu Anna Emília Ribeiro, filha de Sólon Ribeiro, com quem se casou em 10 setembro 1890; numa das reuniões, deixou a ela um bilhete: "Entrei aqui com a imagem da República e parto com a sua imagem.”

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intensificaram estudos da realidade brasileira (as obras de Alberto Torres, Manuel Bonfim, Oliveira Vianna são documentos exemplares) e se

empenharam no ‘criar um saber próprio sobre o Brasil’ (enfatizava José Veríssimo em “Um estudioso pernambucano”, artigo na revista

Kosmos, n.1, Rio de Janeiro, 1907) – e remodelar e fortalecer o Estado. Já em 15 de novembro de 1889 registraram sua total adesão:

numeroso grupo de republicanos, junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio, Aníbal Falcão, João Clapp, Campos da Paz,

Olavo Bilac, Luis Murat e Pardal Mallet - estes três pela primeira vez movidos à ação política concreta - dirigiu-se à sede da Câmara, aos

gritos de viva à República, e redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar nestes termos: “Os abaixo assinados, órgãos

espontâneos do povo do Rio de Janeiro, representam o governo provisório,instituído após gloriosa revolução que ipso facto extinguiu a

monarquia no Brasil,a necessidade urgente da proclamação da República. Excelentíssimos srs. representantes supremos das classes

militares do Brasil, marechal Deodoro da Fonseca,chefe de divisão Wandenkolk e tenente-coronel Dr. Benjamin Constant. O povo do Rio de

Janeiro, reunido em massa no edifício da Câmara Municipal, tem a honra de comunicar-vos que, por meio de diversos órgãos

espontaneamente surgidos e pelo seu representante legal, proclamou como nova forma de governo nacional a República. Esperam os

abaixo assinados, representantes do povo do Rio de Janeiro, que o patriótico governo provisório sancione o ato pelo qual, instituindo a

República, se pretende satisfazer a íntima aspiração do povo brasileiro. Viva a República Brasileira! Vivam o Exército e a Armada nacionais!

Viva o povo do Brasil! O entusiasmo adesista dos intelectuais era generalizado; em outro manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado

a 16 de novembro, assinado por alguns homens de letras em 22 de novembro: “O povo, e quando dizemos povo referimo-nos àquela

grande parte da nação que os aristocratas de todos os tempos chamaram desdenhosamente o terceiro e quarto estado, donde, reparai

bem, em sua maioria saiu sempre o nosso glorioso Exército; os homens de letras, e quando dizemos os homens de letras referimo-nos a

todos aqueles que tomando a si os encargos intelectuais da pátria foram, no curso de quatro séculos, os fatores mais enérgicos e mais

desinteressados de nosso progresso; plebe e pensadores, sempre estas duas forças caminharam aqui unidas!... Agora mesmo no fato

extraordinário que é o espanto da Europa e o júbilo da América na proclamação da República, as duas grandes forças lá estão ungidas uma

a outra... A era das grandes lutas da política responsável abriu-se definitivamente para os brasileiros... A pátria abriu as largas asas em

direitura à região constelada do progresso; a literatura vai desprender também o vôo para acompanhá-la de perto. Ao futuro! ao futuro,

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modeladores de povos ,construtores de nações. No clamor pela ampliação da atuação do Estado sobre a sociedade aliavam-se a homens

públicos, políticos, jornalistas, até mesmo cafeicultores e industriais, e a esse grupo juntar-se-ia os grupos militares defensores e sequiosos

de maior participação dos militares na política – o que depois não causaria surpresas quando do progressivo e acentuado fortalecimento

dos governos republicanos a partir de Floriano Peixoto. As reformas que preconizavam, no entanto, perderam-se no processo político

republicano. Na consolidação do novo regime, dando-se por meio de um processo caótico e dramático, malograram-se seus esforços

cientificistas, reformadores, inovadores na criação daquele ‘saber sobre o Brasil’. Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do século XX

desiludiam-se : “Está tudo mudado: Abolição, República... Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá parece que essa gente está

doida”, vaticina Isaias Caminha, sob a pena de Lima Barreto. José Veríssimo, em “Vida literária” (revista Kosmos, n. 7,1904), descreve:

“Todos se presumiam e diziam republicanos, na crença ingênua de que a República, para eles palavra mágica que bastava à solução de

problemas de cuja dificuldade e complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com todos os males

da organização social, cuja injustiça os revoltava”. Ainda em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do 15 de novembro,

desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana: “Comunico-lhe que parto para a Europa, a demorar-me o tempo

preciso a que este País atravesse o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia...” . “Esta não é a República de meus sonhos”.

lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. “Foi para isso então que fizeram a República ?”, protestou Farias

Brito. No campo político, até que mantiveram-se passivos diante da “ditadura tirânica” e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca

com as forças mais conservadoras do Brasil agrário, mas as esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática repressoras do governo

Floriano Peixoto, quando se deu um cisma profundo entre os literatos e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram de fugir do Rio

de Janeiro para evitar a prisão, como Olavo Bilac e Guimarães Passos. Passado o momento inicial de esperança, desfeito o caminho

almejado da democratização do País prometida em comícios, conferências públicas, na imprensa radical, consolidada a vitória da ideologia

reforçadora do poder oligárquico, derrotados, desapontaram-se as elites, desapontaram-se os trabalhadores e o povo, desapontaram-se os

intelectuais, que desistiram da política militante e se concentraram na literatura, aceitando postos, mesmo decorativos, na burocracia

especialmente no Itamaraty de Rio Branco, que atraíra em torno de si, eficiente Ruy Barbosa no trabalho de ‘cooptação’, o grupo de

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intelectuais, representantes da intelligentsia do novo regime, constituindo o que à época se auto- denominaram “República dos

Conselheiros”. Difícil de manter uma convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das letras’, agravado pela crescente

insatisfação popular com o novo regime, exposta em agitações de rua, episódios violentos, revoltas e movimentos de protesto – e mais

ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada especulação financeira, a busca de enriquecimento a qualquer custo, o advento de

um capitalismo predatório levando ao encilhamento, a escandalizar Taunay que via “uma degradação da alma nacional” e a decepcionar

republicanos ardorosos como Raul Pompéia, para quem “a República discute-se consubstanciada no Banco da República”.A par do

afastamento repressor promovido pelo poder, viram-se compelidos a submeter sua produção literária ao “valor do mercado” – (...) neste

século de danação social, em que o Dinheiro logrou a tiara de pontífice ubíquo, para reinar discricionariamente sobre todas as coisas..”,

registrava Augusto dos Anjos em palestra pública.

Euclides, na verdade, começou a ganhar notoriedade política a partir do marcante ‘episódio do sabre’14, sendo então convidado a

colaborar em A Província de São Paulo, inteiramente engajado na causa republicana, no qual escreveu de 22 dezembro 1888 a 28 junho

1889 uma série de artigos inflamados (sob o pseudônimo de Proudhon, anarquista francês15 – a anunciar e prenunciar um Euclides

simpatizante do socialismo que viria depois) deflagrando verdadeira campanha republicana, pondo a nu um Euclides doutrinário,

propagandista, panfletário. Acreditava ser inevitável a substituição da Monarquia pela República, de um lado em conformidade com as leis

gerais da evolução política – sua formação positivista e cientificista o levava à crença em uma série linear de etapas do desenvolvimento

humano, segundo o que a República seria introduzida pela via pacífica, de forma evolutiva – de outro, num recrudescer de radicalismo, com

o uso da força, pela via revolucionária, em torno de que se deram todos os artigos publicados no ano de 1889, o primeiro em janeiro,

14Incidente ocorrido em dezembro de 1888, na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro , quando foi desligado por ato de insubordinação durante a revista das tropas pelo ministro da Guerra ( o comandante da Escola, o general Clarindo de Queirós, tinha proibido os cadetes de participarem de manifestação ao propagandista republicano Lopes Trovão, que retornava ao Rio, vindo da Europa, e para impedir a saída dos jovens da escola, fora marcada inspeção das tropas pelo ministro; Euclides, com 22 anos, saíra de forma durante a revista, atirara ao chão o sabre-baioneta, após tentar sem sucesso parti-lo sobre a perna, e interpelara o ministro Tomás Coelho sobre a política de promoções no Exército. 15 Pierre-Joseph Proudhon (1809 --65) ,de ativa atuação na difusão de um ideário anarquista, voltado (assim como Fourier e Saint-Simon) para uma reorganização da sociedade tendo por princípio a justiça, como base da harmonia social, e apoiada no mutualismo, forma de cooperação em associações sem o poder coercitivo do Estado; autor de Qu'est ce que la propriéte? (1840), Filosofia da miséria (1846), Théorie de la propriété (1866), entre outras.

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intitulado "89", tecendo o paralelo entre 1789, ano da Revolução Francesa, e 1889, e reiterando ser necessária uma revolução política como

a ocorrida na França, capaz de apressar a evolução para a República.

Passou da militância pela República à descrença com os rumos do novo regime - distanciamento gradativamente se revelando na

seqüência de artigos que publicou, entre 1890 e 1892 em O Estado de S. Paulo, em diversas cartas, a primeira ao pai, em junho de 1890 -

expressando sua avaliação de que o país estava entrando em um "desmoralizado regime da especulação, em que se pensava em tudo,

menos na Pátria" (muito de seu desalento vinha também do Encilhamento e sua “orgia especulativa, e a ambição fiduciária dos sequiosos

das rendas de novos cargos”) – depois ao sogro, major (à época) Sólon Ribeiro, em 1895 – dizendo que “a situação é justamente de

espertos, daí o grande desânimo que me atinge. (...) Às vezes creio que a nossa Republica atravessa os piores dias” - a João Luís Alves,

em maio 1897, poucos meses antes de seguir para Canudos - como uma espécie de testamento de pessimismo, lamentando “esse

descalabro assustador, ante essa tristíssima ruinaria de ideais longamente acalentados (...), a República agora paraíso dos medíocres, nela

o triunfo das mediocridades e preferência dos atributos inferiores." O que mais o inconformava era o desvirtuamento dos ideais

republicanos – que tinha ao fundo e na essência, não custa reiterar, a frustração no que tange às proposições inerentes ao liberalismo

social.

Não obstante os primeiros questionamentos e as primeiras desilusões – expostas majoritariamente na correspondência, assim

mesmo aquela mais estritamente particular; nos artigos, até 1892, continuava a externar e registrar sua absoluta crença e fé no novo

regime, defendendo-o e enaltecendo-o sempre, não obstante em artigo a 18 março 1890 citar “(...) a luta ...começa a perder a sua feição

entusiástica e a inocular-nos o travor das primeiras desilusões(...)” - participou, ainda que de forma secundária, do contragolpe de Floriano

Peixoto, em 23 de novembro de 1891, comparecendo a algumas reuniões de preparação da conspiração na casa do vice-presidente: após a

vitória, Floriano chegou a convidá-lo para ocupar cargo político, recusado por ele. Euclides defendia pela imprensa a legalidade do governo

de Floriano, escrevendo não mais como revolucionário mas como situacionista, que via na permanência de Floriano no poder a possibilidade

de consolidação da República. Mostrava-se favorável, em artigos publicados em março e abril de 1892, a uma "política conservadora",

capaz de garantir o "estabelecimento da ordem", atacando os opositores de Floriano, que comparava aos camponeses rebeldes da Vendéia

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- sublevação camponesa, monarquista e católica, ocorrida na Revolução Francesa, de 1793 a 1795 : "A República brasileira tem também a

sua Vendéia perigosa" Mas tinha certeza da vitória do governo, recorrendo ao mesmo paralelo histórico que em março e julho de 1897 iria

aplicar a Canudos - "A República vencê-los-á, afinal, como a grande revolução à Vendéia” – nos dois artigos que publicou em O Estado de

S. Paulo, intitulados “A nossa Vendéia”, antes de ser enviado como correspondente a Canudos.

O idealismo republicano de Euclides diluiu-se ao longo dos anos subseqüentes, e sua crítica aos desvios da política republicana (o

rompimento definitivo veio por ocasião da Revolta da Armada, 1893, quando denunciou publicamente a violência da repressão ordenada

por Floriano, os desmandos e as arbitrariedades do governo) radicalizou-se a partir da elaboração de Os sertões, em que a par de outros

elementos que conhecemos discutia a fundação da República por meio de um golpe militar e os problemas que tal origem trouxeram ao

novo regime, criticava de forma aguda quer o militarismo dos primeiros governos, quer o liberalismo artificial de uma Constituição que as

elites civis violentavam por meio de fraudes e manipulações eleitorais: o Estado, ‘tomado’ e manipulado ostensivamente pelas oligarquias

políticas e econômicas, o arrivismo financeiro desenfreado pelos especuladores, o empresariado e cafeicultores valendo-se acintosamente

dos recursos públicos, deputados e senadores valendo-se da distribuição de cargos e sinecuras para familiares, amigos, protegidos e cabos

eleitorais. O público e o privado integrados – quando justo a separação entre eles consistia numa dos elementos da própria identidade do

liberalismo.

Em trecho não incluído na versão final do livro, observou que o novo regime fora incapaz de romper com o passado: "A República

poderia ser a regeneração. Não o foi. (...) a velha sociedade não teve energia para transformar a revolta feliz numa revolução fecunda" (in

Manuscrito inédito de Os sertões, FBN). Em "Um velho problema", publicado em O Estado de S. Paulo em 1° de maio de 1904, quase

como uma revisão daquele seu artigo de janeiro de 1889, sustentava que a Revolução Francesa tinha oferecido ainda "o espetáculo singular

de repudiar, desde os seus primeiros atos, os seus próprios criadores, o que poderia ser aplicado também à República brasileira”.

Contudo, a desilusão euclidiana com a República não fez dele um resignado – até porque tinha uma natureza-índole extremamente

inconformista e combativa; ao contrário, empenhou-se em delinear um programa de ação com o fito de restauração da dignidade, da

racionalidade e da moralidade no país, programa cujo pressuposto era a superioridade do saber científico para a organização e condução da

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sociedade brasileira, o Estado como núcleo catalisador, concentrador e irradiador das energias sociais em conjunto com uma elite técnica e

científica.

Na apreciação da obra e da atuação intelectual de Euclides, e seu olhar sobre a questão social em simbiose com a política, é preciso

ter em vista e compreender tanto o padrão de organização social e de domínio vigente no país. Sobressai em Euclides a reflexão e

indagação acerca da viabilidade de a sociedade brasileira ser ou não capaz de gerar mudanças substanciais. Em torno dessa questão,

construiu profunda reflexão, buscando no processo histórico os fundamentos da constituição de um tipo de configuração política que

contivesse todos os elementos para as transformações sociais substantivas. Uma de suas maiores indagações reportavam-se a deduzir

serem as dificuldades, os impedimentos, as impossibilidades oriundas dos homens ou das instituições – e respondia: dos dois – porquanto

a cultura política prevalecente no país se incumbia de internalizar em cada indivíduo os vícios de um modo de agir que levava à

perpetuação das dificuldades políticas brasileiras. Mas atribuía também ao sistema representativo que vigorava no país, a responsabilidade

pela contínua decadência política que se instaurou no século XIX e XX.

Euclides foi o primeiro de todos e seu tempo (assim como para o meio ambiente e sua correlação com a política, assim como para a

Amazônia) a enxergar e denunciar a prática das conciliações – estagnadoras –, tidas por ele não como construtoras do entendimento e do

consenso mas como expressão de um conflito latente na própria ordem política e social brasileira. Euclides afirmava e reafirmava o caráter

vicioso da prática conciliadora – e se atentarmos o quanto toda a vida política brasileira, no decorrer dos anos, se constituiu através da

conciliação, constataremos a plena atualidade de Euclides também nessa seara.

Na essência, as críticas traziam implícita a revisão de algumas de suas próprias posições políticas, marcadas originariamente pela

adesão a um conjunto de crenças científicas e filosóficas materializadas no movimento republicano, mas que foram paulatinamente, a par

dos desmandos praticados no novo regime, se incorporando a um processo de conhecimento e consciência inerentes a sua vivência em

Canudos – testemunha ocular e física dos cenários de miséria, opressão, violência, injustiça social – e depois em São José do Rio Pardo,

quando e onde entrou em contato com um movimento ideológico – então emergente na cidade. – de resto já grassando em partes do

mundo e entre muitos intelectuais brasileiros [vide n. 14] .

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Em São José do Rio Pardo, enquanto escrevia Os sertões, refletia sobre a imperiosidade de “refundar a República”, corrompida pelo

militarismo, o arrivismo financeiro-monetário, o falso liberalismo em que as elites civis cometiam toda sorte de fraude eleitoral e corrupção,

e praticavam a conciliação. Mergulhado num processo de revisionismo profundo – reformulador inclusive de uma teoria sobre o Brasil,

construída a partir do positivismo-cientificismo-evolucionismo – descartava a interpretação corrente de uma conspiração política anti-

republicana e pró-monarquia16, acusava o Exército, a Igreja e o governo pela destruição de Canudos, mencionando inclusive o massacre de

prisioneiros sobre o que antes mantivera silêncio e omissão.

Extremamente significativos, neste sentido, são os escritos euclidianos com relação, por exemplo, a Canudos e a Antonio Conselheiro

– os primeiros, nos textos do “Diário de uma expedição”, originalmente publicados em série em O Estado de S. Paulo de 9 agosto a 25

outubro 1897, onde escreve:

“Bahia- 15 de agosto. (...) / Antonio Conselheiro, espécie bizarra de grande homem pelo avesso, tem o grande valor de sintetizar admiravelmente todos os elementos negativos, todos os agentes de redução do nosso povo. / Vem de longe - repelido aqui, convencendo mais adiante, num rude peregrinar por estradas aspérimas – e não mente quando diz que é um ressuscitado porque é um notável exemplo de retroatividade atávica e no seu misticismo interessante de doente grave ressurgem, intactos, todos, os erros e superstições dos que o precederam, deixando-lhe o espantoso legado. /Acredita que não morre porque pressente, por uma intuição instintiva, que em seu corpo fragílimo de evangelizador exausto dos sertões se concentram as almas todas de uma sociedade obscura, que tem representantes em todos os pontos da nossa terra. / Arrasta a multidão, contrita e dominada, não porque a domine, mas porque é o seu produto natural mais completo. / E' inimigo da República não porque lhe explorem a imaginação mórbida e extravagante de grande transviado, mas porque o encalçam o fanatismo e o erro. / E surge agora; - permaneceu em vida latente longo tempo e devia aparecer naturalmente, logicamente quase, ante uma situação social mais elevada e brilhante, definida pela nova forma política

16Roberto Ventura, um dos maiores e mais articulados estudiosos euclidianos, sustenta que a destruição de Canudos deveu-se menos ao anti-republicanismo do Conselheiro do que a fatores políticos, como o conflito entre facções partidárias na Bahia, rompendo o equilíbrio político da região, a atuação da Igreja contra a atuação dos beatos e pregadores, as pressões dos proprietários de terras contra a comunidade que se expandia trazendo escassez de mão-de-obra (VENTURA, 1994; p. 13). Relevante também considerar o que Roberto Ventura escreveu acerca do Conselheiro : “(...) Antonio Maciel, o Conselheiro, reuniu seus sermões em dois volumes manuscritos, a que Euclides não teve acesso quando redigiu sua obra. Tais prédicas mostram um líder religioso muito diferente do fanático místico ou do profeta milenarista retratado em Os sertões. Revelam um sertanejo letrado, capaz de exprimir, de forma articulada, suas concepções políticas e religiosas, que se vinculavam a um catolicismo tradicional, corrente na Igreja do século XIX (...).” (VENTURA, 2000; p. 532).

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como essas sementes guardadas há quatro mil anos no seio sombrio das pirâmides, desde os tempos faraônicos, e germinando espontaneamente agora, quando expostas à luz”.(...)

“Canudos – 1º. de outubro / (...) Sejamos justos – há alguma coisa de grande e solene nessa coragem estóica e incoercível, no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais acredito que a mais bela vitória, a conquista real consistirá no incorporá-los, amanhã, em definitivamente, à nossa existência política”(...).

Nesse trecho, em particular, a essência mesma do pensamento euclidiano lastreado no liberalismo social e numa ideologia

humanitária.

“Bahia, 8 setembro (11 hs. 10 m.m.) O marechal Machado Bittencourt, ministro da Guerrra, só seguirá para o sertão depois de providenciar sobre o equipamento e organização das forças e aguardará a chegada dos batalhões do sul e do norte. / (...)Todas estas medidas são tomadas com urgência e ordem. / (...)Embora conste a existência de poucos jagunços em Canudos, acredita-se que outros estejam embocados nas imediações. / A vitória, porém, é infalível e próxima. Viva a Republica !"

“Monte Santo, setembro 25 (Urgente). Está completo o sitio de Canudos.

Viva a Republica."

Depois, já em Os sertões (que escreveu de 1898 a 1902), é enfático :

“(...)Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam furiosamente cinco mil soldados. / Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. / Nem poderíamos fazê-lo. / (...) Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos.” (...)

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E conclui por definir a guerra de Canudos como “(...) um crime inútil e bárbaro (...), uma charqueada (...) a luta mais brutal dos nossos

tempos (...), um esboço real do maior escândalo da nossa história(...)”.

E mais: “Duas linhas [VII} - É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”

Em janeiro de 1902, já em fase final de elaboração do livro, escreveu "(...) serei um vingador e terei desempenhado um grande

papel na vida – o de advogado dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha e sanguinária." em carta dirigida a Francisco

de Escobar.

o socialismo,“(...) uma idéia vencedora (...)”

Com efeito, não pode deixar de se considerar, dentro do espectro ideológico euclidiano, a questão do socialismo, assumido

explicitamente a partir de 1899 – mas convém saber que já por volta de 1894 entregara-se com fervor aos estudos brasileiros e interesse

pelas ideologias renovadoras que já encontravam eco no Brasil republicano, entre políticos, intelectuais e literatos17.

17Historicamente, a crítica à sociedade burguesa industrial, desenvolvida desde os primeiros anos do século XIX, teve na França Charles Fourier (1772-1837), Claude-Henry de Rouvroy Saint Simon (1760-1825), e Robert Owen (1771-1858) na Inglaterra – que entendiam ser possível, através de diferentes táticas, conciliar o capitalismo industrial com as necessidades sociais dos operários – numa simbiose com o liberalismo social: Karl Marx e Friedrich Engels tornaram-se os maiores críticos desse grupo, conferindo-lhes a designação pejorativa de "socialistas utópicos"; duas correntes do socialismo – eqüidistantes a ambas, estavam Pierre-Joseph Proudhon (1809 --65) e Mikahil Bakunin (1816-77) – que tornaram-se, por motivações filosóficas ou por concepções doutrinárias ou por visões estratégicas distintas, adversários políticos inconciliáveis na Europa, mas que vieram a constituir a esquerda do espectro ideológico político na Europa, responsáveis tanto pela organização e pelo desenvolvimento dos movimentos operário e socialista quanto da internacionalização do movimento e dessas correntes filosóficas, de larga e duradoura influência em todo o mundo, contribuindo intensamente para as transformações da democracia liberal-burguesa ocorridas entre o fim do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX (e que, em última análise, geraram a transição da democracia liberal para a social-democracia). As idéias socialistas no Brasil receberam ainda as influências dos franceses, aqui estabelecidos no século XIX, Louis-Léger Vauthier (engenheiro, que realizou projetos em Pernambuco), e Henrique Augusto Milet (também engenheiro, também radicado em Pernambuco, figura de proa do importante Congresso Agrícola do Recife, 1878, autor de A lavoura da cana de açúcar, 1881, e Os Quebra-Quilos e a crise da lavoura, 1874), e ganharam corpo por meio de intelectuais brasileiros, como Aprígio Guimarães, Clóvis Beviláqua, Tobias Barreto, Silvério Fontes, entre outros – e ‘simpatias explícitas’ em Martins Fontes e até mesmo Olavo Bilac. Todo esse contexto irradiou e influenciou profundamente a sensibilização de Euclides para o socialismo, num processo de aproximação com o ideário e as proposições que na verdade tiveram início por volta de 1894 quando deslocado, por ‘iniciativa’ de Floriano Peixoto, para Campanha, Minas Gerais, depois de seus protestos lavrados nas cartas ao jornal Gazeta de Notícias .

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Mas o socialismo abraçado e assumido por ele sem qualquer teor, digamos, dialético:

“Nada de idealizações; fatos e induções inabaláveis resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e a observação, adestrada em lúcido tirocínio ao través das ciências inferiores; e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra, sem tortuosidade de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para o alcançarem, porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade”.

Euclides efetivamente se achegou ao grupo socialista de São José do Rio Pardo – é certo, por exemplo, que elaborou junto com o

amigo Francisco Escobar o programa de O Proletário, órgão do “Clube Internacional Os Filhos do Trabalho” – mas uma plêiade de opiniões

conflitantes cercam sua atuação e participação como militante. As interpretações controversas vão de Francisco Venâncio Filho – que

assevera ter Euclides fundado na cidade o partido socialista, a 1º de maio de 1901 –, o biógrafo Eloy Pontes – que coloca Euclides à frente

de comícios socialistas –, o escritor Silvio Rabelo e o jornalista e político Freitas Nobre – que afiançam ter Euclides redigido o manifesto de

fundação do partido socialista riopardense, no qual acentuava “(...) festa exclusivamente popular, ela se destina a preparar o advento da

mais nobre e fecunda das aspirações humanas, a reabilitação do proletariado pela exata distribuição da justiça, cuja fórmula suprema

consiste em dar a cada um o que cada um merece (...)” – o escritor e político Abguar Bastos – que sustenta até ter Euclides fundado com

Francisco Escobar e Paschoal Artese o “Clube Os Filhos do Trabalho” e reitera sua autoria no manifesto de 1º. de maio de 1901 - o poeta e

escritor Menotti del Picchia – que retrata “(...) um cortejo encabeçado por estandartes de corporações de artesãos, grupos de proletários

cantando hinos, bandas de música e homens de prol à testa da parada, em que se destaca um orador falando àquele grupo de

trabalhadores, Euclides da Cunha, que já no manifesto de primeiro de maio de 1901 marca o encontro de seu autor com idéias que estão

imanentes em toda sua obra (...)”— até, no lado contrário, o promotor Aleixo José Irmão – rigorosamente o único que, embora com

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argumentos falhos e artificiais, contesta em Euclides a condição de socialista militante, mas não consegue desmentir a de simpatizante das

idéias socialistas... .

Aqui o que menos importa, a meu juízo (guarda parentesco com a ridícula questão se a Capitu machadiana ‘traiu ou não traiu’, ou

ainda de Machado ser a obra Queda que as mulheres.têm para os tolos uma criação original ou tradução), é se Euclides participou direta e

ativamente do movimento socialista no “Clube Os Filhos do Trabalho”, ou nas manifestações de rua, etc: o que interessa fundamentalmente

é a postura euclidiana face à questão social e ao socialismo, postura absolutamente certa e plenamente comprovável, pelo artigos – todos

datados de 1º de maio – de 1892, em O Estado de São Paulo, pelo programa de O Proletário, pelo artigo de 1904 “Um velho problema” –

este, o mais avançado de sua lavra e um dos mais radicais de seu tempo: permeando-os, evidencia-se um claro processo de

amadurecimento ideológico, pelo menos a nível teórico, processo intimamente ligado à sua desilusão cética com a República e a total,

explícita e irrecorrível assimilação dos mais avançados princípios, pressupostos, conceitos e elementos progressistas – do positivismo-

cientificismo-evolucionismo ao liberalismo social e socialismo – em seus escritos e na gênese de sua obra.

a ecopolítica em Euclides

De olhar voltado prioritariamente para o interior do país , Euclides da Cunha foi rigorosamente o primeiro intelectual brasileiro a

cultivar e externar preocupações com o meio ambiente, inclusive fazendo da ecologia um tema político, um item de propostas de ação

política, em que registra,observa e critica os embates entre uma civilização, para ele ainda improvisada, com a natureza do país ,

lançando as bases, inéditas no país , avançadas ao extremo em seu tempo e antecipadoras dos conceito e elementos do

desenvolvimento sustentável , na permanente preocupação euclidiana no conciliar progresso com a preservação ambiental.

Ainda com 18 anos,lavrava um protesto em seu primeiro trabalho no jornal O Democrata de 4 abril 1884 –pequeno jornal dos alunos do

colégio Aquino,onde estudava desde 1883, no qual inclusive foi aluno de Benjamin Constant,professor de matemática,que iria em 1886

reencontrar na Escola Militar e nele insuflar os ardores republicanos ; no artigo, externando o interesse e apreço pela natureza que

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estaria presente em toda sua obra,ao lado de descrever em viagem de bonde para o colégio as maravilhas do cenário natural que

descortinava,as matas e florestas da cidade do Rio de Janeiro, criticava o progresso representado pela estrada de ferro que degradava

a natureza : “(...)Ah ! Tachem-me muito embora de antiprogressista e anticivilizador, mas clamarei sempre e sempre: - o progresso

envelhece a natureza, cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada, morrerá! E a

humanidade, não será dos céus que há de partir o grande "Basta" (botem b grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa(...)Tudo

isto me revolta ,me revolta vendo a cidade dominar a floresta,a sarjeta dominar a flor”.

Os sertões eram vistos por Euclides com um olhar mais amplo,abrangente e profundo que o de um geógrafo puro, mais do que de

um simples geólogo, muito mais que de qualquer antropólogo : desenha,disseca e ‘interpreta’ o cenário dos sertões, descrevendo com

rigorosa exatidão as formação, estrutura e nuances geológicas e climáticas da região – a “terra ignota” – e a partir daí, compõe sua

reflexão sobre a seca , a incapacidade geral do país em resolver o problema – de um lado, evocando exemplos bem-sucedidos de

soluções corretoras dos efeitos das secas adotada por outros países (“a exploração científica da terra,coisa vulgaríssima hoje em todos

os países, é uma preliminar obrigatória do nosso progresso”) ; em diversos escritos propõe soluções técnicas, dessa ordem, para a

questão no Brasil : se é capaz de criar desertos, o homem poderia também extingui-los – de outro, denunciando a utilização política da

seca que tem servido para “a retórica de congressos e conferências,para projetos mirabolantes,para justificar uma burocracia voraz,

perfeitamente digna de salvar o Nordeste nas esquinas da Avenida [assim] O Brasil não resolve seu grande problema,que não é apenas

administrativo porque é igualmente moral,social e político”.

Depois, nos textos “Fazedores de Desertos”, publicado originalmente em 1901,em O Estado de S. Paulo, e “Entre as Ruínas”, em

O Paiz,1904 ( cuja primeira versão, sob o título “Viajando” , é de 1903, em O Estado de S. Paulo– ‘credita’ ao próprio avanço humano o

efeito maléfico na vegetação, nos recursos hídricos, nos solos, no clima, provocado pelas queimadas numa agricultura ainda com

métodos herdados do período colonial . Como na maioria de seus textos sobre o tema, Euclides confronta riquezas passadas e farturas

naturais com uma realidade arruinada -- “temos sido um agente geológico nefasto e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro

da própria natureza que nos rodeia” – explica,algo didaticamente, o processo de agricultura itinerante que ia tornando a terra cada vez

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mais desabrigada e pobre,e evoca a história ao atribuir a devastação florestal,como um ciclo desde os primórdios, ao indígena brasileiro

, continuada pelo colonizador,feito um “terrível fazedor de desertos”, fosse o garimpeiro, “atacando a terra nas explorações mineiras a

céu aberto, esterilizando-a com o lastro das grupiaras,retalhando-a a pontaços de aluvião” ou lavrador,“eliminando, a partir do mau

ensinamento aborígene [a queimada] as grandes extensões de matas e florestas e aviltando o clima”, tornados ambos herdeiros de um

modelo nefasto de uso da terra, agravando-o a ponto de esterilizar sua fertilidade e tornar a paisagem uma ruína só, de natureza e de

pessoas,inclusive desencadeando fenômenos climáticos e geológicos na formação de desertos e do regime das secas – as quais

dissecaria como ninguém ao dedicar-se ao sertão.Euclides contestava um modelo “peculiar e oportunista” de desenvolvimento, que

“povoa despovoando”, “não multiplica as energias nacionais, desloca-as”, fazendo “ avançamentos que não são um progresso, indoao

acaso, nesse seguir o sulco das derribadas, deixando atrás um espantalho de civilização tacanha nas cidades decaídas circundadas de

fazendas velhas”.

Ninguém antes de Euclides dedicou-se com tanta ênfase, profundidade e , em especial , pioneirismo,à Amazônia : foi o primeiro

dos literatos brasileiros a conhecê-la in loco e a retratar ,dramaticamente, aquele “paraíso perdido” e despertar,em textos

‘reivindicantes, vingadores’, o conhecimento e a discussão dos gritantes problemas que afligiam(afligem) a região – segundo ele um

outro Brasil,aliás um novo Brasil .Sob o escopo de seu projeto de integração nacional, a Amazônia seria o destino inevitável dos

contingentes saídos de outras regiões por adversidades climáticas,geológicas,geográficas e especialmente sociais e

econômicas,constituindo-se na “mais dilatada diretriz de expansão de nosso território”, e para seus olhos embevecidos o “deslumbrante

palco onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do globo” – daí vindo a ser um dia objeto de cobiça estrangeira,

vítima do expansionismo e ambições territoriais das potências mundiais (“a expansão imperialista das grandes potências é um fato de

crescimento... e a conquista dos povos é uma simples variante da conquista de mercados”), o que exigia, sustentava Euclides, imediata

e eficaz ação por parte das autoridades e do Poder Público para completas defesa e integração da região.Na Amazônia, por Euclides, a

ecopolítica recebe novas lentes : o olhar euclidiano sobre a região e seu ‘destino no Brasil e no mundo’ envereda e lança as primeiras

luzes para a geopolítica,rigorosamente nos moldes,diga-se, dos mais atuais e importantes debates .

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a etnopolítica em Euclides

A etnia brasileira foi um dos temas que mais mobilizaram Euclides para a formulação de reflexões sobre a nacionalidade, per se

um tópico já excepcionalmente preponderante em seu arcabouço intelectual .No capítulo “O homem”,de Os sertões, por exemplo, expôs

analiticamente as origens do homem americano, a formação social do sertanejo,e em especial os “malefícios da mestiçagem”: numa

espécie de teoria étnica fatalista , admitia a história brasileira ter sido construída por meio do choque entre etnias e culturas condenadas

ao desaparecimento -- rigorosamente de acordo, diga-se, com as teorias do sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz ( que,sabemos, foi

um dos pilares filosóficos ,ao lado de Spencer, do pensamento evolucionista de Euclides) e sua teoria de a História guiada pelo conflito

entre raças a resultar,conforme as ‘leis’ do evolucionismo, no esmagamento inevitável dos fracos pelos fortes.

Ao mesmo tempo em que reitera a falta de “integridade étnica” do brasileiro,

Euclides não julgava possível um único tipo étnico no Brasil -- “não temos unidade de raça,não a termos nunca; até porque

nenhum país a tem igualmente, por toda parte os cruzamentos sucessivos impediram a conservação do tipo primitivo” – posteriormente,

sob o revisionismo pungente que elaborou, passou a ter o sertanejo, segundo ele, um tipo étnico-social diferenciado , como o único

elemento de esperança de constituir no Brasil uma população homogênea , porquanto “as vicissitudes históricas o libertaram,na fase

delicadíssima de sua formação,das exigências desproporcionais de uma cultura de empréstimo”.

Neste particular, Euclides obedecia à crença na inferioridade dos não-brancos -- mas com uma nuance : enaltecia o sertanejo que

detinha vantagens sobre o mulato litorâneo por força de seu isolamento que propiciara evolução racial e cultural mais estável – “o

sertanejo é antes de tudo um forte, não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. Observa Euclides que “ao

invés da inversão extravagante, que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal

constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento - nos sertões, a integridade orgânica do mestiço desponta

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inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evoluir, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos,

porque é a sol ida base física do desenvolvimento moral ulterior."

O sertanejo,no desenho literário-antropológico que construiu, era o resultado da convergência e interação , formando uma ‘sub-

raça superior’ (sic) , entre a bravura indígena e a ousadia dos bandeirantes paulistas ,com seu “destino histórico de assaltar o deserto

(...)cruzados destemerosos a desencadear a atividade arroteadora e valorizadora dos espaços interiores do território,integrando-os

(...)”Na verdade, Euclides edificou a imagem do homem do sertão como um ser autêntico, enraizado na terra, dotado de cultura e

evolução próprias e autônomas , capaz inclusive de criar o brasileiro do futuro – como “rocha viva da nacionalidade”.

A rigor, as concepções e considerações étnicas de Euclides acoplam-se, interagem e se intertextualizam com seus conceitos de

civilização e o “movimento civilizador” que preconizava – ou processo civilizatório para o qual a República teria sido um decisivo passo.

Desde seus primeiros textos,com efeito, o termo e o conceito de “civilização” aparecem uma força histórica e como uma lei natural, até

porque inerentes ao ideário positivista e evolucionista, a civilização como o modelo de desenvolvimento para a humanidade. : “a

civilização é o corolário mais próximo da atividade humana sobre o mundo; (...) o seu curso, como está, é fatal, inexorável” . Via-a

como instrumento de luta intelectual pela construção de uma identidade nacional, que se queria livre de fórmulas invasoras: “Estamos

condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.”

nos muitos Euclides, um só

O certo é que permeando e perpassando todas as fases e estágios de sua vida e todas as linhas e entrelinhas de seus

escritos,depoimentos e palavras , mais do que matemático,engenheiro,geólogo,geógrafo,historiador,jornalista,articulista,

ensaísta, em especial, um pioneiro no que tange a questões ligadas à ecopolítica, e à etnopolítica no Brasil , prevalece o Euclides

pensador ,um intelectual empenhado,permanentemente, na reflexão e formulação de propostas para fazer do Brasil uma nação

moderna e afinada com a civilização.

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AVALIAÇÃO PARASITOLÓGICA E CONDIÇÕES HIGIÊNICO-SANITÁRIAS DE HORTALIÇAS COMERCIALIZADAS NA CIDADE DE CRUZEIRO DO SUL, ACRE, BRASIL

Cavalcante, M, S18. Corrêa, E. A19.

RESUMO Vários estudos vêm sendo conduzidos sobre alimentos. As hortaliças são alimentos importantes no desenvolvimento e manutenção da saúde humana. São comercializadas em quase todas as regiões do país e a sua forma de manipulação, armazenamento, comercialização e consumo, podem constituir importante meio de veiculação e infecção por diferentes agentes microbianos e parasitos intestinais que afetam a saúde humana. Este estudo teve por objetivo avaliar a presença de parasitos em amostras de hortaliças (alface, couve, cebolinha e salsa) comercializadas no Mercado Público nas margens do rio Juruá no município de Cruzeiro do Sul – AC. As coletas foram realizadas em 3 meses alternados: novembro/2009, janeiro/2010 e março/2010, totalizando 25 coletas (n=4), tendo como total 100 amostras de verduras. Como método realizou-se registros dos aspectos fitossanitários no local de estudo e análises parasitológicas nos laboratórios de microbiologia/parasitologia da Universidade Federal do Acre – UFAC. Utilizou-se para análise a sedimentação espontânea de Hoffman, Pons & Janer (1934) adaptado de Dall'stella (2006) para avaliação da contaminação parasitológica dos alimentos. A avaliação das condições sanitárias foi realizada por meio de observação e registros fotográficos nos locais de coleta baseada nos parâmetros do MS. As análises revelam que 100% (n=25) das coletas apresentavam algum tipo de contaminação pela presença de diferentes parasitos como: protozoários da espécie Entamoeba coli e Entamoeba histolytica e helmintos: Taenia sp, Ascaris lumbricoides, Hymenolepis diminuta, Hymenolepis nana, Necator americanus, Strongyloides stercoralis, e Trichuris trichiura. Identificados nas formas de cistos, trofozoítos, ovos e larvas. Quanto às condições higiênico-sanitárias, o armazenamento e as formas de comercialização eram inadequados em partes das barracas e alimentos coletados e analisados. Conclui-se que há contaminação dos alimentos comercializados e que a detecção de diferentes agentes parasitológicos nas hortaliças analisadas pode oferecer riscos de infecção em humano caso não haja tratamento dos alimentos, orientação adequada no armazenamento e comercialização. Os dados obtidos neste estudo podem auxiliar nas orientações de ações preventivas e educação sanitária, representando um papel importante na redução da transmissão de infecções parasitárias intestinais no município, proporcionando, ainda, melhora na qualidade de vida da população. Palavras Chave: Hortaliças, contaminação, enteroparasitos.

18 1Acadêmica do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Acre – UFAC, Campus de Cruzeiro do Sul -AC, Brasil. 19 Prof. MSc. do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Rondônia - IFRO, Campus de Porto Velho, Brasil.

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ABSTRACT Many studies have been doing about food. The vegetables are important foods in the development and maintenance of human health and they are sold in almost all regions of the country and the way of handling, storage, marketing and consumption can constitute an important mean of transmission and infection by different microbial agents and intestinal parasites that affect human health. This study aimed to evaluate the presence of parasites in samples of vegetables (lettuce, cabbage, chives and parsley) sold in the Public Market on the Rio Juruá in Cruzeiro do Sul - AC. The samples were collected in three alternate months: November/2009, January/2010 and março/2010, totaling 25 samples (n = 4), with the total 100 samples of vegetables. As method we did register of the sanitary aspects in the place when the study was developed and parasitological analysis at the microbiology / parasitology laboratories of the Universidade Federal do Acre - UFAC. We used to analyze the sedimentation of Hoffman, Pons & Janer (1934) adapted from Dall'stella (2006) to evaluate the parasitological contamination of food. The assessment of health conditions was done through observation and photographic records in the place where we developed the study based on the parameters of MS. The analysis shows that 100% (n = 25) of samples had some type of contamination by the presence of different parasites such as protozoa such as Entamoeba coli and Entamoeba histolytica and helminthes: Taenia sp, Ascaris lumbricoides, Hymenolepis diminuta, Hymenolepis nana, Necator americanus, Strongyloides stercoralis, and Trichuris trichiura. We identify the protozoa in the form of cysts, trophozoites, eggs and larvae. Analyzing the hygiene and sanitary conditions, storage and marketing forms were inadequate in some of the tents where food were collected and analyzed. We conclude that there is contamination on food marketed and that the detection of different actors in parasitological analyzed vegetables may present a risk of infection in humans in the absence of food processing, orientation to the storage and marketing. The data obtained in this study can assist in the guidelines for preventive health education, an important role in reducing the transmission of intestinal parasitic infections in the city, providing further improvement in quality of life. Keywords: Vegetables, contamination, intestinal parasites. INTRODUÇÃO

Os alimentos são importantes para a manutenção e desenvolvimento dos seres humanos, desde que estejam em condições higiênico-sanitárias

adequadas para o consumo. Um dos problemas que é observado quanto à disponibilidade e acesso ao alimento está nas possíveis contaminações por

diferentes agentes, entre eles os parasitos. De acordo com os relatos de ZAIDEM (2004, p. 13), as infecções parasitárias provêm de associações entre

seres vivos e são causadas por parasitos de diferentes tipos, provocando assim alterações físicas, mentais e emocionais, interferindo na qualidade de

vida. Os agentes etiológicos das parasitoses variam entre os continentes, devido a diversos fatores como, por exemplo, as diferenças culturais e

ambientais, mesmo assim elas são consideradas pandêmicas.

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De acordo com PARTELI e GONÇALVES (2005) a presença de microrganismos de origem fecal em águas poluídas tratadas e não tratadas

representa um alto risco à saúde humana e animal, podendo tornar-se um veículo para a transmissão de inúmeras doenças. Embora a incidência de

surtos epidêmicos de várias doenças, cujos agentes infecciosos são transmitidos pela água, tenha diminuído nas últimas décadas com a melhoria do

saneamento básico e com a mudança de comportamento da população em relação à prática de hábitos de higiene, vários estudos têm mostrado que, em

países onde as condições sanitárias são precárias, casos de contaminação direta e indireta dos alimentos ocorrem em números alarmantes (KELLER et

al., 2000).

Segundo a UNICEF (1998) apud CARRILLO et al. (2005, p. 191) um dos grandes problemas da saúde pública mundial são as

enteroparasitoses, atingindo 30% da população, com maior prevalência nos países em desenvolvimento, devido ao baixo nível socioeconômico, as

precárias condições de saneamento básico, entre outros fatores.

CASTRO et al. (2004, p. 140) afirma também que as parasitoses no Brasil representam um sério problema de saúde pública devido a fatores

que estão relacionados com a qualidade de vida das pessoas como: saneamento básico e medidas pessoais de higiene. Além disso, idade, nível

socioeconômico e grau de escolaridade influenciam na frequência de enteroparasitos.

Dentre os diversos problemas verificados por infecções parasitárias, é relevante observar os relatos de CIMERMAN e CIMERMAN (1999, p.

5) quando descrevem que quando os parasitos atingem o homem, agem como corpo estranho instalando-se e crescendo nos tecidos humanos,

alimentando-se à custa do hospedeiro, metabolizando assim suas reservas nutritivas e suprindo suas necessidades metabólicas. Descreve, ainda, que o

resultado desta ação será o prejuízo do hospedeiro, que poderá morrer ou ficar doente. Em diferentes relatos, observa-se que a ação parasitária pode ter

um mecanismo único ou múltiplo. Desta forma, acredita-se que estes podem ser percebidos nas alterações fisiológicas das pessoas.

Entretanto, as patogenias relacionadas com as enteroparasitoses geralmente são esquecidas, pois os sintomas das mesmas são confundidos com

os de outras doenças ou são inespecíficos, ficando os indivíduos parasitados por longos anos de forma silenciosa e inaparente, causando danos

principalmente às crianças (ARAÚJO e FERNANDEZ, 2005, p. 40).

De acordo com essa realidade e com a compreensão de que as enteroparasitoses podem e acometem um grande número de pessoas no mundo

todo, nas mais diferentes classes, podendo estar associadas a diferentes fatores, dentre eles os alimentos, prevalência em pessoas com menores

condições habitacionais com diferentes graus de gravidade, acometendo principalmente as crianças e prejudicando de forma geral o seu

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desenvolvimento. Diante deste contexto, este projeto objetiva levantar, identificar formas de parasitos intestinais e os aspectos fitossanitários de

comercialização, transporte e armazenamento de quatro espécies de verduras comercializadas no Mercado Público Municipal, presente no perímetro

urbano às margens do rio Juruá na cidade de Cruzeiro do Sul - AC.

MATERIAL E MÉTODOS Neste estudo, foram realizados levantamentos dos aspectos fitossanitários nos locais de comercialização como condição de higiene,

manipulação e comercialização por observação e registro fotográfico, coletas e análises laboratoriais. Foram levantados também dados em fontes

especializadas como artigos científicos.

As coletas e análises laboratoriais ocorreram no período de novembro a março, sendo coletadas e analisadas 25 amostragens (n=4) de hortaliças

compostas por alface, couve, cebolinha e salsa, comercializadas no Mercado Público Municipal, nas margens do rio Juruá no município de Cruzeiro do

Sul.

Como base de análise, a alface foi definida como pé ou touceira, como unidade amostral, para a couve, cebolinha e salsa definidas como maço,

com folhas agrupadas e amarradas por laços, todas independentes de peso ou tamanho.

As coletas ou aquisições foram realizadas no período da manhã, as amostras eram colocadas à disposição do consumidor em diferentes fontes

de comercialização. Estas foram acondicionadas individualmente, com exceção de duas amostras acondicionadas coletivamente, em sacos plásticos

fornecidos pelos comerciantes ou adquiridas em compra onde foram levadas em seguida ao laboratório para análise. No laboratório de microbiologia e

parasitologia, foram analisadas seguindo as recomendações do protocolo e uso de Equipamento de proteção Individual - EPI.

Nos procedimentos laboratoriais, utilizou-se a sedimentação espontânea de Hoffman, Pons & Janer (1934) a qual foi adaptada de Dall'stella

(2006). Nestes, as amostras foram selecionadas e preparadas em duas lavagens e analisadas segundo os métodos parasitológicos de GUIMARÃES et

al., (2003). Os procedimentos de lavagem das amostras são descritos a seguir:

Primeiramente, as amostras foram lavadas por enxaguadura, colocando 250 ml de água destilada no saco plástico contendo a verdura e

agitando-o manualmente por um minuto.

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Na segunda lavagem, as verduras foram colocadas em uma bandeja com um preparo da solução de 250 ml de água destilada e 1ml de

detergente neutro, pinceladas individualmente, com um pincel chato número 16 proposto por BASTOS et al. Quanto às amostras de alfaces, os pés

foram desfolhados, sendo desprezadas as folhas deterioradas e as demais verduras, constituídas por maço, foram apenas desamarradas. As soluções das

duas lavagens foram filtradas em gaze de oito dobras e deixadas em repouso em cálice cônico de sedimentação, coberto por placa de Petri, por 24

horas. Em seguida, utilizou-se uma pipeta de plástico e outro recipiente (canudo de plástico), coletou-se uma amostra do fundo do vértice do cálice. No

caso do canudo, colocou-se fechado em uma das bordas e posteriormente foi destampado após emergi-lo.

Do sedimento obtido foi colocada uma gota em lâmina corando-a com uma gota da solução de lugol. Sendo, posteriormente coberta com

lamínula e examinada em duplicata em microscópio óptico (10x e 40x), registrando as amostras e identificações em câmera USB-DCE 2 para

microscópio.

Durante as análises, os materiais utilizados nos procedimentos foram higienizados com detergente neutro e lâminas e lamínulas após serem

imersas em água sanitária por 30 minutos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nos estudos das avaliações parasitológicas, das 25 coletadas (n=4), o número total de amostras correspondeu a 100 unidades analisadas. As

avaliações revelaram diferentes quantidades e espécies de parasitos intestinais presentes nas verduras analisadas. Dentre eles, protozoários e helmintos

em forma de larva e ovos conforme demonstra a tabela 1.

Tabela 1- Relação de verduras e parasitos encontrados nas avaliações das amostras comercializadas no Mercado Público Municipal em Cruzeiro dos

Sul -Ac.

Amostras de verduras com contaminação por diferentes parasitos

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Nas quatro espécies de hortaliças analisadas, grupo composto por alface, salsa, couve e cebolinha (tabela 01), puderam ser evidenciados nove

gêneros de parasitos que indicam ou representam riscos à saúde da população, o que evidencia diferentes grupos parasitos e sugere diferentes formas

de contaminação.

No que se refere às formas dos parasitos, os dados revelam que os cistos e trofozoítos apresentados por protozoários, apresentaram diferentes

formas. Os em forma de cisto (Figura 2 C) observa-se a Entamoeba coli (n= 18) e Entamoeba histolytica (n= 5) nas amostras; Em forma de trofozoítos

de E. histolytica (n=3); formas de ovo e larvas (Figura 02 A e 2 B) evidenciadas em diferentes estágios pelos helmintos: Ascaris lumbricoides (n=4)

ovos férteis e (n=6) ovos inférteis; ovos de Hymenolepis diminuta (n=1); ovos de Hymenolepis nana (n=2); ovos de Taenia sp. (n=2); ovos de

Trichuris trichiura (n=2); ovos de Necator americanus (n=1) e larvas de Strongyloides stercoralis (n=17) nas formas rabditóide e filarióide.

As somatórias das formas encontradas correspondem a: cistos n=23 (38%); trofozoítos n=3 (5%); ovos n=18 (29%) e larvas n=17 (28%).

(Figura 01)

Parasitos Alface (Lactuca sativa)

Salsa (Petrosolium sativum)

Couve (Brassica oleracea L.)

Cebolinha (Allium fistolosum)

E. coli 18 05 04 03 E. histolytica 06 01 00 01 Ascaris lumbricoides

09 01 02 02

H. diminuta 01 00 00 00 H. nana 02 00 00 00 Taenia sp 02 00 00 00 T. trichiura 02 00 00 00 N. americanus 01 00 00 00 S. stercoralis 12 02 01 02 Total 53 09 07 09

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38%

29%

28%

5%

Cisto

Ovo

Larva

Trofozoíto

Figura 01- Percentuais das formas parasitárias encontradas nas 25 amostras analisadas de hortaliças comercializadas no Mercado Público na cidade de Cruzeiro do Sul, Acre.

Figura 02: Amostras de formas parasitárias encontradas nas verduras analisadas. Em A, Larva (S.stercoralis); em B, ovo de N. americano e em C, Cisto de E. coli. Registros e observação em microscopia óptica (10x40).

Nas quatro espécies de verduras analisadas, a alface foi a que representou o maior grau de contaminação, na sua avaliação, verificou-se que das

25 (100%), havia contaminação em 18 (72%) das amostras por cistos de Entamoeba coli. Neste contexto, é importante relatar que mesmo não sendo

patogênica, ela também depende da concentração da matéria orgânica de origem fecal proveniente de esgoto doméstico nas águas de irrigação utilizada

no cultivo de hortaliças, segundo Guilherme et al., (1999).

B A C

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O helminto mais encontrado, principalmente nas amostras de alface, foi o Strongyloides stercoralis. O fato pode estar relacionado com solo

contaminado por fezes humanas ou de animais. As larvas rabditóides, no meio exterior, podem sofrer mudança pela qual se transformam em larvas

filarióides infectantes, capazes de penetrar em outro indivíduo e iniciar novo ciclo parasitário (REY, 2008).

Nas análises de Esteves e Figueirôa (2009), a presença de helmintos, principalmente larvas de vida livre de Strongyloides stercoralis, têm

relevância clínica. Estas formas representaram (45%) e foram as mais encontradas em hortaliças comercializadas na feira livre.

No entanto, a capacidade de sobrevivência de cada tipo de parasita no ambiente também deve ser considerada, pois as baixas frequências

obtidas para Hymenolepis sp. podem estar associadas a menor persistência dos ovos deste helminto no ambiente (Feachem et al., 1983, apud Oliveira e

Germano).

Além da contaminação por parasitos foi observada a presença de anelídeo e inseto vivo no preparo das amostras. Durante as análises

microscópicas foi verificada a presença de protozoários ciliados, fungos, fragmentos e larvas de insetos, pólen, algas e seres não identificados, mesmo

não fazendo parte deste estudo.

O estudo revelou que das 100 (100%) das unidades de hortaliças analisadas a alface apresentou algum tipo de parasito em todas as amostras

(tabela 2). Tendo a maior contaminação em alface, com 25% seguidos pela salsa, com 9%; couve com 9%, cebolinha com 8% e, em 49% das amostras,

não foi evidenciado nenhum tipo de contaminação por parasitos intestinais.

Tabela 2- Percentuais de contaminação das hortaliças referente às 100 unidades amostrais de hortaliças analisadas.

Quanto ao percentual observado para alface (25%), dados contidos na literatura relatam a existência da possibilidade de associação com

contaminação em função da estrutura física das hortaliças e que podem estar associados aos diferentes percentuais de contaminação observados. No

Hortaliças Amostras contaminadas

Percentual (%)

Alface 25 25 Salsa 09 09 Couve 09 09 Cebolinha 08 08 Total 51 51

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caso da alface, o seu índice de contaminação, em relação às demais hortaliças, pode estar associado também às características das folhas justapostas,

flexíveis e encontrando-se em maior contato com o solo, mesmo sendo cultivadas em condições iguais as outras hortaliças. No entanto, os estudos e

relatos de Oliveira e Germano (1992) e Silva, Andrade e Stamford (2005) citam que as alfaces têm dificuldade para fixação dos parasitos. Mesmo

apresentando ligeira diferença morfológica, esta hortaliça foi a segunda mais contaminada (23,8%) no trabalho de Esteves e Figueirôa (2009), sendo a

cebolinha, a hortaliça que representou maior percentual de contaminação (40,9%).

É relevante ressaltar que a salsa não é comercializada por todos os vendedores de hortaliças referentes ao Mercado em estudo, em média apenas

quatro comercializavam salsa frequentemente. Sendo assim, as repetições das coletas ocorreriam nos mesmos.

O fato da contaminação da couve e da cebolinha por Strongyloides stercoralis, além da possibilidade da contaminação pela manipulação, no

cultivo e armazenamento, pode também ter ocorrido devido às hortaliças que compõem as amostras terem sido acondicionadas todas juntas, visto que

somente nestas condições é que se identificou o parasito. Neste aspecto, é importante relatar que o método de sedimentação espontânea de Hoffman,

Pons & Janer (1934), empregado nas amostras, é uma adaptação para avaliação parasitológica em alimentos, por ser eficiente na detecção de um maior

número de formas parasitárias como ovos, larvas e cistos.

No que se refere aos aspectos fitossanitários, observa-se que o cultivo, a coleta, o acondicionamento, o transporte, a manipulação, o

armazenamento e o local de exposição ao consumidor podem ser fatores que contribuem para contaminação das hortaliças. É válido ressaltar que o

Mercado Público analisado dispõe de aproximadamente 110 compartimentos distribuídos entre comercialização de produtos de gênero alimentício,

frutas, lanches, pensões e hortaliças.

Em sua distribuição e/ou repartição, há dois banheiros localizados na parte terminal e duas pias próximas aos vendedores. Nas laterais do

mercado estão dispostas pequenas caixas de lixo (Figura 03 C e D) que se mantém abertas, quando enchem o restante é jogado no chão próximo as

caixas (Figura 03 C), representando um risco de veiculação e contaminação por insetos. É importante relatar também que a coleta do lixo é feita pela

limpeza pública municipal.

No que se refere ao acondicionamento, observa-se na Figura 03 (A e B) a exposição e em casos o manuseio sem proteção adequada (Figura

3A).

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Nas observações, verificou-se que o consumidor tem livre escolha, sendo que as hortaliças são manipuladas tanto pelo comprador como pelo

vendedor sem equipamentos de proteção. Rezende, Costa-cruz e Gennari-Cardoso (1997), apud Cantos e Soares (2005), relatam que indivíduos que

manipulam alimentos podem também representar fonte potencial de contaminação e disseminação de enteroparasitos, embora estejam, na maioria das

vezes, na condição de assintomáticos. Para Pereira et al., (2001), as práticas higiênicas em torno da produção, armazenamento e comercialização,

desempenham um papel de suma importância para a qualidade dos alimentos.

No que tange ao transporte, as hortaliças chegam ao mercado por meio de transporte de veículos pequenos com carroceria e/ou dentro de sacos

plásticos, ou ainda dentro de isopor. Estas são expostas ao consumidor nos compartimentos que já se apresentam permanentemente cobertos por um

Figura: 03 A e B, evidenciam locais que acondicionam e comercializam as verduras, e Fig. 03 C e D, indicam os locais de armazenamento de lixos localizados próximos dos pontos de comercialização.

A B

D C

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material de plástico ou são expostas em carros de mão cobertos por papelões para serem comercializadas nas ruas da cidade. O consumidor tem livre

escolha, uma vez que as hortaliças são manipuladas tanto pelo comprador como pelo vendedor, sem equipamentos de proteção, como citado.

CONCLUSÃO

Este estudo permite concluir que:

- As hortaliças comercializadas no mercado público municipal apresentam contaminação por diferentes percentuais e formas de parasitos;

- A alface apresenta um maior percentual de contaminação (25%) em relação às demais verduras analisadas e que a contaminação de destas,

pode estar associada ao padrão de higiene utilizado, ao transporte, à manipulação e/ou comercialização;

- A presença e detecção de agentes parasitológicos de origem intestinal são fatores de riscos de contaminação e infecção em seres humanos

caso não haja orientação, tratamento adequado, transporte, armazenamento e comercialização das hortaliças;

- Os aspectos fitossanitários são de fundamental importância, visto que a presença de ovos, larvas de helmintos e cistos de protozoários indicam

a possibilidade de as hortaliças transportarem enteroparasitoses como elementos de contaminação.

- Os dados obtidos neste estudo podem auxiliar como base para as ações preventivas de educação sanitária, podendo representar um papel

relevante na redução desta forma de transmissão de enfermidades intestinais neste município.

AGRADECIMENTOS: CNPq, FUNTAC e UFAC.

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Ana Maria Tavares: A Imagem de um Mundo Flutuante

Cyane Pacheco Faculdades Integradas Barros Melo-AESO Bacharelanda em Artes Plásticas www.dumaresq.com.br [email protected] Há para o corpo do espectador ou amador, um perigo evidente diante de uma obra de arte que ele jamais tenha visto,

precisamente naquilo que reverbera e se estende além de sua expectativa. Pode sentir-se alcançado pelo modo como o artista

revela ou oculta sua intenção, como embaralha os sentidos dos índices evidentes e dissimula seu desígnio.

Ao arriscar apreender o sentido da obra, pode perceber que lhe escapa algo, que desconhece no imediato, a direção e espaço

simbólico ou real, daquilo que lhe fugiu. Sentimos que a mostra “Fortuna e Recusa ou Ukyio-e (A Imagem de um Mundo Flutuante)”, de

2008, da artista Ana Maria Tavares, nos impulsiona para um não-lugar, para o espaço do silêncio, desde que é avistada, ainda do pátio

da Galeria Vermelho, em São Paulo, até o final do percurso de sua visitação. Alguns expectadores podem decidir ali, compreender o

silêncio que saturava o ambiente e, esgueirava-se acobertado, ainda que os conduzisse para um diálogo sobre a obra.

O conhecimento prévio do tema ou objeto escolhido pela artista, na mostra “Fortuna e Recusa ou Ukyio-e (A Imagem de um

Mundo Flutuante)”, não rompeu diante do olhar do espectador, o impacto e a reflexão, no momento mesmo de sua descoberta. Ter

ouvido sobre a mostra poderia conduzir de forma indireta, o sentido do olhar, levando o corpo para o lugar da imagem, localizando-o no

eixo da intenção da artista que, sempre parece mais amplo e fluido e, cada vez mais complexo em seu rigor conceitual, pelo menos, no

momento da criação ou das múltiplas reflexões que foram propostas.

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Quando percebemos essa exposição, nos sentimos diante de um universo que requer, simultaneamente, um olhar tecido dos

primeiros mistérios surgidos numa idade ancestral e, do silêncio proustiano, alvoroço da memória, desdobramento do tempo e da

palavra.

No momento primeiro ou primeiro trovão, encontramos uma forma retangular, divida ao meio, e posicionada de forma a sugerir

elevador, cidade, vazio, floresta; a geometria que esteou o projeto modernista; a dureza da linha, a precisão do conceito como um

passaporte poético da artista, uma elevação trans-temporal. No segundo momento ou segundo trovão, o espectador ou amador é

convidado a entrar em um “não espaço” ou em um espaço imaterial, sem ilusões, diante de um vídeo extraordinário, porque o arrebata

para uma realidade inescapável, espaço desconhecido, jogo especular como um fio, uma linha que nos segreda o labiríntico e

imponderável tempo, estilhaços de imagens arremessadas em nossa direção, onde entramos e não reunimos nossa própria imagem,

antes, a multiplicamos, brincamos de construir lâminas de passado, presente e futuro, portanto, de nenhuma folha.

Para resguardar o silêncio, precisamos pensar sobre a audição que foi ali, redimensionada e tornada o eco de uma torre sineira,

murmúrio de algo que instiga a memória, algo que invade o lugar do passado, subvertendo o sentido habitual de uma exposição: o

olhar.

O olhar percorre as cachoeiras de seda/água, gênero/múltiplo, delicadeza/corte, inverso daquilo que é mostrado, árvores de um

parque: cinema, ilustração, letras invisíveis, porque indecifráveis, letras desenhadas e expandidas, escritas para os eleitos de outra tribo,

de um universo desconhecido e em construção, metros de leveza indicando uma verticalidade diversa daquela que conhecemos, distante

do mercadológico destino da Arte.

A imagem de um eleva-a-dor modernista, quadrados de não-cores, tabuleiro de xadrez, objeto lúdico que sugere ironicamente

Duchamp e seus brinquedos, o xadrez de ladrilhos hidráulicos, de impressões do lastro de uma geração que se reinventa numa

velocidade estranha, uma modernidade incipiente num mundo de tantos “pós”, em um tempo de (des) esperança, em dias saturados do

medo de se autoproclamar “e-refletido”, período que flutua em um eixo de luz e fumo.

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Obra plantada em uma floresta sugerida, aprisionada em um sonho findo, em vidros de laboratório, conceitos de proveta exigindo

respostas imediatas, em atas e atas, eixo metálico, criação adequada à burocrática sedução, em ambientes de máquinas que deificam os

construtores da matriz dos discursos contemporâneos, elevadores que sobem, descem e falham.

Na obra da artista percebemos a questão do artista múltiplo, que se volta para a compreensão da densidade de um passado

próximo, que ainda repercute no atual. A obra discorre de forma sutil sobre a incongruência na relação entre os artistas e arquitetos na

era da construção do projeto, do sonho modernista, questão que seguiu ideologicamente, o princípio da amizade e não do mérito

daqueles que procuravam o sentido cosmopolita da arte.

Ferve no interior da chamada “história da arte” a busca por uma compreensão cada vez mais urgente dos limites, não do que foi

visto nos tempos de exceção, mas daquilo que poderia ter surgido em relação a outros centros artísticos mundiais naquele período. A

artista fez uma reflexão sobre a genealogia do traço, sobre a obra de Oscar Niemeyer, devolve-nos não as construções-esculturas de

grandes dimensões do arquiteto, mas a fluidez das curvas, a exatidão dos cubos, parece buscar a miniatura do discurso, reduzindo-o

quando necessário, alargando-o quando encurtado, dissonante quando associado aos artistas daquele período.

Com brandura e contundência, a artista encontra a dimensão da linha, desde seu princípio, prerrogativa do desenho aos desígnios

resultantes de sua busca.

O vão vazio, escrita proposta pela artista, arrebata o espectador, quer pelo uso das palavras desconhecidas, quer pelo alinhavo

destas palavras com o silêncio repleno de presenças impassíveis.

Imaginei que a configuração do ambiente mínimo, como mínima é a maioria das casas daqueles que nunca ouviram falar sobre

arte, que foram atropelados no processo educativo de uma política superdimensionada em aspectos excludentes nesse campo, a artista

convida e não avisa sobre o labirinto.

Os espelhos arremessam sobre quem fica diante deles, certamente provocando uma indagação, um convite à imersão em lugares

metafóricos da arte, em instáveis ambientes que associamos ao espírito, quando ela a artista conhece o risco do passo largo do

funâmbulo, na linha dos devires.

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A artista construiu um labirinto onde, em uma fração de segundo, se está no centro e atraído pelo movimento, pelo olhar que

sonda o balanço da solidez e, se busca em igual simetria. Os temas teatrais de uma civilização, proferidas por outra, a arte apresentada

através do tempo e das descobertas marítimas, aéreas, imaginárias encontram-se ali, efervescendo.

Para o corpo, ouvir é lembrar, é também ingressar noutro universo, delicadamente penetrar no limite, exatamente no traço que

pode ser desenho, tela, tímpano, lago, pintura, esse corpo passeia no passeio da artista, com certo descompasso resultante da

necessidade que há em cada obra vista, de ser anunciada sem precipitação. A relação entre os dois tempos, em dado período e, entre

tempos distintos, questiona o lugar de quem frui, de quem se dispõe a não apenas olhar o resultado, mas perder-se nele, distender-se,

confundir-se e buscar então, uma saída.

Em um mundo de valores contraditórios, a sedução da seda e do espelho surge contundente, insurge-se lâmina fatiando cérebros

lentos, incitando-os à fluidez do olhar. As massagens, análogas à noção do cuidado de si, à subjetividade e ao ato de cerrar os olhos, de

suprimi-los enquanto a obra desfaz o eixo do corpo, diagonal remaneja a gravidade e paralisa a queda, desaparece diante do espectador

desatento e reaparece nas divisões propostas por Foucault: o cuidado de si, o convite a girar, incisões (no olhar?) para que saia o que

impede, como um abscesso, a fruição do corpo e de sua reflexão, o retorno do prazer. Estar ali, na proposta da artista, é permanecer de

olhos fechados, serenar a idéia do belo holográfico e fotográfico “carioca”, é presentear-se com tempo e espaço, esquecer-se no plano

da memória. Convivem silenciosamente, aço e papel, seda e acrílico, díspares em épocas distintas, reunidos ali, dádiva da arte,

mecanismo de diálogo da artista.

Um olhar inexistente para nossa tribo, formatada sob o signo da pressa, do ritmo que leva à angústia e à solidão; outro olhar,

lentes milenares, suaves e independentes de nossa vontade ou domínio, tecido de solidão diversa, branda e guerreira, aquela necessária

à compreensão dos mistérios da vida.

No centro, jardim de areia, ambiência do sonho, transmutação da matéria, um espelho/lago/lâmina que cega, de tão afiada

(Camus e o reflexo maldito), fatias, camadas espessas do tempo da arte.

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A fortuna e a recusa, que se dão no rastro alvo da palavra. Recusa-se a forma de existência que banaliza não apenas a arte, mas

a vida contemporânea; a violência de alternativas que seguem um fluxo descontrolado, que não escondem suas partes desafortunadas;

para que a fortuna seja algo desvinculado da metafísica doente, há que recusar ainda mais as ofertas sedutoras, nas vitrines do

poderoso e inumano mercado ocidental.

O espectador torna-se invisível ao se aproximar do lago artificial, do abismo de letras, das mitologias desconhecidas e

desconfortantes, ali, estranhas, transparentes, grafadas em outra língua, parábola de signos estranhos, desenhos para os iletrados.

Situa-se naquele lago, a idéia central, o eixo, o outro, ninguém, o olho ferido.

A alteridade velada e exposta numa brancura asséptica, inviolada, intocada, retoma o que as relações especulares desejam: o

desejo e a própria imagem que, através de tantas lâminas, de espelhos vindos de um labirinto virtual, mostra e fia a espera, a busca

pela meditação.

Não é o centro de uma sala de estar, é o centro de uma sala de não estar, de jamais estar: ninguém se reflete, senão através do

outro, ninguém existe, senão através do olhar do outro, portanto, a artista não convida, exerce o poder de sua construção para indagar

seu espanto diante do mundo, refaz a aderência entre mundos outros.

A artista descarna a economia, a filosofia, a arte, a fotografia, a pele da palavra “outro”, o espectador distraído, alguém deixa o

ambiente, levando as imagens consigo. Um lago profundo e transparente para os olhos que deveriam verter lágrimas e regozijar-se

diante dele, lágrimas ocultas, brilhantes.

Narciso, no lago imaginado pela artista, apenas vê o outro ou o zigurate invertido, enterrado, ascensão improvável, para quem

desconhece a recusa. Ninguém demora tanto em um lugar assim, como fluida e vertiginosa é o que chamamos de vida, aqui e lá.

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