Vozes de Chernobyl

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Trecho - Edição portuguesa

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  • n d i c e

    9PrefcioPaulo Moura_

    19Introduo histrica_

    25Uma solitria voz humana_

    45Entrevista da autora consigo mesma sobre a histria omitida e por que Chernobyl lana dvidas sobre a nossa viso do mundo_

    57Captulo 1 Terra dos mortos_

    117Captulo 2 Obra prima da criao_

    217Captulo 3 Admirao pela tristeza_

    313Uma solitria voz humana_

    327No lugar de um eplogo_

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    P r e f c i o

    O mundo tem estado muito sozinho. Nas ltimas trs dcadas, a Histria acabou, e comeou outra coisa, ainda sem nome, a maior utopia de sempre desabou nossa frente,

    milhares de milhes de pessoas emergiram da pobreza, as mquinas tomaram o poder, destrumos o planeta, as civilizaes ergueram se em guerra. Mas a arte no se comoveu. Nem mesmo aquela a quem mais custa mentir, em quem confivamos e de quem espervamos fiel testemunho, a literatura.

    Vivamos em profunda mudana, mas era como se as coisas acontecessem longe do nosso olhar, longe de ns. At no ser mais possvel. Os sinais eram inequvocos h muito, mas a atribuio do Nobel da Literatura a Svetlana Alexievich confirmou o fenmeno: a realidade chama pelos escritores.

    No era suficiente que os jornalistas fizessem o seu trabalho. Admitindo, por liberal hiptese, que o fazem, ou continuaro a fazer. No era suficiente, apesar do jornalismo literrio, das suas viagens e imerses no desconhecido, e da sua apropriao dos recursos da arte de contar.

    A realidade exigia a presena dos escritores. J no bastava o relato inteligente, culto, do que se passa. No chegava informar, criticar, vigiar. Era preciso mais.

    Quando a Academia Sueca anunciou o nome da autora bielorrussa, a primeira reao foi dizer que se atribura o prmio, coisa indita, a um jornalista.

    Svetlana Alexievich no entendeu. Nunca achou que o que escreve fosse jornalismo. No universo cultural russfono, jornalismo

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    mera informao. Quando muito, comentrio efmero, superficial e poucas vezes isento. A escrita de no fico inclui se na tradio literria. Aleksandr Soljentsin, o anterior Nobel da literatura russa (em 1970), tambm escreveu no fico. O Arquiplago de Gulag, a sua obra mais importante e influente, um relato verdadeiro da sua priso em Kolym, um dos campos de deteno da Unio Sovitica.

    Svetlana Alexievich uma escritora, embora fascinada com os factos. A realidade sempre me atraiu, como um man. Torturavame, hipnotizava me. Queria captur la no papel, disse ela numa entrevista. Sabia, desde os cinco anos, que queria ser escritora, no jornalista.

    E, antes de aperfeioar o gnero que agora a carateriza, experimentou, ensaiou, arriscou. Escreveu peas de teatro e poesia, realizou documentrios. Para chegar realidade, fez o percurso de um artista.

    Pouco antes do anncio do Nobel, um artigo da revista The New Yorker, o santurio da literatura de no fico, tinha como ttulo A no fico merece um Nobel.

    O autor, Philip Gourevitch, lembrava que nem sempre existiu o preconceito contra a literatura da realidade. O segundo autor a receber o Nobel da Literatura, em 1902, foi o historiador alemo Theodor Mommsen. E depois foram galardoados Bertrand Russell, e at Winston Churchill, de cujo gnio a fbula no foi decerto a expresso mais feliz. Nos ltimos cinquenta anos, porm, o snobismo do mundo literrio prevaleceu contra a evidncia.

    Ser que d para acreditar?, pergunta Gourevitch no artigo. Alexievich? Mas eles no sabem que ela uma reprter? Ser pos svel que o Comit Nobel tenha finalmente alterado o ignbil tratamento que d ao que chamamos escrita de no fico, ao admitir que se trata de literatura?

    Se isso acontecesse, como de facto aconteceu, a barreira entre os dois gneros seria definitivamente eliminada. E doravante as obras de fico passariam a ser elogiadas como tendo o poder e o alcance da no fico, e no ao contrrio.

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    V o z e s d e C h e r n o b y l

    O que poder vir a acontecer com qualquer livro de fico que tenha sido ou venha a ser escrito sobre o desastre da central nuclear ucraniana. Ser depreciativo compar lo com Vozes de Chernobyl, de Svetlana Alexievich? Ou o supremo louvor?

    Filha de um diretor de escola bielorrusso e de uma professora ucraniana, Svetlana Alexievich nasceu em 1948 em Ivano Frankivsk, na regio, hoje ucraniana, da Galcia, que antes pertenceu Polnia, ao Imprio Austro Hngaro e Unio Sovitica, e foi um dos centros da grande tradio literria da Europa Central.

    Uma regio onde no seria possvel viver distrado das terrveis convulses do sculo xx. A Segunda Guerra Mundial, a ocupao nazi, a represso de Estaline e a guerra do Afeganisto deixaram marcas na famlia de Svetlana. Desde criana, ouvia as histrias das mulheres que se reuniam noite a conversar. Muitos dos homens da povoao tinham perecido na guerra (foi o caso dos dois irmos do pai), ou entregavam se depresso e ao alcoolismo.

    Os relatos dessas mulheres foram o substrato do seu trabalho como escritora. Ouviu as de novo, e a muitas outras mulheres com histrias da guerra, para organizar o seu primeiro livro, (em portugus, A Guerra no Tem Rosto de Mulher).

    A obra consistia numa colagem de monlogos de mulheres que viveram a guerra e contavam a sua histria sangrenta, miservel e verdadeira, muito diferente da verso gloriosa da propaganda sovitica sobre a Grande Guerra Patritica.

    O livro ( ) (As ltimas Testemunhas (cem histrias nada infantis)) foi redigido com base nas memrias de infncia da autora, tambm sobre as histrias da Segunda Guerra Mundial, e (Os Rapazes de Zinco) foi publicado depois de uma viagem ao Afeganisto, durante a guerra com a Unio Sovitica. Alexievich escreveu ainda (Encantados pela Morte), sobre os suicdios na sociedade ps sovitica, antes do grande trabalho sobre o desas tre nuclear na Ucrnia de 1986.

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    Vozes de Chernobyl foi publicado, na sua verso original em russo, em 1997, aps mais de dez anos de investigao, no local, ouvindo centenas de pessoas. Os primeiros meses foram passados em Chernobyl, juntamente com todos os outros jornalistas, de vrios pases, que fizeram a cobertura do desastre. No dia 26 de abril de 1986, uma srie de exploses destruiu o reator da central nuclear, situada na Ucrnia, perto da fronteira com a Bielorrssia, repblicas ainda pertencentes Unio Sovitica. Devido localizao da estao nuclear, foi a Bielorrssia que mais sofreu os efeitos da radiao.

    Na altura, os jornalistas aperceberam se da falta de condies de segurana que levou catstrofe, registaram a incompetncia das autoridades comunistas em informar as pessoas do que se passava e do que deveriam fazer. E a cobertura estava concluda. Meses depois, o assunto sara das agendas mediticas. Para Svetlana, era o incio do trabalho. Comeou a ouvir as pessoas.

    Tal como fizera nos livros anteriores, fez entrevistas, que depois transcrevia. Mais de quinhentas, entre habitantes das aldeias da Zona, bombeiros, soldados, sobreviventes, familiares e amigos dos que morreram. No procurava apenas as respostas cientficas e polticas.

    Gravava os testemunhos, para os publicar em texto, aps uma seleo e uma edio pessoal. Das quinhentas pessoas entrevistadas, cento e sete foram includas na verso final do livro. E de cada entrevista, cuja transcrio preenchia entre cem a cento e cinquenta pginas impressas, usou em mdia dez pginas. Cada uma das cento e sete pessoas escolhidas foi entrevistada mais de vinte vezes. como pintar um retrato, explicou ela New Yorker. Continuava a contactar as pessoas, e de cada vez acrescentava uma nova pincelada.

    O exerccio da autoria est a, na seleo e na edio. De resto, o livro apenas inclui as vozes de Chernobyl, pginas inteiras de discurso direto, vozes diferentes encadeadas umas nas outras por temas, sequncia lgica ou cronolgica.

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    O mtodo foi desenvolvido por Svetlana a partir de algumas influncias. Antes de mais, a prpria tradio oral russa, dos contadores de histrias. Mais diretamente, aprendeu com outros autores russos e bielorrussos, designadamente Daniil Granin e Ales Adamvitch, que, num trabalho conjunto sobre o Cerco de Leninegrado, optaram por transcrever longos testemunhos dos acontecimentos. Era uma espcie de histria popular do Cerco. Mas no se coibiam de acrescentar partes da sua lavra.

    A inovao de Alexievich foi retirar do texto todas as ruminaes, cronologias e contextualizaes. Considerou que a voz do autor no era, simplesmente, necessria. Deve permanecer nos bastidores, fazendo as perguntas certas, escolhendo as personagens mais interessantes, juntando as frases mais ricas. E apagar se das pginas.

    Para testar a afinao e a unidade do discurso, ganhou o hbito de ler em voz alta os monlogos, limando, abreviando, simplificando, at encontrar uma voz coerente entre as mltiplas vozes. A sua voz autoral.

    Ao mesmo tempo, as pginas deste livro no deixam de ser apenas as palavras das pessoas entrevistadas, e por isso to surpreendente a profundidade, o lirismo, a originalidade, a qualidade literria das frases que os entrevistados proferem espontaneamente, em conversa, numa aldeia ucraniana ou num caf de Minsk.

    A autora conseguiria o mesmo efeito com cidados da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos? Num dos captulos, uma mulher queixa se de que leu todos os grandes autores russos e isso no lhe serviu de grande coisa. Tolsti, Dostoivski e Tchkhov no a prepararam para o que veria em Chernobyl. Eles no sabiam nada, diz a mulher, sem se aperceber de que falava, pensava, divagava como os grandes autores russos.

    Svetlana Alexievich contou com isso. Entre todo o desnorteio, medo, solido e demncia, permaneciam, na sua fora e complexidade, as estruturas mentais de uma civilizao da palavra literria.

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    Mas isso tambm no explica como foi possvel comprimir tanto sofrimento em meras palavras. A eficcia narrativa assustadora. Muito superior que qualquer autor conseguiria sozinho.

    O acontecimento excecional. Centrais nucleares no explodem todos os dias. Mas o sofrimento transborda das suas causas. Chernobyl simboliza o fim do mundo comunista, o fim da ltima grande iluso da humanidade. A opresso, o desrespeito e a monstruosidade, que so afinal a nossa condio comum, quando caem os disfarces e j no h nada a esconder.

    O sofrimento de Chernobyl tem essa coisa terrvel: tal como a radiao, impossvel de circunscrever. As personagens de Svetlana descrevem a forma como o exrcito foi enviado, com os seus helicpteros, as suas armas, como se se tratasse de uma guerra. No mundo sovitico, todos tinham sido educados para a guerra. Mas aquilo no era uma guerra, ainda que matasse. No imediatamente, em consequncia de um tiro ou um rebentamento, mas no decorrer de anos, dcadas ou sculos. Chernobyl A guerra das guerras. No h stio possvel para o homem se salvar. Nem debaixo de terra, nem debaixo de gua, nem no ar, diz uma mulher.

    Contam como os corpos contaminados eram queimados, como criaturas infernais. O homem que eu amava, que amava de tal maneira que no poderia amar mais mesmo que eu prpria o tivesse dado luz , transformava se diante dos meus olhos Num monstro, diz a esposa de um liquidador a quem a radiao provocou uma estranha e desfiguradora forma de cancro.

    Relatam o entusiasmo com que muitos cumpriram as ordens de trabalhar junto do reator, absorvendo radiao que os levaria a mortes hediondas, como alguns quiseram ficar nas suas casas, uns se mudaram para as zonas contaminadas, outros cumpriram com orgulho e inconscincia misses suicidas.

    Contam como os nobres valores que tinham norteado as vidas de geraes no mundo sovitico se revelavam de sbito falsos, ridculos, patticos. O herosmo no combate, a solidariedade com

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    o povo, o patriotismo, o sacrifcio individual, agora misturados com o desapontamento, o medo, a solido.

    Antes, todos se sentiam parte de um grande projeto coletivo. A grande Unio Sovitica, ptria do socialismo, dava sentido a todas as dificuldades. As pessoas nunca pensavam em si prprias, porque estava sempre em curso um grande empreendimento. Ou era a construo da sociedade sem classes, ou a Grande Guerra Patritica, ou a grande batalha da industrializao.

    Em Chernobyl, nos escombros da central nuclear, as pessoas viram pela primeira vez a sua realidade. Dizemos sempre ns e no eu: vamos demonstrar o herosmo sovitico, vamos mostrar o carter sovitico. A todo o mundo! Mas isto sou eu! Eu no quero morrer Eu tenho medo E impossvel ler este livro sem partilhar desse medo.

    Com a sua multido de vozes, Svetlana Alexievich fez entrar o mundo em Chernobyl. Um lugar de morte de onde no se pode fugir. Um mundo que arde e j no est sozinho. Ns estamos l.

    _Paulo MouraReprter

  • Somos ar no somos terra

    Merab Mamardashvili

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    i n t r o d u o h i s t r i c a

    Bielorrssia1 Somos para o mundo uma terra incognita, uma terra desconhecida, inexplorada. Rssia Branca como

    soa aproximadamente o nome do nosso pas em ingls. Todos conhecem Chernobyl, mas apenas em relao com a

    Ucrnia e a Rssia. Ainda precisamos de contar sobre ns

    Narodnaia Gazeta,27 de abril de 1996

    No dia 26 de abril de 1986, passavam 58 segundos da 1.23, uma srie de exploses destruiu o reator e o edifcio que albergava o reator n. 4 da Central Nuclear de Chernobyl.

    A catstrofe de Chernobyl tornou se o maior desastre tecnolgico do sculo xx.

    Para um pequeno pas como a Bielorrssia (populao: 10 milhes de habitantes), foi uma tragdia nacional, ainda que os prprios Bielorrussos no tenham sequer uma central nuclear. Continua a ser um pas agrrio, com predomnio de uma populao rural. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazis destruram

    1 Aps a desintegrao da Unio Sovitica, o governo bielorrusso decretou Belarus nome da nova repblica independente e pediu comunidade internacional que a designao fosse alterada em todas as lnguas do mundo. O texto original respeita esta diferena. Em portugus, contudo, a diferena no foi ainda consagrada, pelo que mantivemos Bielorrssia como designao do pas e Bielorrussos como nome do povo. [N. da T.]

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    619 aldeias bielorrussas, juntamente com os seus habitantes. Em resul tado de Chernobyl, o pas perdeu 485 aldeias e povoaes. Destes, 70 foram permanentemente soterrados. Durante a guerra, 1 em cada 4 bielorrussos foi morto; hoje em dia, 1 em cada 5 bielorrussos vive em terreno contaminado. So 2,1 milhes de pessoas, das quais 700 000 so crianas. Entre os fatores responsveis pelo declnio demogrfico, a radiao surge em primeiro lugar. Nas regies de Gmel e Moguilev, as que mais sofreram com Chernobyl, as taxas de mortalidade ultrapassam as de natalidade em 20 por cento.

    Em resultado do acidente, foram lanados para a atmosfera 50 milhes de curies de radionucldeos, dos quais 70 por cento caram sobre a Bielorrssia. Vinte e trs por cento do seu territrio esto contaminados por radionucldeos de csio 137, com uma densidade de mais de 1 curie por km2. Faamos a comparao: a Ucrnia tem 4,8 por cento do seu territrio contaminado, e a Rssia, 0,5 por cento. A superfcie de solo arvel com uma densidade de mais de 1 curie por km2 superior a 1,8 milhes de hectares; cerca de meio milho de hectares foi contaminado com estrncio 90, com uma densidade de mais de 0,3 curies por km2. Duzentos e sessenta e quatro mil hectares foram retirados economia agrcola. A Bielorrssia uma terra de florestas. Mas 26 por cento de florestas e mais de metade de prados nas lezrias dos rios Prpiat, Dnepr e Soj consideram se parte da zona de contaminao radioativa

    Em consequncia do efeito permanente de doses baixas de radiao, todos os anos aumenta no pas o nmero de doenas oncolgicas, crianas com atrasos mentais, perturbaes neurolgicas e mutaes genticas

    Coletnea Chernobyl, Belaruskaia entsyklapedyia, 1996, pp. 7, 24, 49, 101, 149

    Segundo dados das observaes, no dia 29 de abril de 1986 registaram se nveis elevados de radiao na Polnia, Alemanha,

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    ustria e Romnia. A 30 de abril, na Sua e no Norte de Itlia. Nos dias 1 e 2 de maio, em Frana, na Blgica e Holanda, no Reino Unido e no Norte da Grcia. A 3 de maio, em Israel, no Kuwait e na Turquia

    Lanadas a uma grande altura, espalharam se substncias gasosas e volteis escala global: no dia 2 de maio, foram registadas no Japo; no dia 4 de maio, na China; no dia 5 de maio, na ndia; nos dias 5 e 6 de maio, nos Estados Unidos e no Canad.

    Demorou menos de uma semana para que Chernobyl se tornasse um problema do mundo inteiro

    Coletnea As Consequncias do Acidente de Chernobyl na Bielorrssia, Minsk, Colgio Superior Internacional Skharov de Radioecologia, 1992, p. 82

    O quarto reator, conhecido como Abrigo, ainda alberga cerca de 200 toneladas de material nuclear nas suas entranhas de chumbo e cimento armado. Ningum sabe o que se passa com ele hoje.

    O sarcfago foi construdo pressa, uma estrutura nica, e os engenheiros projetistas de Leninegrado talvez pudessem sentirse orgulhosos. Deveria durar trinta anos. Mas foi montado distncia, as placas foram unidas com a ajuda de robs e de helicpteros, o que deu origem a fissuras. Hoje, de acordo com alguns dados, a rea total de fissuras e fendas ultrapassa os 200 metros quadrados, e continuam a escapar se atravs delas aerossis radioativos. Se o vento sopra do norte, a sul aumenta a atividade das cinzas: urnio, plutnio, csio. Alm disso, num dia de sol, com as luzes apagadas na sala do reator, so visveis feixes de luz que penetram de cima. Porque ser? A chuva tambm entra dentro dele. Se a humidade atingir as massas que contm combustvel, a reao em cadeia torna se possvel.

    O sarcfago um defunto que respira. Respira morte. Quanto tempo ainda durar? Ningum consegue responder a essa pergunta, uma vez que at agora impossvel chegar a muitos dos blocos e estruturas para nos inteirarmos da sua margem de segurana.

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    Mas toda a gente sabe: a destruio do Abrigo levaria a consequncias ainda mais desastrosas do que em 1986

    Revista Ogoniok, n. 17, abril de 1996

    Antes de Chernobyl havia 82 casos de doenas oncolgicas por cada 100 mil habitantes bielorrussos. Hoje, temos as seguintes estatsticas: 6 mil doentes por cada 100 mil. Um aumento de quase 74 vezes.

    Nos ltimos dez anos, a taxa de mortalidade aumentou 23,5 por cento. Apenas 1 pessoa em 14 morre de velhice, pois morrem principalmente as de 4650 anos, ainda aptas para o trabalho. Nas reas mais contaminadas, o exame mdico revela que entre 10 pessoas se contam 7 doentes. Ao percorrermos as aldeias, ficamos impressionados pela rea dos cemitrios, que cresceram

    At agora, muitos nmeros so desconhecidos Ainda se mantm em segredo, to monstruosos so. A Unio Sovitica enviou para o local do acidente 800 mil recrutas e liquidadores2 chamados ao servio; a idade mdia destes era de 33 anos. E os rapazes foram para a tropa logo depois da escola

    S na Bielorrssia, da lista dos liquidadores constam 115 493 pessoas. Segundo os dados do Ministrio da Sade, entre 1990 e 2003, morreram 8553 liquidadores. Duas pessoas por dia

    A histria comea assimEstvamos em 1986 Nas primeiras pginas dos jornais sovi

    ticos e estrangeiros surgiam reportagens sobre o julgamento dos culpados da catstrofe de Chernobyl

    2 Contingente de pessoas (bombeiros, militares e voluntrios), que se estima em mais de seiscentas mil, responsvel por gerir os efeitos imediatos do desastre nuclear de Chernobyl. [N. da T.]

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    V o z e s d e C h e r n o b y l

    E agora Imagine um prdio vazio de cinco andares. Sem moradores, mas com objetos, mveis, roupas que ningum jamais poder usar. Porque este prdio est em Chernobyl Mas foi precisamente num prdio assim da cidade morta que os que iriam julgar os culpados pelo acidente nuclear deram uma pequena conferncia de imprensa para jornalistas. Decidiu se ao mais alto nvel, no Comit Central do Partido Comunista da Unio Sovitica, que o caso deveria ser julgado no local do crime. Na prpria Chernobyl. O julgamento decorreu no edifcio da casa da cultura local. No banco dos rus h seis pessoas: o diretor da central nuclear Vktor Briukhnov, o engenheiro chefe Nikolai Fomn, o engenheiro chefe adjunto Anatoli Ditlov, o chefe de turno Boris Rogojkin, o chefe da sala do reator Aleksandr Kovalenko, o inspetor do Servio de Superviso Energtica e Nuclear da Unio Sovitica Yuri Lachkin.

    Os lugares do pblico esto vazios. S esto presentes jornalistas. De resto, aqui j no h pessoas, a cidade foi fechada, enquanto zona de controlo rigoroso da radiao. Ser por este motivo que foi escolhida como lugar do julgamento: quanto menos testemunhas, menos barulho? No h operadores de televiso, no h jornalistas ocidentais. Claro que no banco dos rus todos queriam ver dezenas de funcionrios responsveis, incluindo os de Moscovo. A cincia moderna tambm devia assumir a sua responsabilidade. Mas ficou se pelos bodes expiatrios.

    O veredito Vktor Briukhnov, Nikolai Fomn e Anatoli Ditlov foram condenados a 10 anos de priso. Os restantes tiveram penas mais leves. Anatoli Ditlov e Yuri Lachkin morreram na priso, dos efeitos da exposio grave radiao. O engenheiro chefe Nikolai Fomn enlouqueceu Mas o diretor da central Vktor Briukhnov cumpriu a totalidade da pena, os 10 anos. Foi recebido pelos familiares e uns quantos jornalistas. O acontecimento passou despercebido.

    O ex diretor vive em Kiev, um simples funcionrio de uma das empresas

    Assim termina a histria

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    Em breve a Ucrnia iniciar uma obra grandiosa. Por cima do sarcfago que cobriu em 1986 o quarto bloco destrudo da central nuclear de Chernobyl, surgir um novo abrigo chamado Arco. Nos prximos tempos, os 28 pases doadores vo atribuir um investimento inicial cujo valor ultrapassa os 768 milhes de dlares. O novo abrigo dever durar no trinta mas cem anos. E pretende se muito mais grandioso, pois dever ter volume suficiente para permitir a realizao, no seu interior, dos trabalhos de reenterro dos resduos nucleares. precisa uma base slida: na realidade, ser necessrio criar um solo artificial rochoso constitudo por pilares e lajes de beto. Depois, preparar o depsito para o qual se vo levar os resduos radioativos extrados de baixo do antigo sarcfago. O novo abrigo ser fabricado em ao de alta qualidade capaz de resistir radiao gama. S de metal, sero precisas 18 mil toneladas

    O Arco tornar se uma estrutura sem precedentes na Histria da humanidade. Em primeiro lugar, impressiona a sua escala: um invlucro duplo com 150 metros de altura. Vai apresentar uma esttica comparvel da Torre Eiffel

    Segundo materiais dos jornais digitais bielorrussos, 20022005

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    u m a s o l i t r i a v o z h u m a n a

    No sei do que hei de falar Da morte ou do amor? Ou sero eles a mesma coisa De qual deles devo falar?

    ramos recm casados. Ainda andvamos de mos dadas, mesmo que fosse para ir apenas loja. Sempre juntos. Eu dizia lhe: Amo te. Mas nessa altura no sabia o quanto. No fazia ideia Viva mos na residncia coletiva do quartel de bombeiros onde ele trabalhava. No primeiro andar. Havia trs jovens casais, partilhvamos todos a cozinha. Em baixo, no rs do cho, guardavam se os veculos. Veculos vermelhos de combate ao fogo. Era esse o seu trabalho. Eu estava sempre a par da situao: onde ele se encontrava, o que lhe acontecia. Certa noite, ouvi um barulho. Gritos. Olhei pela janela l para fora. Ele viu me. Fecha os postigos e vai te deitar. H um incndio na central. J volto.

    No vi a exploso propriamente dita. S as chamas. Tudo irradiava luz Todo o cu Uma chama alta. E fuligem. O calor era horrvel. E ele, que no voltava. A fuligem vinha do betume queimado, o telhado era betumado. Mais tarde, disse me que era como andar em cima de alcatro. Eles fustigavam as chamas, mas elas iam reaparecendo. Subindo. Atiravam a grafite em chamas com os ps. Foram sem o equipamento de lona, s como estavam, em mangas de camisa. Ningum os avisara, tinham sido chamados para um incndio comum.

    Quatro horas Cinco Seis s seis horas, tnhamos de ir a casa dos pais dele. Plantar batatas. So quarenta quilmetros de Prpiat1

    1 Cidade a dois quilmetros da Central Nuclear de Chernobyl, construda para alojar os trabalhadores da central. Foi inteiramente evacuada e abandonada quando do acidente. [N. da T.]

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    aldeia de Sperijie onde viviam os pais dele. Semear arar Ele ado rava fazer isso A me dele recordava com frequncia que no queriam que ele se mudasse para a cidade, at lhe tinham construdo uma casa nova. Foi para a tropa. Cumpriu servio no corpo militar de bombeiros, em Moscovo, e quando saiu s queria ser bombeiro. No admitia outra coisa! [Silncio.]

    s vezes como se ouvisse a voz dele Viva Nem as fotografias tm o mesmo efeito em mim que aquela voz. Mas ele nunca me chama. Nem em sonhos Sou eu quem o chama

    Sete horas s sete disseram me que ele estava no hospital. Corri at l mas a miltsia2 j tinha rodeado o local e no deixava ningum passar. S ambulncias. Os polcias gritavam: No se aproximem das ambulncias, a escala do contador j no chega para medir a radiao! Eu no era a nica pessoa que ali estava; todas as mulheres cujos maridos estavam na central naquela noite tinham vindo. Comecei a procurar uma amiga, que era mdica naquele hospital. Agarrei a pela bata, quando ela saiu da ambulncia: Leva me l para dentro! No posso. Ele est mal. Esto todos. No a larguei: S para o ver! Est bem, disse me, mas rpido! S quinze ou vinte minutos. Vi o Todo inchado, intumescido Mal se conseguia ver lhe os olhosEle precisa de leite. Muito leite!, disse a minha amiga. Deviam todos beber pelo menos trs litros. Mas ele no gosta de leite. Agora, vai beber. Muitos dos mdicos e das enfermeiras naquele hospital especialmente as auxiliares ficariam doentes passado algum tempo. E morreriam. Mas nessa altura ningum sabia disso.

    s dez da manh morreu Chichenk, o operador. Foi o primeiro. No primeiro dia Ficmos a saber que deixaram outro debaixo dos escombros: Valera Khodemtchk. Nunca conseguiram chegar at ele. Betonaram no. E, nessa altura, ainda no sabamos que todos eles seriam s os primeiros

    2 Designao genrica da polcia na Unio Sovitica. [N. da T.]

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    V o z e s d e C h e r n o b y l

    Digo: Vssenka, o que hei de fazer? Sai daqui! Vai! Ters o nosso filho. Estou grvida. Mas como posso eu deix lo? Pede: Vai te embora! Salva o beb! Primeiro tenho de te trazer leite, depois decidimos.

    A minha amiga Tnia Kibenk entra a correr O marido dela est na mesma enfermaria. O pai est com ela, tem carro. Entramos e seguimos at aldeia mais prxima para ir buscar leite, a cerca de trs quilmetros da cidade Compramos muitos frascos de leite de trs litros Seis, para que chegue para todos Mas o leite fazia os vomitar Estavam sempre a desmaiar, administravam lhes soro. Os mdicos repetiam, no se sabe porqu, que eles tinham sido contaminados com gases, ningum falou de radiao. E a cidade foi inundada de veculos militares, todas as estradas foram encerradas. Havia soldados por todo o lado. Os comboios urbanos deixaram de circular, e os outros tambm. Andavam a lavar as ruas com um p branco qualquer

    Perguntava me como iria para a aldeia no dia seguinte, para comprar mais leite fresco. Ningum falava da radiao. S o pessoal militar andava com respiradores As pessoas na cidade traziam das lojas po, cartuchos abertos com rebuados. Os bolos esta vam expostos nos tabuleiros Como habitualmente. S que Andavam a lavar as ruas com um p qualquer

    No me deixaram entrar no hospital nessa noite. Havia um mar de gente volta. Fiquei debaixo da janela dele, ele veio e gritoume qualquer coisa. Com tanto desespero! Algum na multido o ouviu: eles iam ser levados para Moscovo nessa noite. As mulheres juntaram se todas em grupo. Decidimos que iramos todas com eles. Deixem nos ir com os nossos maridos! Vocs no tm direito! Demos murros e arranhmo los. Os soldados j havia um cordo de duas filas empurraram nos para trs. O mdico veio ento c fora e disse que sim, que iam viajar de avio para Moscovo, mas que ns tnhamos de lhes trazer roupas: as que eles tinham na central haviam ficado queimadas. Os autocarros j tinham deixado

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    de circular, e ns corremos por toda a cidade. Voltmos a correr com os sacos deles, mas o avio j tinha partido. Enganaram nos. Para que no estivssemos l, aos gritos e a chorar.

    de noite De um lado da rua h autocarros, centenas de autocarros j estavam a preparar a cidade para ser evacuada , e do outro, centenas de veculos de bombeiros. Vieram de toda a parte. Toda a rua coberta de uma espuma branca. E ns a caminhar sobre ela A soltar pragas e a chorar.

    Anncio pela rdio: a cidade ser evacuada por trs a cinco dias, que levemos os nossos agasalhos e fatos de treino, vamos ficar a viver na floresta. Em tendas. As pessoas at ficaram contentes: uma excurso de campismo! Vamos celebrar l o Primeiro de Maio. Para variar. As pessoas preparavam espetadas para churrasco, com pravam vinho. Levaram consigo as violas, os gravadores. S as mulheres com os maridos sinistrados choravam.

    No me lembro da viagem como se tivesse acordado quando vi a me dele: Mam, o Vssia est em Moscovo! Levaram no num avio especial! Mas acabmos de plantar a horta: batatas, couves (uma semana depois, a aldeia foi evacuada). Quem sabia? Quem sabia disso, nessa altura? Ao fim do dia comecei a vomitar. Estava grvida de seis meses. Sentia me pssima Nessa noite sonhei que ele me chamava, em vida chamava me enquanto dormia: Lissia! Lissenka! Mas, depois de ele morrer, nunca mais me chamou em sonhos. Nem uma nica vez [Comea a chorar.] Levantei me de manh a pensar que tinha de ir para Moscovo sozinha A sogra chora: Aonde que tu vais, assim como ests? Tambm preparou a viagem do sogro: Ele que te leve. Levantaram da conta o dinheiro que tinham. O dinheiro todo.

    No me lembro da viagem A viagem escapou me novamente da memria Em Moscovo, perguntmos ao primeiro polcia que encontrmos em que hospital estavam os bombeiros de Chernobyl, e ele disse nos. At fiquei surpreendida, porque nos assustavam: segredo de Estado, sigilo absoluto.

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    No Hospital n. 6. Metro ChtchkinskaiaEra um hospital especial, vocacionado para radiologia, e no se

    podia entrar sem uma autorizao. Dei algum dinheiro porteira, e ela disse: Vai. Disse me qual era o piso. Voltei a pedir a algum, implorei Estou por fim sentada no gabinete da chefe do servio de radiologia, Angelina Vasslievna Guskova. Na altura no sabia como ela se chamava, no fixava nada. S sabia que tinha de o ver. De o encontrar.

    Perguntou me de imediato: Minha querida! Tens filhos?Como que o hei de confessar? J consigo perceber que tenho

    de esconder que estou grvida. No me vai deixar v lo! Ainda bem que sou magra, no se nota nada.

    Sim, digo.Quantos?Penso: Tenho de lhe dizer que dois. Se for s um, no me deixa entrar.Um rapaz e uma rapariga.Ento talvez no vs ter mais. Agora ouve: leso total do sistema

    nervoso central, leso total da medula sseaPacincia, penso, vai ficar um pouco nervoso.E ouve: se comeares a chorar, expulso te logo daqui. Nada de

    abraos nem beijos. Nem sequer te chegues a ele. Tens meia hora.Mas eu j sabia que no me ia embora. S me vou embora com ele.

    Jurei a mim mesma!Entro Eles esto sentados na cama, a jogar s cartas e a rir se.Vssia!, chamam por ele.Ele volta se: Eh p, estou tramado! At aqui ela me encontrou!Est com um ar engraado, com um pijama 48, quando veste 52.

    Mangas curtas, calas curtas. Mas j no tem a cara inchada Fizeram lhes a infuso de uma soluo qualquer

    Onde que te tinhas metido?, pergunto.Ele quer me abraar .Fique a. O mdico no o deixa aproximar se de mim. Nada

    de abraos aqui.

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    Fizemos disto uma piada, no sei como. E depois apareceu toda a gente, e das outras enfermarias tambm. Todos dos nossos. De Prpiat. Tinham chegado vinte e oito pessoas no avio. O que que se passa l? Como esto as coisas na cidade? Respondo lhes que comeou a evacuao, a cidade toda vai despovoar se durante trs ou cinco dias. Os rapazes ficam calados Estavam l mais duas mulheres, uma delas estava de servio no posto de controlo entrada, no dia do acidente, e comea a chorar.

    Oh, meu Deus! Os meus filhos esto l. O que que vai ser deles?

    Eu queria estar sozinha com ele, nem que fosse por um minuto. O pessoal apercebeu se disso, cada um deles pensou numa desculpa e foram todos para o corredor. Ento, abracei o e beijei o. Ele afastou se.

    No te sentes perto de mim. Pega numa cadeira.Que disparate. Fiz um gesto de desprezo. Viste o local da

    exploso? O que que est l? Vocs foram os primeiros a chegar l capaz de ter sido sabotagem. Algum fez aquilo intencional

    mente. Toda a malta dessa opinio.Era o que as pessoas diziam, nessa altura. O que pensavam.Quando voltei no dia seguinte, j estavam sozinhos, cada um

    no quarto individual. Ficaram categoricamente proibidos de ir at ao corredor. De falar uns com os outros. Batiam na parede com os ns dos dedos; trao ponto, trao ponto Ponto Os mdicos explicaram que cada organismo reage de forma diferente s doses de radiao, e o que uma pessoa consegue suportar pode estar acima das foras de outra pessoa. L onde eles estavam, at as paredes ficaram fortemente radioativas. direita, esquerda e no andar de baixo Retiraram todas as pessoas, nem um doente ficou No andar de baixo e no andar de cima no ficou ningum.

    Durante trs dias, fiquei na casa de amigos em Moscovo. Estavam sempre a dizer: Leva a panela, leva o prato, leva aquilo de que precisares, no te acanhes. Eram pessoas verdadeiramente excecionais Mesmo! Fazia caldo de peru para seis. Para seis dos nossos rapazes

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    Bombeiros Do mesmo turno Estavam todos de servio nessa noite: Vachtchk, Kibenk, Titenk, Prvik, Tichtchura. Numa loja comprei lhes pasta de dentes, escovas e sabonete. No havia nada disso no hospital. Comprei lhes umas toalhas pequenas Ao olhar para trs, fico surpreendida com os meus amigos: tinham medo, claro. Como podiam no ter? J corriam rumores, mas mesmo assim eles prprios ofereciam: Leva o que precisares. Leva! Como que ele est? Como que esto todos eles? Vo sobreviver? Sobreviver [Fica em silncio.] Encontrei muitas pessoas boas nessa altura, no me lembro de todas O mundo reduziu se a um nico ponto. Ele S ele Lembro me de uma auxiliar hospitalar j idosa, que me ensinava: H doenas que no podem ser curadas. H que estar ao lado do doente e acariciar lhe as mos.

    De manh cedo, vou ao mercado e depois sigo para casa dos meus amigos, onde fao o caldo. Tenho de passar e picar tudo, dividir em doses. Algum me pediu: Traz me uma ma. Com seis frascos de meio litro Sempre para seis! Corro para o hospital Fico l at anoitecer. noite regresso, atravessando a cidade. Quanto tempo mais teria eu aguentado aquilo? Trs dias depois, disseram me que podia viver na residncia do pessoal mdico, que fica no territrio do prprio hospital. Meu Deus, que alegria!

    Mas no h cozinha. Como que eu vou cozinhar para eles?J no precisa de cozinhar. Os seus estmagos deixam de digerir

    a comida.Ele comeou a mudar: a cada dia, deparava com uma pessoa

    diferente As queimaduras comearam a vir superfcie. Na boca, na lngua, nas faces surgiram no incio leses muito pequenas, que depois cresceram. As mucosas caam em camadas, em pelculas brancas. A cor do seu rosto A cor do seu corpo Azul Vermelho Cinzento acastanhado. E tudo aquilo era to meu, to querido! impossvel cont lo! impossvel escrev lo! E at viv lo A nica coisa que me salvou foi que tudo aconteceu to depressa, que no houve tempo para pensar, no houve tempo para chorar.

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    Eu amava o! Ainda no fazia ideia do quanto! Tnhamo nos casado h pouco tempo, ainda no podamos passar um sem o outro Caminhamos rua abaixo. Ele levanta me e rodopia comigo nos braos. E beija me, beija me. As pessoas passam por ns, todas sorriem.

    Catorze dias quanto dura a evoluo da sndrome aguda da radiao Em catorze dias uma pessoa morre

    No primeiro dia em que fiquei na residncia, mediram me com um dosmetro. A roupa, a mala, a carteira, os sapatos: estava tudo a luzir. E tiraram me tudo ali mesmo. At a roupa interior. S me deixaram ficar com o dinheiro. Em troca, deram me um roupo de hospital (tamanho 56 em vez do meu 44) e uns chinelos 43 em vez do meu 37. A roupa, disseram me, talvez me fosse devolvida, talvez no, pois era pouco provvel que ela cedesse limpeza. Era assim que eu estava quando o vim visitar. Assustou se. Caramba! O que que se passa contigo? Mesmo assim, eu encontrava maneira de fazer o caldo. Punha o aparelho para ferver gua num frasco de vidro Atirava l para dentro pedacinhos de frango Pequeninos, pequeninos Depois algum me deu a sua panela, acho que foi a senhora da limpeza ou a rececionista da residncia. Mais algum, uma pequena tbua onde eu picava a salsa fresca. Eu prpria no podia ir ao mercado com o meu roupo do hospital, algum ma trazia. Mas era tudo intil, ele nem sequer conseguia beber nada engolir um ovo cru Eu que queria arranjar qualquer coisa saborosa! Como se isso pudesse ajudar. Corri para os correios. Meninas, peo, preciso de telefonar imediatamente para os meus pais, em Ivano Frankovsk. O meu marido est a morrer aqui. No sei porqu, mas adivinharam logo de onde eu era e quem era o meu marido, e fizeram a ligao num instante. O meu pai, a minha irm e o meu irmo viajaram de avio, nesse mesmo dia, para Moscovo. Trouxeram me as minhas coisas. E dinheiro.

    Estvamos a 9 de maio Ele dizia me sempre: No fazes ideia como Moscovo est bonita! Sobretudo no Dia da Vitria, quando h

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    fogo de artifcio. Quero que vejas. Estou sentada com ele no quarto, ele abre os olhos.

    de dia ou de noite?So nove da noite.Abre a janela! O fogo de artifcio vai comear!Abri a janela. Estamos no oitavo andar, toda a cidade est diante

    de ns! Um bouquet de luzes ascendeu ao cu.Olha para aquilo!, disse eu.Prometi que te ia mostrar Moscovo. Prometi que te ia dar sempre

    flores nos feriadosVoltei me e vi o tirar trs cravos de baixo da almofada. Tinha

    dado dinheiro enfermeira, e ela comprara os.Corro para ele e beijo o.Meu amor! Meu mais que tudo!Ele comea a resmungar.O que que os mdicos te disseram? Nada de abraos comigo.

    E nada de beijos!No me deixavam abra lo. Acarici lo Mas eu eu levantava o

    e sentava o na cama. Mudava a roupa da cama, punha lhe o term metro, trazia e levava a arrastadeira Limpava. Passava toda a noite ao lado dele. Vigiava cada movimento. Cada suspiro.

    Ainda bem que aconteceu no corredor e no no quarto A cabea comeou me a andar roda, agarrei me ao peitoril da janela Um mdico passava por ali, segurou me pelo brao. E de repente, a pergunta: Est grvida?

    No, no! Tive tanto medo que algum nos ouvisse.No me minta, suspirou ele.No dia seguinte, sou chamada ao gabinete da diretora do servio.Porque que me mentiu?, perguntou me com severidade.No havia outra soluo. Se lhe tivesse dito, mandava me para

    casa. Foi uma mentira piedosa!O que que foi fazer?Mas eu estava com ele

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    Minha querida! Minha queridaFicarei toda a vida grata a Angelina Vasslievna Guskova. Toda

    a vida!Houve outras esposas que vieram, mas no foram autoriza

    das a entrar. As mes delas estiveram comigo: foram autorizadas A me de Voldia Prvik estava sempre a suplicar a Deus: Leva me antes a mim.

    Um professor americano, o Dr. Gale Foi ele quem fez o transplante de medula ssea Reconfortava me: H uma leve esperana, no muita, mas h. Um corpo to rijo, um rapaz to forte! Chamaram todos os parentes dele. As duas irms vieram da Bielorrssia, o irmo, de Leninegrado, onde prestava servio militar. A mais nova, Natacha, que tinha catorze anos, estava muito assustada e chorava muito. Mas a medula ssea dela era a mais compatvel [Silncio.] Agora j posso falar disto Dantes, no podia. Fiquei calada durante dez anos. Dez anos [Silncio.]

    Quando descobriu que iriam extrair medula ssea da irmzinha mais nova, recusou se terminantemente. Preferia morrer. No lhe toquem, ela pequena. A irm mais velha, Lida, tinha vinte e oito anos, e era, ela prpria, enfermeira, sabia em que que se estava a meter. Desde que ele sobreviva, dizia ela. Eu vi a operao. Estavam deitados um ao lado do outro nas marquesas Havia uma grande janela que dava para a sala de operaes. Demorou duas horas Quando acabaram, Lida estava pior do que ele, tinha dezoito perfuraes no peito, recuperou com dificuldade dos efeitos da anestesia. Agora doente, tem invalidez Era uma rapariga forte e bonita. Nunca se casou. Eu andava, pois, a correr de quarto em quarto, do quarto dele para o dela. Ele j no estava num quarto normal, estava numa cmara hiperbrica especial, por trs de uma cortina transparente, aonde no era permitido entrar. Havia l dispositivos especiais para lhe poderem dar injees ou pr o cateter, sem atravessar a cortina As cortinas estavam unidas por velcros e fechos, e aprendi a us las Afastava a cortina com cuidado e ia ter com ele

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    Acabaram por me pr uma cadeirinha junto cama dele. Ele ficou to mal, que eu j no o podia deixar nem por um minuto que fosse. Chamava constantemente por mim: Lissia, onde que ests? Lissenka! Chamava e chamava As outras cmaras, onde se encontravam os nossos rapazes, estavam ao cuidado de soldados, porque as auxiliares de servio se recusavam e exigiam roupa de proteo. Os soldados que transportavam os tanques sanitrios. Limpavam o cho, mudavam a roupa de cama Faziam tudo. Donde apareceram aqueles soldados? No perguntei S ele Ele Todos os dias ouvia: morreu, morreu O Tichtchura morreu. O Titenk morreu. Morreu Era como uma marreta na minha cabea

    Ele defecava vinte e cinco a trinta vezes por dia. Com sangue e muco. A pele dos braos e das pernas comeou a estalar. O corpo ficou todo coberto de bolhas. Quando virava a cabea, ficavam madeixas de cabelo na almofada Tudo to querido. Amado Eu tentava brincar: At d jeito, no precisas de pente. Em breve, cortaram o cabelo a todos. A ele, fui eu prpria que o fiz. Queria ser eu a fazer tudo por ele. Se tivesse sido fisicamente possvel, tinha ficado com ele vinte e quatro horas por dia. Dava me pena desperdiar um nico minuto No queria perder nem um minutinho [Tapa o rosto com as mos e fica calada.] Veio o meu irmo e assustou se: No te deixo entrar ali! E o meu pai diz lhe: Achas que consegues impedi la? Ela at ia pela janela! Pela escada de incndio!

    Ausentei me Volto est uma laranja na sua mesa de cabeceira. Uma grande laranja, no amarela, mas cor de rosa. Ele sorri: Ofereceram ma. Leva a. Entretanto, a enfermeira faz gestos atravs do biombo, a dizer que no posso comer aquela laranja. Esteve perto dele durante algum tempo, portanto, no s no se deve com la, como nem se deve tocar lhe. V l, come a, pede ele. Tu gostas de laranjas. Pego na laranja. Entretanto, ele fecha os olhos e adormece. Estavam sempre a dar lhe injees para o pr a dormir. Narcticos. A enfermeira olha para mim, horrorizada E eu? Eu estou disposta a fazer seja o que for para que ele no pense na morte E no facto de

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    a morte dele ser horrvel, de eu ter medo dele Fragmento de uma conversa qualquer Algum me exorta: No pode esquecer que diante de si j no est o seu marido, j no est a pessoa amada, mas um objeto radioativo com uma elevada densidade de contaminao. A senhora no suicida. Controle se. E eu, como algum que tivesse perdido o juzo: Mas eu amo o! Amo o! Ele dormia, e eu sussurrava: Amo te! A andar pelo ptio do hospital: Amo te. A transportar a arrastadeira: Amo te. Lembrava me de como vivamos antes. Na nossa habitao coletiva noite, ele s adormecia depois de me pegar na mo. Era um hbito dele: segurar me na mo enquanto dormia. Toda a noite.

    No hospital, sou eu quem lhe pega na mo e no a larga.Noite. Silncio. Estamos sozinhos. Ele olhou para mim fixamente

    e, de repente, disse:Quero tanto ver o nosso filho. Como que ele ?Que nome lhe vamos dar?Tu que decides isso.Porqu eu, se somos dois?Nesse caso, se for rapaz, que seja Vssia, se for rapariga,

    Natacha.Porqu Vssia? J tenho um Vssia. Tu! No preciso de outro.Ainda no fazia ideia de como o amava! Ele S ele Como uma

    cega! Nem conseguia sentir o leve bater debaixo do meu corao. Embora estivesse de seis meses Pensava que a minha pequenina estava dentro de mim, que estava protegida. Minha pequenina

    Que eu passava a noite com ele na cmara hiperbrica, nenhum dos mdicos sabia. No adivinhava. As enfermeiras deixavam me entrar. No incio tambm insistiam comigo: Tu s jovem. Que ideia essa? Ele j no uma pessoa, um reator. Vocs vo mas arder os dois. Eu parecia um cozinho, a correr atrs delas Punha me horas porta, a suplicar e implorar. E ento elas diziam: Est bem, vai! s uma anormal! De manh, mesmo antes das oito, quando os mdicos iniciavam as suas rondas, elas mostravam atravs de gestos

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    do outro lado do biombo: Corra! Ento eu ia para a residncia por uma hora. Depois, das nove da manh s nove da noite, tinha autorizao para entrar. Tinha as pernas azuis e inchadas, do joelho para baixo, tal era o meu cansao. A minha alma era mais forte do que o corpo. O meu amor

    Enquanto eu estava com ele no o faziam Mas quando eu saa, tiravam lhe fotografias. Sem roupa. Nu. S com um lenol fininho por cima. Eu mudava aquele lenolzinho todos os dias, e todos os dias ao fim da tarde ele estava coberto de sangue. Levanto o e fico com pedaos da sua pele nas mos, colam se me s mos. Peo lhe: Ajuda me, amor! Apoia te no brao, no cotovelo, tanto quanto possas, para eu te alisar a roupa da cama, no deixar nem uma costura, nem a mais pequena dobra. A menor costura era j uma ferida para ele. Cortava as minhas unhas rentes at fazer sangue, para no o magoar por acidente. Nenhuma das enfermeiras se decidia a aproximar se dele, a tocarlhe, se precisassem de alguma coisa chamavam me a mim. E eles Eles tiravam lhe fotografias Para fins cientficos, diziam. Eu s queria empurr los dali para fora! Gritar lhes e bater lhes! Como que se atreviam? Se eu pudesse no deix los entrar Se

    Saio do quarto para o corredor E bato na parede, no sof, porque no vejo nada. Digo enfermeira de servio: Ele est a morrer. Responde me: O que que esperavas? Apanhou mil e seiscentos roentgenes, quatrocentos j uma dose letal. Ela tambm tem pena, mas de modo diferente. Mas ele todo meu Querido

    Quando eles morreram todos, fizeram obras no hospital Raspa ram as paredes, arrancaram o parqu e levaram tudo As madeiras tambm.

    E depois uma ltima coisa Lembro me disto por clares. Tudo a sumir se

    Passei a noite sentada na minha cadeirinha ao lado dele s oito da manh, digo: Vssenka, vou andando. Preciso de descansar um pouco. Ele abre e fecha os olhos deixa me ir. Mal chego residncia, subo ao meu quarto, deito me no cho no me conseguia deitar na

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    cama, doa me tanto o corpo todo quando a auxiliar bate porta: Vai! Corre para ele! No para de chamar por ti! Nessa manh, Tnia Kibenk suplicava: Anda comigo ao cemitrio. Sem ti no serei capaz. Naquela manh iam enterrar Vtia Kibenk e Voldia Prvik. Eram amigos do meu Vssia, as nossas famlias eram amigas. H uma fotografia de todos ns no edifcio um dia antes da exploso. Os nossos maridos esto to bonitos! E alegres! Foi o ltimo dia daquela nossa vida. Antes de Chernobyl ramos todos to felizes!

    Voltei do cemitrio, telefonei de imediato ao posto da enfermeira: Como que ele est? Morreu h quinze minutos. O qu? Estive toda a noite com ele. Ausentei me apenas por trs horas! Fiquei parada janela, a gritar: Porqu? Porqu? Olhava para o cu e berrava Ouvia se na residncia toda Tinham medo de se aproximar de mim Voltei a mim: vou v lo uma ltima vez! Vou v lo! Disparei escadas abaixo Ele estava na sua cmara hiperbrica, ainda no o tinham tirado de l. As suas ltimas palavras foram: Lissia! Lissenka! Ela s saiu por um bocadinho, vem j, sossegou o a enfermeira. Ele suspirou e ficou em silncio.

    J no me separei dele Acompanhei o at ao caixo Embora me lembre no do caixo em si, mas de um grande saco de plstico Aquele saco Na morgue perguntaram: Quer ver como que o vestimos? Quero! Vestiram no com uniforme de gala, puseram o quepe no peito. No encontraram calado para ele, porque as pernas tinham inchado. Tinha bombas em vez de pernas. Tambm tiveram de cortar o uniforme, porque no o conseguiram vestir, j no havia um corpo inteiro. Todo ele uma ferida em sangue. Nos ltimos dois dias no hospital Levanto lhe o brao e o osso abana, dana, o tecido corporal desprendeu se dele. Pedacinhos dos pulmes e do fgado saam lhe pela boca Ele engasgava se com as prprias vsceras Eu embrulhava a mo numa gaze e metia lha na boca, tirava aquilo tudo impossvel cont lo! impossvel escrev lo! E mesmo viver Tudo nele era to amado To amado No havia calado que se lhe pudesse enfiar. Puseram no descalo no caixo.

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    Diante dos meus olhos Meteram no com o seu uniforme de gala num saco de celofane e ataram no. E depois puseram o saco no caixo de madeira. E amarraram o caixo com outro saco. O celofane era transparente mas espesso, como um oleado. E, finalmente, puseram tudo isto num caixo de zinco, fora. S ficou em cima o quepe.

    Veio toda a gente Os pais dele, os meus pais Comprmos lenos pretos em Moscovo. Fomos recebidos pela Comisso Extraordinria. Disseram a todos ns a mesma coisa: nos impossvel dar vos os corpos dos vossos maridos, dos vossos filhos, esto em estado muito radioativo e vo ser enterrados num cemitrio de Moscovo, de forma especial. Em urnas de zinco seladas, debaixo de lajes de cimento. E vocs tm de assinar este documento. preciso o vosso consentimento. Se algum se indignava e queria levar o caixo de volta para a terra natal, diziamlhe que os mortos, como bem viam, eram agora heris e j no pertenciam s suas famlias. J eram figuras do Estado Pertenciam ao Estado.

    Sentmo nos no carro funerrio Os familiares e uns militares desconhecidos. Um coronel com rdio Transmitem pela rdio: Aguardem as nossas ordens! Aguardem! Andmos por Moscovo duas ou trs horas, pela estrada circular. Regressamos de novo a Moscovo O aparelho de rdio: No autorizamos a entrada no cemitrio. Os correspondentes estrangeiros esto a assaltar o cemitrio. Aguardem mais um pouco. Os pais esto calados O leno da minha me preto Sinto que estou prestes a perder os sentidos. Entro em histeria: Porque preciso esconder o meu marido? Ele o qu? Um assassino? Um criminoso? Um delinquente? Quem que estamos a enterrar? A minha me: Acalma te, acalma te, filhinha. Faz me festas na cabea, segura me na mo. O coronel transmite: Peo autorizao para seguir para o cemitrio. A mulher est a ficar histrica. No cemitrio fomos rodeados por soldados. amos sob escolta. O caixo tambm ia sob escolta. Ningum foi autorizado a entrar para se despedir Apenas familiares Enterraram num instante. Rpido! Rpido!, ordenava o oficial. Nem sequer deixaram abraar o caixo.

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    E de imediato para os autocarrosCompraram e trouxeram nos logo bilhetes de avio para voltar

    mos para casa No dia seguinte Todo este tempo, esteve connosco uma pessoa vestida civil, mas com aparncia de militar. Nem sequer nos deixou sair do quarto para comprarmos comida para a viagem. Deus nos livre de falar com algum sobretudo eu. Como se eu fosse capaz de falar naquela altura, nem sequer era capaz de chorar. Quando nos amos embora, a funcionria de servio contou todas as toalhas, todos os lenis P los imediatamente num saco de polietileno. Provavelmente queimaram nos Fomos ns prprias a pagar pelo alojamento. Por catorze dias

    Catorze dias quanto dura a evoluo da sndrome aguda da radia o. Em catorze dias uma pessoa morre

    Em casa, adormeci. Entrei no quarto e ca na cama. Dormi durante trs dias. No me conseguiam acordar. Veio uma ambulncia. No, disse o mdico, ela no morreu. Ela vai acordar. um sono terrvel.

    Eu tinha vinte e trs anosLembro me do que sonhei A minha av morta surge me vestida

    com a roupa em que a enterrmos. Est a decorar a rvore de Ano Novo. Av, porque que temos uma rvore de Ano Novo? Estamos no vero. Porque o teu Vssenka vai em breve juntar se a mim. Ele tinha crescido na floresta. O segundo sonho: Vssia vem de branco e chama por Natacha. A nossa menina, que ainda no tive. J crescida, fico admirada com o quanto ela cresceu. Ele atira a ao ar, eles riem se Estou a v los e a pensar que a felicidade uma coisa to simples. To simples! Depois sonhei Caminhamos juntos na gua. Andamos e andamos Ele talvez me tenha pedido para no chorar. Fez me um sinal de l. De cima.

    [Fica em silncio por muito tempo.]Dois meses depois, fui a Moscovo. Da estao de comboio dire

    tamente para o cemitrio. At ele! E no cemitrio comeo a entrar em trabalho de parto. Mal comecei a falar com ele Chamaram a ambulncia. Dei o endereo. Dei luz no mesmo stio O da mesma

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    Angelina Vasslievna Guskova. J naquela altura ela me tinha avisado: Vem aqui ter a criana. Aonde que eu podia ir no estado em que estava? Dei luz duas semanas antes do tempo previsto

    Mostraram me Uma menina Natchenka, chamei. O teu pap deu te o nome de Natacha. Ela parecia saudvel. Bracitos, perninhas Mas sofria de cirrose heptica No fgado vinte e oito roentgenes Doena cardaca congnita Quatro horas depois, disseram me que ela tinha morrido. E uma vez mais no lha vamos dar! Como que no ma vo dar? Eu que no vos dou a menina! Querem lev la para a cincia. Mas eu detesto a vossa cincia! Odeio a! Levou me primeiro o marido e agora quer mais No dou! Eu prpria a vou enterrar. Ao p dele [Passa para um sussurro.]

    Estou a dizer lhe palavras erradas Inadequadas Desde que tive um enfarte que no posso gritar. Nem chorar. Mas eu quero Quero que saibam Ainda no confessei a ningum. Quando no lhes dei a minha pequenina. A nossa menina Ento eles trouxeram me uma caixinha de madeira e disseram: Ela est a. Olhei: enfaixaram na. Jazia em fraldinhas. Desatei a chorar: Ponham na aos ps dele. Digam que a nossa Natchenka.

    L, no tmulo, no est escrito: Natacha Ignatenko S est o nome dele Ela ainda no tinha nome, no tinha nada S uma alma Foi l que enterrei a alma Vou l sempre com dois ramos: um para ele e outro que ponho a um canto, para ela. Rastejo volta da sepultura, de joelhos. Sempre de joelhos [Fala sem nexo.] Matei a Eu ela salvou A minha menina salvou me, recebeu todo o choque radioativo, foi como um para raios. Minha bebezinha. To pequenina. [Respira com dificuldade.] Ela salvou me Mas eu amava os aos dois. Porque Porque no se pode matar com amor, pois no? Com tamanho amor! Porque que estas coisas andam a par? Amor e morte. Esto sempre juntas. Quem me vai explicar isto? Rastejo volta da sepultura de joelhos [Longo silncio.]

    Em Kiev, deram me um apartamento. Num grande edifcio, onde agora vivem todos os que abandonaram a central atmica.

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    um apartamento grande, de duas assoalhadas, como eu e o Vssia tnhamos sonhado. E eu enlouquecia nele! Em cada canto, olhe para onde olhar, est ele. Os seus olhos Comecei com umas obras, s para no estar sentada, s para esquecer. Assim se passaram dois anos Vejo um sonho Estamos a caminhar juntos, e ele vai descalo. Porque ests sempre descalo? Porque no tenho nada. Fui igreja O padre ensinou me: preciso comprar sapatilhas de tamanho grande e p las no caixo de algum. Escrever num bilhete que so para ele. Assim fiz. Cheguei a Moscovo e fui logo a uma igreja. Em Moscovo estou mais perto dele Ele est l, no cemitrio de Mtino Contei ao padre de l a minha situao, que precisava de entregar as sapatilhas. Ele pergunta: Mas tu sabes como se deve proceder? Explicou me mais uma vez Acabava de entrar o caixo com um velhote para a missa de corpo presente. Aproximo me do caixo, levanto a cobertura e ponho l dentro as sapatilhas. Escreveste o bilhete? Sim, escrevi, mas no indiquei em que cemitrio est enterrado. Ali, todos eles esto no mesmo mundo. Ho de encontr lo.

    Eu no tinha nenhuma vontade de viver. De noite, fico janela, a olhar para o cu. Vssenka, o que hei de fazer? No quero viver sem ti. De dia, passo por um infantrio, detenho me e fico parada No me cansava de olhar para as crianas Estava a enlouquecer! E de noite comecei a pedir: Vssenka, quero ter um filho. J tenho medo de estar sozinha. No aguento mais. Vssenka!! Noutra ocasio, peo assim: Vssenka, no preciso de um homem. Para mim, no h ningum melhor do que tu. Quero um filhinho.

    Tinha vinte e cinco anosAcabei por encontrar um homem Contei lhe tudo Toda a ver

    dade: tenho um amor, para toda a vida. Revelei lhe tudo Saamos, mas nunca o convidei para minha casa, no fui capaz. Ali est o Vssia

    Trabalhava como pasteleira. Estou a fazer um bolo, e as lgrimas rolam. No estou a chorar, mas as lgrimas rolam. A nica coisa

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    que pedia s colegas: No tenham pena de mim. Se o fizerem, vou me embora. No preciso ter pena de mim J fui feliz Trouxeram me a condecorao do Vssia. De cor vermelha Durante muito tempo nem podia olhar para ela. As lgrimas rolavam me

    Dei luz um rapaz. Andrei Andreika As minhas amigas tentaram dissuadir me. No podes ter um beb. E os mdicos a assustarem me: O seu organismo no vai resistir. Depois Depois disseram me que ele no teria um bracinho O bracinho direito O aparelho mostrava o Ora, e ento?, pensei. Ensino o a escrever com a mo esquerda. Mas ele saiu perfeito Um menino lindo J anda na escola e tem boas notas. Agora tenho algum por quem posso viver e respirar. a luz da minha vida. E entende tudo na perfeio: Mam, se eu for visitar a av durante dois dias, vais conseguir respirar? No, no vou! Temo separar me dele por um dia sequer. Caminhvamos na rua E eu senti me cair Foi quando tive o meu primeiro enfarte Ali, na rua Mam, precisas de gua? No, fica s ao meu lado, aqui. No vs a lado nenhum. E agarrei me ao brao dele. No me lembro do que aconteceu a seguir Voltei a mim no hospital Mas agarrei lhe no brao com tanta fora, que os mdicos mal descerraram os meus dedos. O brao dele ficou azul durante muito tempo. Agora, quando samos de casa: Mam, no te agarres ao meu brao. No te vou deixar. Ele tambm doente: passa duas semanas na escola, duas semanas em casa vigiado pelo mdico. assim que vivemos. A temer um pelo outro. E em cada canto Vssia As suas fotos De noite converso longamente com ele s vezes, pede me no sonho: Mostra me o nosso mido. Eu e o Andreika aparecemos E ele traz pela mo a filha. Sempre com a filha. Brinca s com ela

    assim que vivo No mundo real e irreal ao mesmo tempo No sei em qual deles me sinto melhor [Levanta se. Vai at janela.] H muitos de ns aqui. Uma rua inteira, chamam na assim mesmo: Chernbylskaia. Estas pessoas trabalharam toda a vida na central. Muitas delas ainda vo para l trabalhar, a central agora opera num

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    sistema rotativo. J ningum vive naquele lugar, nunca vai viver. Tm doenas graves, diferentes graus de invalidez, mas no largam os empregos, tm medo sequer de pensar nisso. No tm como viver sem o reator, a sua vida o reator. Onde e quem precisar deles noutro lugar, agora? Morrem com frequncia. Num instante. Morrem a andar: algum caminha e cai, adormece e no acorda, leva flores sua enfermeira e o corao para lhe. Est numa paragem de autocarro As pessoas morrem, mas ningum realmente lhes perguntou nada. Ningum nos perguntou pelo que passmos. O que vimos Ningum quer ouvir falar da morte. Do que assustador

    Mas eu falei lhe do amor Do quanto amei

    Liudmila Ignatenko,mulher do falecido bombeiro Vassli Ignatenko

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    e n t r e v i s t a d a a u t o r a c o n s i g o m e s m a s o b r e a h i s t r i a o m i t i d a e P o r q u e c h e r n o b y l l a n a d v i d a s s o b r e a n o s s a v i s o d o m u n d o

    Sou testemunha de Chernobyl Do acontecimento principal do sculo xx, apesar das terrveis guerras e revolues pelas quais este sculo ser recordado. J passaram vinte

    anos da catstrofe, mas pergunto me ainda hoje de que testemunho: do passado ou do futuro? to fcil cair na banalidade A banalidade do horror Mas eu vejo Chernobyl como o incio de uma nova histria, j que representa no s o conhecimento mas tambm o pr conhecimento, porque o homem entrou em disputa com as antigas noes de si prprio e do mundo. Quando falamos sobre o passado ou sobre o futuro, as nossas palavras englobam as nossas noes do tempo, mas Chernobyl antes de mais uma catstrofe do tempo. Os radionucldeos espalhados pela nossa terra existiro durante cinquenta, cem, duzentos mil anos Ou mais Na tica da vida humana, so eternos. O que somos capazes de entender? Estar ao nosso alcance captar e reconhecer um sentido neste horror ainda desconhecido para ns?

    De que fala este livro? Porque o escrevi? Este livro no sobre Chernobyl, mas sobre o mundo de

    Chernobyl. Sobre o acontecimento em si, j se escreveram milhares de pginas e filmaram centenas de milhares de metros de pelcula. Pois eu ocupo me daquilo a que chamaria a histria omitida, os sinais, sem deixarem sinal, da nossa permanncia na terra e no tempo. Escrevo e recolho o quotidiano dos sentimentos, dos pensamentos, das palavras. Tento captar a vida diria da alma. A vida de um dia comum das pessoas comuns. Neste caso tudo incomum: o acontecimento e as pessoas quando se acostumavam a um novo espao.

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    Para elas, Chernobyl no metfora, no smbolo, a sua casa. Quantas vezes a arte ensaiou o apocalipse, experimentou diferentes verses tecnolgicas do fim do mundo, mas agora sabemos com exatido que a vida capaz de ultrapassar qualquer obra de fico cientfica! Um ano depois da catstrofe, algum me perguntou: Todos escrevem. E a senhora, que vive aqui, no escreve. Porqu? Mas eu no sabia como escrever sobre isso, com que ferramentas e como abord lo. Se antes, ao escrever os meus livros, perscrutava o sofrimento dos outros, agora eu e a minha vida tornaram se parte do acontecimento. Fundiram se num nico todo, no h distncia que as separe. O nome do meu pequeno pas perdido na Europa, sobre o qual, at ento, o mundo no ouvia quase nada, soou em todas as lnguas; o pas transformou se no diablico laboratrio de Chernobyl, e ns, Bielorrussos, no povo de Chernobyl. Onde quer que eu aparecesse, toda a gente olhava para mim com curiosidade: Oh, a senhora de l? O que se passa l? Claro que se podia escrever rapidamente um livro, do gnero dos que apareceram um aps o outro o que aconteceu naquela noite na central, quem era culpado, como ocultavam o acidente do mundo e do seu prprio povo, quantas toneladas de areia e beto foram necessrias para construir o sarcfago sobre o reator que respirava morte , mas algo me bloqueava. Algo me retinha pela mo. O qu? A sensao de mistrio. Esta sensao que subitamente se instalou em ns pairava ento sobre tudo: as nossas conversas, aes, medos, e seguia o acontecimento. Acontecimento monstro. Todos ns tivemos a sensao, expressa ou no, de termos tocado o desconhecido. Chernobyl um mistrio que ainda temos de desvendar. Um sinal no decifrado. Talvez um enigma para o sculo xxi. Um desafio para ele. Tornou se claro que, alm dos desafios comunistas, nacionais e religiosos, entre os quais vivemos e sobrevivemos, enfrentare mos outros desafios, mais ferozes e totais, mas ainda ocultos aos nossos olhos. Mas algo j se entreabriu depois de Chernobyl

    A noite de 26 de abril de 1986 Numa s noite deslocmo nos para um outro lugar da Histria. Demos o salto para uma nova

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    realidade, e essa realidade ultrapassou no s o nosso conhecimento, mas tambm a nossa imaginao. Rompeu se a ligao entre os tempos O passado de repente revelou se indefeso, no tinha nada em que se pudesse apoiar, o ubquo (como acreditvamos) arquivo da humanidade no dispunha de chaves para abrir esta porta. Naqueles dias, ouvi mais de uma vez: no consigo encontrar palavras para descrever o que tenho visto e vivido, nunca ningum me contou coisa semelhante, em nenhum livro li sobre isso, nem o vi no cinema. Entre o momento em que o desastre aconteceu e o momento em que se comeou a falar dele, houve uma pausa. Um momento de mudez Ficou na memria de todos Algures no topo tomavam decises, redigiam instrues secretas, mandavam helicpteros levantarem voo, movimentavam nas estradas uma enorme quantidade de veculos; em baixo, estavam espera de comunicaes e sentiam medo, alimentavam se de rumores, mas todos guardavam silncio sobre o essencial: o que realmente aconteceu? As pessoas no encontravam palavras para as novas sensaes e no encontravam sensaes para as novas palavras, ainda no sabiam expressar se, embora estivessem a mergulhar gradualmente na atmosfera de uma nova reflexo: eis como se pode definir hoje o nosso estado de ento. Os factos pura e simplesmente j no chegavam, apetecia espreitar por trs do facto, penetrar no significado do que estava a acontecer. Um efeito de abalo! E eu fui procura deste homem abalado Ele dizia novos textos De vez em quando, as vozes vinham como que atravessando um sonho ou um delrio, de um mundo paralelo. Ao lado de Chernobyl, todos comeavam a filosofar. Tornavam se filsofos. As igrejas encheram se novamente de gente Crentes e, ainda h pouco, ateus Procuravam se respostas que a fsica e a matemtica no podiam dar. O mundo tridimensional abriu se, e eu no encontrava corajosos que pudessem voltar a jurar sobre a bblia do materialismo. O infinito deflagrou. Os filsofos e escritores que se viram fora dos habituais eixos de cultura e tradio calaram se.

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    Naqueles primeiros dias era mais interessante conversar com velhos camponeses do que com cientistas, funcionrios do governo e militares com grandes platinas. Aqueles vivem sem Tolsti e Dostoivski, sem a Internet, mas a sua mente acomodou de alguma forma o novo cenrio do mundo. No ficou destruda. Talvez lidssemos todos melhor com uma situao nuclear militar como a de Hiroxima, que era no fundo para o que nos preparvamos. Mas a catstrofe aconteceu numa instalao nuclear no militar, e ns, as pessoas do seu tempo, acreditvamos, como nos era ensinado, que as centrais nucleares soviticas eram as mais seguras do mundo e que se podia constru las at na Praa Vermelha. O nuclear militar Hiroxima e Nagasqui, enquanto o nuclear civil a lmpada eltrica em cada casa. Ainda ningum imaginava que o nuclear militar e o nuclear civil eram gmeos. Cmplices. Ficmos mais inteligentes, todo o mundo ficou mais inteligente, mas isto aconteceu depois de Chernobyl. Hoje os Bielorrussos, quais caixas negras vivas, gravam informaes para o futuro. Para todos.

    Demorei a escrever este livro Quase vinte anos Encontreime e conversei com antigos trabalhadores da central, cientistas, mdicos, soldados, samosely1 Com aqueles para quem Chernobyl representa o contedo fundamental do seu mundo, envenenando tudo por dentro e ao redor, no apenas a terra e a gua. Eles relatavam, procuravam respostas Refletamos juntos Era frequente apressarem se, temerem no ter tempo suficiente, eu ainda no sabia que o preo do seu testemunho era a vida. Tome nota, repetiam. No entendemos tudo o que vimos, mas que fique registado. Algum vai ler e compreender. Mais tarde Depois de ns No admira que estivessem com pressa, muitas destas pessoas j no esto entre os vivos. Mas deu lhes tempo de enviarem um sinal

    1 Nome dado aos cidados que residem ilegalmente na Zona de Alienao de Chernobyl. Depois de evacuados, preferiram regressar s suas prprias casas. [N. da T.]

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    Tudo o que sabemos sobre os horrores e medos tem mais que ver com a guerra. O gulag estalinista e Auschwitz so as recentes aquisies do mal. A Histria sempre foi a histria de guerras e chefes militares, e a guerra representou, por assim dizer, uma medida do horror. Por isso as pessoas confundem os conceitos de guerra e de catstrofe Em Chernobyl parecem existir todos os sinais de guerra: muitos soldados, evacuao, habitaes abandonadas. O curso da vida ficou perturbado. As informaes sobre Chernobyl nos jornais consistem inteiramente de palavras militares: tomo, exploso, heris E isso dificulta a perceo do facto de que nos encontramos numa nova histria Acaba de ter incio a histria das catstrofes Mas o homem no quer pensar nisso porque nunca se ps a refletir sobre isso, ele esconde se por trs do que lhe familiar. Por trs do passado. At os monumentos aos heris de Chernobyl parecem militares

    A minha primeira viagem Zona Os pomares estavam em flor, a erva nova brilhava alegremente

    ao sol. Os pssaros cantavam. Um mundo to familiar familiar Primeiro pensamento: tudo est no seu lugar e tudo como dantes. A mesma terra, a mesma gua, as mesmas rvores. E a sua forma, a sua cor e o seu cheiro so eternos, ningum capaz de mudar aqui seja o que for. No entanto, j no primeiro dia me foi explicado: no se pode apanhar flores, melhor no se sentar no cho, no beba gua da nascente. Ao entardecer, vi os pastores a tentarem encaminhar o rebanho cansado para o rio, mas as vacas voltavam para trs, mal se abeiravam. De alguma forma apercebiam se do perigo. Disseram me tambm que os gatos deixaram de comer ratos mortos, que jaziam por toda a parte: nos campos, nos logradouros. A morte escondia se em todo o lado, mas era uma morte diferente. Sob novas mscaras. Com um disfarce desconhecido. O homem foi apanhado de surpresa, ainda no estava preparado. No estava preparado enquanto espcie biolgica, uma vez que no funcionava todo o seu instrumento natural definido para ver,

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    ouvir, tocar. Tudo isso se tornou impossvel, os olhos, os ouvidos, os dedos j no serviam, no podiam servir, porque a radiao no visvel e no tem cheiro nem som. incorprea. Durante toda a nossa vida, ou estvamos em guerra ou nos preparvamos para a guerra, sabemos tanto sobre ela e de repente! A imagem do inimigo mudou. Surgiu nos outro inimigo Inimigos A erva recm ceifada matava. O peixe e a caa capturados, uma ma O mundo nossa volta, antes complacente e amigvel, agora incutia medo. As pessoas idosas, antes de serem evacuadas e ainda sem imaginarem que seria para sempre, olhavam para o cu: O sol brilha No h nem fumo nem gs. Ningum dispara. Que raio de guerra essa? Mas preciso tornarmo nos refugiados Um mundo familiar que deixou de ser familiar

    Como perceber onde estamos? O que est a acontecer connosco? Aqui Agora No h a quem perguntar

    Na Zona e em redor da Zona Surpreendia uma quantidade incontvel de veculos militares. Marchavam soldados com espingardas automticas novinhas em folha. Inteiramente apetrechados. Do que me lembro mais, no sei porqu, no so tanto os helicpteros e os veculos blindados, mas aquelas espingardas Armas Um homem com espingarda na Zona L, a quem poderia ele atirar e de quem proteger? Da fsica Das partculas invisveis Fuzilar o solo ou a rvore contaminados? Na prpria central trabalhava o KGB. Procurava espies e sabotadores, circulavam rumores de que o acidente era uma ao planeada dos servios secretos ocidentais para minarem o campo socialista. Havia que estar vigilante.

    Este cenrio de guerra Esta cultura de guerra desabou aos meus olhos. Acabvamos de entrar num mundo opaco onde o mal no dava nenhuma explicao, no se revelava e no conhecia leis.

    Eu vi o homem pr Chernobyl transformar se no homem de Chernobyl.

    Mais de uma vez E isso algo para se pensar Ouvi a opinio de que o comportamento dos bombeiros que na primeira

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    noite apagavam o incndio na central nuclear e o dos liquidadores lembrava suicdio. Um suicdio coletivo. Os liquidadores trabalhavam muitas vezes sem equipamento especial de proteo, iam inquestionavelmente para os stios onde at os robs morriam, ocultava se lhes a verdade sobre as altas doses recebidas, e eles conformavam se com isso, e depois ainda ficavam felizes por receber do governo diplomas e medalhas que lhes eram entregues antes da morte E no caso de muitos deles, no houve tempo sequer para lhes entregar Ento, quem so eles, heris ou suicidas? Vtimas das ideias e da educao soviticas? De alguma forma, com o passar do tempo, esquece se que salvaram o seu pas. Salvaram a Europa. Imaginem o cenrio s por um segundo se tivessem explodido os outros trs reatores

    Eles so heris. Heris da nova Histria. So comparados com os heris das batalhas de Estalinegrado e de Waterloo, mas salvaram mais do que a sua terra natal, salvaram a prpria Vida. Tempo da vida. Tempo vivo. Com Chernobyl o homem brandiu contra tudo, todo o mundo divino, onde alm da humanidade vivem milhares de outros seres. Animais e plantas. Quando ia ter com liquidadores E ouvia os relatos de como eles (os primeiros e pela primeira vez!) levavam a cabo um novo trabalho humano e desumano: sepultavam solo no solo, isto , enterravam camadas contaminadas em bunkers especiais de beto, juntamente com toda a sua populao besouros, aranhas, larvas. Com os mais variados insetos, cujos nomes no sabiam sequer. No se lembravam. Estas pessoas j possuam uma conceo de morte completamente diferente, que abrangia tudo: da ave borboleta. O seu mundo j era um mundo diferente com um novo direito vida, uma nova responsabilidade e um novo sentimento de culpa. O tema do tempo era presena constante nos seus relatos, diziam pela primeira vez, nunca, para sempre. Relembravam as suas idas s aldeias despovoadas, onde s vezes encontravam velhos solitrios que no quiseram partir com todos ou regressaram mais tarde das terras alheias.

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    Aqueles passavam as noites luz de uma lasca de madeira, segavam com gadanha, ceifavam com foice, abatiam rvores com machado, dirigiam oraes a animais e a espritos. A Deus. Tudo como h duzentos anos, ao mesmo tempo que algures em cima voavam naves espaciais. O tempo mordeu a prpria cauda, o princpio e o fim uniram se. Para quem esteve l, Chernobyl no terminou em Chernobyl. Estas pessoas no regressaram da guerra Como que de outro planeta Percebi que convertiam, com toda a conscincia, os seus sofrimentos num novo conhecimento, ofereciam no a ns: vejam, tero de fazer alguma coisa com esse conhecimento, utiliz lo de algum modo.

    Monumento aos heris de Chernobyl o sarcfago, obra de mos humanas, em que eles colocaram o fogo nuclear. Pirmide do sculo xx.

    Na terra de Chernobyl sentimos pena do Homem. Ainda mais pena sentimos do animal No um lapso de linguagem Passo a explicar. O que restava na zona morta depois da partida das pessoas? Antigos cemitrios e biodepsitos, assim se chamam os cemitrios de animais. O homem salvava se apenas a si mesmo, traindo todos os restantes; depois da sua partida, entravam na aldeia grupos de soldados ou caadores e matavam os animais. Enquanto os ces acorriam ao ouvir a voz humana e os gatos E os cavalos no conseguiam compreender nada Mas eles nem animais, nem aves no tm culpa de nada, e a morte deles era silenciosa, o que era ainda mais horroroso. Outrora os ndios no Mxico e mesmo os habitantes da Rus pr crist pediam perdo aos animais e pssaros que deviam matar para se alimentar. No Antigo Egito, o animal tinha o direito de se queixar contra a pessoa. Num dos papiros que se preservou numa pirmide, est escrito: No se encontrou nenhuma queixa do touro contra N. Antes de partir para o reino dos mortos, o egpcio lia uma orao que continha estas palavras: No ofendi nenhuma criatura. No privei nenhum animal nem de cereais nem de erva.

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    O que nos deu a experincia de Chernobyl? Ser que nos fez ver este mundo silencioso e misterioso dos outros?

    Uma vez vi soldados entrarem numa aldeia abandonada pelas pessoas e comearem a atirar

    Gritos impotentes de animais Eles gritavam em todas as suas diferentes lnguas J se escreveu sobre isso no Novo Testamento. Jesus Cristo entrou no Templo de Jerusalm e viu animais preparados para o sacrifcio ritual: degolados, a esvarem se em sangue. Jesus gritou: Vs tendes transformado a casa de orao em covil de salteadores. Bem podia ter acrescentado: em matadouro Para mim, centenas de biodepsitos deixados na Zona significam o mesmo que santurios antigos. Mas de qual dos deuses? Do Deus da cincia e do conhecimento, ou do Deus do Fogo? Neste sentido, Chernobyl ultrapassou Auschwitz e Kolym2. Ultrapassou o Holocausto. Chernobyl sugere finitude. Vai de encontro ao nada.

    Observo com outros olhos o mundo que me rodeia Uma formi guinha rasteja no cho, e sinto a agora mais prxima. Um pssaro voa no cu, e tambm o sinto mais prximo. A distncia entre ns vai se reduzindo. O abismo de antes deixou de existir. Tudo vida. Tambm guardei na memria Um velho apicultor contou me (mais tarde ouvi a mesma coisa de outros): Sa de manh para o pomar, senti que faltava qualquer coisa, um som familiar. Nem uma abelha No se ouvia uma nica abelha! O qu? O que se passa? No segundo dia elas to pouco saram. E no terceiro Depois fomos informados de que ocorrera um acidente na central nuclear que se situava bem perto. Durante muito tempo no soubemos de nada. As abelhas souberam e ns no. Agora, caso haja alguma coisa, vou observ las a elas. sua vida. Outro exemplo Meti conversa com uns pescadores no rio, eles recordaram: Estvamos espera de que explicassem na televiso Que dissessem como nos podamos

    2 Regio no extremo nordeste da Rssia, onde na era estalinista existiu uma extensa rede de campos de trabalho forado. [N. da T.]

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    salvar. E s minhocas. Vulgares minhocas. Elas enterraram se a uma grande profundidade, talvez a meio metro ou um metro. E ns sem percebermos nada. Fartmo nos de cavar a terra. No arranjmos uma nica minhoca para isco

    Quem de ns o maior, o mais forte e o mais eterno na Terra, ns ou eles? Ns que deveramos aprender com eles como sobreviver. E como viver.

    Juntaram se duas catstrofes: a social a olhos vistos colapsou a Unio Sovitica, afundou se o gigantesco continente socialista e a csmica Chernobyl. Duas exploses globais. A primeira mais prxima, mais compreensvel. As pessoas esto preocupadas com os problemas do dia a dia: com que dinheiro comprar, para onde ir? Em que acreditar? Que novas bandeiras adotar? Ou comear a aprender a viver para si mesmo, viver a prpria vida? No conhecemos isto, no sabemos porque nunca temos vivido dessa forma. Todos e cada um esto a passar por isso. Quanto a Chernobyl, gostariam de esquec lo porque a conscincia capitulou perante ele. Catstrofe da conscincia. O mundo das nossas crenas e valores explodiu. Se tivssemos vencido Chernobyl ou o entendssemos por completo, pensaramos e escreveramos mais sobre ele. Na verdade, vivemos num mundo, e a conscincia existe noutro. A realidade est a escapar, no cabe no homem.

    Sim No se consegue alcanar a realidade Um exemplo Continuamos a usar os mesmos conceitos:

    longe perto, nossos estranhos Mas o que significa longe ou perto depois de Chernobyl, quando j no quarto dia as nuvens de Chernobyl passavam sobre frica e a China? A terra provou ser to pequena, no a terra do tempo de Colombo. Interminvel. Passamos a ter outra sensao do espao. Vivemos no espao falido. Mais Nos ltimos cem anos, o homem comeou a viver mais tempo, mas ainda assim esses tempos so insignificantes e minsculos comparados com a vida dos radionucldeos que se instalaram na nossa terra. Muitos deles vo perdurar milhares

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    de anos. No podemos espreitar sequer aquela lonjura! Com eles por perto, experimentamos uma sensao diferente do tempo. E tudo isto Chernobyl. As suas marcas. O mesmo se passa com o nosso relacionamento com o passado, fico cientfica, conhecimentos O passado revelou se impotente, dos conhecimentos sobrou apenas o conhecimento da nossa ignorncia. Os sentimentos sofrem uma modificao Agora, em vez das habituais palavras de conforto, frequente o mdico dizer esposa sobre o seu marido moribundo: No se pode aproximar! No o pode beijar! No lhe pode fazer carcias! J no a pessoa amada mas alvo de descontaminao. Perante isso Shakespeare recua. E o grande Dante. Dvida: aproximo me ou no me aproximo? Beijo ou no beijo? Uma das minhas heronas (grvida naquela altura) aproximou se, beijou e no deixou o marido at ao momento da sua morte. Pagou por isso com a sua sade e com a vida da beb de ambos. Mas como era possvel escolher entre o amor e a morte? Entre o passado e o presente desconhecido? E quem se atrever a condenar aquelas esposas e mes que no ficaram ao lado dos maridos e dos filhos moribundos? Ao lado dos objetos radioativos No seu mundo o amor mudou. E a morte.

    Tudo mudou, exceto ns. Para um acontecimento passar Histria, seriam precisos

    pelo menos cinquenta anos. Neste caso, temos de lidar com as marcas recentes

    A Zona Um mundo parte Foi primeiro inventada pelos escritores de fico cientfica, mas a literatura retrocedeu perante a realidade. J no podemos, como os heris de Tchkhov, acreditar: daqui a cem anos o homem ser belo! A vida ser bela!! Perde mos este futuro. Passados cem anos, houve o gulag estalinista, Auschwitz Chernobyl E o 11 de Setembro em Nova Iorque No d para perceber como que tudo isto se disps e coube na vida de uma gerao, na sua dimenso. Por exemplo, na vida do meu pai, que tem agora oitenta e trs anos? O homem sobreviveu!?

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    O que lembramos mais de Chernobyl a vida depois de tudo: as coisas sem o homem, as paisagens sem o homem. O caminho para o nada, cabos para o nada. Chega se a duvidar, o que ser: o passado ou o futuro?

    s vezes parecia me estar a tomar nota do futuro