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Este livro foi digitalizado para ser lido por Deficientes Visuais Título: Cartas do inferno Autor: Ramón Sampedro Género: Testemunho Digitalização e correcção: Sandra Amaral e Pedro Lima Estado da obra: Corrigida Numeração de página: Rodapé Data da digitalização: Janeiro de 2008 Badana da capa: Ramón Sampedro nasceu a 15 de Janeiro de 1943 em Xuno, uma pequena aldeia da província de La Coruna. Aos 22 anos embarcou num navio mercante norueguês no qual trabalhou como mecânico. Com ele percorreu quarenta e nove portos de todo o mundo. Esta experiência constituiu parte das suas melhores recordações. A 23 de Agosto de 1968 caiu à água do alto de um rochedo. A maré tinha baixado. O choque da cabeça contra a areia provocou a fractura da sétima vértebra cervical. Durante trinta anos viveu a sua tetraplegia sonhando com a liberdade através da morte. O seu pedido jurídico chegou ao Tribunal dos Direitos Humanos de Estrasburgo sem êxito. Nos meios de comunicação reivindicou o direito a uma morte digna e em Janeiro de 1998, em segredo e provavelmente ajudado por mão amiga, conseguiu o seu intento. Contracapa: A 13 de Janeiro de 1998, Ramón Sampedro conseguiu aquilo por que lutava legalmente há trinta anos: a sua própria morte. Desde que em 1968 ficou prostrado numa cama por culpa de um acidente fatal, definia-se a si próprio como «uma cabeça viva num corpo morto» e o seu maior anseio era libertar-se desse inferno do qual não podia escapar sem a ajuda de outrem. CARTAS DO INFERNO é o comovedor testemunho de um homem que procurou a liberdade através da morte. O caso abriu um grande debate sobre a eutanásia, que se foi mitigando após a morte de Sampedro, provavelmente assistida por alguém que acreditava no seu direito a um final digno. Comovido com este emotivo livro, Alejandro Amenábar quis prestar homenagem a Sampedro com o filme Mar Adentro, protagonizado magistralmente por Javier Barden. Um filme que cativou milhões de pessoas tal como esta obra. 1

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Este livro foi digitalizado para ser lido por Deficientes Visuais

Título: Cartas do inferno

Autor: Ramón Sampedro

Género: Testemunho

Digitalização e correcção: Sandra Amaral e Pedro Lima

Estado da obra: Corrigida

Numeração de página: Rodapé

Data da digitalização: Janeiro de 2008

Badana da capa:Ramón Sampedro nasceu a 15 de Janeiro de 1943 em Xuno, uma pequena aldeia da província de La Coruna. Aos 22 anos embarcou num navio mercante norueguês no qual trabalhou como mecânico. Com ele percorreu quarenta e nove portos de todo o mundo. Esta experiência constituiu parte das suas melhores recordações. A 23 de Agosto de 1968 caiu à água do alto de um rochedo. A maré tinha baixado. O choque da cabeça contra a areia provocou a fractura da sétima vértebra cervical. Durante trinta anos viveu a sua tetraplegia sonhando com a liberdade através da morte. O seu pedido jurídico chegou ao Tribunal dos Direitos Humanos de Estrasburgo sem êxito. Nos meios de comunicação reivindicou o direito a uma morte digna e em Janeiro de 1998, em segredo e provavelmente ajudado por mão amiga, conseguiu o seu intento.

Contracapa:A 13 de Janeiro de 1998, Ramón Sampedro conseguiu aquilo por que lutava legalmente há trinta anos: a sua própria morte. Desde que em 1968 ficou prostrado numa cama por culpa de um acidente fatal, definia-se a si próprio como «uma cabeça viva num corpo morto» e o seu maior anseio era libertar-se desse inferno do qual não podia escapar sem a ajuda de outrem. CARTAS DO INFERNO é o comovedor testemunho de um homem que procurou a liberdade através da morte. O caso abriu um grande debate sobre a eutanásia, que se foi mitigando após a morte de Sampedro, provavelmente assistida por alguém que acreditava no seu direito a um final digno. Comovido com este emotivo livro, Alejandro Amenábar quis prestar homenagem a Sampedro com o filme Mar Adentro, protagonizado magistralmente por Javier Barden. Um filme que cativou milhões de pessoas tal como esta obra.As Publicações Dom Quixote publicarão em breve QUERIDO RAMÓN, o livro onde Ramona Maneiro relata, num pungente testemunho de amor, como ajudou o seu companheiro a acabar com trinta anos de sofrimento.

CARTAS DO INFERNO

Ramón Sampedro

Prólogo de Alejandro Amenábar

Tradução deMagda Bigotte de Figueiredo

Publicações Dom QuixoteEdifício Areis

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Rua Ivone Silva, nº 6 – 2º1050-124 Lisboa • PortugalReservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor© Herderos de Ramón Sampedro Cameán, 1996-2004 © Do prólogo Alejandro Amenábar Cantos, 2004 © Sociedade General de Cine, SA; Himenopato, SL-2004 © Editorial Planeta, S.A. - 1996-2004Av. Diagonal, 662-664, 08034 Barcelona © 2005, Publicações Dom Quixote

Título original: Cartas desde el infiernoRevisão: Frederico Mira George1ª edição: Maio de 2005Paginação: Segundo CapítuloDepósito legal nº 226 706/05Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & FilhosISBN: 972-20-2873-1

ÍndicePrólogo de Alejandro Amenábar 13Prólogo a «Cartas do inferno» 19PRIMEIRA PARTEE como falar de amor se estou morto? 31Carta a Martha 33Sonho de um pirata 38Carta a Aurora 40Equilíbrio 46Iluminação 47A pombinha engaiolada 48Carta a Vilma 50Amado mar 55A sereia e o náufrago 56O náufrago 58Os sonhos 60Carta a Belén 62A alternativa à morte 67Amiga 68Como vês 69Incrédula 70Carta a Maria 72Rumo à vida 78Só por isso 79A gaivota 80Sim, quero 82Prenda de casamento 85Para a amiga 87Sereiazinha 89A vida é sonho 91A metamorfose 93Carta a Laura 95Porquê morrer? 103Carta a Laura 106Do mal (e do cristianismo) 116Credo 118Aquele que procura (Samaritana) 120

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Conto para uma adolescente 122Carta a Wilma 125A prima Vera 130Prefiro a outra 132Carta a Aurora 134Carta a Joni 138Pelo caminho errado! 146Carta a Line Torres e Kees Vandenberg 148As folhas caídas 153SEGUNDA PARTEPrenda de Natal 159Patético brinde entre camaradas(ou a visão do inferno) 161Carta a Jesus Ceberio (director do El País) 163Não quero 167Suicídio e transcendência 169Carta a José António Sánchez 171Carta a José António Sánchez Garcia 174Carta primeira 178Carta segunda 179As alternativas da reabilitação 180Eríneas 182Carta terceira. A quem vive de histórias 183Carta quarta 184Carta quinta. A minha pátria 185Eutanásia colectiva e eutanásia pessoal 186A felicidade de um morto 188A cultura da morte e os falsos cristãos 190O direito de nascer e o direito de morrer 194A meu filho 196Regressemos 197N.I.H.I.L.I.S 199O conceito de igualdade ou autoridade moral 200A dignidade e a morte 202Razão e evolução 204A morte e a transcendência 205Onde vais? 207Os preconceitos 209Crença e razão 211Existo inutilmente ou o valor da vida 214Eutanásia e razão, a metamorfose que nuncadeixam culminar 215As seitas 216Eutanásia. Temor e transcendência 218Querer-me bem 219O mal são desejos falsificados 220Assim é a lei 226Pobres povos 228Chegam os Reis Magos 229A espera 230A renúncia 231TERCEIRA PARTEAos cordeiros 235Carta aberta ao chefe de Estado espanhol 237

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A verdadeira vida 248A falta de sentido... a vida, o bem acimada vontade pessoal 250As nefastas consequências da cultura do medo 253A teocracia infernal 255Querido companheiro 258O sentido da vida 260Diálogo262Carta a um padreca vaidoso 263Carta a um pregador (e pastor) 266Néscio 269Monólogo 271Um amigo 274Fundamentos de direito e razão pessoal 275Carta aos senhores juízes 277Os fiéis lacaios 283Direitos Humanos 285Em nome da ciência, mentem 287És uma pessoa muito importante para os outros .... 289A ciência, a técnica e a intercomunicação 291A ética picaresca e o agravo comparativo 293Neguem-se a parir 295Da liberdade 297O regresso 307Faz hoje vinte e sete anos 309Carta de despedida de Ramón Sampedro 313

«Eutanásia: do Grego Euthanasía — morte doce e fácil»José Pedro Machado {Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa)Em vários fragmentos do livro, o autor utiliza a expressão «boa morte», referindo-se a eutanásia.(N.E.)

PRÓLOGOEste livro não é, em sentido restrito, a base literária ou dramática do que veio a ser o filme Mar Adentro. Na realidade, é muito mais do que isso. É o complemento intelectual e poético, o pilar filosófico que deu forma e sentido a todo o nosso trabalho posterior. Após mais de vinte anos de reflexão, de leituras, conversas e escritos, Ramón decidiu publicar estas Cartas com um objectivo muito claro: fazer valer a sua individualidade e a sua liberdade.Mas, ao mesmo tempo, Ramón consegue situar-nos diante do abismo da morte, colocar-nos junto dessa linha divisória que separa este mundo do «outro», talvez, do nada. E diz--nos: «Deixai-me atravessar a linha, deixai-me saltar.» Eu nunca estive demasiado perto do abismo - aos doze anos, talvez, quando caí de uma pequena cascata e, como Ramón, estive em riscos de partir o pescoço — mas acredito que, à medida que caminhamos pelo mundo, temos de enfrentar mais tarde ou mais cedo essa coisa que, inconscientemente, acabamos por afastar dos nossos pensamentos. Ramón ajuda--nos, mais, exorta-nos a reflectir sobre o assunto, sem medo,15porque para ele a morte não é mais do que uma parte do processo natural da vida. Deste ponto de vista, a sua prosa é contundente. Outras vezes, quando se detém a descrever a própria situação, esta torna-se amarga, dolorosa. Mas há sempre em tudo um fundo escrupulosamente racional, a razão da sua consciência, uma preocupação em debater e argumentar sem deixar pontas soltas. E para aqueles que ainda pensam que o seu discurso é injustificável, Ramón exige

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em última instância a não intromissão, farto de sofrer o preconceito, a compaixão, o paternalismo ou directamente a desqualificação.Juntamente com esta racionalidade, os poemas de Ramón provam a sua enorme sensibilidade, submergindo-nos num mundo de imagens - o mar, a janela -, de sonhos, sentimentos... Nestas páginas encontra-se em estado puro o universo que inspirou, para além do título, muitas das sequências de Mar Adentro. Se bem que este aspecto, o metafórico e o lírico, tenha sido fundamental para realizar o filme, o certo é que não conseguíamos decidir-nos a não dar a conhecer o Ramón íntimo, o que recordam os seus amigos e familiares como eternamente sorridente, brincalhão constante, sedutor nato... Em definitivo, e por muito que soe a contradição, uma pessoa profundamente vital. Não tive o privilégio de conhecê-lo mas, de certa forma, sinto que qualquer coisa dele faz já parte de mim.Agradeço muito sinceramente à família Sampedro por nos abrir as suas portas e manter vivo o legado de Ramón. Durante muitos anos, eles foram um exemplo de entrega e amor desinteressado.Pela minha parte, agrada-me pensar que Ramón lhes ofereceu este livro.Alejandro Amenábar16DEDICATÓRIACom todo o meu afecto e gratidão, dedico este livro a Manuela, minha cunhada. Ela é verdadeiramente a mestra exemplar em humanidades. No seu coração não há lugar para a intolerância nem para a mesquinhês, porque ela é a generosidade e o respeito.A memória de minha mãe, que não teve a oportunidade de fazer de deusa.A meu pai, que juntamente com meu irmão e sobrinhos tornaram um pouco mais suportáveis os rigores do inferno.A memória de James Haig, tetraplégico britânico que, depois de muitas e humilhantes súplicas, foi obrigado a quei-mar-se vivo porque a justiça lhe negou o direito e a liberdade de morrer de um modo mais humano.A minha querida amiga e escritora Laura Palmes, sem cujos persuasivos conselhos e ajuda este livro nunca teria tomado forma.Ramón Sampedro17PRÓLOGO A CARTAS DO INFERNONo dia 23 de Agosto de 1968 fracturei a coluna ao despenhar-me numa praia batendo com a cabeça na areia do fundo do mar. Desde esse dia sou uma cabeça viva e um corpo morto. Poder-se-ia dizer que sou o espírito falante de um morto.Se fosse um animal, teria recebido um tratamento em concordância com os sentimentos humanos mais nobres. Ter-me-iam matado porque lhes teria parecido desumano deixar-me neste estado para o resto da vida. Às vezes é falta de sorte ser-se um macaco degenerado!Dizem os técnicos da medicina, e confirmam-no os políticos, juízes, juristas e demais castas associadas para formar o desumano estado do direito e do bem-estar - seria mais coerente dizer do revés e do mal-estar -, que um tetraplégico é um doente crónico.Se a linguagem fosse utilizada com precisão, seria menos enganador afirmar que um tetraplégico é um morto crónico.19Não gosto de desempenhar o papel de morto crónico nesta comédia do viver para sobreviver em função da hipocrisia da linguagem técnica!Considero que um tetraplégico é um morto crónico que tem a sua residência no Inferno. Aí - com o fim de evitar a loucura - há quem se entretenha a pintar, a rezar, a ler, a respirar ou a fazer qualquer coisa pelos outros. Há gostos para tudo! Eu dediquei-me a escrever cartas. Cartas do Inferno.Que ninguém procure uma linha metódica nestes escritos. Todos eles são como que variações do mesmo tema. Uma só ideia. Uma só paixão.

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Interessam-me, sobretudo, a liberdade do ser humano e tudo quanto gire em torno da vida, do amor e da morte. Assim como os três sentidos que psicologicamente determinam a nossa existência, crenças, pensamento e conduta: o prazer, a dor e o medo.No dia em que a ciência deu como impossível curar-me da paralisia, pensei, com o desespero do animal apanhado na armadilha infernal de um cruel e desapiedado caçador, na bondade da morte. A caridade bem entendida começa por nós próprios! Mas este princípio moral parece só ser entendido pelos políticos, juízes, religiosos, médicos, quando se trata de aumentar os seus salários a fim de cobrar o bem que fazem pela humanidade.A princípio, uma pessoa só pensa em libertar-se. Só existem duas alternativas: converteres-te num ser absurdo, ser o que não desejas ser, um habitante do Inferno; ou ser coerente com a utopia da vida. Libertar-me da dor, procurar o prazer através da morte. Optei pela libertação, não como algo de negativo mas sim de positivo: a procura de algo melhor.A primeira coisa que expressaram os meus pais quando lhes disse que desejava a morte foi que eles me preferiam20assim a perder-me para sempre. Não há forma de escapar, as pessoas não querem tocar no assunto. A lei proibe-o. E o «eu não sou capaz de prestar-te a ajuda que me pedes!» prevalece como a vontade de uma lei invisível sobre a vontade pessoal.Essa foi a primeira vez que deparei com o muro impenetrável do paternalismo bem intencionado. Não quero dizer que os meus pais, pessoas de família e amigos não sintam o que afirmam, o que digo é que não têm o direito de que prevaleça o desejo e a vontade deles sobre os meus.Nos princípios de 1990, consegui a colaboração para uma eutanásia discreta. Mas, perante a evidência, surge o autoritarismo. Nessa altura, já não é: «eu não posso!», «não me peças isso a mim!», mas sim: «eu não quero!», «eu proíbo!»Recorri então aos juízes e aconteceu outro tanto: «não sou competente», ou o erro de forma. Por fim, o insulto dos dogmáticos fundamentalistas da crença cega no sofrimento purificador: «Cobarde, se queres morrer, morre, mas deixa-nos em paz e não ofendas Deus!»Parece que nunca lhes ocorreu pensar que eles são o fracasso da razão, e não eu.Em Abril de 1993, tomei a decisão de reclamar a eutanásia como um direito pessoal. Nunca podia ter imaginado tamanho terror e superstições ocultas! Parecia que se tinham conjurado os néscios todos da terra para me fazer desistir de seguir por esse caminho. Segundo eles, sigo um caminho errado.Não me guia outro interesse senão o de mostrar que a intolerância do Estado e a religião são como uma ideia fixa. São eles os inimigos naturais da vida e os responsáveis pela destruição do homem como indivíduo.Disse um dos seus colaboradores: «é este o nosso fracasso, não sabemos dar-lhe motivos para viver.» Uns sentem-se21ofendidos porque rejeito a oferta da protecção do seu deus. Outros, porque deprecio as suas paliativas e inúteis ciências.Após ter ouvido coisas tão absurdas como as que se seguem, só me resta escrever Cartas do Inferno.«Queres curar-te?», pergunta um.«Claro que sim», respondo.«Pois reza a Deus, que se o fizeres a sério Ele te curará.»Mas, se Deus já sabe que o desejo de verdade, por que tenho de pedir-lho?«Tenho por ti um grande apreço», disse uma pessoa. «Acreditas?»«Sim, mas que tem a ver o facto de teres por mim um grande apreço, igual ao que eu tenho por ti, se isso não muda a realidade?»«Renuncias a viver. És negativo, destrutivo», afirma o sabichão.Esta mentalidade entre o dominante e o subserviente é tão ridícula que só a um ser absolutamente degenerado pode parecer natural este comportamento humilhante.«Se não fossem as suas taras, você não seria o mesmo!»

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«Serias o mesmo, se não fosses tetraplégico?»«Terias reflectido sobre as mesmas coisas?»Claro que não, o indivíduo é sempre ele e a sua circunstância. Mas se necessitas da visão, ou da vivência, do horror para te elevares e cresceres espiritualmente, para te humanizares e seres ética e moralmente superior, olha-te a ti próprio. Podes estar incapacitado de amar, mas não justifiques com isso o horror aos outros. Para entender a dor não é preciso vivê-la!Só a uma carraça ocorreria dizer que o dever do cão é sofrer!22O auto-engano do ser humano diante da morte levou-o a uma tal falta de sentido que a nega racionalmente. Não lhe é ensinado o sentido da morte. E a estratégia dominante dos mestres converteu-se numa forma de cultura parasitária.Está bem que não se queira ouvir falar da morte, mas fazer crer que a pessoa, ou pessoas, que pedem o direito a decidir o final das suas vidas, na realidade estão a pedir que lhes demonstrem carinho, só manifesta que são os mestres do engano que se estão a enganar a si mesmos. O que eticamente caberia fazer seria conceder a cada pessoa a liberdade que reclama. Ou seja: pedi e ser-vos-á concedido. Se levarem a cabo o que dizem desejar, não haverá auto-engano, e se não o fizerem, então sim. Esta seria a única forma de não manipular a verdade. De não criar infernos nos quais a única liberdade que nos resta é escrever cartas, que podem ser dramáticas e aterradoras ou optimistas e de auto-engano. E assim o condenado distrai-se pensando que no Inferno, apesar de tudo, não se está assim tão mal.Ramón Sampedro Cameán23PRIMEIRA PARTEO mar estava bravo. Havia rebentação na costa. Estava de pé à beira do poço natural que formavam as rochas da praia. Ensimesmado, pensava no encontro que tinha à noite. A rapariga ia apresentar-me aos pais. Creio que estava com medo da ideia do compromisso de casamento. Sem saber como, dei por mim a cair em direcção à água. Não me tinha atirado voluntariamente. Quando ia no ar percebi que o refluxo retirara quase toda a água. Não havia remédio. Na vida jamais se pode voltar atrás. Choquei com o mar. Bati com as duas mãos na areia do fundo, mas não bastou a reacção para travar a inércia. Vi a areia. Não era possível evitar o choque da cabeça. Com o ângulo que levava ao entrar na água, lógico era bater com a cara, mas um reflexo instintivo fez-me inclinar a cabeça para diante. A cabeça bateu na areia. O corpo quis dar uma cambalhota, mas a pressão da água impediu-o. Soou um estalido, como o quebrar de ramos a serem pisados. Uma espécie de cãibra, pequena e desagradável, percorreu-me a espinha e o corpo todo. Depois, nada. Interrompera-se para27sempre a comunicação entre o meu cérebro e o corpo. Acabava de fracturar a espinha cervical pela sétima vértebra.Após o choque, permaneci no fundo como um boneco de trapos. Os braços e as pernas pendentes. O corpo começou a subir para a superfície. Devagar, muito devagar. Tentava movê-los, mas continuavam inertes, como se nunca me tivessem pertencido.O meu corpo alcançou a superfície. Cessou todo o movimento. Só me restava o pensamento, que se movia por um espaço infinito e em branco. Os meus olhos olhavam para a areia. Passou-me pela cabeça a imagem do céu azul, claro e límpido.Continuava a reter a respiração desde o instante em que caíra à água. Comecei a pensar que ia afogar-me. Os segundos iam passando. Era como se o tempo deslizasse com celeridade e o pensamento quisesse levar gravado na memória, antes de morrer, a história do tempo vivido.Dizem, por vezes, que quando as pessoas sentem que vão morrer lhes passa pela cabeça como que um filme a grande velocidade de tudo o que lhes aconteceu, de tudo quanto as marcou para sempre. Esta foi, desde então, a frase que definiu o que estava por chegar: para sempre.Eu era marinheiro da marinha mercante e as primeiras imagens que me vieram à memória foram as dos portos que havia percorrido. E a figura que se destacava de todas elas era a da mulher que eu penetrara, que me possuirá e que nunca mais, nunca mais, faria parte da minha história, ou talvez sim, mas tomando o corpo etéreo de que são feitas as recordações.

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Entre bater no fundo e vir à superfície passaram trinta segundos. Um minuto e meio foi o tempo que decorreu, já28à superfície, para expulsar lentamente, muito lentamente, o ar acumulado nos pulmões. Naquele momento — eu não sabia, mas dizem que a pessoa que se afoga, depois de expulsar o ar todo dos pulmões, tem uma morte instantânea, muito doce. Se tivesse intuído a vida que me esperava, teria inspirado a água do mar tantas vezes acariciada.E de repente apareceram os portos da Holanda, Mara-caíbo, Nova Iorque, e fundiram-se, dolorosamente, as mulheres que amara, e surgiram as recordações da minha infância. Aquelas que haviam contribuído para me fazer homem. Homem? - pergunto-me agora, mas agora passaram vinte e sete anos. Apareceram os verdes da minha terra, as vaquinhas mansas, o rosto tão doce de minha mãe, a autoridade paterna e a ternura de minha tia e de minha avó. Recordei a paciência dela, as suas carícias, e também apareceu o rosto daquele professor que na escola nos batia.Não há palavras para definir todas as imagens que me percorreram a mente naquele minuto e meio. Foi como se a faculdade de recordar saísse do corpo, sobrevoasse todos os lugares amados: o prado, o rio, a miúda com quem brincava no meio do milharal, a curva do rio onde tomava banho nu. Talvez fosse o desejo do homem de voltar a encontrar-se, de poder sentir e tocar a natureza. Não sei a que será devida tão estranha sensação, talvez ao desejo da matéria de voltar sempre ao princípio.De repente notei que alguém me segurava pelos cabelos e me levantava a cabeça para me perguntar:— Que tens?Chamava-se Manuel.- Não sei, tira-me daqui - respondi.Quando me tiraram da água, a primeira sensação foi a de que a minha cabeça pesava imenso. Não entendia nada.29Deitaram-me de barriga para cima e contemplava o céu azul que antes me passara pelas recordações. Nita de Vilas beliscava-me as pernas e as mãos, e perguntava-me:- Não sentes nada?Foi esta a primeira vez que comecei a ver os seres humanos a partir de baixo. Enfiaram-me num carro e levaram-me para o circuito médico e continuei a ver, como se fossem fantasmas, as caras das pessoas. De baixo. Da maca. Da cama. Foi aí que comecei a contemplar o mundo a partir do inferno. Parecia que via sempre as pessoas lá em cima... Uma pessoa quer levantar-se, pôr-se à altura dos outros, no mesmo lugar que abandonou umas horas antes. E toma consciência de que isso nunca mais poderá ser.Após três meses a deambular pelos meandros da ciência, em busca do equilíbrio perdido, o tempo passa e tomo consciência de que não posso encontrá-lo. Nunca mais. Não posso morrer, nem voltar atrás.30E COMO FALAR DE AMOR SE ESTOU MORTO?E como falar de amor se estou morto? Se nós mortos não temos paixões, nem de humanos afectos sentimentos somente dos vivos somos o espanto.Tudo é incoerência e contradiçãopara um morto entre os mortais.Não o excitam a lua, nem a flor, nem a fêmea,porque não tem carne para se reproduzir.Há coisa mais absurda do que escutar um cadáver falar apaixonadamente como um humano, se não pode sentir nem o calor nem o frio nem o prazer nem a dor nem o pranto?é horrível ser um morto entre os humanos.Ser o boneco com quem representam uma paródia absurdaos psicopatas esquizofrénicos vivosque gozam com a visão de um cadáver putrefacto.

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31Besuntado de excrementos, baba e loucuraa quem com nojo e raiva, impertinentes, limpam.E pede para libertar-se, o cadáver, de entre os vivos loucos,mas estes não entendem os silenciosos gritos dos mortos.E com patético afã continuam a animá-lo: conta, morto, a história do que estás a passar; pareces ser um de nós, os vivos, ainda aparentas algo de humano.Em vão lhes digo que não, que estou morto, que já não posso falar como eles porque me é absurdo falar como os humanos. E não me deixam ser nem morto nem vivo estes loucos e alucinados e desconcertados.32CARTA A MARTHAQuerida Martha:Li a carta que enviaste a DMD - Espanha — na qual exprimes a tua vontade de libertar a vida do mal, do sofrimento da dor, como tu dizes, matando o cancro no dia 24 de Setembro.Comoveu-me o teu sereno e exemplar testemunho de como a razão se deve impor ao absurdo.Creio que um dos graves erros do cristianismo é não saber, ou não querer, dar outro sentido à morte, a essa morte à qual nos referimos todos os que falamos de eutanásia, considerada como um bem, a que tem como único fim libertar a vida da dor sem sentido racional.Considero-me agnóstico. Mas entendo que se a utopia de todo o ser vivo é conseguir libertar-se da dor, entre eles o ser humano, esta tem de ser a utopia ou a vontade do hipotético ser criador.O mal que os cristãos vêem na eutanásia é, senão falso, erróneo, pois o mal não está no acto em si, mas na intenção.33Estes mesmos cristãos esperam que venha um libertador exterminar o mal da face da terra, quando deveria entender--se que é dever moral dos homens fazê-lo.É costume argumentar que o sofrimento purifica o homem. Seria essa a ideia de qualquer bom tirano!Se o ser que tem consciência ética necessita de experimentar a dor no próprio corpo, de vê-la num ente querido ou em qualquer ser vivo para se humanizar, é porque está incapacitado para amar — ou incapacitaram-no uns costumes culturais insensíveis perante o sofrimento porque errada, ou astutamente, é suposto ser lícito explorá-lo em prol do bem--estar dos dominantes, poderosos, ou mais fortes. Com base nisto, é lógico partir para uma aberrante interpretação de que o todo poderoso criador da vida possa zangar-se e castigar quem tenha a ideia de renunciar à vida a fim de renunciar ao sofrimento.Penso que só a consciência ética de uma razão pura pode libertar a pessoa — e com ela a vida — do absurdo.Cristo ensinou muitas coisas, e entre elas a libertarmo-nos do receio da dor e da morte, e a não nos deixarmos intimidar pelas ameaças do poderoso, já que estes dois temores não racionalizados culturalmente são a arma mais eficaz de que se valem os tiranos de todo o tipo para dominar.No dia 23-8-1968 parti a espinha - c 7 - ao atirar-me à água numa praia para tomar um banho. Depois de sair do hospital, transformado num tetraplégico para o resto da vida, qualquer coisa me dizia que era tempo de morrer.Sempre pensei - e penso - que depois da morte há outro equilíbrio. Nada no universo é caótico, tudo é harmónico, puro equilíbrio. A matéria volta sempre ao equilíbrio, ou a um equilíbrio: após a primeira explosão cósmica, regressa ao34equilíbrio. Após o orgasmo, o equilíbrio. Após a morte, o equilíbrio. E penso que o próprio acto de renunciar à vida a fim de destruir a dor destruindo a causa, como tu dizes, matando o cancro, se te libertares de todo o temor, se acreditares verdadeiramente nessa lógica universal, esse trânsito, ou transmutação material, tem de ser agradável. O que falha é o método racional humano e humanizado de levá-lo a cabo, ou seja, vencer o temor, ter a certeza de que haverá sofrimento no instante de soltar as amarras da vida. Creio que é isto que realmente atemoriza os

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apologistas do sofrimento como um dever moral, e por isso reprimem essa liberdade. Se o indivíduo-pessoa se libertasse do temor da dor e da morte, poderia tornar-se indomesticável. Antes morrer que ser escravo de um sofrimento injusto!Depois do hospital, regressei a casa de meus pais.Ao fim destes anos todos, consegui maneira de levar a cabo o meu desejo de morrer de forma racional e humana — eutanásia -, mas uma pessoa da minha família nega-se a colaborar seja de que maneira for, e ameaça além disso denunciar o caso à justiça.Farto de condescender com tanta hipocrisia e mesquinhês, decidi levar o caso aos ditos tribunais de justiça para que me respondessem se deve ser castigada a pessoa que me prestar ajuda. A demanda foi rejeitada por defeito de forma, tanto em Espanha como no Tribunal de Direitos Humanos. Agora está de novo no Tribunal de primeira instância da Corunha - era este o defeito formal: que a demanda fora apresentada em Barcelona e não na Corunha.Espero que no prazo de um ano, mais ou menos, haja uma sentença definitiva do Supremo Tribunal ou do Tribunal Constitucional. Após este processo kafkiano, quer a sentença35seja positiva ou negativa, espero que nos encontremos, não sei como nem onde, e se repita como se repete por aqui tão amiúde: Donde nos conhecemos? Onde é que já nos vimos?Se bem que, para mim, primeiro terão de dar a cara os julgadores e responsáveis por denegarem legalmente a liberdade e o direito à única morte que, como consequência de um acto da razão humana, se pode considerar ética e moralmente justificável. Se a sentença for favorável, a razão terá triunfado. Se triunfasse a razão neste meu país, cada cidadão que nele habita teria o privilégio de escolher, como tu, o seu tempo de amar, viver e morrer. Falar de que existe um tempo para tudo sob o sol, sem que a razão possa actuar eticamente em cada caso, converteria o racional num absurdo. Se for negativa, será o fracasso da razão, e também uma condenação formal e moral a uma morte por inanição como subtilmente me sugerem certos pastores e muitos cordeiros. Segundo estes «apóstolos» do bem, esta é a forma mais ética porque não compromete ninguém. Não o fazer deste modo, dizem, é coisa de cobardes. Como podes ver, a deus não importa - segundo os seus intermediários — que uma pessoa morra de inanição, mas sim de uns quantos comprimidos.Morrer é sempre renascer; querida Martha, só os néscios não acreditam nisso.Só o criminoso teme a sua consciência.Somente o malvado e o néscio temem o inferno...Já que a razão triunfou no teu país, ou tiveste a sorte de ter ido parar a um lugar sob o sol onde a razão se impôs à superstição, felicito-te e desejo-te boa viagem para o céu.O céu existe sempre depois da morte para quem amou a vida! Espero que nos encontremos ao virar de uma esquina do universo.36Quando a semente da libertação nasce na consciência do ser humano, toda a força opositora, todo o sofisma ou fundamentalismo fanático e repressor que se oponha à germinação e frutificação é sofrimento e dor que se vai acumulando sobre a terra como a gestação de um monstro que parirá inexoravelmente um apocalipse. Aqueles que, em nome do conhecimento e da ciência, ocultam criminosamente esta constante histórica evolutiva, são uns malvados porque assassinam a esperança. E, se não podem ou não querem vê-lo, são uns néscios irresponsáveis.A semente da auto-libertação nasceu na consciência do indivíduo, forma já parte do eterno, jamais poderá ser detida.Um carinhoso e fraterno abraço.37SONHO DE UM PIRATAA cara dele representa o universo: enquanto me fala, contemplo o céu. Ensimesmado, converto-lhe o cabelo em nuvem. Em candeeiro os olhos. As palavras em vento.Quando aspira o oxigénio vital, transformo-me em átomo, para poder chegar ao seu mistério.Penetro no seu sangue e deixo em cada glóbulo um verso que diz: «Eu também estou apaixonado pelo amor, e assino com um beijo.»

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Percorro um após outro todos os seus neurónios paridos do ácido desoxirribonucleico a vibrar anelantes a cada impulso eléctrico, mais forte quando pronuncia as palavras filho, amor, ternura, eros, eros, eros.Fui um pirata por alguns instantes. Um intruso violador dos mais recônditos e formosos segredos. Só encontrei tormentas no seu coração. Desejo e paixão em cada batimento... big-bang... a memória, o reflexo, do princípio e do fim de todo o universo.Num alvéolo fiquei adormecido. De repente, um ruído penetra-me o ouvido!38Que se passa, por que não falas comigo?Por nada, por nada. Estava distraído.Mentira! Estava a pensar que sou um pirata por ter viajado por mares proibidos. Estava a pensar: Quanto dói ser humano e homem e ouvir uma mulher dizer que, para ela, amar os homens foi tempo perdido.Querida sereiazinha, sorri e pensa: o passado não existe, nem a morte, e se crês que o amor perdura, no futuro está a boa sorte.39CARTA A AURORAQuerida Aurora:Recebi o teu abraço e o diálogo que o acompanhava dentro da carta que me enviaste de Tortosa. São-me gratos tanto o simbólico abraço como o real e sugestivo diálogo sobre o equilíbrio do indivíduo.O que desejo?O prazer.O que não desejo?A dor.Abraço e diálogo são o ideal dos amantes e, portanto, o do amor e da vida. O seu desejo seria dialogar eternamente abraçados, mas o equilíbrio exige que se separem de vez em quando para recuperar energias; trabalhar para se alimentarem, vestirem e protegerem, porque se assim não fosse morreriam de fome e de amor — de prazer — enquanto procuram o sentido da existência. Ou seja, para manter o estado de prazer é necessário um certo grau de esforço desagradável - de dor.40Dizias-me, quando te li a carta para M.A., que eu me referia aos grandes equilíbrios. Davas a entender - ou assim o entendi eu - que é mais importante para o ser humano o equilíbrio do seu universo pessoal, espiritual, psicológico: os pequenos equilíbrios.Se formamos parte do todo, o tudo e o nada devem ser o mesmo e participar do mesmo abraço. Se o universo abraça as galáxias, as galáxias as suas estrelas, o sol a nossa terra, a nossa terra os seres vivos, o ser vivo os próprios átomos e o átomo os seus electrões, tudo se abraça ou mantém o equilíbrio por meio dos braços invisíveis da gravidade, ou relatividade, de uma lei inexorável que, por agora, apenas conseguimos deduzir segundo os dados que possuímos. Confiar ou não depende muito dos mestres!Não há grandes nem pequenos equilíbrios, tudo é uno.O psicólogo é regido - e deve estar relacionado com tudo -por estas três leis: prazer, dor e temor. O temor seria como que uma gravidade que mantém o equilíbrio da vida com o seu abraço protector.Abraçamo-nos sempre, ou abraçam-nos, tanto física como psicologicamente, perante uma dor real ou possível - também como manifestação afectiva, claro: a criança aos seus pais, os pais a um pai superior. No que se refere à eutanásia, penso que este é o dilema que as castas dominantes não querem, ou não sabem resolver, tanto jurídica como moralmente por causa de um imaturo paternalismo protector da vida.O fim do crescimento psicológico, racional, espiritual, ético, moral, não é procurar um protector a quem abraçarmos para que nos liberte do temor, o fim é libertarmo-nos do temor para nos libertarmos da dor.Como nos libertarmos do temor?

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41O sofrimento fornece-nos uma pauta a seguir por uma razão ética. Todo o sofrimento provoca uma espécie de salto psicológico para a frente... Não quero a dor!Mas há sofrimentos lógicos e há sofrimentos absurdos. Somente no irremediável o salto é verdade, o desejo é verdadeiro. Não é erro.Voltando à lei lógica dos grandes equilíbrios, se a terra ou um planeta qualquer sai da sua órbita, não se perde nem se destrói, perderá a forma mas há-de encontrar outra forma de equilíbrio. O planeta deixar-se-á levar pela lei do universo. Chocará com outro corpo qualquer que o absorverá ou desintegrar-se-á, mas entregar-se-á sem temor ao jogo da vida. Não se resiste à lei. A lógica!Por que resiste a razão?Por um interessado e erróneo cultivo do temor.Quando o ser humano perde o equilíbrio, partindo a espinha por exemplo, a primeira coisa que deseja é recuperá-lo. O mesmo acontece com qualquer enfermidade no seu processo irreversível para a desintegração material do corpo, a morte.Mas o desejo de recuperar o equilibro é irrealizável. O nosso raciocínio confirma-o. Todavia o desejo é puro, não engana. Se não queremos isto, obviamente queremos aqueloutro! E aqui que a consciência tem — mais do que o direito — a obrigação de se decidir pelo bem ou pelo mal, pelo livre arbítrio, pela liberdade.E como regressar atrás não é possível, resta apenas transcender, soltarmo-nos do abraço com que o temor nos tem agarrados, deixarmo-nos levar pelo desejo de não sofrer. A razão impõe-se assim ao instinto, ao desejo de abraçar desesperadamente a uma mãe-vida que nos quer muito mas que não pode42libertar-nos do sofrimento que nos afecta. É amoral! Só é vontade pessoal a que pode libertar-nos soltando-nos desse cabo instintivo e deixando-nos levar pela corrente do rio da vida, pela lei da morte racional.Até aqui, trata-se de uma forma de explicar uma lógica intuitiva mais que racional.No que respeita ao meu equilíbrio pessoal dentro do absurdo, como tu bem dizes, só poderei fazer-to compreender - espero — com o exemplo do animal domesticado.Para domesticar um animal, ou seja, para o submeter psicologicamente à vontade do humano, é costume atemorizá-lo demonstrando-lhe que é possível vencê-lo fisicamente e/ou que se pode matá-lo de fome ou de sede, em suma, que se lhe pode causar dor se não obedecer. Ou ele se resigna ou é destruído!Por terror, o animal acaba por se entregar a um dono. Também pode ser seduzido afectivamente, claro, mas isso é outra história.Depois do acidente, e com o diagnóstico dos técnicos a confirmar a impossibilidade científica de me ser devolvido o equilíbrio entre cérebro e corpo — esse dualismo que harmoniza desejo e vontade -, a primeira coisa que pensei foi que era melhor a morte. Ou seja, não à dor absurda, sim a um outro equilíbrio.O técnico triunfador, psico-amestrado pela sua casta a fim de negar a sua ignorância, dirá que passei pelas diferentes etapas da negação, trégua, negociação, aceitação. Eles só se ouvem e interpretam a si mesmos.Quando me neguei a perder o pudor e a dignidade, vi-me a dar patadas como um animal que se tenta domesticar.Que quero eu dizer com «patadas»?43Um dia a minha mãe disse-me: «Não sou eu a culpada.»Certo, pensei, seria absurdo que pagassem inocentes pelos culpados. Deixei de dar patadas a fim de evitar a loucura; poder-se-ia dizer que entreguei o meu corpo aos domadores. Mas nunca lhes entregarei a minha consciência. Nunca me hão-de fazer crer com os seus fundamentos de direito que proteger a vida humana contra a vontade pessoal é um acto nobre, racional, humano, justo e bom. E não é porque não tente entendê-los, é porque quanto mais conheço, mais absurdas me são as razões deles!

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Quando estes domesticadores profissionais qualificam como transtornada qualquer pessoa que se negue a aceitar a realidade da deterioração física ou psíquica irreversível, eles mesmos se contradizem, já que essa mesma acusação lhes poderia ser feita, pois médicos, juristas, teólogos, filósofos e legisladores contrários à eutanásia se negam a aceitar que a prática da medicina tem de levar consequentemente à implantação de um novo direito: o da pessoa renunciar a certos estados de decrepitude humilhante que se prolongam artificialmente em consequência de um conceito errado do que proteger — a vida — significa.Os mesmos que falam de protecção negam-se a aceitar que estão a impor o que não desejam para si próprios; isto é, não aceitam a sua incoerência ou a sua ignorância. Negam-se a aceitar o fracasso.O meu equilíbrio - se o é - consiste em saber que se pode sobreviver domesticado no inferno, mas sem nunca esquecer que é absurdo permanecer nele.Como digo num parágrafo da carta a M. A., o que falha é o meio de nos libertarmos. É isso que peço aos supostos protectores da vida, mas eles continuam empenhados em44negar a evidência da ausência de sentido e em demonstrar que na realidade desejo outras coisas. Ou que a vida é uma coisa abstracta, isto é, que o indivíduo não existe. O paradoxal é que isso é fundamentado por seres humanos que se consideram a si próprios sábios.Enfim, tratam de negar a superioridade da razão sobre o instinto e a crença. E para o confirmarem, afirmam que quem deseja morrer de verdade, pode fazê-lo de fome e de sede, por exemplo. Ao que parece, esta irresponsabilidade psicológica, esta ideia simplista, está a dar bom resultado, pois mais de um amigo meu se lhes juntou.Não importa; tentarei manter o equilíbrio enquanto os meus temerosos e imaturos protectores filosofam gravemente sobre a moralidade ou imoralidade, ou sobre a conveniência de me soltarem do abraço dos seus braços jurídicos, teológicos, deontológicos ou demagógicos.Espero aguentar até que decidam tão espinhosa questão!Um abraço.45EQUILÍBRIOSinto que sou tu, e quero neste instanteque o tempo parepara que a beleza tenha eternidadeagora que o meu desejo é igual ao teu,agora que amor, vida e morte são pura verdade,agora que tudo é prazer e a dor não existe,agora que princípio e fim são exactamente o mesmo.Agora que o meu desejo é igual ao teu,agora que a minha vontade é a tua vontade.ILUMINAÇÃOOs teus seios são rosas cujo aroma respiro. Ondas, branca espuma embalando os meus beijos. Rumor de caracóis sussurrando ao meu ouvido a eterna afirmação que desvenda o mistério.Enquanto os meus lábios voama pousar ardentes no teu cálido peitocomo a borboleta anelante persegue o mel da flor.Enquanto clamar incendiada de paixão a tua matéria,quero morrer agora!,o equilíbrio existe porque entendo o sentido do prazer e da dor.Mulher, enquanto o teu nome existir, o céu está seguro pois és a certeza que derrota a dor e o temor. Enquanto o teu nome existir, o céu está seguro porque estará seguro para sempre o amor.47A POMBINHA ENGAIOLADABegona Bóveda é uma rapariga de vinte e cinco anos que está há vinte numa cadeira de rodas por sofrer de ataques epilépticos. Sonha eternamente com um noivo, espera.

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Ah, Begona, Begonita, pombinha que se agita cravadita na cadeirita como quem quer fugir da gaiola — essa cadeira, que a vida, tudo indica, lhe cravou nas costas e deixou ali sentada vinte e cinco primaveras.Porra! Merda! — diz ela quando as pernas se agitam, mas di-lo baixinho como quem teme ofender um invisível fantasma que vive a troçar dela.48Grita alto, Begonita!Porra! Merda! Filho da puta!Tira-me deste assentoe não puxes por esses fios invisíveis,que eu não sou tua marioneta!Grita, Begonita, grita para que te oiçam os céus!, que alguém terá que pagar semelhantes atropelos.«Begonita», dizem eles: «onde há gritos não há poesia». Porque não estão como tu, Begonita, nos infernos.(Para Begona Bóveda, minha companheira no inferno.)49CARTA A VILMAQuerida Vilma:Acabo de receber a tua enternecedora carta. Não creio que a tolerância seja um sintoma de debilidade numa pessoa. Creio precisamente o contrário. A tolerância é uma virtude reservada aos seres ética e moralmente superiores.Já sei que não vou ter outra oportunidade de sentir esse suave e misterioso entusiasmo que experimentam os nossos sentidos quando nos acariciam os olhos, os lábios e o ser inteiro. Alguém que nos murmura ternamente «amo-te».Sei que não vou voltar a ter outra oportunidade de ouvir a vida dizer que me ama com todo o ser de uma mulher. Sei que renuncio a fruir da tua companhia, generosidade e ternura. Talvez cometa um acto de egoísmo ao não aceder a uma relação na qual todas as vantagens estariam do meu lado, e do teu apenas os inconvenientes. Já sei: para ti é suficiente. Mas, como já te disse muitas vezes, para mim não. Isto é, ou se cumprem os teus desejos ou os meus.50Há na tua última carta um tom de censura, penso que contra o destino, mas que parece tornar-me a mim também um pouco responsável pela tua tristeza. Não imaginas quanto lamento isso!Sabes, Vilma? Pensa que tu e eu podemos conversar porque nos conhecemos na sequência de determinada circunstância. Ou seja, se eu não tivesse efectuado uma demanda judicial, nunca nos teríamos conhecido.São os seres humanos que devem marcar o seu próprio destino de acordo com a razão e não com a crença ou com a superstição. Dizes amiúde que o mundo é uma merda. Não, o que acontece é que os que se armam em doutores transformaram uma grande verdade numa enorme mentira. Quando o ser humano trai a consciência tudo se transforma em merda!Eu tomei um caminho, e numa direcção concreta, e é somente essa meta que desejo alcançar e não outra. Se mudasse de ideias mostraria que não teria tido em conta que o que desejava era encontrar o amor de uma mulher em vez de defender um princípio que considero verdade universal.Desde que enveredei por este caminho, há tanta gente empenhada em seduzir-me com toda a espécie de propostas, que tenho a sensação de que me tomam por uma criança que tem de ser consolada, e que quando não faz caso é insultada e considerada caprichosa, orgulhosa, ignorante, cobarde. Sei que não encontrarei uma mulher que goste de mim com esse amor leal, fiel e verdadeiro que me demonstras, mas o nosso encontro deveu-se a uma circunstância cujo propósito, muito antes de te conhecer, estava proibido modificar. Entristece-me que também tu me faças censuras e me digas que te alegras porque as coisas me correm mal, isto é, que te51Ponhas do lado daqueles que eu considero responsáveis pela mentira universalmente apregoada.

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A vida, querida Vilma, tem leis muito precisas. Podemos ser crianças quando somos crianças, mas quando atingimos a maturidade psicológica, devemos apenas ser homens ou mulheres. Quero com isto dizer que nenhum homem nem nenhuma mulher quer ver-se reduzido à condição de tetraplégico; homem ou mulher, rapaz ou rapariga, a que a mamã, ou o papá Estado, ou a família, lava, mima e cuida com ternura.A vida nunca faz marcha-atrás. As pessoas que se deixam levar e aceitam a condição de bebés, fazem-no porque não lhes ensinaram uma coisa tão elementar como seguir em frente. Quem fica num sítio de que não gosta, é evidente que tem medo de abandoná-lo.Tu sempre seguiste em frente. Sempre tomaste as decisões que consideraste que devias tomar. Umas vezes terás sentido que acertaste outras não.Em relação ao facto de te deixares levar por um sentimento de amor para comigo, creio que nunca fizeste uma análise realmente séria de coisa tão complexa. Já sei, o amor não se pode racionalizar, ou se ama ou não se ama, como dizes tantas vezes. O que acontece é que eu tenho a mania de para tudo procurar um porquê. Penso que há em toda a mulher um instinto maternal superior ao seu raciocínio. E por muito que me assegures que me amas como um homem, nunca teria a certeza de quanto haveria desse instinto maternal e quanto de idealização de um homem com uma sensibilidade que sempre desejaste encontrar e não conseguiste, ou não durou. Sim, claro, pode-se dizer: e que importância é que isso tem se é o que eu quero?52Como tu dizes, há sempre dois lados no amor. Não é que não goste de ti, é que me nego a gostar desse modo. Quando somos crianças, é lógico que a mamã proteja a criança, mas quando atingimos a idade adulta, se te alegras por não se cumprir a minha vontade, é porque assim se cumpre a tua. Sei que o dizes com a melhor intenção de me mostrar afecto, mas tens de reconhecer que é uma forma de amar bastante duvidosa. Enquanto o ser humano não aceitar a própria morte, e a dos outros, como um acto racional e de generosidade, não será um ser psicológica e humanamente formado.Sim, Vilma, todos os dias tenho um pensamento de gratidão para contigo, mas nunca direi que me alegro por estar vivo. Estar vivo para mim significa ser tetraplégico. Mas tu dizes: «Vive porque o teu amor me faz sobreviver.» Há no teu desejo algo de incoerente. A nossa relação afectiva - no caso de existir uma relação assim - teria um sentido meramente espiritual ou sentimental, isto é, tu precisas de sentir-te útil e necessitada para te sentires viva. Eu poderia representar o ideal de figura masculina que idealizaste, uma sensibilidade que encaixasse com a outra metade da tua feminina, uma incógnita que complementasse a tua incógnita espiritual. Diz-me, Vilma, para que precisas de mim fisicamente? Ao fim e ao cabo, que diferença há entre teres-me a teu lado ou no teu coração como uma recordação imortal?Acusam-me frequentemente de pensar só em mim. É possível, mas do mesmo podia eu acusar os outros. Dizes que quando se ama se dá tudo e se pede tudo, e quando esta entrega não é possível é melhor desistir.Também dizes - creio — que o verdadeiro amor é aquele que dá tudo em troca de nada. Pois demos um ao outro toda53a nossa amizade sem pedirmos nada em troca. Deste modo não haverá entre ambos qualquer censura, porque o amor do amigo é o menos egoísta de todos.Tu sabes, querida Vilma, que tens no meu coração um lugar muito especial, esse que nos faz esboçar um sorriso sempre que recordo o teu nome.Obrigado pela tua fidelidade, AMIGA!54AMADO MARAmado meu:A tua calma serena e tranquila embeleza-me quando a lua na noite tropical ilumina a tua cara.Perturba-me o teu sorriso branco e irisado; e apalermado sorrio também.Enlouqueces-me quando te agitas e ruges apaixonadamente. Sobre o teu ondulado ventre arrulhas e embalas-me como o furacão. Pareces uma erótica e frenética bailarina.

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Deixo-me amar como um vaidoso amante pelas tuas ternas carícias. Gostaria de penetrar em ti para te adorar eternamente, sedutor amante, ó mar.55A SEREIA E O NÁUFRAGO(Conto)Chegou a uma ilha remota uma sereia feridae ali estava um náufrago, encalhado e ferido também.Ela olhou-o, e doeu-lhe tanto a sua melancoliaque desatou a chorar lágrimas salgadas com pena dele.O velho marinheiro que sempre sonhara com uma sereia de louros cabelos, de formosa figura e suave olhar, ao vê-la tão triste esqueceu-se um momento das suas desventuras e começou a contar-lhe fabulosas histórias de uma sereiazinha e de um lobo do mar:As sereias sonham, contou o marinheiro, da terra amores, sonham os marinheiros, como assereias , amores do mar; sonhar o impossível é a religião dos sonhadores. Para as sereias e para o marinheiro a vida é sonhar.Conta a lenda que, se uma sereia encontrar um marinheiro, é-lhe proibido pelo deus do mar permanecer junto dele.56Só pode olhá-lo, roubar-lhe a calma e seguir o seu caminho porque se ficar, o sal dos mares transformar-se-á em fel.Conta-se que se deve tão grave castigo, porque ao grande[Neptuno fugiu a amada com um marinheiro que ouviu cantar. Desde então é proibido a qualquer marinheiro ver as sereias. E se o imprevisto faz com que se encontrem, que seja o seu encontro, como uma condenação, eterno penar.Doce sereiazinha que chegas ferida, não te cause desgostoa minha melancolia.Quando te fores, não penses que sinto dor.Um dia não seremos mais do que matéria como num princípio,Neptuno morrerá, morrerá o feitiço, e no final triunfará o amor.Quando nas tempestades o mar se enfurece ebrama raivosoe arrasta os barcos com os marinheiros para o fundo do mar,é o despeitado e feroz Neptunoestremecendo como um amante ciumentoporque uma sereia e um marinheiro se voltaram a olhar.57O NÁUFRAGOApareceste, como aparecem no horizontea esperança de uma vela ou o dourado e reluzente sol do amanhecer. Fizeste a tua aparição na noite dos meus sonhos, masera eu o náufrago, mulher.Quis chamar-te a minha alma. Quis gritar o meu corpo do fundo do tempo e do espaço.O meu braço quis erguer-se para tocar a tua orla. Mas brotou do céu o raio e o relâmpago do deus castigador que o paralisaram.E o trovão furibundo calou de um sopro os meus delírios de náufrago.Quis gritar: «Detém-te! Não passes, gaivota, à minhabeira de largo», mas ficou-me entumescido o tempo, o braço e o espaço, no meu mundo de náufrago.58Estende o silêncio em torno da minha alma o braçogelado e negro. Como um laço de pedra à volta da garganta,a noite afoga-me com seu escuro e lúgubreabraço.Volta o grito ao silêncio donde quis fugir.

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Resta apenas uma imagem fugaz, branca e dourada, gravada na minha retinade náufrago solitário Sei que não apareceste, foi uma alucinaçãode náufrago à deriva que te viu apareceu na luz de um relâmpago.OS SONHOSMar adentro, mar adentro, e na fluidez do fundo, onde se cumprem o sonhos, juntam-se duas vontades para cumprir um desejo.Um beijo incendeia a vidacom um relâmpago e um trovão,e numa metamorfoseo meu corpo não era já o meu corpo;era como penetrar o centro do universo:O abraço mais pueril, e o mais puro dos beijos, até nos vermos reduzidos num único desejo:O seu olhar e o meu olharcomo um eco repetindo, sem palavras:60mais fundo, mais fundo,mais além de tudopelo sangue e pelos ossos.Mas acordo sempree sempre quero estar mortopara continuar com a minha bocaenredada em seus cabelos.CARTA A BELÉNQuerida Belén:Nenhuma das tuas cartas me pareceu inútil ou errada. Gostaria de que tivéssemos tido ocasião de falar cara a cara durante algumas horas para que os olhares limpassem o nosso espaço comunicativo de qualquer preconceito, ou da maior parte destes.Não preciso nem de mais nem de menos apoio moral do que precisa qualquer outro ser humano. Pelo contrário. Na minha situação, prefiro dar apoio moral a recebê-lo. Tenho muito tempo para fazer uma análise crítica da realidade que nos rodeia. E também para me analisar a mim, e à sociedade, nessa relação de interdependência. Asseguro-te que não é vaidade nem orgulho a minha resposta. Creio que aquilo de que o ser humano mais necessita é de tempo para a reflexão. E não o tem.Ao terminar qualquer tipo de educação, a pessoa deveria dispor de outros tantos anos de lazer para se libertar dos preconceitos62éticos e morais que os outros lhe impuseram em função de interesses muito variados, nem sempre honestos.Enganas-te numa coisa quando dizes: «Não te escrevi, porque tenho a sensação que te incomoda que o faça.» Não, não me incomoda, antes pelo contrário. Gosto imenso, mas tens de perceber que escrevo com uma esferográfica nos dentes. O que me cansa muito. Quando começo a responder a uma carta alargo-me um pouco, mas isso não quer dizer que me seja fácil. Não posso responder a todas as cartas, apenas àquelas que me revelam uma pessoa carecida de ternura. Por muito que esse desejo nos seja comum, não creio que necessites que te escreva.Sinto na tua carta um certo tom de censura. Palavra que não é indiferença, mas vê se entendes que não vou responder-te carta a carta.Precisas que te escreva, Belén? Se assim for, diz-me e farei o esforço encantado. Se gostas de escrever-me, não o faças pelo preconceito de que eu possa precisar de apoio moral. Sou bastante forte! Belén, desejar a eutanásia não é, precisamente, estar desesperado, triste ou necessitado de carinho. É procurar a sensatez na razão humana. A razão humana é o que tem de prevalecer.Na última carta perguntavas-me por que te escrevia.Não costumo responder a cartas de pessoas que são contra a eutanásia. Porquê? Penso que é um diálogo absurdo. Entrar nessa polémica é abrir um diálogo de surdos que não leva a parte nenhuma. Fi-lo contigo porque me parecia, e continua a parecer, que uma grande generosidade

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e bondade pessoal afloram em ti. Com a minha resposta queria transmitir-te a forma que tenho de ver a vida e até onde esta me parece digna de ser vivida, à margem de todo o preconceito63de carácter religioso, ou de outro interesse que não seja o pessoal.Ao Estado, à religião ou a outros grupos profissionais que têm o poder de impor-me a sua autoridade ética ou moral apenas concedo o direito de proibir-me de qualquer acto que atente contra a liberdade, a dignidade ou a vida de outra pessoa ou grupo. Percebo que me transmitas o teu apoio e o teu carinho. Agradeço-te. Sei que há milhões de seres humanos que pensam e sentem como tu. Eu penso e sinto o mesmo por qualquer pessoa que se encontre numa situação dramática. Mas sempre defenderei a vontade pessoal se a morte for a única saída que ela tem para se libertar dessa situação.Belén, eu não penso como um doente, não ajo como um doente, mas sinto como um doente. Sinto, penso e ajo como um ser humano perante a dramática visão de um semelhante convertido num tetraplégico. Dá-se a circunstância de, também eu, ser um tetraplégico, e reclamo para mim - e só para mim - a liberdade de deixar de sê-lo.Como não creio que te tenhas apaixonado por mim -desculpa a piada -, suponho que ao escrever-me o faças com o nobre e generoso propósito de dar um pouco de consolo e de distracção a um doente do qual as pessoas pensam, erradamente, que está desesperado. Entendo isso. O que não me parece bem quando somos adultos e pedimos liberdade é que queiram que olhemos para outro lado. Parece que somos crianças a quem tocam uma sineta para ver se se distraem.Exigias-me na última carta que respeitasse as tuas crenças. Nem poderia ser de outro modo!Mas lembro-te que numa das primeiras cartas que me enviaste me dizias que não podia levar a cabo o que queria64- e quero — fazer. Ou seja, tu estás do lado da doutrina religiosa. O que opinam as autoridades religiosas a propósito do meu direito pessoal considero-o um delito.Quando te dizia que duvidar é de sábios, queria dizer que nos devemos guiar sempre pelo critério pessoal. Se nos fiarmos no que dizem os outros acabamos escravos deles. Se me dizes que não me podem aplicar a eutanásia, posso responder--te que deverias pôr em dúvida as tuas afirmações. Mas teria de entrar numa análise crítica de toda a religião e das suas nefastas consequências na civilização da humanidade. Aposto que o teu espírito de réplica já despertou. Dir-te-ei que uma razão pura e científica é o espírito puro. Seria aquilo a que poderias chamar a consciência de deus. Eu digo que deus é a minha consciência. Se eu acredito que posso morrer voluntariamente, essa, Belén, é a vontade de deus. O que diz a religião como princípio doutrinal é um sofisma que pretende apenas manter o princípio de autoridade. Quem nos salva e nos liberta de todo o temor, de toda a condenação e de toda a escravatura, é a nossa consciência.Não te vou pedir que me escrevas. Se necessitares de um amigo a quem contar as tuas alegrias e tristezas, conta comigo. Mas se necessitas de um doente com quem praticar um dos mandamentos de uma religião qualquer, é melhor não o fazeres.Se não me engano, querida Belén, gostarias de acabar com a dor e o sofrimento do mundo. Eu também. A eutanásia é uma forma racional e humana de ajudar. Só às pessoas sem critério próprio e aterrorizadas com o mito do pai pode ser crível tamanha barbaridade; sacralizar o sofrimento parece--me a forma mais cruel de escravidão. O meu corpo sobrevive graças aos fármacos modernos, e a uma sonda para65poder urinar, para além do esforço e sacrifício de uma ou duas pessoas que tratam de manter-me com vida, limpo e alimentado.É verdade que há um medo natural em todo o ser vivo, não tanto pela morte em si, como pela dor. Todavia, não se deve utilizar esse temor natural para que as pessoas se submetam à vontade de uma autoridade moral. Quando deixamos de ser crianças, todos somos autoridades morais no que respeita à vida, à morte e ao amor. Gosto de falar com as pessoas, querida Belén, mas o assunto que eu defendo é a eutanásia como um direito humano. Suponho que sabes que eutanásia significa boa morte.

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Uma carinhosa e cordial saudação.66A ALTERNATIVA A MORTEA qualidade da vida consiste numa conformidade agradável, numa percepção harmónica do corpo e da mente com o todo a que estão sujeitos os sentimentos pessoais. Quando não se sobrevive por simples temor da morte, a morte é a única alternativa racional para libertar a vida do sofrimento. Quando não há qualidade de vida, quando o caos é total não resta outra alternativa senão a desintegração da matéria para se renascer.67AMIGAAmiga, quem impede que se cumpram os sonhos de subir o voo para lá do temor, a quem já não pergunta da vida o sentido somente para que serve na vida a dor?Para lá do temor começa-se de novo.O eterno é sempre, sempre um novo começar.Começar a viver, começar a morrer,e entre certeza e dúvida começar a sonhar.Sonhando começamos a crer na vida. Amando começamos a crer na morte. E todo o amante pensa em procurar o amor para lá da vida quando o amor se perde.COMO VÊSQuando me falou, estava triste; perguntou-me a causa da minha tristeza. Mulher, a causa do meu mal é sempre a mesma: que eu adoro o belo e tu és a beleza.Amiúde sou como o Quixote:idealizo-te dona da minha loucuramas nunca esqueço que é apenas sonho.A causa do meu mal, como vês, é a prudência!INCRÉDULAAnelante afirmas que crês em deus e que além disso o teu deus pode sempre falar-te. Eu não creio em deus e contudo afirmo: porque existes tenho suficiente para crer.Sou afortunado e rico com o sonho porque o meu espírito é capaz de acariciar-te. Tu desconsolada choras porque não tens dono. Ingrata, por quereres tê-lo, deus pode castigar-te.Habitavas num mundo de segredos,do prejuízo e da dor agrilhoadae com todos os sentidos predispostos.Anelantes acolheram meus sentires tuas palavras.Tu eras água, fresca chuva, eu deserto,ou és tu o deserto, e eu a água desejada?Que importa, se desde então nascem flores no teu peito,que importa, se desde então no meu nasceram asas.70Incrédula, por que tremes aterrada de receios e de culpa Quando o teu peito floresce e ao meu nascem asas? Quando o peito reverdece com as chuvas do amor só aquele que não tem fé pode pensar coisas más. Incrédula, não te aflijas por não poder agarrar a lua dentro da água, antes, transformemo-nos em luz a fim de penetrá-la.CARTA A MARIAOlá, Maria:Sim, imaginava-te uma rapariga encantadora, um pouco tímida, talvez um pouco retraída mas curiosa e, portanto, candidata a inteligência desperta.Espero que todos os teus colegas de curso sejam partidários de manter em harmonia o corpo e o espírito. Se assim for, podes mostrar-lhes as minhas valiosas epístolas. Espero que entendas o meu péssimo sentido de humor! Não vejo inconveniente em mostrares as minhas cartas aos teus colegas. A ideia foi do professor, não foi?Eu era mecânico e trabalhava em barcos de uma companhia de navegação que se dedicava ao transporte de petróleo. De férias em casa de meus pais — donde te escrevo -um dia fui tomar

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banho à praia e ao lançar-me à água bati com a cabeça no fundo, que era de areia, e parti a coluna pela sétima vértebra cervical. Esta fractura provoca uma72paralisia de todo o corpo — tetraplegia. Nunca se deve mergulhar de cabeça onde a água seja pouco profunda.Que faço para me distrair? Não me distrair. A ver se consigo ser claro na carta presente.Quando somos crianças e estamos no berço, choramos para que nos peguem ao colo. Suponho que o nosso desejo seja sentir o movimento, a liberdade. Mas colocam-nos uma chupeta na boca para que esqueçamos os nossos propósitos e olhemos para outro lado, para que se faça a vontade de quem nos coloca a chucha. Simplesmente, porque não querem carregar connosco. Quando nos distraímos, alguém se aproveita dos nossos despistes.Dizes, Maria, que não percebes de política. Pois não te distraias. Se te despistas, quando reclamares liberdade, justiça e igualdade responder-te-ão que fales de outras coisas, que olhes noutra direcção, ou que te ponhas a rezar.Já sei que o que queres perguntar-me é como é que tendo catorze ou quinze horas de tempo à minha frente, para o ocupar, ou para não fazer nada, consigo não me aborrecer. Era isto que queria dizer-te: não me distraio pensando sempre no mesmo. Tenho de impor-me uma disciplina mental.Não me levanto, como tu fazes. Acordo às oito e meia da manhã. Ouço notícias ou música até às nove e meia ou às dez. Tomo o pequeno-almoço e, a seguir, tenho umas horas determinadas para ler, escrever o que me ocorrer. Ao mesmo tempo que me vão mudando de posição de três em três horas - mais ou menos — vou observando o que as autoridades inventam para que os povos e as massas olhem na direcção que eles querem. A comédia, o drama e o melodrama, é aterrador. Os seres humanos estão dispostos a acreditar nos resultados do malévolo propósito de anular a sua vontade e73o seu espírito crítico. Por exemplo, parece-me tremendo que os rapazes digam: «Passo...» Soa-me a um código de morte. Outra das frases malévolas que andam por aí à solta é a de que às massas há que dar-lhes o que querem ver e ouvir através dos meios de comunicação. A finalidade é entreter-nos. Depois, vêm os engraçadinhos oferecer-nos as suas religiões protectoras, com todo o tipo de seitas e deuses diversos. O que deviam ensinar-nos, desde que nascemos, é sentido crítico. Deviam explicar-nos a teoria da origem da vida e da evolução das espécies. Seríamos melhores crentes. Seríamos mais humildes e bastante mais humanos. Não sou nenhum perito, mas acho que a etapa evolutiva do ser humano como crente tem de dar o passo seguinte — já está a dá-lo — com vista a uma razão crítica, pura e científica que supere toda a superstição. Entre elas a do tabu e do terror à mortalidade.Considero que os humanos têm o dever de conhecer. É a melhor forma de distracção e de libertação do aborrecimento. E — como dizes — de pensar sempre no mesmo. A razão crítica e pura será a próxima religião, isso a que chamam a ciência com consciência. E para o conseguirdes, tereis que começar, desde já, a preparar-vos.De momento, todo o conhecimento obtido tem sido utilizado com o intuito de dominar e escravizar. Quando digo que deveis começar agora, quero dizer que não cometais os meus erros cometidos pelos vossos pais.Como nos educaram? Como lhes indicaram que o deviam fazer. Tomando a chantagem emocional, o desejo do prémio e o temor do castigo por base.Claro que deve existir um método de educar e de sociabilizar as pessoas, mas não se pode ser contraditório na sua aplicação. Primeiro, somos induzidos a acreditar cegamente74Nos nossos progenitores e, mais tarde, quando chegamos a uma certa idade, é-nos exigido que sejamos decididos, valentes, e triunfadores. E a única coisa que podemos ser é uma cópia infiel das taras e virtudes dos nossos educadores.Dizes que não sabes o que há lá em cima. O que há é sempre a nossa consciência. Se a interrogarmos, responde sempre com justiça e verdade.

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Querida Maria, se procurarmos o conhecimento, entenderemos o que há lá em cima, porque te entenderás a ti mesma. Se nos interessarmos pelos meandros da ciência, e pela nossa consciência, conseguiremos entender a vida, a morte, o amor, a religião e a política.Tu perguntaste com a consciência limpa de todo o preconceito moral ou interesse pessoal, de casta ou poder dominador, que não entendes por que me proíbem a morte. É normal que não entendas. Quando queremos compreender uma coisa, temos sempre que voltar à génese, à origem. Lembras-te do que dizia Sócrates quando afirmava no Banquete de Platão, que, assim como a ele não lhe agradaria que o escravo tirasse a própria vida sem sua autorização, a deus também não lhe agradaria que ele fizesse o mesmo?Em Espanha, o rei pratica a religião católica e — como é lógico - acima dele só existe deus. Segundo o dogma desta religião, só deus pode tirar a vida. Portanto, se ele se submete à vontade da lei suprema, nós, os escravos - os súbditos -estamos obrigados a submeter-nos às leis do seu reino terreal. E para manter este princípio de autoridade existe a ameaça psicológica de que todo aquele que me prestar ajuda sofrerá a dor e a prisão. O terror à dor que nos pode impor o poderoso é a sua melhor arma para nos ter sujeitos.75Basta observar os movimentos terroristas para entender como funciona e funcionou — como foi utilizado — o medo ao longo da história da humanidade pelos mais ferozes e astutos. Hoje, nenhum deles quer perder o controle ou a possibilidade de administrar o temor que as pessoas sentem diante da ideia da morte e da dor.Os médicos querem controlar a dor, e os padres a morte. O rei é o cabecilha exemplar. Mas, claro, ele submete-se às suas leis por interesse pessoal. E nós, os que não aceitamos ser escravos da éticas dos médicos, da moral dos padres, ou da terrífica e ameaçadora protecção do todo-poderoso papá--Estado, que fazemos? Ao chegar à idade adulta qualquer indivíduo deve ter o mesmo peso na balança de uma consciência ética e moral.Como exemplo, postas à discussão no caso da eutanásia, a vontade moral e ética da pessoa deve prevalecer sobre as teorias e as leis. Qualquer criatura medianamente racional entende que não se está a defender a pessoa nem a sua dignidade mas sim a partilha de poder entre grupos diferentes. Não se actua em função da racionalidade que a pessoa apresenta mas em função dos conhecimentos científicos que cada casta possui. E também dos preconceitos que tenham em relação à forma de morrer.Defende, Maria, o sistema político democrático. Mas para tal, tereis de começar por vós próprios, depois prosseguir nas vossas futuras famílias com os vossos próprios filhos. Num sistema democrático, o conceito de igualdade significa — ou deveria significar — que a consciência do escravo de Sócrates teria a mesma autoridade moral que a de seu amo. No que respeita à liberdade de pôr fim à vida a única coisa a julgar é se a maioria dos cidadãos considera racional a decisão do76Escravo, e não o interesse do amo na utilidade da sua mão--desonra.Mas para que uma democracia seja verdadeira é preciso começar pelo hábito da crítica analítica, da tolerância e do respeito. O hábito que não se aprende em pequenino não se pratica em adulto. Suponho que conheças alguns rapazes e raparigas que têm problemas de falta de entendimento com os pais e professores; quais são as causas? Pelo que observo, quase sempre se devem ao facto de quererem manter o princípio de autoridade de um modo antidemocrático. Para defender a democracia, Maria, não esqueçais que faz falta criticar procurando as causas e a origem de tudo aquilo que nos parece irracional e injusto.Como podes ver, querida Maria, é esta a minha forma de distracção. Um carinhoso abraço para ti e para os teus amigos da fotografia.77RUMO À VIDAEu vou numa só direcção: rumo à vida. Expando-me e sou a cada instante aquilo que a minha vontade deseja e comanda. A minha vontade deseja e comanda também a minha morte com o propósito universal de recriar-me.

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Sou, porque quero ser, a primavera. Nasço e morro a cada instante do dia e da noite. Sem barreira alguma e sem censuras.Expando-me e contraio-me a cada palpitação. Vou ao limite do universo e regresso ao centro. Os teus átomos e os meus acariciam-se a cada curva do caminho - do eterno retorno. E sem qualquer preconceito, geramos em cada beijo um infinito número de filhos novos.Sou já o dejecto, a escória do fruto que alimentou os teus átomos com a sua energia. Encerrei já o círculo. E sou cor, calor, água, luz, matéria viva. A terna Primavera, morte e vida em cada palpitação da terra.Vou na direcção da vida. Subo e desço quando me apetece a fim de recriar-me. O objectivo é superar a dor e o medo em busca do prazer, do equilíbrio. Para nascer de novo.78Só POR ISSOExpandir-me-ei para poder acariciar-teQue se transformará em átomos invisíveis a minha carne mortalE quando sentires, sem saber porquê, de paixão um tremorSerá porque te envolve, se bem que o nãoEntendas, este amor ideal.Desde que vi os teus olhos,Lembras-te de quando vi os teus olhos pela última vez?Não voltaram a fechar-se desde esse instante osOlhos meus- Vejo-te em sonhos -,mas coro ao acariciar-te com a palavrae não compreendo bem porquê.Só por isso, só por isso quero morrer,porque me faz corar sonhar contigo, e sei porquê:porque sou homem e tu mulher.79A GAIVOTAEste pobre marinheiro um pouco ingénuo e que vê uma gaivota e embarca no vento a percorrer o mar.E apesar de não ter corpo,Deita a voar a almaAtada ao pensamento,Que é a sua forma de amar e de caminhar.Eu já te conheciaE tu também a mim;Não sabia o teu nomeMas tinha a certezaDe que andavas por aí.Não importa que te veja,Não importa que me chames,Esse deus que tu tensE esse outro que eu tenhoPariram-nos iguais.81Por isso eu já te conhecia, por isso nos queremos apesar de todos os pesares.SIM, QUERO {Conto para Gene)No princípio foi o sonho, como em todo o princípio. No final será o sonho, como em todo o final.Quem tece sentimentos de paciência e respeito será recompensado com o conhecimento, com a sabedoria, a sorte e a verdade.Sim, quero, mas não foi o verbo no princípio, a vida, o mesmo que a morte, é sempre verdade. O verbo pode esconder uma mentira, mas não o desejo e a vontade.

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Já cerrados os olhos e a alma de par em par aberta. Da dor absurda a humanidade, enfim, liberta, ficará a razão como a chave de abrir a porta que desvendou o mistério que escondem o carinho e a vontade de amar.82

Sim, quero, e celebrou a união com o fundo do mar,Disse a matéria e começou a pensar.Desde então prossegue inexorável o seu caminho emBusca do sonho,Reiterando sempre o cerimonial.Olhou para fora da água e disse o peixe: sim, quero; queria ir mais depressa, mais longe, mais além, e cresceram-lhe asas para alcançar o céu, cumpriu-se o seu desejo, foi feita a sua vontade.Olhou a ave para o espaço e disse: sim, quero; queria ir mais depressa, mais longe, mais além, cresceu-lhe o pensamento, transformou-se em humano, já chega com a ideia até à eternidade.Viu o homem o sofrimento e disse, não quero, não quero a injustiça, desejo a bondade. Pensou na boa morte e não achou pecado, cumpriu-se o seu desejo, foi feita a sua vontade.Já liberto por fim do sofrimento absurdo, ouve-se o profeta bajulador salmodiar: «Pai, tu que tudo sabes, perdoa as nossas culpas, castiga os meus pecados, seja essa a tua vontade.»Renunciou à consciência o falso adorador, não quer fazer parte do evoluir, por isso se faz escravo, por ser irresponsável; mas não haverá perdão para a sua crueldade.Explica-me: em que lei da vida se reflecte o absurdo? Tu, ser depositário da afectividade, tu, responsável do verbo, nobre, verdade e bem, tolerância, respeito, justiça e liberdade?Sim, quero que se cumpra vontade e o desejode ser dois sendo um para Gene e Joan.Ao tecerem com fios de amorA trama da vida, do amor e da morteCom um simples: «sim, quero», de promessa nupcial,O sonho nesse dia está de parabéns.84

PRENDA DE CASAMENTO {Para Gene Gordo)Gené-mulherAo tecer a vida sua milenária trama derenúncia e desejos, teu coração constrói em redor de um homem umcerco sedutor. Enquanto num voo uma boca pousa aninhadano calor dos teus seios continuarás a transformar, em pleno absurdo,uma semente em flor.Espírito sensível, como toda a mulher excepcional, matéria inteligente, querida amiga minha, buscas nos sonhos algo transcendente enquanto o tempo corre atrás da utopia.Depois de ter buscado entre as cores as respostas,depois de ter buscado nas palavrasa verdade, só com desejar e unir a vontade com o desejonum «sim, quero» retorna o equilíbrio, o sonho com o filho,a verdade, o imortal.86PARA A AMIGAGene, a voz cantante de um doce serque deseja arrancar da vida a dor,a que persegue o sonho, como toda a mulher,de poder transformar uma semente em flor.Matéria generosa percorrendo universos A que faz ao seu nome honra excepcional, a que só deseja uns sentidos versos como único presente nupcial.A que se aventura como bravo marinheiro pelo mares obscuros da superstição, acusando o temor e o profeta lisonjeiro que pretende ocultar com véus a razão.

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Juntos procurámos do eterno o sentido, deduzimos que o conceito assombra a razão. Jamais se simbolizará o inferno; a dor incurável é a razão infernal87Da que busca o sentido ao ser e ser eterno e no bem morrer um bem libertador levarei, como paisagem terna, gravada na memória seu amistoso calor.Depois que seja luz, pura matéria,se se ouvisse um átomo com a vibração fluída e certaexclamar:onde te vi antes de agora?,ou, parece que nos conhecemos toda a vida!teremos desvendado mais um enigma.Que a matéria tinha desejo e vontadeporque era inteligente, querida amiga.SEREIAZINHASereiazinha, não te cales, que me dói o teu silêncio. Eu te envio e deposito um beijo nos teus cabelos longos Com o pensamento, claro!E um colar de caracóis à volta do pescoço, e um anel de uma pérola para acariciar teus dedos.Far-te-ei do mar a deusa que encante os marinheiros, náufragos à deriva, sem barco, vela nem remos.O teu canto será o seu rumo, teus sonhos serão os seus;90é o que buscamos sempre pelo mar nós marinheiros.O canto de uma sereia que nos cante além, lá longe, para lá do horizonte onde pensamos, sereia, que se esconde o nosso céu.O mais formoso de todos, o que só está nos sonhos: o ideal do belo, do harmónico e do bem.Teu cantar é minha alegria e a do universo inteiro. Sereiazinha, se não cantas as estrelas vão chorar.Já não poderei contemplar em teus olhos o reflexo do ideal da beleza, do harmónico e do belo.Sereiazinha, se te calas, como encontrarei o rumo para chegar ao céu, se estou só e à deriva, sem barco, vela, nem remos?A VIDA E SONHONão te aproximes, mulher misteriosa, para conhecer-me,é mais sonho a vida do que concreção.Tua voz é para mim algo inalcançável, a mulher, aesperança, a que tem na alma todo o poeta, a perfeição.Quando estiveres junto a mim serás já, somente, vulgarmatéria. Sim, serás mais humana, mais verdade, serás por fimreal, mas terão terminado meus sonhos de poetalouco, pois só sou humano quando estou no meu mundoirreal.Quando estiveres a meu lado já não serás minha musa; serás o inalcançável com a tua mão estendida, essa mão que nunca conseguirei apertar.91E teu braço será a testemunha que acusa quem lhe responder, que não é assim a vida, que siga! que siga!92A METAMORFOSENão posso conceder-te o que não é meu, já que hoje é teu, tudo o que ontem foi meu. Recorda que me disseste que estavas só e tinhas frio. Acaso terás esquecido que naquela noite te deixei todo o meu ser para te aquecer.Há em cada entrega uma metamorfosee o que se entrega jamais se pode voltar a possuir.É certo que às vezes nos é devolvido o ser depoisde amado. Mas, ainda que pareça sempre o mesmo, acaba sempre por renascer.

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Como não quero que me devolvas esse meu serque tu amaste, faz-me um favor, se puder ser.94Disseste-me que gostavas de senti-lo perto. Se não te importas, gostaria que o guardasses. Sempre tive como ideal acariciar eternamente o coração de uma mulher.CARTA A LAURAQuerida Laura:Como te disse há pouco pelo telefone, recebi os livros que me mandaste juntamente com os Cohibas e a tua amável e terna carta. Depois de ler a carta e de ter fumado um dos charutos, com sabor e aroma de amigos [as], de sol do Caribe e de outras recordações que despertaram, folheei os livros. Obrigado! Quando os tiver lido todos, dir-te-ei quanto me encantou a magia que pressinto neles.A frase que se segue é da tua carta: «Pensei no teu desejo de morte e quão cheia de vida a tua cabeça está, e fico triste quando sinto esta contradição tão forte.»Sim, há vida na minha cabeça porque eu amo a vida, toda a vida, todo o ser vivo, seja ele racional ou irracional, porque todo o ser vivo é misteriosamente belo. E como sou um ser racional e tenho uma sensibilidade estética, não aceito a fealdade de contemplar um ser vivo — neste caso eu próprio — num estado tão miserável de impotência; sobreviver assim95causa-me vergonha e, portanto, uma grande humilhação. Daqui nasce o conceito racional de morrer para defender a nossa dignidade. Repito que amo qualquer ser vivo, e não somente a mesquinha, invejosa e arrogante espécie humana - que amo também apesar de tudo —, mas parece-me que há qualquer coisa de aberrante no seu modo de raciocinar. Esse empenho em proteger-se tanto a si própria que raia o absurdo de querer proteger a vida dos demais indivíduos da mesma espécie contra a vontade racional destes. E uma forma de escravatura!Porque há vida na minha cabeça, mas uma vida racional, creio e penso que a liberdade é a única coisa que dá sentido à vida. A liberdade é o anseio mais forte de todo o ser com capacidade de movimento. Pode-se renunciar a grande parte desse movimento e uma pessoa sentir-se ainda livre. E haverá quem se resigne a sobreviver sem nenhuma liberdade de movimento. Eu não. Não aceito a vida sem a liberdade mínima de movimento que o corpo me dê para sobreviver por mim próprio. Sem essa liberdade mínima não há possibilidade de sentir felicidade ou alegria.Há animais que sem liberdade nem sequer se reproduzem. Outros morrem de tristeza e de melancolia se os privarem da sua liberdade. Eu sou também um animal, mas que tem a capacidade de se interrogar sobre o sentido da vida, e sai-me sempre a mesma resposta: o sentido da vida é a liberdade para ser livre de viver, amar e morrer, mas livre, livre, livre...Mas a minha liberdade é a liberdade de todo o ser vivo, da vida toda. Não é apenas o meu desejo egoísta e cioso de gostar de mim mesmo, ou dos meus familiares e amigos, mas de todos os seres humanos que são e serão nossos filhos, e de todos os seres vivos que são e serão nossos irmãos. Raio96de paradoxo, não achas, quantos matarão até à extinção da espécie?Deixando de lado a origem e a génese da humanidade, a minha vida pertence a esta espécie, mas antes pertence-me a mim como indivíduo celular desse grupo. O grupo dominante desta espécie pode negar-me a liberdade da minha morte voluntária, se com o meu acto puser em perigo a própria espécie, ou a vida ou a liberdade de alguns do seus indivíduos. Mas eu não atento contra nenhum destes dois princípios com a acção de pôr termo à minha vida.Entendes por que me é negado este acto de liberdade, de respeito e amor por mim mesmo, que não é, ao fim e ao cabo, mais do que um gesto de amor e respeito pela própria vida? A resposta é óbvia: para manterem o princípio da autoridade, não por amor e respeito pela vida, pela espécie ou pelo indivíduo.Desta forma nunca me respeitaram. O meu raciocínio e a minha consciência passarão da vida à morte sendo escravos de outras consciências. Terei padecido à mais atroz e imoral das escravidões só porque a meus amos isso terá sido politicamente conveniente. A dada altura,

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aboliram a escravatura dos corpos mas, ao que parece, têm muito mais medo da liberdade de consciência.O conceito constitucional da dignidade da pessoa não pode limitar-se ao simples direito a que uma pessoa não possa ser torturada, humilhada, pelo poder e pela autoridade do Estado. Tem de se entender que a pessoa tem direito a não ser humilhada pela tortura do sofrimento inútil, irremediável e atroz.Dizia-te no início que se pode ter amor à vida e desejar, ao mesmo tempo, a morte quando se tem amor à vida inteira97como um todo sensível. Pela minha dignidade, creio que já to expliquei. Para me referir à vida sensível darei como exemplo a anedota que conheces porque estavas presente quando ocorreu: a daquela pessoa que me perguntava quais as causas e motivos para que eu desejasse morrer. Eu expliquei-lhe a vertente triste e patética da minha história, como a relato e vivo todos os dias. Pensava que aquela pessoa tinha a couraça e o capacete do técnico que exerce o ofício de observar a história de ruínas humanas, quando me dei conta que se lhe partia o coração, e de que não lhe serviam de nada a couraça e o capacete, porque não os levava consigo ou porque não estavam bem ajustados como as normas do ofício ordenam: que não me doa muito o sofrimento que eu não possa remediar, e se me doer tanto a culpável injustiça ou a estupidez dos que não a remedeiam a ponto de me fazer chorar de impotência e de raiva, então é melhor não olhar para essas ruínas.Mas aquela cena, a que tu e eu assistíamos, é ou pertence àquilo a que eu chamo a vida sensível, um todo afectivo, porque o meu sofrimento era o seu sofrimento, e o sofrimento dela era o meu também. Éramos dois seres impotentes para nos ajudarmos mutuamente. Se tivesse podido morrer naquele instante, ou antes desse instante, teria partido desta vida com um dos mais ternos, humanos e serenos olhares. Aquela pessoa teria ficado menos triste porque a minha dor - que era também um pouco a dela - terminara. Eu teria morrido sabendo que a minha dor não voltaria a causar o mesmo sofrimento a outro ser sensível que me contemplasse. Já aqui não estaria para que pudessem ver-me como um farrapo humano.Poderás interrogar-te quando digo que uma pessoa pode querer morrer por amor aos outros, por que não quererá98sobreviver por eles também, se com a morte lhes causa dor? E a resposta é bastante óbvia: qual seria o sofrimento mais injusto?Dizes na tua carta que conheces pessoas que nas minhas circunstâncias querem continuar a viver apesar de tudo. Deixam-se enganar ou escutam o que querem ouvir para espantar os medos, aqueles que têm capacidade de raciocínio. A maioria já tem - ou temos? -, atrofiado o sentido da autoestima, o pudor, a dignidade. A imensa maioria não quer, nem lhes é permitido, ver a própria realidade.Dizias também que conheceste uma rapariga tetraplégica que não aceitava a sua situação e falaste-me do conflito dela com o pai. Penso que a solução é bastante simples: a essa rapariga deveria ser-lhe perguntado se quer sobreviver ou não no inferno. E a determinação seria, estritamente, um acto de vontade pessoal. Se eu fosse o pai dessa rapariga perguntar-lhe-ia se quer morrer ou viver. Se a resposta dela fosse a morte, dar-lhe-ia um prazo de três meses para que voltasse a reflectir sobre a sua situação. A rapariga teria de ser responsável pelos seus actos, e não descarregar o seu ódio contra os demais.Também conheço pessoas dessas que tu dizes que aparentam vontade de viver. Há muito artifício e muito fingimento no ocultar do medo e da angústia em quase todos nós! Quando ouço falar algum dos técnicos desses centros clínicos, e dizer que a maioria das pessoas que chega aos seus serviços com a morte próxima já a não pedem porque se entregaram aos seus amorosos cuidados, tenho vontade de lhes perguntar se com hábitos culturais diferentes essas pessoas se comportariam psicologicamente do mesmo modo.Interrogas-te se numa cadeira de rodas a minha vida - deixo que lhe chames assim - teria sido diferente. Não, nunca a quis99

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nem quero. Aceitar a cadeira é aceitar uma miserável liberdade. E aceitar um pouco, também, o poder caritativo do sistema e a capacidade de persuasão deste. Aceitar a cadeira - estou a referir-me a um tetraplégico — é aceitar a aparência de pessoa quando não se é mais do que uma cabeça. A mim não me basta apenas a cabeça, nem mesmo se pudesse desenvolver alguma actividade de carácter intelectual!Explicar-te-ei quais eram as verdadeiras imagens do meu corpo nu numa reportagem da Telemadrid. Ao vê-las são chocantes, horríveis, e de mau gosto. Mas a condição era que começassem com o seguinte texto, ou que não se emitisse a reportagem: «Caro telespectador, estas são as imagens de um corpo atrofiado, insensível, morto, ao qual está presa a minha cabeça sensível e racional. Se pensar num diálogo entre o meu raciocínio e a minha circunstância, esse diálogo leva-me à conclusão de que a morte é o melhor para mim. Já que não há nada mais certo senão o facto de que tenho de morrer.»Enquanto uma pessoa puder bastar-se a si própria, seja com cadeira de rodas, muletas ou bengalas, sempre que essa pessoa se considerar livre, a vida dela terá sentido. E quando esse sentido acabar, e a razão humana o entender, nessa altura será tempo de morrer. «Há um tempo para todas as coisas sob o sol.»Sim, pensei muitas e muitas vezes se valeu a pena ter vivido todos estes anos. Não, não valeu de nada o meu sofrimento, nem tão-pouco a dor que o meu sofrimento causou. Se tivesse tido a liberdade de morrer a tempo, a dor teria tido a medida do amor humano. Teria deixado o meu olhar noutro olhar, o meu sorriso noutro sorriso, os meus maiores agradecimentos a quem me tivesse ajudado, por amor e100respeito, a despojar-me do meu corpo. Teria deixado, como deixa o sol quando se submerge no mar ao anoitecer, pintado no céu o mais impressionante e formoso quadro: um gesto sereno como uma carícia de despedida quando alguém se vai deitar. Como uma pupila que, lentamente, vai cerrando a pálpebra imensa do céu tingido de vermelho, e à medida que ascende se vai esfumando em ouro, ocre e azul, até se unir lá no alto ao sono escuro da noite, que o empurra para baixo, a pouco e pouco, com tanta ternura que mais parece que alguém invisível o embala para que adormeça.Morrer é apenas isto. Uma pessoa deitar-se a dormir quando está muito cansada, serena e tranquilamente, sem receio do sono, sem tristeza nem rancor mesquinho, deixando no mundo uma recordação boa de nós mesmos, em tudo quanto amámos, como deixou o sol a sua mais linda despedida gravada na minha memória. Mas para isso é preciso que sejamos tão livres, tão livres, tão bons, tão bons, que talvez correspondesse a desejar que os humanos sejam demasiado humanos.Pessoalmente, penso que para tolerar a eutanásia, ou o direito a morrer com dignidade, é preciso amar de verdade as pessoas e a vida, e ter um sentido profundo da bondade.Confesso-te que no dia em que recebi as vossas prendas estava muito contente, porque uma pessoa — eu — não tem assim tantas oportunidades de se encontrar com pessoas como tu, dessas que ao olhar-lhes para a cara vemos nelas, através das pupilas, algo mais do que nos podem dizer as suas palavras. Esse alguém que te diz com a alma que deseja proteger-te. E tu respondes-lhe com a tua que já o sabes. E gostarias de dizer-lhe, para não ver a sua tristeza, que basta sentires-te querido para sobreviver, que quando101te sentes tratado com amabilidade e ternura é motivo suficiente para te agarrares à vida como uma lapa. E gostarias de dizer-lhe - parodiando Neruda - que a ternura cai na alma como o orvalho no prado, mas não podes porque isso também não te basta.Recebe um beijo e um abraço muito grandes, muito grandes.102

PORQUÊ MORRER?Porquê morrer?Porque o sonho se tornou pesadelo.Porque a razão humana é mais hipocrisia

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e menos verdade. E a liberdade só para os ingénuos éuma inalcançável utopiaMorrer é um acto humano de liberdade suprema. E ganhar a Deus a última partida. É um corte de mangas que democraticamente fazemos à dor por amor à vida.E irmos em busca de um novo céu onde, talvez, aglória nos sorria, porque este que nos inveja tem a eterna cara decão raivoso que nos humilha, latido a latido, segundo asegundo, cada vez com mais força, deixando-nosainda mais escarnecidos.104Morrer é jogarmos numa só carta toda a nossavida. É apostar tudo no desejo de encontrar uma luzque nos ilumine o novo caminho.E se perdermos a aposta, só perderemos a desesperança e a dor infinita. Só perderemos o canto que, lágrima após lágrima, nos inunda a alma.Como o náufrago que, depois do barco afundado, somente espera, com a resignação do vencido,esgotar a força da última braçada parase entregar, como o amante rendido, às ternas carícias do seu amado mar;aos seus beijos salgados e rumores de brisas.E se ganharmos a aposta da morte, se asorte esquiva mais uma vez nos olha, ganharemos o céu, porque no inferno jápassámos toda a nossa vida.Porquê morrer?Porque toda a viagem tem a sua hora de partida. E todo aquele que vai de viagem tem o privilégio, e o direito, de escolher o melhor dia de saída.Porquê morrer?Porque às vezes a viagem sem retorno é o melhor105caminho que a razão nos pode mostrar, por amor e respeito à vida. Para que a vida tenha uma morte digna.CARTA A LAURAQuerida Laura:Dizes-me que te escreva e que te conte o que penso sobre deus, a vida, o amor e a morte. Também me perguntas na última carta — ou perguntas a ti própria — com a lógica curiosidade da jornalista, se choro, se desespero, ou se desejo tanto a morte que não há nada que me faça mudar de ideias.E por que te estou a escrever a ti, precisamente, quando és jornalista, se prometi a mim mesmo não dizer nunca nada a ninguém, como me propuseram mil vezes? Então por que estarei a fazê-lo?No dia em que Gene Gordo me disse que havia uma jornalista que queria fazer uma reportagem sobre a eutanásia, houve duas coisas que considerei de confiança: uma foi o nome da pessoa, Laura Palmes; a outra, o facto de ela padecer de esclerose múltipla e concordar que a pessoa deve ter esse direito. Depois o primeiro impulso veio a confirmar-se. E têm vindo a confirmar-se as minhas próprias certezas de106que há seres humanos que vale a pena ter conhecido, ter-lhes feito uma pequena festa como um aceno cúmplice e solidário, que lhes sirva de bálsamo humano para aliviar, ainda que apenas por um instante, a dor de viver. Não é pelo tópico estúpido do «eu compreendo-te!». Não. É porque se aprendi alguma coisa nestes vinte e cinco anos é que só tenho um amor para dar, que é a ternura, se bem que muitas pessoas confundam a amabilidade, o sorriso simpático e a paciência estóica com a estupidez.Da vida penso que começa pelo amor; e tudo quanto se entende por amor é na lei universal da vida um prazer: um telefonema teu é uma forma de me amares porque gosto de ouvir a tua voz. E se me disseres que te agrada receber uma das minhas cartas, essa é uma forma de eu te amar,

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pois a mim também me satisfaz saber que as minhas tolices podem criar em ti alguma ilusão. A ilusão de um sonho que dure um momento, não porque eu diga qualquer coisa interessante, mas pelo simples facto de saber que há alguém que idealiza a nossa imagem nos seus pensamentos.Depois há o prazer de contemplar o mar, cheirar o seu perfume de algas e sonhar com mil outras recordações agradáveis - as desagradáveis são postas de lado -, e cheirar o perfume do bosque e da terra, e escutar os sons da natureza inteira. Tudo isto é prazer, como é prazer receber na cara, num dia de inverno, a cálida ternura de um raio de sol como se fosse uma carícia da natureza — mãe cósmica que nos pariu. Contudo, todo este prazer, para mim, não equilibra o peso entre o desejo de viver e a necessidade de morrer. Não é amor suficiente o que me dá a vida. Sabes o que minha mãe pedia a deus? Que a vida que ela gerara com o amor dela - eu - partisse oito dias antes dela, ou oito dias depois. Claro107que a minha mãe pedia isto a deus, e eu peço-o à lei, mas ao que parece estão ambos surdos, ou, o que é pior: são ambos a mesma pessoa. As mães deviam fazer sempre de deuses, porque seriam sempre justas. Agiriam sempre com amor.Há gente - muita, ao que tudo indica - que tem um modo muito estranho de gostar de mim (de amar-me); e que, uns por umas razões e outros por outras, querem que continue um pouco mais para chegar ao mesmo sítio, mas, isso sim, à maneira deles.No dia em que me atirei ao mar — ou melhor, que caí -estava, precisamente, a pensar no outro amor: num que durara apenas vinte e dois dias. Ela tinha dezoito anos e eu vinte quatro. Quase um ano antes, num pequeno porto de Fortaleza (Brasil). Comparava aquele amor de marinheiro, louco, livre, sem nenhum preconceito moral, com este de agora, honesto e atemorizado por perder a virgindade, e pensava que tinha de jantar na companhia da sua família naquela noite. Estou a dizer-te a verdade: tinha dúvidas sobre se havia de deixar plantada a cena formal de noivado, esposa e grilhetas, e fugir para o Brasil onde as putas não cobravam tarifa.Na reportagem que me fizeste sobre a eutanásia (morrer para viver), quando me perguntaste pela noiva, a primeira coisa que me veio à memória foi o que acabo te contar-te, por isso hesitava entre contar a anedota ou ficar pelo essencial da última mulher na qual o meu barco se detivera, como se fosse o último porto que eu tocasse em busca do amor de uma mulher. Talvez isso que tanto idealizamos não seja mais do que uma simples lei universal, a da gravidade, que nos leva sempre, inexoravelmente, a girar em torno da figura da mulher, e a mulher em torno da figura do homem. E cada108espécie gira em volta da sua própria lei, da lei do prazer fatal de reproduzir-se.Penso que o amor, vida e morte, é tudo a mesma coisa. São as diversas leis que regem um todo. Claro que a nossa espécie tem a capacidade de se interrogar donde saiu e como, e para onde vai e para quê. Analisamos os nossos sentimentos e tratamos com desespero de lhes encontrar sentido; mas no fundo de tudo jaz sempre a lei cósmica do desejo do prazer. Que é, senão isso, o mito de Deus? Para além de uma figura moral, o lugar onde a dor não existe, somente o prazer. O bem-estar eterno.Perguntas-me se desespero. Não, só que já não estou aqui a fazer nada. Não se pode viver apenas a recordar a vida. Tem de haver um equilíbrio entre o corpo e a mente. Se falhar um dos dois, falha o próprio projecto que a vida concebeu. De que serve conservar na memória, intactos, todos os sentimentos, fantasias e paixões intrínsecas a todo o ser humano, se só servem para me atormentar com desejos que jamais poderão realizar-se? Não é desespero. É lógica racional. A ideia da morte nestas circunstâncias é mais do que um simples desejo de separar-me da vida. É o desejo de terminar uma existência que não encaixa dentro das leis da minha razão.Não há beleza possível, porque não há esperança. E quando à vida não resta beleza, a morte oferece-nos a poesia do sono que a razão procura. Não há mais voltas a dar. O ser humano não aceita a sua mortalidade porque a lei universal do medo da morte não lho permite. Uma pessoa pode sobreviver com a ajuda dos seus semelhantes. Pode e deve ser assim, se ela solicitar essa ajuda. Mas, quando alguém não consegue sobreviver pelos seus próprios meios, e solicita ajuda a outrem, os outros devem prestar-lhe a ajuda que ele solicita,109

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não a que os outros lhe querem dar de acordo com os seus preconceitos morais.Penso que a existência de Deus é uma dedução lógica da capacidade racional da espécie humana, mas uma dedução errada. É lógica a seu tempo, mas é superada no passo seguinte no processo evolutivo da espécie. Esse passo seguinte é a razão científica e o conhecimento das leis do equilíbrio universal.O indivíduo nos seus primeiros diálogos com a natureza e os fenómenos que o impressionam e atemorizam chega a uma conclusão - lógica para um ser místico e supersticioso: que tem de existir uma lei, um princípio, um ser criador de uma coisa tão incompreensível para ele como é a vida e o universo.A confusão instala-se quando os bruxos crêem interpretar nos seus delírios a vontade do princípio criador.Quando se debate o direito da pessoa a pôr termo à vida, aparecem sempre em cena os médicos — menos na tua reportagem - e repetem sempre a mesma irracionalidade: nós existimos para salvar vidas.Os médicos não salvam vidas. Reparam acidentes ou curam doenças, e esperam, como consequência lógica, prolongar a vida um pouco mais. Mas, quando não se pode reparar o acidente ou curar a doença, a sua autoridade moral ou os seus juízos de valor sobre como e quando uma pessoa pode terminar a vida, a sua influência sobre as decisões judiciais ou sobre a consciência dos legisladores não deveria ter mais peso que as minhas — neste caso — ou as de outro cidadão qualquer que reclame o direito à morte.A outra categoria é a dos padres. Estes dizem que são salvadores de almas.Todas estas categorias que detêm o poder de controlar os mais fracos — ou menos brutais —, quando se deram conta110que a astúcia servia para cavalgar outros bichos, acabaram por escravizar-nos a todos em nome do progresso, do bem colectivo, da pátria ou de Deus.Sou um ser biologicamente vivo a partir de um ponto concreto no qual a lei universal do prazer me pôs em movimento. A partir do amor de meus pais.Nasci a 5 de Janeiro de 1943. A vida talvez não seja mais do que uma soma de acasos. Segundo recordo, vagamente, creio que havia tomado gosto ao estudo mas, quando comecei a gozar o prazer da compreensão lógica das matemáticas e da letra escrita, cortaram-mo cerce. Um dia aproximei-me da mesa do professor para lhe fazer uma pergunta sobre uma dúvida que tinha; ele, sem mais nem menos, pegou no ponteiro e deu-me uma paulada tão forte na cabeça que me abriu uma racha cuja ferida começou a sangrar abundantemente. Depois, o professor voltou à posição inicial com a cabeça entre as mãos. Retirei-me da mesa, tapando a ferida até que esta deixasse de sangrar. Ali acabou a minha curiosidade. Nunca mais tentei que aquele professor me resolvesse uma dúvida. Aos dezoito anos voltei a interessar-me pelas fracções — pelos quebrados, como lhe chamavam na altura — com a ajuda de um amigo, porque precisava delas para um cálculo de certas funções relacionadas com o meu ofício de mecânico.Lembro-me que, entre os oito e os dez anos, os meus pais me perguntavam se queria estudar para padre, influenciados pelos conselhos de uma tia minha muito beata. Eu irritava--me com a espantosa ideia de me ver vestido com aquela sotaina, e a minha única resposta era: «não quero ser padre!». Pensava também que se fosse para padre não podia casar-me. Já sabia de umas brincadeiras com meninas - com uma,111claro -, brincadeiras que eram absolutamente proibidas àqueles bichos raros vestidos com sotaina.Quando comecei a ler por minha conta, depois do acidente, converti-me à religião dos profetas modernos, os profetas da razão científica. E os mestres do racionalismo seduziram-me, convenceram-me de que pensar é uma forma de orar — de humanizar-me — mais efectiva.O assombroso para a razão humana é a beleza da vida em si mesma. E isso que nos impele a amá-la. Não pelo poder que tenha a personagem, a força ou o princípio criador. Com o pouco que conhecemos sobre a origem da matéria e os segredos que ainda restam por desvendar sobre os processos físico-químicos, como determinantes para a formação de seres vivos, à

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minha razão parece mais lógica, mais credível, a ideia de que a matéria tenha em si mesma a capacidade de poder evoluir com inteligência, por meio de estímulos físico-químicos, até chegar a constituir-se como racional.A minha crença na matéria racional pelo processo evolutivo é tão sagrada como a daqueles que crêem na sua existência devido à caprichosa vontade de um deus. Os crentes na palavra dos profetas antigos dirão que os meus raciocínios são uma mescla de mística alucinação e de sofismas disparatados. Certo! Mas a minha loucura é tão respeitável quanto a deles.Mas, em suma:1º Todo o ser humano deve ser considerado como um fim em si mesmo (Kant).2º O sagrado não é a vida desse ser humano, o sagrado é o direito do ser humano viver ou morrer de acordo com os seus princípios ou conceitos éticos e morais de dignidade e liberdade.1123º Age de maneira a que a máxima da tua vontade possa ser sempre válida e ao mesmo tempo valer como princípio de uma legislação universal (Kant).4º Prefiro sofrer a injustiça a cometê-la (Sócrates).A minha incapacidade física causa-me um sofrimento de que não consigo libertar-me. O que me provoca uma humilhação que o meu conceito da dignidade não admite. Quem me causa esta humilhação? A vida, as circunstâncias. Não é deus nem a sua vontade porque eu não creio nesta. Mas num parecer pedido pelo Ministério dos Assuntos Sociais a não sei que conselheiros, ou autoridades, sobre a questão da eutanásia, o porta-voz do dito conselho disse que não se pode saber quando um sofrimento é ou não insuportável. Como podem então ajuizar? Penso que todo o fenómeno tem uma génese muito simples: quando o animal racional (humano) descobriu a forma de dominar todas as outras espécies incluiu nesse domínio os próprios filhos, escravizando-os. Foi expulsando os que iam sobrando — o mito de Caim. Hoje são tantos os filhos expulsos de todos os paraísos...Tantos quantos os que sobram para mão-de-obra barata! Servos que se converteram na praga da explosão demográfica, na super-população. São os párias do universo inteiro. Parece que não são filhos de ninguém, nem sequer de deus. São os miseráveis que reivindicam a terra de que foram expulsos por seus pais. E as religiões entretêm-nos com a promessa de que se fará justiça por todas as humilhações depois da morte. «Eles herdarão o céu!»Deus não é mais do que a representação daquele pai dominante e astuto explorador do medo dos seus filhos a fim de domesticar a vontade destes.113E a religião? Era outrora o que são hoje em dia os psicólogos do sistema estatal de saúde: convencem os filhos do poderoso sultão, patriarca ou patrão para que se submetam à autoridade suprema do senhor.E a confissão? Não passa do sistema policial e de espionagem mais perfeito que qualquer outro posterior: se se conhece a alma — os verdadeiros sentimentos do indivíduo — tem-se a melhor forma de dominá-lo.Em resumo, interrogar-te-ás sobre o que pretendo com tanto palavreado. Quero dizer que deus, Estado e religião são coisas absurdas? Não. O que quero dizer é que os mitos e seus criadores persistem em elaborar em erro há demasiado tempo. Querem que não se possa voltar atrás na história, mas persistem em impor umas culturas às outras com o sofisma da civilização.Se alguém gosta de mim, me ama e me respeita, que me preste a ajuda que eu lhe pedir, que me ame com o respeito que lhe solicito. Se assim não for, será uma violação dos meus princípios, da minha personalidade, das minhas crenças, do meu deus. O melhor será aquilo que amo e compreendo. E o melhor que todo o ser humano - e não humano - compreende é o amor. E o amor é dar como dão o sol, a água, o mar e o ar. Deus? A natureza? Não pedem nada em troca. Somente o equilíbrio. Não há erro ou crime mais atroz do que negar a alguém o direito de pôr fim à sua vida para terminar um sofrimento incurável. Esses mesmos que proíbem, contemplam indiferentes como morrem milhões de seres humanos de fome e miséria, ou como lhes são dadas armas, cada um deles ao bando a que pertence a sua religião, para que se massacrem em guerras repugnantes em defesa do seu deus, da sua cultura, da sua religião.114

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Quando os seus raciocínios não nos convencem, que prevaleça a nossa vontade de abandonar a vida para curar o nosso sofrimento. E essa a verdadeira forma de mostrar amor e respeito à vida e ao ser humano. Sem pedir nada em troca. Assim nos amam o sol, a terra, o mar, a água e o ar. Em nome do seu deus.115DO MAL (E DO CRISTIANISMO)Querida Dina...Tu confias em deus. E eu no pensamento.O paradoxal é que a Dina não se considera obcecada nem fanática de nada. Dina não acredita que a vida tenha começado no fundo do mar, que foi uno no princípio e se fez diversidade. Dina prefere a hipótese de que provém de uma costela de Adão. Todo o sofrimento irracional é uma tirania, assim como toda a tirania causa um sofrimento irracional e injusto. Jesus não veio libertar o mundo do sofrimento mas sim dizer aos pregadores que libertassem o mundo do sofrimento que causam. Como faz qualquer pessoa bem nascida hoje em dia! Jesus é um idealista, pacifista e nobre, mas a história contam-na os velhacos como bem lhes interessa. Jesus defende a dignidade e a liberdade do ser humano, mas o seu idealismo foi utilizado por quem se aproveita de toda a ideia, de todo o conhecimento que possa servir-lhes para dominar. Da nobre ideia de Jesus, inventaram os hipócritas uma seita116distinta, uma religião mais, um poder totalitário e dominador mais. Jesus ensinou muitas coisas, entre elas a superar o terror da morte e da dor, a não nos deixarmos dominar pelas ameaças do poderoso. Esses dois temores, não racionalizados nem superados culturalmente, são a arma mais eficaz que possuem os tiranos de todo o tipo para escravizar o ser humano com a ameaça da tortura ou da morte se este não se submeter à autoridade deles.Jesus morreu por se ter rebelado contra a crueldade política e religiosa do seu tempo. Os hipócritas aproveitaram a sua lei para eliminá-lo e criar com a ideia cristã outra tirania, outra escravatura. Assassinam em seu nome revolucionários nobres, que se revoltam contra a injustiça e a corrupção de qualquer poder.Quando se mata um qualquer Jesus de Nazaré mata-se sempre o filho de deus, porque se mata a ideia, a liberdade de pensamento. Mata-se sempre o filho de um deus, mata-se o próprio deus, quando se mata a consciência ética de um ser humano que se revolta contra a injustiça e o sofrimento que qualquer tirania provoca. Deus é a minha consciência! Deus é a consciência de cada ser humano justo, nobre e bom!117

CREDOCreio no deus homem todo poderoso... naquele que jamais se humilha a rezar. Entregar o orgulho não é ser generoso, pois todo o que se humilha aprende a humilhar.Um homem sem medo, que não se ajoelheesse é o homem em quem quero crer,que não domine ninguém, nem ninguém o domine,que ser homem seja tudo o que quer ser.Creio nesse deus, porque esse homem por ser homem será um deus mortal. E estará, honrando o seu nome de homem, acima do medo, da morte e do mal.Creio no deus homem tão orgulhoso como o mais poderoso deus imortal, aquele que fale aos deuses, e aos poderosos, com dignidade de homem, de igual para igual.Não penses que me refiro a ti, homem mesquinho;tu que és poderoso porque és usurário,ladão, mentiroso, despótico e brutal,tu que queres convencer-me de que a tua autoridadeé necessária e justa porque te converteste — calculista -num astuto, hipócrita e velhaco imoral.Eu creio no deus homem todo poderosoque seja homem, deus, planta e animal.Essa é a minha trindade, o meu verdadeiro credo:

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uma mulher e um homem, ideia racional.AQUELE QUE PROCURA(SAMARITANA)Não me digas que não sei o que procuro, porque sei, mulher. Procuro o meu equilíbrio, que não pode ser o teu equilíbrio.Não te enganes a ti mesma. Tu sim estás perdida. Tu sim tens medo.Por isso chamas pelo teu pai para que te liberte do temor de todo o desconhecido, de toda a escuridão (tu procuras um deus protector).Tu não queres morrer, por isso queres que alguém te assegure que esse desejo se pode cumprir. Se és imortal, só a tua consciência to pode garantir.Eu não quero ter a certeza de nada. Quero a surpresa, a aventura. Quero fazer o caminho sem que o itinerário esteja marcado e previsto de antemão. Não quero ser carneiro. Sou marinheiro, e no mar, como na vida, não estão marcadas as veredas.Podemos sempre inventar outra história, outra génese, outro deus.120Eu não procuro deus, amiga, não preciso. Procuro apenas algo novo, algo melhor. Porque esta paisagem não me agrada; é rotineira, triste e monótona. Por muito que me afirmes que ela é do teu deus, continua a não me agradar.Não me digas, pois, que o procuro. É mentira. Ou, pelo menos, um grande erro. Era a ti que eu procurava desde o começo, desde a própria origem para encontrar num abraço o equilíbrio nosso: ser eu o teu deus, o teu ser o meu. Rezarmos e adorarmo-nos mutuamente quando tivéssemos medo da vida, medo da morte, medo do amor.Samaritana, era a ti que eu procurava, não a deus!121

CONTO PARA UMA ADOLESCENTEQuerida Maria Xosé:Numa das tuas cartas dizias que entendias bastante pouco o barulho ideológico que observas na espécie humana.Quem não entende — ou não crê — nas leis da evolução nunca chegará a amar e a compreender a vida, porque não se conhecerá a si mesmo.Segundo a ciência, num instante determinado da história do planeta Terra, a união de uns átomos compatíveis entre si deu origem ao primeiro ser vivo.O acontecimento ocorreu no fundo do mar.Hoje chama-se casamento ou matrimónio a esse ritual. Basta que se dê a circunstância precisa para que todo o desejo e vontade compatíveis sejam realizáveis. Como acontecerá contigo quando te apaixonares e formares par com um rapaz. Para que o enlace seja compatível, terão que ser compatíveis os vossos desejos e vontades.Poder-se-á então deduzir que essa compatibilidade atómica do princípio é uma forma de inteligência que a matéria122possui, ou pelo menos certos átomos. Por que somos então racionais?HIPÓTESE: Depois do primeiro emparelhamento material, os filhos da vida dispersaram-se em todas as direcções através dos mares. Cada um deles é - e continua a ser -como uma máquina fotográfica em que vão ficando impressas todas as sensações sentidas através dos sentidos. Este princípio é uma lei universal para todo o ser vivo.Esta matéria inteligente vai elaborando informação e criando os seus órgãos específicos.Imagina que um grupo de pessoas percorria um mesmo caminho durante um tempo e, no final, lhes fosse pedido que fizessem um relato pormenorizado de tudo quanto tivessem visto e de que modo as cores, os sons e os aromas teriam ficado gravadas nas respectivas memórias. Certamente, cada uma dessas pessoas daria uma versão diferente da das outras. Todo o ser vivo é perito em economia vital. Todos se adaptaram ao meio que lhes conveio, rejeitando sistematicamente a dor desagradável. Procurando o máximo de prazer com o mínimo de

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esforço. Cada desejo criou a sua vontade e cada vontade projectou os seus órgãos segundo os seus desejos.Um dia conversei com o teu professor Mário Clavel. Expliquei-lhe que o pecado original consiste na corrupção moral da razão. Isto é, que no momento em que o ser humano tomou consciência de que era mortal e que não queria ser devorado, torturado, dominado, escravizado, ao fazer aos outros seres vivos tudo quanto ele próprio rejeita, traiu a própria consciência. Caiu no pecado da incoerência. Negou os seus irmãos de evolução. Afastou-se deles, ignorando a dor dos outros.123O teu professor — com a atitude arrogante de quem já sabe a resposta, o preconceito — fez-me a seguinte pergunta: «Qual é, na tua opinião, a solução?» «Não há outra senão corrigir esse erro», respondi.O teu professor continua a tentar justificar o sofrimento como um dever moral. É boa pessoa o teu professor, só que se engana quando pensa — ou crê — que a dor do mundo se resolve fazendo companhia a quem sofre.Pelo facto de acompanharmos alguém não se lhe evita o sofrimento.Se evoluímos até chegarmos a ser racionais, seria absurdo que tal acontecesse com o objectivo de sermos eternamente sofredores, ao mesmo tempo que esperamos que um misterioso herói venha resgatar-nos.Somos racionais porque desejamos conhecer-nos a nós próprios.Enquanto o ser humano não se libertar do paternalismo, não poderá libertar-se da tirania de nenhum sofrimento porque sempre renascerá um falso, feroz e paternal profeta. A profecia é válida enquanto não se conhecer um método mais específico para conhecer as leis que regem o universo e a matéria. Os teus professores sabem as respostas, mas não querem dar-tas!Só modificando uma hipótese saímos de um erro e compreendemos muita coisa.Carinhosos cumprimentos.124CARTA A WILMAQuerida Wilma:Recebi a carta que me enviaste através do El País.Linda pela profundidade humana, se bem que muito triste. É um paradoxo que alguém que deseja a morte possa dar a outrem motivos para viver.Começarei com um pequeno poema que intitulo «Mulher e Homem»:Olá, mulher! Olá, homem! Que fazes aí sentada? Estou à tua espera. Para quê?Para que semeies um filho em meu ventre. E que farás com ele quando nascer? Levá-lo-ei a percorrer a terra para que se lave de todo o preconceito.125Que seja nada mais nada menos que um homem ou umamulher: sem pátria, sem raça, sem deus e sem fé. E depois?Se for mulher, sentar-se-á à espera de um homem, e se for um homem sentar-se-á à espera de uma mulher. Sem pedir mais do que um filho, para ensiná-losobre a terra a ser livre e querer.Eu no teu lugar teria todos os motivos para viver. Mas, claro, eu não estou nas tuas circunstâncias. Além disso, sou homem e tu mulher. Eu só quero ser livre para amar. Não quero ter nada meu que um dia possa lamentar ter perdido. Não é a mesma coisa participar na feitura de um filho ou pari-lo.Para mim todos os filhos do mundo são meus. Se não me amam é porque me enganei ao ensiná-los a amar. Talvez a ingratidão se deva ao erro de ensinar as crianças a amar-nos e não a amar. Mas a solução não é lamentarmo-nos e desculparmo-nos mas sim procurar as causas e corrigir os erros.Percebo que a tua vida — como a de todos — é a consequência de uma soma de erros e preconceitos que somente poderás resolver quando conseguires libertar-te deles. Quando os arrancares da alma como fazem os marinheiros no meio da tempestade quando, em caso de necessidade, atiram pela borda fora a carga que serve de lastro ao barco e os desequilibra, a fim de se salvarem do naufrágio.

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Não importa quem seja o culpado das nossas desditas, não serve de nada lamentarmo-nos. O que foi já não existe.126Só nos resta o recurso a começar de novo. E se for necessário, continuar o caminho sem os filhos. Arremessa o teu lastro, procura a tua estabilidade. Já fizeste por eles o suficiente. Procura outros filhos, mas não para te agarrares a eles mas para os salvares do naufrágio - para os ensinares a amar. Pelo facto de seres mulher todos os filhos do mundo são teus. Nem todos te pagarão com ingratidão!Gostaria de poder apagar todas as cicatrizes que a estupidez humana deixa na alma de qualquer criança. Gostaria de poder apagar da tua memória a marca daquele orfanato e as causas pelas quais lá foste parar. Gostaria de apagar a crueldade daquelas freiras professoras. Gostaria de poder apagar todos os teus fracassos e erros conjugais. Pode ser que tudo isso seja o que nos humaniza e nos capacita para podermos compreender e perdoar quase tudo. Contudo, quando ouço alguém dizer que não tem amor, afecto e compreensão, envergonho-me dos mestres. Todos somos mestres!Claro que nós adultos também precisamos de afectos que nos dêem motivos para viver. Se bem que eu acredite que seja melhor procurar alguém que necessite de se apoiar em nós. Na gratidão dos que se apoiam há uma recompensa maior do que quando somos nós a apoiarmo-nos. Quem dá é sempre mais forte!Quando verdadeiramente necessitamos, há sempre alguém em quem nos apoiarmos. Mas, se sobreviver depende do esforço dos outros, a vida pode vir a ser humilhante. Só um ser imoral tem prazer em viajar à custa do esforço alheio.Dizes que dispões do principal. Se assim é, esquece todas as ingratidões. Fala com os teus filhos. Não sei o que deverás contar-lhes. Não sei que preconceitos terão eles na alma. Nem quem são os adultos responsáveis pelos ressentimentos127deles, mas considero que se se esconder a verdade às crianças, estas acabarão por repetir — como tu — que não tiveram amor, carinho e compreensão. Tu terás a certeza de que não é verdade. Saberás que os amaste com toda a alma de mãe. O erro estará em que eles nunca o entenderam.Que importa quem é o culpado, o teu motivo para viver é que eles não repitam um dia o mesmo que estás a fazer hoje!Que podes fazer?A verdade encontramo-la sempre dentro de nós próprios. A verdade é o que nos torna livres.Se não consegues recuperar esses afectos em cuja criação puseste todos os teus anseios de mulher, liberta-te deles. Não te fiques pelo lamento estéril.Sim, é triste a ingratidão humana, mas, se te deixares vencer, terás contribuído para o triunfo da crueldade no mundo.Senta-te. Escreve a tua história. Talvez te leve o resto da vida a contá-la, mas um dia lê-la-ão os teus filhos, os teus maridos, os teus pais, as tuas professoras ou outro ser humano qualquer que te tenha conhecido. Terá sido um bom motivo para viver. A tua vida terá servido para revelar a tua verdadeira história. Conta a tua história e os estúpidos compreenderão que buscavas apenas, por esse labirinto infernal construído de intolerância e de preconceito, um pouco de gratidão, de compreensão e carinho, como todo o ser humano.Dizes que a vida foi injusta contigo. A vida nunca é injusta com o ser vivo porque a sua essência é amoral. As verdadeiras causas da injustiça radicam no facto de a felicidade de uns se construir sobre o sofrimento de outros. O terrível é que os parasitas acabam por convencer as vítimas de que estas têm a dor que merecem.128Aquele que, gozando de boa saúde, passa o tempo a lamentar-se de que não tem razões para viver, está derrotado.Não vês a tua contradição, Wilma?

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Se acusares os teus pais, parasitas, pessoas de família, deus ou a vida da tua infelicidade e a seguir te suicidares renunciando à vida, esses a quem acusas terão sido os teus verdugos. Não terá sido a vida a derrotar-te, ter-te-ão destruído a mesquinhês e a crueldade dos néscios.Poderia ter-te escrito uma carta mais terna, que levasse um pouco de bálsamo às tuas feridas. Mas tu pedes-me que te dê motivos para viver, e não um ombro no qual chorar.Também te posso deixar o meu ombro e o meu coração de humano se deles necessitares, se bem que para esse fim suponho que poderás encontrar algum aí por perto.O mau poema do início quer exprimir a ideia de que se deixassem mais livre o ser humano, este tenderia para a bondade e compreenderia melhor a dor.Lembra-te de Sócrates: «Prefiro sofrer a injustiça em vez de cometê-la!»Bem pouco caso disso fizeram os seus discípulos!Recebe um abraço e um beijo muito grandes.129A PRIMA VERAEsta palavra ridícula com nome de parenta. Esta velha senhora vestida de flores e de remendos verdes, um pouco pirosa. Não percebo porque desperta tanto entusiasmo, tantas paixões, ao efectuar ano após ano as suas travessias pela terra.A que se deve tantos salamaleques, tanto entusiasmo e regozijo pela sua vinda, quando as suas visitas são truques de magia de uma alcoviteira velha e espertalhona criando uma miragem com a expansão do pulsar da vida?Todo o bicho-careta aquece e fica vermelho com a chegada dela: uma excitação.Toda a criatura se sente do mesmo modo. E a orgia está pronta a servir!Toda a fêmea fica de amor emprenhada quando lhe passam os calores. E com sorte, algumas delas ficarão agradecidas quando se virem reproduzidas — recém paridas. Em contrapartida, outras sairão do transe, da ilusão, eternamente arrependidas por terem gozado durante umas horas para sofrer as130consequências durante toda a vida. Por aceder aos manejos da priminha, quantas fêmeas saem da ilusão completamente fornicadas.E os machos? Depois da tesão, toca a trabalhar. Defendendo a fêmea, defendendo a honra, a sua propriedade. Até ao ano que vem, e se for caso disso até à eternidade.Quando passa o calor e a terra esfria. Quando já se contrai a pulsação da vida. Vai-se a parenta que esteve de visita, deixando atrás de si um enorme rasto de prazer e dor, de prantos e de risos: o fruto da vida.Mas a ingénua vida nunca tem emenda. Tropeça sempre na mesma pedra. Pois voltarão, fêmeas e machos, a ficar apalermados quando a pirosa da prima voltar a hipnotizá-los no ano seguinte montando nova orgia.E dirão todos e todas num alvoroço desmedido: Ai, que bonita, a prima Vera!131PREFIRO A OUTRANão me vendo, vida, por tão pouco prazer;é tão desprezível o amor que me dás,a tua mesquinhês tornou-me orgulhoso,prefiro deixar-te, esperava de ti mais generosidade.A morte é minha amiga, amo-a e respeito-a, não me importa que lhe chames negra, espantosa e fria. O que amamos e desejamos sempre parece bonito ao nosso olhar.Se vos comparo em beleza,essa senhora que me mostras tão medonhagosto mais dela.Mesquinha vida, não me convencem as tuas artimanhasporque a dizes feia, horrorosa à tua rival.Ela é a outra, a que eu quero, a desejada.Vou com ela, quero livrar-me das tuas grilhetas,132

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das tuas masmorras, do teu fedor. Não te suporto, cheiras mal!Não me impressionam as tuas artimanhas deenganadora.Não sou uma criança a quem consigascom espantosas histórias de medo fazer tremer.De que te serve que os teus lacaios me tenham presoe agrilhoado? Não te desejo, nem voltarei a desejar-te nunca mais!Amiga minha, tu que um dia tanto me amaste,e de beleza tanto me falaste,deixa-me livre das tuas cadeiase não permitas que a tua vingança chegue ao fim.CARTA A AURORAQuerida Aurora:Ora muito bem! Podias ter dito antes! Não respondi às tuas amáveis missivas porque julgava que andavas em boas companhias: ser actriz e estudante universitária pareciam-me garantia suficiente para que fosses um membro da espécie humana susceptível de ser considerado equilibrado. Mas hoje sobressaltei-me ao saber que te deixas aconselhar por um psiquiatra.Como é possível que andas em semelhantes companhias? Não conheces o provérbio... «diz-me com quem andas...»? Já não consegues distinguir os verdadeiramente loucos dos que têm juízo? Quem existiu primeiro, os psiquiatras ou os loucos?Fazes-me seis perguntas.A primeira é se vejo a paisagem através da minha janela.Sim, vejo. Abraço-a. Escuto-a, e ouço os seus cantos, a sua música, os seus silêncios. Éramos - na minha meninice -inseparáveis companheiros de brincadeira. Hoje continua134a convidar-me para sair e brincar fazendo-me sinais através da janela. Para me persuadir, recorda-me aquele carvalho centenário que, como um avô paciente, me deixava trepar pelos ramos até alcançar a copa, e de lá poder ver uma coisa mágica para uma criança: o mundo desde lá de cima. Respondo-lhe que não posso. Mas ela insiste. Nomeia-me as fontes, o rio, as trutas e o cão Pistón, nosso eterno companheiro de brincadeiras. Pergunto-lhe pelo carvalho. Vê-se que fica triste. Responde-me que o assassinaram com uma serra eléctrica. Disseram os verdugos que não era lucrativo porque crescia muito devagar. Sim, contemplo a paisagem e indigno-me contra todos os violadores, pirómanos e demais assassinos que por ela andam à solta. Amo-a. Contemplo-a e sinto-me seu irmão. Imagino-me até seiva e alimento, matéria decomposta, percebes, actriz?Segunda. Vês televisão?Vejo. Observo-a. Ouço-a, contemplo-a. É um imenso telescópio, e microscópio ao mesmo tempo. Parece-me que consegue penetrar a própria matéria para observar a vida, os corpos e as almas, e o universo, o tudo e o nada. É um perfeito projector da mente humana. Mas, como sempre, os espertos apoderaram-se dela e transformaram-na num espelho que os reflecte. Isso mesmo, só reflectem de si próprios o que lhes interessa para que o rebanho os aplauda.Terceira. Falas com as pessoas que vão ver-te?Falo. Ouço-as. Não as abraço porque não posso! Observo--as e contemplo-as. Já te disse que sou louco, até lhes quero e as amo a todas, mais aos loucos, claro, porque são mais frágeis e precisam de maiores cuidados.135Quarta. Escreves muito?Muito pouco. Tenho muito pudor. É tão difícil dizer uma coisa original. Exacta, bela, verdadeira e sensata. Só me decido a fazê-lo quando encontro alguém tão doido como eu porque sei que me entenderá melhor. Nesta ocasião, escolhi--te a ti. Além disso, doem-me os dentes quando o faço, e aborreço-me. Obrigo-me a escrever um bocadinho todos os dias, nem sequer sei bem porquê. Como a ti, às vezes também me dá vontade de chorar e outras de rir. Deste modo, evito encontrar-me com as más companhias dos psiquiatras.Quinta. Conversas com a tua família?

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É possível não o fazer? Se queres conhecer-te a ti mesmo [a], tens de ver-te nesse espelho. Nós, os loucos, temos a mania de falar sozinhos. Além disso, dizem que esta espécie a que pertencemos forma uma família. O triste é que quem mais o afirma parece ser quem menos acredita nisso, ou mais duvida de que assim seja.Sexta. Como são as pessoas, o ser humano?São uns bichos divertidos. Parece que tentam desesperadamente devorar-se a si próprios. Alimentam-se de dor. Parecem-me umas criaturas vorazes que comem a cauda da mãe que tem a faculdade de se regenerar, mas eles são mais rápidos e não lhe dão tempo.É curioso vê-los a discutir se devem ou não continuar a comer. Mas também é triste contemplá-los, uns presos, outros soltos, quase todos atemorizados. Andam há tanto tempo escravizados que já perderam a dignidade. Entregaram a consciência aos heróis, aos deuses, aos chicos-espertos. Esqueceram-se de que cada um deles é um herói, um deus,136um soberano. Quando se lhes pergunta se querem ser donos de si próprios, a maioria diz que sim, mas fazem-no a medo. Não se põem de pé para reclamar tal direito. Ficam eternamente ajoelhados. Não se atrevem a pensar, como lhes aconselham os verdadeiros mestres.Parece-me que se encerraram nos seus muros de inteligência e astúcia para se protegerem de serem comidos e acabaram prisioneiros dos próprios medos.Não percebes nada do que escrevo? Pois não tivesses perguntado a um louco tantas coisas sobre a condição humana.Conta-me, querida Aurora, como amas tu a vida, o amor e a morte. Tu, que me fazes perguntas próprias desse teu amigo psiquiatra que te diz que estás a melhorar.Não digas nunca: «Seja o que Deus quiser!» Tu serás o que quiseres ser.Pergunta-te de quê ou de quem és escrava. Quando souberes, foge do redil e não receies penetrar num lugar desconhecido. Se não tiveres medo de nada nem de ninguém, de certeza que quando tiveres vontade de rir ou de chorar entenderás as causas.Também te mando um grande abraço, e muitos beijos.137CARTA A JONIAmiga Joni:Recebi o teu livro autobiográfico e a carta com data de 20-1-1995. Obrigado por ambas as coisas.Não sei qual possa ser a opinião que tens acerca do meu estado emocional, nem de qual seja o grau de depressão ou de frustração de que falas, e que supões que eu suporte.Considero-me uma pessoa muito equilibrada: não me deixo levar pelo desespero para não ficar deprimido. Também não desejo mais do que possuo, nem peço nada a deus para não me sentir frustrado. Os deuses nunca puderam - nem podem — fazer nada pelos seres humanos! Evitar a dor do mundo é responsabilidade dos homens. E como a minha dor está ligada às minhas circunstâncias, reclamo para mim a parte de responsabilidade que me cabe.Nos últimos tempos propuseram-me diversas alternativas pessoas bem intencionadas, ao que parece como tu, com o propósito de me prestar ajuda e consolo para viver. No138instante em que tomo o caminho que considero mais adequado, surge todo o tipo de seduções, ameaças e desqualificações para que desista de seguir por ele.Sinto-me tratado como uma criança que chora e que todos pretendem distrair para acalmá-la, para que assim, entretido com histórias e coisas possa encontrar sentido e valor ao pouco que me resta de vida e deixe de incomodar.A quem me oferece coisas, agradeço-lhes sinceramente o valor que as coisas têm em si, e o trabalho que é necessário realizar para comprá-las. Sei que é uma forma de amor solidário e humano.A quem me propõe alternativas vitais e espirituais, também demonstro a minha gratidão, mas quero que saibam que os seus esforços são estéreis. Não me interessa alternativa alguma, excepto recuperar o movimento e a sensibilidade do meu corpo. Já não sou criança, e não sinto nem angústias nem medo do escuro, da solidão nem do silêncio. O meu sofrimento é a falta de

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liberdade, e a liberdade não é substituível por coisas ou por histórias. A liberdade é o equilíbrio psicológico de saber que podemos fazer tudo quanto nos apetece, e fazê-lo nós próprios.Sabes que quem perde a sensibilidade e o movimento do corpo perde toda a esperança de liberdade, não se pode recuperá-la tocando campainhas. A liberdade de movimentos é a lei a que está submetida toda a matéria universal. A liberdade, juntamente com o amor, é a justiça da vida.Um corpo sem a mente reguladora não pode sobreviver. E uma mente sem um corpo que lhe obedeça, também não.Um tetraplégico é um cérebro sem corpo. Só se não acreditares num equilíbrio depois da vida, é que te resignas a este inferno. A que se deve então tanta inquietude nos outros139indivíduos pelo facto de uma pessoa querer terminar o tempo de vida a partir do momento em que perde uma das suas partes essenciais?Por medo da morte. E por um falso conceito do direito à vida, considerada como um bem abstracto que as castas religiosas, políticas e jurídicas com toda a sua eficácia idiológica e repressora controlam.Por que há pessoas que se resignam a sobreviver quando não podem viver por si próprias?Compreendo quem quer submeter-se à vontade do pai, ou às artimanhas do direito: cada um engana-se como pode! Compreendo quem não quer morrer e transforma o instinto de sobrevivência num culto à negação da mortalidade sublimando o sofrimento. O que não compreendo nem desculpo são aqueles que querem justificar que o ser humano o é em função do interesse colectivo ou de qualquer outra exemplaridade.O temor sublimado como entretenimento cultural, mágico, mitológico, trágico, psicopatizou-se e converteu-se num terror irracional facilmente manipulável por qualquer tipo de poder.Porquê sentir receio de passar da consciência à inconsciência, quando esta passagem não é mais do que uma mudança de estado da matéria?Ainda não se deu sentido á morte. Esta ainda não foi humanizada nem racionalizada.Por que sentimos então temor?Porque desconhecemos.O direito à vida como um bem abstracto e além disso ao qual não se pode renunciar é uma incoerência, Joni.A vida só é vida racional enquanto for agradável e voluntário o facto de vivê-la. Não há acto mais cruel que o de140proibir a uma pessoa o direito de se libertar dos seus sofrimentos, por muito que isso comporte ajudá-la a morrer.Que tipo de liberdade é essa em que a pessoa não pode agir de acordo com as suas ideias, quando estas não afectam ninguém a não ser a si próprio?A falta de liberdade e de movimento é como estar morto e ter consciência do facto.Se o ser humano vive racionalmente, também deve morrer racionalmente.O pensamento sem corpo é o desequilíbrio absoluto, é a negação da vontade. As leis da vida não admitem o caos. A natureza não admite a separação entre o físico e o psíquico.Pela lei natural, eu devia ter morrido há vinte e cinco anos, quando perdi o movimento do corpo. Porém, a razão da medicina, interpretando os próprios medos e superstições, empenha-se em chamar vida a uma forma de sobrevivência artificial e involuntária. O direito, então, não protege a vida mas a ética médica e as vontades de todos quantos estão interessados em que essa lei e essa norma repressora se mantenham em vigor.Se o indivíduo é usado pelas religiões, o Estado ou a família em função do interesse colectivo, quando o interesse individual necessitar da ajuda desses grupos, em reciprocidade seria absurdo negá-la a pretexto de que não está legislado nem é tolerado por interesses do grupo ou por mensagens bíblicas.Se pedimos liberdade para viver, amar e morrer, quando somos adultos dêem-nos liberdade, não conselhos, coisas ou histórias, alternativas que não passam de imposições morais. Não manipulemos as crianças para que façam o que nós, os adultos, queremos.

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141Vi o filme que fizeram sobre ti. À parte a tua admirável habilidade para pintar com a boca, o que emerge é o poder de persuasão projectado pela ciência bíblica e psicológica sobre a personagem. Eu não vejo que tu encontres em Cristo a força de que necessitas para sobreviver, como tu afirmas. O que eu observo é que te impõem essa forma de auto-engano por parte de especialistas em manipulação psicológica. É muito bom esse tipo de ajuda, sempre que sejas tu a pedi-la porque desejas verdadeiramente ser uma tetraplégica o resto da tua vida. Gostaria de saber se isso é verdade, pois no dito filme parece--me que desejavas achar coisa melhor.Se toda a autoridade e ciência que possuem consiste em persuadir as pessoas como tu e eu a sobreviver no inferno até se acostumarem a isso, parece-me um comportamento digno de sádicos. Isso é pura manipulação psicológica do temor.Em relação à força que dizes achar em Cristo para suportares a adversidade, é natural num crente. Obrigado por partilhares comigo as chaves da tua força para sobreviver, mas eu não partilho delas!Sobreviver em circunstâncias em que é preciso procurar forças fora de si próprio é sintoma de debilidade mais do que de força. A força ou os recursos psicológicos devemos achá-los sempre dentro de nós próprios.Joni, os técnicos em psiquiatria, psicologia, teologia e outras «logias» mentem sobre muitas coisas, ou pelo menos adoptam a atitude pedante e vaidosa de quererem parecer conhecer mais do que verdadeiramente conhecem.Quero que entendas que não sou uma pessoa depressiva, desesperada ou frustrada. Mas também não quero criar uma barreira psicológica que me impeça de ver a realidade da minha circunstância. Já sou adulto, e sei avaliar qual é142o sentido e o valor da vida, e a minha relação com o processo evolutivo, cultural, sociológico e pessoal.Não podemos ser racionais para viver, e transformarmo-nos em irracionais quando a dor é insuportável — ou inexplicável.Por vezes, as pessoas supostamente adultas comportam-se como crianças e ouvem simplesmente o que querem ouvir.Não nos enganemos, Joni: a princípio todo o tetraplégico deseja a morte. Esse desejo também está reflectido no teu filme.Por que se muda de ideias?Não se muda de forma de sentir, o que se altera é a categoria do temor. Nos primeiros tempos, o temor da dor ocupa o primeiro lugar. Depois de te habituares a ela, o temor da morte ocupa o primeiro plano. O medo de um lugar de que sempre nos falaram como de um mundo tenebroso e terrífico ao qual não se pode aceder voluntariamente, sob pena de sofrer eterno castigo, impõe-se a toda a razão.Considero que não é mais digna de exemplaridade a tua aceitação das dificuldades do que a minha vontade de que ninguém me imponha o dever de suportá-las.Cristo é a consciência da pessoa. E é nessa consciência que devemos conseguir a força para sobreviver.Humanizarmo-nos é racionalizar a nossa própria existência.Aceitar a própria vida depende exclusivamente de nós mesmos.Os nossos conceitos são opostos. Tu procuras fora de ti a força para suportar dor. Eu acho em mim a força para me libertar dela, só peço que me deixem fazê-lo à minha maneira.Quando a pessoa ocupa o lugar de deus, ela própria se considera capaz de evitar a dor agindo segundo o seu livre arbítrio.143Pergunto-te: queres ser tetraplégica?Se disseres que sim, já tens a alternativa que desejas, estás já no lugar em que desejas estar.Seria absurdo que dissesses que é a vontade de deus. Terias que aceitar que esse tal deus é cruel e desapiedado contigo. Se fomos criados absolutamente livres, seremos livres de fazer tudo aquilo que queremos e no momento preciso.

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Podes argumentar, como fazem os teus mestres, que Deus não quer o teu sofrimento mas permite-o. Contudo, este argumento é tão absurdo que só quem deseja ser enganado o aceita. Há circunstâncias em que as pessoas sobrevivem graças ao apoio técnico da medicina e outras ajudas humanas. Se a pessoa não pode sobreviver por si própria, e além disso não é essa a sua vontade, não é que deus permita o sofrimento, o que ele estará a permitir será a liberdade de exercer a medicina e a de fazer a apologia do sofrimento como exemplo moral. Se deus permitisse o sofrimento também permitiria que a pessoa exercesse a liberdade de renunciar a ele.Consolares-te com o sofrimento é um instante na escala cósmica e buscar em Cristo a força de que necessitas para o suportar parece-me o pior das perturbações psicológicas.Em nome de Cristo, poder-se-ia justificar com mais coerência a eutanásia voluntária, como uma forma de emular o mito, renunciando à vida para evitar a dor, do que suportando a dor para conservar uma vida miserável.A eterna luta entre a razão e a crença faz-me pensar numa luta entre dois mitos. Um tenta deter o tempo e o outro segui-lo. O novo mito mostra ao velhos os seus erros reflectidos no espelho da humanidade. O mito velho vê como se reflectem a miséria, a dor, a tortura, a escravatura, o massacre144disfarçado de tradição e cultura, mas nega-se a rectificá--los. O sofrimento converteu-se no seu alimento espiritual.A Bíblia é um código moral do seu tempo. Em Espanha, Joni, o código ético e moral que rege a nossa convivência é uma bíblia actualizada que proclama a liberdade, justiça e igualdade entre todos os seres humanos (Constituição espanhola) .Eu não procuro a força para viver fora de mim mesmo. E para alcançar a categoria de ser humano há que aprender a ler no único livro que não mente porque não se expressa com palavras. Há que aprender a ler nos olhos e nos gestos de qualquer ser vivo. Todo aquele que não se sentir neles reflectido é um analfabeto na ciência da vida.E todo aquele que negar o direito a não sofrer não tem competência para dar conselhos.Um sofrimento deve ser sempre voluntário — refiro-me a um sofrimento incurável.Querida Joni, depois da morte há sempre um lugar melhor para quem crê verdadeiramente nisso. Por detrás da dor incurável, está sempre o inferno.Eu tenho dúvidas, mas não medos. Portanto, não sofro de depressões, frustrações ou de desespero como tu julgas, ou te fizeram crer aqueles que te forneceram os meus dados pessoais.A morte voluntária é como uma pessoa não saber nadar e atirar-se a um rio. Aquele que crê que sabe nadar não se afoga, salva-se.Um abraço e um beijo.145PELO CAMINHO ERRADO!Dou-te tudo o que mais amo e necessito,o meu sangue, o meu filho, a minha mulher e os meus átomos;é apenas um modo de dizer:porque nada tenho quero dar-te a entenderque desejo dar-to.Alegro-me se comes do pão que me dá vida e alegro-me se te deitas com a mulher que amo, e gozarei se gozares bebendo meu sangue. E cantarei se te derem alegria os meus átomos.Amar-te-ei entre todas as coisas quando puder nomearo humano desejo, gozo quando gozas, sofro quando sofres, teu acto é meu desejo, o meu desejo teu acto. Porque te amo entre todas as coisas, se quiseres eu morro. Porque te amo entre todas as coisas, se quiseres eu mato-te. Sem pecado, sem culpa, sem peso na consciência,146basta que eu o faça, porque tu o desejas, para que seja humano.Eu sou o super-homem, tão justo como um deus, e sou, porque quero ser justo, como um deus malévolo, procuro o equilíbrio e em ti acho meu centro, e dou-me como o sol sem pedir nada em troca.

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Mas matar-te-ei se maltratares uma criança,se desprezares um velho ou assassinares um pássaro;porque te vejo triste, sou violento em excesso;porque nada desejo, sou em excesso manso;porque te amo entre todas as coisas, dou-te quanto possuopor não sentir que sou nem bom nem mau.Escureceu o céu e começou a chover,o trovão troveja, sorri o relâmpago,parece que responde a natureza em uníssono.Porque te amo entre todas as coisas, também tudo te dousem pedir nada em troca.E meu sangue a chuva, é minha energia o sol, e minha alegria toda o canto dos pássaros. Não sei de quem falava, porque ia falando,sozinho, com o olhar absorto, o louco apaixonado, dizem que pela morte, dizem que pela vida, dizem que caminhava pelo caminho errado.147CARTA A LINE TORRES E KEES VANDENBERGLine Torres e Kees Vandenberg:Minha querida louca com alma de gaivota. Da música e do ar suspensa, como um cometa gravitando no azul. Fique sabendo que neste mundo há outro doido que a adora. E não por algum motivo especial, apenas porque o universo necessita da sua harmonia e da sua ternura, da sua magia e da sua loucura, para fazer com que uma flauta toque pelo telefone eternamente uma celestial e sedutora sarabanda no dia dos seus anos para alegria de outra loucura.Deveria ter começado: Meus queridos loucos, mas não me rimava tão bem a tolice.Querida Line: Obrigado por partilhares com este louco eremita - que se julga em seus delírios libertários um marinheiro errante — o dia dos teus anos.O aniversário é como uma nova volta em redor do tempo e do espaço. E como que do coração um bater cósmico, ainda que com um ritmo um pouco mais acentuado.148Porém, como somos rudimentares! Pensamos em dias, horas, anos, séculos. Donde vimos e para onde vamos, ao mesmo tempo que rezamos pai nosso salva-nos, livra-nos do mal, quando somos apenas vibrações numa deslocação sonora e luminosa. Um átomo vibra a não sei quantos milhares de impulsos por segundo. Um coração uma vez por segundo aproximadamente. Uma vida tem o seu tempo, o seu ritmo entre o princípio e o fim, dependendo em que se vá mudando ou metamorfoseando a matéria.Na carta anterior dizias que só existe o futuro.No conceito de existir, creio que só existe a memória - a verdade. E se existe a memória, existe o passado, o presente e o futuro, pois tudo quanto está na nossa memória já foi passado, presente e futuro. A vida é como um eco que se vai deslocando sempre de um ponto para outro. Lembre-se da evolução.Que é isso?, perguntará a senhora com os olhos abertos de par em par perante a ousadia de um tonto que pretende explicar tão sérios assuntos. Imagino que pergunte a si mesma: não terá acreditado nos meus ternos e amáveis elogios quando lhe disse que é sábio, grande e genial?Não se preocupe, já estava louco antes de deparar com a sua loucura.Ah, sim, a evolução! Perco-me sempre!Posso contar-lhe uma história?Dizem que, há muitos anos, se encontraram duas amibas. Como não tinham nada que fazer começaram a brincar, e cada vez que se tocavam nascia um/uma amiba nova. Eram todas idênticas aos pais. E como não precisavam de mamar nem de cuidados de qualquer espécie, cada uma delas partia em direcções diferentes. As amibas eram, e nós ainda continuamos a ser, umas massas atómicas impressionantes. Estes149receptores de impressões têm todos uma coisa em comum; a vibração, a expansão e a contracção, por isso nos deixam extasiados certas ondas vibratórias; como por exemplo a

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sarabanda que o teu amigo fez soar com a flauta através dos átomos que vibrando chegaram ao meu ouvido através do telefone e aqui permaneceram na minha memória para toda a eternidade. Já não posso projectar por ricochete ou vibração essa memória fisicamente, só psiquicamente.Imaginas onde quero chegar?Continuando: essas amibas foram criando o sistema de projecção. Aperfeiçoando-se em cada movimento para irem sempre mais além, cada vez mais depressa. Como estavam na água, necessitavam de barbatanas. Quando o espaço se lhes tornou pequeno, se não inventassem algo mais perfeito e sofisticado detinha-se o sonho. Não poderiam andar mais depressa nem ir mais longe.Um dia uma das amibas pôs a cabeça fora de água e contemplou outro espaço. Começou a sonhar com umas asas. Do desejo e da vontade de elevar-se, elas cresceram-lhe. Mas também não lhe serviam para ir mais longe, para fora do mar atmosférico.E aqui estamos nós os filhos dessas amibas encalhadas.Qual é o novo desejo, a nova necessidade?Vencer o peso da gravidade. Voar mais depressa e mais longe. Alcançar a luz na metamorfose da transmutação.E depois?A aceleração instantânea: o pensamento, a ideia, o desejo convertido em realidade. Lugar algum estará verdadeiramente longe.Nenhum lugar está longe. Lindo e sugestivo o título do livro que me mandaste, obrigada.150Certo, tudo está na imaginação, na memória. Mas em determinadas circunstâncias, este universo pessoal torna-se tão pequeno que o desejo irreprimível de nos libertarmos dele também nos indica o método.O processo evolutivo segue o seu curso. Somos, a vida, energia em movimento. Por isso nos agrada tanto o calor a cor e o som, mas à medida de um ser muito rudimentar. Ainda não é o tempo nem o espaço em si mesmo. Não aceita a desintegração. E contudo rejeita a dor, o frio e o ruído. Mas não poderá ver-se livre da dor e do sofrimento se primeiro não se libertar do temor. Não nos decidimos pela libertação. Continuamos a fazer anos, séculos, milénios, acumulando dor com o único propósito de dominar os mais ferozes e os melhores.Obrigado, querida Line, por convenceres o teu amigo a que me interpretasse uma sarabanda pelo telefone. Penso que a vida é uma obra musical construída a partir de duas notas elementares: a primeira é: sim, ao prazer. A segunda é o não à dor. Tudo o resto são infinitas variações sobre o mesmo tema. Quem disser que a sua variação é a verdadeira, a única coisa que faz é interpretar-se a si próprio. A perfeição do som fez vibrar todos os átomos do corpo dessa amiba e transpor-taram-na com o pensamento à sua própria origem a fim de rememorar as infinitas metamorfoses que a matéria teve de realizar para me transportar até onde me encontro neste instante. Gostaria de efectuar uma aceleração para realizar o sonho de libertar-me do lastro, mas é proibido fazer experiências.Lembras-te da amiba que pela primeira vez pôs a cabeça fora de água e sonhou voar? De certeza que outra amiba qualquer que se julgava muito sabichona a admoestou com toda a severidade: estás maluca? O que pensas é impossível!151Há sempre alguém que nos diz que aquilo que não entende é impossível.Há sempre alguém que pensa que tudo é inalcançável, que nenhum lugar está perto porque não consegue tocar-lhe. Mas nós que nos consideramos apenas ondas de luz que nos iluminamos com a magia dos sonhos sabemos que nenhum lugar está longe, nem sequer a eternidade.Aqueles que só esperam o milagre já não crêem em nada, estão mortos.Um abraço muito forte e um milhão de beijos.152AS FOLHAS CAÍDASSilêncio, que chegou o Outono e quer descansar a vida!

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Já se desfaz de cores e enfeites, adornos e roupagens, com melancolia. Está cansada de tanta fadiga levada a cabo para celebrar tão fenomenal e formosa orgia.Cada um amou à sua maneira,cada borboleta beijou as flores que quisao ritmo da dança que lhe tocavaa invisível e suave leveza da branca brisa.Parecem querer ao esvoaçar escrever poemas de calma e sorriso, para irem voando, voando, pela luz do sol, pelo céu acima.154E passa o Outono pelas folhas todas de árvores e plantas já quase adormecidas, perguntando a todas, já muito apagadas, por que se pintaram com tal fantasia, com tanta beleza, com tanta harmonia.Respondem-lhe todas a uma só voz: para seduzi-la, para seduzi-la! Seduzir... quem? A formosa vida!Já terminou todo o alarido.Tudo vai perdendo como em qualquer festavigor, emoção, vital entusiasmo,há que repousar de tanta alegria!A natureza desfaz-se ainda como uma vedeta da bijuteria, decrépitas folhas, que antes eram verdes,tudo fantasia, e agora estão pálidas, amarelas, ocres, murchas, caídas.E vão caindo, lançam-se no ar como suicidas. E dançam, e voam e giram, apurando o tempo do último baile antes de ficar para sempre adormecidas.Beijando a terra donde saíram, à qual regressam com a missão cumprida de vestir o mundo com traje de gala para celebrar a primaveril e cíclica orgia.155Hoje são já espirais, tristes serpentinas as folhas caídas que cobrem a terra. Como qualquer praça depois de uma festa, que fica vazia cheia de papéise outras imundices, triste e melancólica que parece morta,mas está adormecida.Silêncio, que chegou o Outono, e querdescansar a vida! Quando acordar, já será outro dia.SEGUNDA PARTEPRENDA DE NATALJosé Luis Mariscai foi companheiro de cadeia no inferno dos escolhidos por Deus — segundo os parvos - para trabalhar na purificação da sua alma num armazém-oficina de farrapos humanos. Não queria a condenação. Sentia-se humilhado, mas aterrorizava-o a morte. Ninguém o ajudou a superar o terror para se libertar do inferno!Um abraço, companheiro de fadigas, tu que segues como eu, pela penumbra escrutando um horizonte que não ilumina a treva do sofrer que te cobre.O meu desejo solidário é que prossigas com o teu infatigável empenho de lutar e consigas como o herói deixar em herança aos mortais a tua memória.159Ofereço-te o coração com a esperança de que forme com o teu um único ente para fazer com o impossível uma aliança.Deveria ser prenda suficienteque inclinasse perante os deuses tua balançaao desejo de viver eternamente.161PATÉTICO BRINDE ENTRE CAMARADAS (OU A VISÃO DO INFERNO)Brindemos, camaradas, à nossa saúde! Nós, a escória da vida, os farrapos. Levantemos os gritos de obsessão e loucura nossos tristes cérebros inundados de lágrimas.Pelas nossas taras de corpos disformes! Pelas nossas mentes psicoanalisadas! Pelas nossas patéticas cadeiras de rodas! Pelas nossas carnes e mentes atrofiadas!

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Bebamos, cantemos, nesta orgia obscena de carne impotente, de humanos farrapos, nesta farra imensa de luxúrias mortas, de impotentes seres caminhando de rastos!Cantemos a vontade de nos reproduzirmos com alucinada e erótica dança de corpos nus donde pendem sondas e bolsas de urinas reabilitadas!162Camaradas, bebamos à nossa saúde,que amanha seremos de novo farrapos,sem saber se foi verdade ou sonhoa orgia impotente de carnal ânsia,de infernal tortura, por fúrias servidos,de corpos perfeitos dançando à distância!

CARTA A JESUS CEBERIO (DIRECTOR DE EL PAÍS)Exmo Senhor Jesus Ceberio (Director de El País).Em virtude de ter sido referido pessoalmente num artigo, publicado no dia 28 de Janeiro, intitulado: «RAMÓN, NÁO JOGUES FORA A TOALHA», desejo exercer o direito de resposta.NÃO SEJAMOS CABRESTOSExmo Senhor Einer Pederson:Há aqui, em Espanha, um costume bárbaro que consiste em torturar touros até à morte num ritual macabro. Estes nobres e livres animais são conduzidos a currais, onde ficam presos até à hora da celebração e do sacrifício, por touros mansos, psicoamestrados para tão ignóbil fim, chamados cabrestos.163Não sejamos cabrestos. Porque atrás deles há sempre um degenerado que se diverte com a dor e o sofrimento.Outro costume bárbaro é o boxe.Deitar fora a toalha significa inteligência, racionalidade, não se deixar massacrar a murro para gozo de sádicos, mórbidos e depravados espectadores. Uma retirada a tempo é uma vitória.Diz o senhor que há sempre qualquer coisa a que nos agarrarmos. Depende do medo que tenhamos em deixar-nos cair. Depende de termos aceitado ou rejeitado a nossa mortalidade pessoal.Qualquer análise se converte num sofisma quando partimos de um preconceito.O senhor parte do preconceito de que eu sou esse ser trágico a que se refere a reportagem dizendo que «IMPLORO» que me apliquem a eutanásia.Eu não imploro, exijo os meus direitos pessoais. Não quero ser cabresto, e também não quero que me ajudem a suportar a tragédia - como me aconselha. Isso sei fazer sozinho.Não desespero para não cair em depressão e não corro aos deuses a pedir-lhes seja o que for para me não sentir frustrado - deus é a minha consciência.A esses a quem o senhor chama auxiliadores não lhes concedo autoridade alguma. Se não têm ciência para curar a causa que nos provoca a depressão, pelo facto de serem possuidores de conhecimentos científicos não estão legitimados para nos imporem os seus conceitos éticos e morais.Posso fazer e dizer as mesmas coisa que o senhor, porém não tenho tanta vaidade. Não dou exemplos.164Os seres humanos não criam nada, está tudo criado. Só podemos descobrir e humanizar isso racionalizando-o.O senhor tem o direito e a liberdade de ser paralítico feliz e satisfeito, protegido pelas leis do seu país e aplaudido pela máxima autoridade do seu Estado-providência como exemplo moral, mas não se esqueça de que os discrepantes, aqueles que por um sentido ético ou estético não desejam agarrar-se à vida de qualquer maneira, não gozam da mesma liberdade ou direitos que o senhor. Esses discrepantes são escravos da consciência ética e moral de quem os aplaude como exemplo a seguir. Ou seja: o senhor faz de cabresto.

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Não me dê conselhos. Não se esqueça que eu sei como o aprisionam os seus medos e angústias. Conheço o modo que os auxiliadores têm de nos fazer olhar para outro lado. Estão amestrados para desempenhar essa tarefa.Eu não dou conselhos a ninguém que não mos peça. Porque não segue o senhor o meu exemplo?Não sejamos cabrestos!Joguemos fora a toalha para salvar a nossa dignidade antes de cairmos derrubados como bonecos. Não lutemos para dar prazer a quem organiza o bárbaro e cruel espectáculo.Dizem que a princípio o senhor pensou em atirar fora a toalha. Por que mudou de opinião? Reflectiu sobre a psicologia do temor da dor e da morte?Eu, tal como o senhor, habituei-me a viver no inferno. Todavia, não me esqueço de uma realidade: toda a pessoa equilibrada psíquica e fisicamente receia mais estar como o senhor e como eu do que morta.Dizem que o senhor acredita em Deus. Eu não: já lhe disse que sou deus e sei que depois da morte existe um equilíbrio perfeito.165Também dizem que escreve poesia, eu apenas a imagino:AmigoAmigo,Quem impede o nosso voo de subir além da vida e elevar o espírito acima de todo o temor? A quem não perguntamos já da vida o valor nem o sentido, mas apenas para que serve na vida — sem sentido — a dor?Sei que são os homens que não sentem - como o deus que apregoam - pela vida respeito nem amor.Atentamente.166NAO QUERONão quero procurar um refúgio na poesia,nem com a fantasia lançar-me a voar.Nem viajar pelo perfume de uma rosa.Nem fazer viagens com meu barco por teus mares.Quero ser tão vulgar, original e loucocomo aprouver à necessidade, ao acaso e ao destino.Serei toda a repugnante monstruosidadepara que os hipócritas lavem a consciência em mim.Que façam os meus irmãos suas caridosas obras, dando, assim, rédea solta à compaixão. Se fizer bem meu papel, o mundo estará aparentemente em ordem. Haverá sempre alguém que se alegre por não estar no meu lugar.Quero cair mais baixo, muito mais baixo ainda, até onde a humilhação da minha pessoa168seja tão patética, desumana e fétidaque por compaixão ou razão decidam libertar-me.Os néscios dirão matar-me, claro.Estou acima da sua mesquinhês!SUICÍDIO E TRANSCENDÊNCIAQuerida amiga, inimiga da eutanásia, profetiza do castigo eterno para quem morra voluntariamente:A eutanásia é transcendência, não é suicídio.O suicídio é a justiça do homem que acusa, condena e mata a sua dor, mas também te acusa e condena com o seu acto a ti e a toda a tirania, teocrática, democrática ou paternalista, pelas suas incoerências. O suicídio também é transcendência.Quando se renuncia à vida, mas sem que existam circunstâncias racionais de eutanásia, em vez de classificar o discrepante como tresloucado, a sociedade que se interrogue onde está a causa de todo o suicídio. Não é o fracasso da razão individual, é o fracasso da razão colectiva. Não é o

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indivíduo o degenerado mas sim aqueles que institucionalizam o dever de sofrer irracionalmente. Quem se suicida é porque deseja libertar-se do inferno.169A pessoa que aceita a própria morte fá-lo porque intui uma forma de transcendência. Pode ser inexplicável. Mas manter os indivíduos no terror psicológico do castigo por agir livremente consegue ser a forma mais eficaz de dominá-los. E também de destruí-los.Quando a morte voluntária tem como único fim libertar-se de um sofrimento dramático, sobrevive sempre como transcendente um acto da bondade humana, que é a única forma de aceder ao nível de uma bondade divina.170CARTA A JOSÉ ANTÓNIO SÁNCHEZExmo Senhor José António Sánchez:Ontem recebi a sua carta datada de 22-X-1994.Acho estranho que fale de uma carta aberta publicada no ABC dirigida a mim e que não me envie uma cópia.Eu, quando quero dirigir-me a alguém escrevo-lhe em carta fechada. As cartas abertas que é costume enviar à imprensa não são dirigidas à pessoa, valem pelo que valem. Pelas que tenho lido, nenhuma delas me parece — ou pareceu - suficientemente honesta para que me desse ao trabalho de lhe responder. Algumas pessoas, como o senhor, tratam-me por amigo, mas logo a seguir sai-lhes a contradição da intolerância, não porque não me respeitem — segundo eles - mas porque as suas convicções morais os impedem.Não entendo tais amizades! Eu penso que um amigo, se é amigo, nunca me imporia as convicções dele, porque então não haveria nem respeito nem amizade, mas apenas dominação.171Outros, médicos, fazem insinuações sibilinas - penso que de má fé - acerca do meu estado mental: suicida, deprimido profundo e outras formas possíveis de perturbações da personalidade, carências afectivas, etc.Não li a sua carta e, portanto, não posso emitir uma opinião, mas, pelo que me é dado ver, as cartas abertas são panfletos ideológicos com uma mensagem muito concreta: «Não se pode tolerar!»Dos médicos tenho motivos de sobra para duvidar da sua imparcialidade. Costumam confundir — a maioria — a autoridade que lhes dão os conhecimentos técnicos para curar doenças com o poder para impor a sua autoridade moral aos outros.Enfim, senhor Sánchez, mande-me primeiro a sua carta aberta, e nela lerei se é a de um amigo a outro amigo. Se é a de um igual a outro igual — pessoa a pessoa — ou se é o desejo e a curiosidade de uma autoridade profissional para ter dados suficientes que lhe confirmem os preconceitos. Depois, veremos se vale a pena falar, olharmos um para o outro, cara a cara - como diz - e perceber o que está por detrás.O que quero é bastante claro: eu reclamo perante a justiça um direito, que penso estar implicitamente garantido na norma ética e moral do Estado (Constituição). Penso que a morte não tem de ser pedida aos gritos. Há que pedi-la. E quem tem o poder de me garantir que os meus direitos e liberdades sejam reais e efectivos, o que deve julgar é se o que eu exponho é ou não racional.Se é racional, há direito.Está certo que as pessoas prestem ajuda a quem lha pede, mas proteger uma pessoa contra os seus desejos é absolutamente imoral.172Quando o senhor diz que está com os que pedem a morte aos gritos na fase terminal de uma doença, o que quer dizer é que acha racional terminar com o sofrimento inútil.Não me diz na sua carta — fechada — se está ou não de acordo com a minha posição, dado que eu não sou o que se pode considerar um doente terminal. Pelo que me é dado perceber, o senhor não acha — com eu acho — que o meu sofrimento seja inútil e absurdo. Pelo que me é dado perceber, o senhor não crê que um tetraplégico deva ter o direito e a liberdade de terminar a vida como um acto de vontade e de soberania pessoal — pelos motivos que for. Eu também

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gosto de conversar com os amigos, mas os meus amigos — porque me respeitam — pensam que me deve ser concedido o direito a morrer uma vez que não quero viver assim. E o senhor, senhor Sánchez, qual a sua opinião?Repito, envie-me essa tal carta aberta e logo falaremos em conversar amigavelmente.Receba um cordial cumprimento de um... amigo?173CARTA A JOSÉ ANTÓNIO SÁNCHEZ GARCIAExmo Senhor José António Sánchez Garcia:Obrigado por ter-me enviado a ditosa, ou triste carta.E muito difícil escrever sem fazer asneira. Vêm sempre ao de cima os preconceitos, a que chamamos convicções, princípios, etc...Também lhe peço desculpa se o ofendi nalguma coisa.Obrigado por me oferecer a sua generosa e solidária ajuda como pessoa e como médico.De momento, não necessito nenhuma. Tenho toda a ajuda pessoal e técnica de que necessito, apenas a que peço, nem mais nem menos, pois é esse o modo como uma pessoa deve ser querida, amada e respeitada. Assim me têm tratado - e tratam - sempre a minha família e todos aqueles que considero meus amigos.Também eu sinto e vivo a dor dos meus semelhantes. Isto é mais uma questão de sensibilidade que de conhecimentos técnicos e científicos inerentes à profissão médica.174Sim, o senhor diz que talvez tenha razão, mas trata mais adiante de afirmar categoricamente que não peço o que peço aos juízes. Também não é a morte, como o senhor afirma, mas o direito de pôr fim à minha vida sem que por isso seja castigada a pessoa que me facultar a substância química que eu escolher. Ou que possa aceder a ela, tal como o senhor, por exemplo.Eu reclamo um direito e uma liberdade pessoal mas ao senhor não lhe interessa o que possa dizer a esse respeito a Constituição e as leis.Diz que - como médico - viu morrer muitos doentes e que alguns deles pedem a morte aos gritos.Entendo que as pessoas que pedem a morte aos gritos o que pedem na realidade é o direito humano e pessoal de se libertar de um sofrimento. Antes a espantosa morte do que a espantosa vida!O senhor entende essa forma trágica de aceitar a morte. É - o seu — preconceito.Não será possível aceitar a própria morte com o sorriso e o olhar sereno?Eu também vi o olhar de Vallejo-Nágera. Era o olhar do homem que sabendo que vai morrer dentro de dias, mantém o sorriso e a expressão serenas. Conseguiu o equilíbrio racional de aceitar a mortalidade.Depois de destacar a minha agilidade mental, diz que a minha expressão não pede a morte mas sim que pede — põe--no o senhor em maiúsculas - vida, e muita. Ou seja, eu não sei o que digo. O senhor dá a entender que não tenho a razão nem a clareza mental que me atribui.Escreve noutro parágrafo: «A margem de constituições e leis, é preciso perguntar se é questão de mandar para outra175vida, etc...» É muito poética a sua reflexão, mas diz: se é questão de valentia «mandar».Ético seria da sua parte perguntar se tenho ou não esse direito e essa liberdade. Se essa norma ética e moral que nos iguala a si e a mim em direitos e deveres pode tolerar essa liberdade e esse direito.Reflecte o senhor e conclui que os juízes foram sensatos porque o meu olhar e o meu sorriso são absolutamente necessários na sua sociedade actual.Que teria escrito o senhor se me tivesse dirigido aos juízes e legisladores pedindo aos gritos, com o olhar perdido e o rosto descomposto?Se me dirijo aos juízes pedindo-lhes o direito de renunciar à minha vida, será porque isso é o que desejo, e a ideia de que essa petição me seja concedida faz-me sorrir serenamente.Não acho graça nenhuma à artimanha psicológica de que o meu olhar e o meu sorriso sejam de grande utilidade para o bem colectivo. Não quero ensinar a ninguém como nem quando se deve

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morrer com o sorriso nos lábios e o rosto sereno. Porém, o senhor quer dar-lhe outro sentido: «Pede vida e muita vida.» Essa sua frase em maiúsculas, penso — e perdoe se estou enganado — que a escreve com toda a má fé. Eu asseguro-lhe que é mentira!O que o senhor chama uma reflexão - análise psicológica através dos rostos — serve-lhe para aplaudir a sensatez dos juízes. E afirma também que o que eu preciso é de mudar de vida com a ajuda solidária da sociedade.Certo, o senhor não me critica, toma-me por um pobre imbecil, o que é bastante mais ofensivo e imoral. Pois ao dizer que é a sociedade quem deve dar-me motivos para176viver, dá por adquirido que as pessoas que o fazem, ou seja a minha família e os meus amigos, não sabem fazê-lo. E eu sou uma criança que sorri com cara de idiota, isso sim, cheio de vida, muita vida.Claro que o senhor tem todo o direito de dar uma opinião e de influir na opinião pública, da maneira que mais lhe convier, mas não peça a minha colaboração.Senhor Sánchez Garcia, para mudar a minha vida fazem falta mais do que arengas. Entendo muito bem o que o senhor escreve. Ao que parece, quem não entende o que eu escrevo e peço ao seu Estado social e democrático de direito é o senhor. Leia a sua carta, e se quiser, como diz, ser meu amigo, peça desculpa publicamente pela sua falta de respeito para comigo. Se se ler bem, o senhor considera que eu sou em função do conceito que o senhor tem da vida e da morte, da liberdade e da sensatez que os juízes tiverem para controlá-la.Para mudar a minha vida é necessária uma só coisa: curar--me. Se o senhor não tem ciência para o fazer, a nossa autoridade ética e moral são exactamente iguais. Se aceitar e defender este princípio seremos amigos.Obrigado pela sua oferta de ajuda, mas se se negar a que o direito que reclamo me seja concedido, creio que não teremos muito mais de que falar.Saudações cordiais.177CARTA PRIMEIRAAos meus queridos companheiros e camaradas que gritávamos em uníssono de punho erguido contra o tirano: liberdade, justiça e igualdade. Agora que ocupam o lugar do tirano, reclamo-lhes o direito e a liberdade de morrer dignamente, e dão-me sondas, antibióticos, bolsas para recolher a urina, cadeiras de rodas, laxantes (caridade).Não é nada disso, companheiros!Somente vos lembro as palavras: a minha justiça fá-la-ei eu. Não temais. Serei um bom juiz. Amo a vida e o vento, o sol, o céu e o mar, e tudo quanto conjuga, para ser, o verbo amar.Não tenho outro interesse senão defender a ética da palavra liberdade, igualdade, justiça.A morte faz parte da vida. E nos seres racionais, a palavra proibida é matar.178CARTA SEGUNDAA essa querida médica — técnica - imoral e manipuladora psicológica (ou manipulada?), que me aconselha a pedir a sua ajuda, que me una a outros farrapos. Sem sequer olhar para mim, diz muito séria que quero morrer porque estou deprimido.Querida senhora, a senhora não escuta ou não entende nada de amor e respeito. Eu peço liberdade, não conselhos. Lembre-se: não se meta onde não é chamada.Conheço-me a mim próprio melhor do que a senhora jamais me poderá conhecer. Também conheço, amo, respeito e admiro os meus camaradas farrapos. Porque sou um deles, canto, rio e choro com eles também. Mas não os engano. Igualo-me a eles e chamo-lhes — porque o somos — farrapos.Cada um de nós é um mundo à parte, minha senhora. Cada um de nós arrasta com resignação a nossa dignidade depois de cada farra.Já sei que a senhora dirá com grande seriedade que não faz falta ser César para conhecê-lo (isto disse um idiota).179AS ALTERNATIVAS À REABILITAÇÃO

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Quando um tetraplégico expressa a vontade de o não ser, isto é, de morrer, a ética médica não deveria consistir em rebaixar com sedativos o seu nível de consciência normal até que se dê por vencido e aceite a negociação com o sistema de reabilitação, que aceite as suas condições de bom tratamento, amabilidade e afecto. E que sempre que se revolta contra a humilhação da dor veja como lhe aumentam a dose de sedativos. Isso não é respeito pela liberdade de consciência do outro!E assim que se reabilita a pessoa, domesticando-a: ou aceita ou enlouquece. Para quem enlouquece, se bem que não sejam muitos, há sempre à mão um qualificativo. Por exemplo, uma pessoa com tendências suicidas. Quando o ser humano é deixado livre para viver, amar e pensar, este eleva-se sempre espiritualmente, eticamente. A vida contém toda a sabedoria e o conhecimento do universo, não necessita da protecção obrigatória de juristas, médicos, teólogos e de toda a espécie de castas dominantes que se convertem em paternalismos cruéis.180Claro que deve haver um sistema de rabilitação, mas se o seu único fim é conseguir que a pessoa aceite e se resigne perante qualquer desequilíbrio, um bom propósito pode converter-se numa aberrante tortura, num inferno interessantemente planificado.A alternativa da reabilitação será ética quando for uma vontade pessoal, mas se for uma imposição, não. Quando a única alternativa que resta à pessoa é suportar um sofrimento involuntário, porque assim o impõe a moral dos outros, a essa pessoa — reabilitada à força, ou condenada ao inferno em vida —, para dissimular que foi vencida não lhe resta mais nenhuma alternativa a não ser beijar a mão dos verdugos reabilitadores. Não há melhor protector da sua vida do que o seu próprio dono!181ERINIASGuardiãs de sonhos complexos, todos eles desfeitos.Tratadoras de eternas angústias, com sagrados fogos. Vós que mantendes as miseráveis vidas de corpos agónicos. Vestais que mantendes aceso o lume neste inferno.Samaritanas que ofereceis balsâmicos sorrisos contra a dor. Espíritos sensíveis que contemplais o desespero sorrindo. Sem o saberdes, deixareis de ouvir os gritos dos condenados. Esse será o sinal de que vosso amo - Lúcifer-Estado - já se apoderou de vossas almas. Estareis já preparadas para serdes insensíveis ao sofrimento desumano.Erínias, afáveis tratadoras deste averno. Sem quererdes, fostes meus verdugos. Porque mantendes aceso o sofrimento.Minhas queridas erínias, eu vinha em busca do céu.182CARTA TERCEIRA A QUEM VIVE DE HISTÓRIASA quem vive de histórias ao mesmo tempo que descarrega a sua imoral autoridade sobre as nossas plebeias e ignorantes consciências.A quem nos carrega com seus oráculos, deuses, vantagens aquiridas, deveres e direitos.Os de pernada1 também como tradicional e nobre privilégio. E enquanto a loucura gira neste meu infernal labirinto, está preparada lá nas alturas a mentira obscena do livre arbítrio.1 Pernada, Direito de — Nos tempos do feudalismo, quando a propriedade da terra se confundia com a soberania política, os senhores feudais tinham sobre os servos da gleba, que habitavam e agriculturavam as suas terras, os mais variados «direitos», uns de natureza pecuniária, outros de carácter social mais vexatório. Entre esses «direitos», figurava o de o senhor feudal violar a jovem desposada do seu servo. (N. E)183CARTA QUARTAÀs queridas mulheres do mundo, que ficam estupefactas a contemplar os filhos mortos com os olhos de par em par abertos e as tripas de fora, olhando para o céu ou para a terra, como se quisessem perguntar: que me aconteceu?Entretanto, diz a pátria imoral e obscena: E a guerra meu filho, não é nada, não é nada!

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E às crianças do Brasil, da Colômbia, da América, da África, da Europa ou da Ásia, assassinadas com um tiro na nuca, mortas de fome, de indiferença, de raiva, de estupefacção ou de hipocrisia democrática ou tirânica.«Levanta-te e anda!» não quer dizer milagre mas apenas: revolta-te, liberta-te, não sejas carneiro, não acredites, pensa e reclama justiça.184CARTA QUINTA À MINHA PÁTRIAÀ minha querida pátria que é a mais livre, a maior e a mais alta.Nela cabem todos os meus amigos e inimigos.A minha pátria é o meu peito, e no meu peito cabem todas as pátrias.A minha pátria não tem fronteiras, porque é uma só.A pátria de um homem, ou de uma mulher, é a sua própria alma.Quando a deixam livre, a minha pátria não chora.Canta, está sempre a cantar.185EUTANÁSIA COLECTIVA E EUTANÁSIA PESSOAL (O direito à legítima defesa)Quando um Estado declara uma guerra, sabe que terão de morrer muitas pessoas contra sua vontade. A essas pessoas é exigido o sacrifício das suas vidas para defender o interesse colectivo. Exige-se um sacrifício para evitar a destruição da sua cultura, da sua personalidade como povo e dos seus bens. Defende-se a dignidade colectiva — em teoria, já que na realidade em toda a guerra há muito interesse bastardo disfarçado de causa nobre ou civilizadora. Refiro-me à defesa. O ataque é crime.Se por defender o bem, o interesse colectivo, se justifica a morte, do mesmo modo se pode justificar a morte pessoal. A pessoa também pode decidir sacrificar a sua vida para defender a pátria pessoal da humilhação e escravidão da dor. As razões filosóficas - éticas - para sacrificar a própria vida em defesa do interesse pessoal parecem-me igualmente nobres — se não mais — que as esgrimidas para defender a pátria colectiva. Com a morte pessoal não se atenta contra a vida humana como conceito mas contra umas duvidosas186crenças sobre a propriedade desta, e o como e quando a vida pode terminar, ou em que circunstâncias a dignidade tem mais valor que a vida.Se a vida não tem valor para uma pessoa, é absurdo que outros queiram dar-lho porque assim o diz a lei e os fundamentos de direito. Esses fundamentos serão sempre reflexões filosóficas ou ideológicas com todos os preconceitos que cada casta arrasta consigo como tabus culturais.A vida como um conceito universal e de prazer não pode ser um mal, excepto para os delinquentes ou parasitas do sofrimento. Quem deseja renunciar à vida é porque a considera um mal. O juiz, o legislador ou o teocrata, se não tem argumentos que demonstrem que a causa que provoca o desejo não existe, não têm qualquer autoridade.187A FELICIDADE DE UM MORTOEntre loucos anda o Jogo da vida, ou de viver. Que papel prefere o senhor, o de morto ou o de louco? O de morto, que é mais digno, por favor.É tão lindo não precisar de nada. Ser como uma planta que é somente preciso regar e falar com ela. Ou como o morto a cuja recordação levam de vezes em quando flores ao túmulo, sem necessidade de se mostrar original cumpridor das regras sociais. E sem a peremptória necessidade de ter de procurar a pitança diária como um vulgar mortal.Contemplar a loucura que assenta na alma como um martelo a bater sem nos causar dor, porque o corpo já está tão entumescido que não sente nada. Embrutecer a mente até ser como pedra. Até dizer aos verdugos: obrigado por cumprirem o vosso dever de fazer a repartição de papéis nesta comédia.E lindo não precisar de nada, nem criar nada, nem pensar nada, é lindo estar louco e imaginar que os loucos são os sensatos; que eles estão mais loucos que eu, e no entanto têm188

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pena de mim. É lindo sorrir e dizer que viver é bonito, porque todos o dizem e não quero contrariá-los. Não se contradizem os loucos, tornam-se violentos.É lindo este jogo de brincar aos loucos e aos mortos no qual ninguém quer fazer de louco nem de morto na distribuição dos papéis. A loucura tem força dramática. Fazer bem o papel de louco pacífico e alegre é muito difícil, pois é questão de sorrir e dizer continuamente: estou bem, obrigado.O de morto é mais fácil, não é preciso dizer nada. Ninguém acredita nele, nem quer o papel, mas o jogo diverte. Tem graça.É lindo, tão lindo, ser estúpido e que nos desculpem e nos mintam afirmando que é muito necessária a nossa estupidez porque desempenha uma função social de grande utilidade e responsabilidade. Que por isso desculpem a nossa vulgaridade com sorrisos.É lindo este jogo hipócrita de brincar a dizer o que não sentimos.É lindo estar confortavelmente morto rodeado de vivos: porque o morto pode contemplar o próprio enterro.É lindo, tão lindo contemplar todos os loucos no meu enterro ao mesmo tempo que pergunto a mim próprio: onde estará o morto?189A CULTURA DA MORTE E OS FALSOS CRISTÃOSO cristianismo, ou qualquer outra religião, não pode negar o direito a morrer racionalmente. Ver-se-iam obrigados a demonstrar que a razão ética é um distúrbio degenerativo. E então ter-se-ia que reconhecer que Jesus era irracional.Cristo ensinou muitas coisas, entre elas a superar o medo da morte e da dor, e a não nos deixarmos dominar pelas ameaças do poderoso, dado que isso dos terrores, não racionalizados nem superados culturalmente, são a arma mais eficaz e poderosa que possuem os tiranos de toda a espécie para escravizar o ser humano, com a ameaça da tortura ou da morte, quando este não quer submeter-se à sua autoridade.A mensagem de Jesus era a de que os poderosos — religião e Estado — se comportassem como o Deus que apregoam. Do mesmo modo que fazemos hoje em dia, homens e mulheres bem nascidos, quando apelamos ao Estado e à religião. Hoje não se mata fisicamente quem reclama justiça, mas mata-se psicologicamente um clamor universal: quem pede que não se utilize o sofrimento irracional em função de190interesses de casta de muito duvidosa moralidade. Uma dessas invocações é o direito à eutanásia, voluntária e livremente decidida.Jesus morreu por se revoltar contra a injustiça e a dor que os poderosos provocam. Por isso o mataram. Claro que esta explicação tão lógica e humana não encaixa na doutrina ideológica dominante de nenhum poder, por isso é preciso dar-lhe um sentido sobrenatural, como por exemplo apresentá-lo como filho de um deus. O crime não é matar o homem mas o filho da autoridade suprema.Mas quando se mata um qualquer Jesus de Nazaré, mata--se sempre o filho de um deus, mata-se a ideia, a liberdade de pensamento. Mata-se o filho de um deus, mata-se o próprio deus quando se mata a consciência de um ser humano nobre, bom e justo que se revolta contra a injustiça e o sofrimento que provoca qualquer tirania. Matar as ideias, é essa a cultura da morte.Enquanto o homem rezar em vez de raciocinar, há-de continuar a ser explorado como um cordeiro. O conhecimento liberta o indivíduo da superstição. Quando se conhece o fenómeno que causa a escuridão da noite, o indivíduo já não se interroga por que tem medo da noite, quando muito perguntar-se-á por que tem medo.O mal não está no acto mas na intenção. Ama e faz o que quiseres — santo Agostinho - e eu acrescentaria: porque farás sempre o que é justo, o bem. Nada é bom ou mau, depende da boa ou da má vontade — Kant.Jesus é um místico. E a morte tem sentido se for para exterminar o sofrimento. Mas quando o místico é suplantado pelo vil, formam-se as seitas, as religiões. Corrompe-se a espiritualidade, a razão pura. De igual modo se corrompe191

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a ciência quando o cientista é suplantado pelo tirano para converter o conhecimento em armas ameaçadoras e exter-minadoras.Quando se unem religiões e impérios, Estados e reinos, para defender os interesses comuns, a única coisa que se cria é a delinquência universalmente organizada. A corrupção moral dos dominadores consiste em fazer crer aos seus rebanhos que alguém lhes concederá a felicidade, a salvação e a libertação dos seus sofrimentos sem que tenham de lutar por elas. Ou seja, sem o esforço de pensar por si próprios.Deus ou o seu conceito é a minha consciência. E, como ser racional, o meu dever não é acreditar mas conhecer. E a minha responsabilidade, como indivíduo que possui uma consciência ética, impede-me de utilizar esse conhecimento para dominar outro ser vivo, escravizando-o.Levanta-te e caminha! não quer dizer espera pelo milagre, quer dizer: revolta-te contra toda a dor, contra toda a humilhação, contra toda a injustiça e tirania!Quando alguém se resigna diante da injustiça humilhante, já está morto. Não importa quem seja o responsável pela injustiça; tanto faz que sejam os homens, um mito ou a imo ralidade da vida, aquele que não se revolta contra isso já está morto. Todo aquele que entrega a consciência a outra vontade, acaba por ser seu escravo.Quando se sofre uma injustiça, o fim não é rezar o padre--nosso. A finalidade é evitar a dor.No que se refere ao sofrimento pessoal, qualquer ser humano adulto tem responsabilidade e autoridade para agir em consciência. De evitar a dor do mundo são responsáveis os poderosos. Quando era pequeno, os meus pais inculcaram-me um princípio que, por egoísmo, não me agradava lá192muito. Repetiam-me frequentemente: «Quando achares que podes fazer uma coisa com as próprias forças, não peças ajuda.» A eutanásia voluntária é uma forma de uma pessoa se ajudar a si mesma, de caridade e de dignidade bem entendida.193O DIREITO DE NASCER E O DIREITO DE MORRERNão existe escravidão mais imoral do que a da consciência. Essa é a cultura da involução, do inferno, da morte, porque leva irremediavelmente ao ressentimento, ao crime, à destruição.Onde foram parar todas as verdades sagradas e profanas, todas as vidas sacrificadas por defendê-las que hoje são consideradas crimes contra a humanidade?Um dos grandes erros filosóficos é negar ao indivíduo o direito de renunciar à vida. O que significa que nunca se lhe quer reconhecer que a vida é propriedade dele. Livre e adulto.Não se ensina a arte da boa morte porque se defenda a sacralidade da vida, mas por receio de que os escravos renunciem em massa ao inferno de umas vidas miseráveis.É coerente que os dominantes justifiquem o sofrimento como um dever moral porque é a fonte do seu prazenteiro bem-estar. O que é absurdo é que aqueles que foram escravos, quando são legitimados pela consciência colectiva para194corrigir o abuso, o erro, ou o crime, continuem a aplicar as leis do antigo amo e seus fundamentos - refiro-me aos socialistas e à Constituição.O direito de nascer parte de uma verdade: o desejo do prazer. O direito de morrer parte de outra verdade: o desejo de não sofrer. A razão ética põe o bem ou o mal em cada um dos actos. Um filho concebido contra a vontade da mulher é um crime. Uma morte contra a vontade da pessoa também. Mas um filho desejado e concebido por amor é, obviamente, um bem. Uma morte desejada para uma pessoa se libertar da dor irremediável, também.A vida parte de uma verdade. Evolui corrigindo sistematicamente o erro. O manual de instruções é a natureza. Quem o interpreta erradamente cria o caos.Quando se nega o direito de renunciar à dor sem sentido, proibisse também o direito a ser mais livre, mais nobre, mais justo, à utopia de libertar-se da armadilha em que o enfiaram os legisladores. Exterminaram as feras para ocupar o seu lugar, e agora fazem de mestres. Ditam leis e fundamentos de direito, criam escravidões de que nenhuma razão consiga escapar. A razão criou para a sua espécie uma ratoeira infernal.

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A liberdade significa a liberdade do todo. A justiça significa o amor, bem-estar e prazer para o todo. Isto é, equilíbrio.Nenhuma liberdade pode ser construída sobre uma tirania. Nenhuma justiça sobre uma injustiça ou dor. Nenhum bem universal sobre um sofrimento injusto. Nenhum amor sobre uma obrigação. Nenhum humanismo sobre uma crueldade, seja qual for o ser vivo que a sofra. A diferença entre a razão ética e a crença fundamentalista é que a primeira é a luz, a libertação; a segunda a treva, a armadilha infernal.195A MEU FILHOPerdoa-me, filho, por não teres nascido. Não foi culpa minha ter-te deixado para trás. Eu beijei as flores que achei no meu caminho. A culpa foi do verbo pecar.Vi-te sorridente naqueles olhosque me contemplavam assombrados e inquietos,mas interpôs-se sempre entre os nossos desejoso tabu... pecado. Não tive culpa,foram as rosas que tiveram medo.Talvez para proteger-te, inconscientemente, do inferno.Perdoa-me por não ter podido brincar contigo. Lamento muito que não me deixem voltar atrás. Não sei se terás nascido depois da minha passagem. Não importa. Lembra-te sempre que continuo a amar-te.Dá um beijo a tua mãe da minha parte. E não me guardes rancor, odiar não é bom.196REGRESSEMOSRegressemos sempre onde o desejo quiserconduzir-nos, aí é sempre o centro. Aí nasce o princípio eo fim.Eu sou sempre o centro.O meu pensar expande-se como o universoem qualquer direcção. Saio de mim mesmo e a mim mesmo volto.Em cada retorno venho mais perfeito, relativizado,nem mau nem bom. Regressemos sempre a começar de novo, para comprovar que o desejo é certo. Reiterando sempre o mesmo processo, até conseguir um só elemento.Em cada regresso de morte e de vida fica na matéria um preconceito a menos.198Regressemos, porque em cada volta ficaum erro a menos. Regressemos sempre, até conseguirmos ser apenasbons. Sem rancor, inveja nem ressentimentos.N.I.H.I.L.I.S.Como o sabor ou o odor regressam sempre a reavivar-nos a memória sem que possamos jamais repetir o facto porque só restam metáforas de recordações, hipóteses mortas que só servem para que o desejo lhes sinta a falta, penso:Não há nada no passado nem nada no futuro, o desconhecimento!, e no presente somente sofrimento e dor para os escravos. A tortura como um pesadelo, a esquizofrenia, o desequilíbrio.Para se ser livre é preciso estar completamente só. Sem precisar de nada nem de ninguém. Atrás fica a história e o erro a corrigir. A frente, o projecto da libertação do sofrimento sempre pendente por culpa dos néscios.Há alturas que para poder ser feliz só nos resta, como uma intuição, a esperança que há por detrás do horizonte, do mais além.Não, não é como dizes, um deus!199O CONCEITO DE IGUALDADE OU AUTORIDADE MORALTem a pessoa direito de renunciar à vida?A partir do instante em que adquire uma consciência ética, categoricamente, sim.

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PRIMEIRO, porque tem capacidade para fazer um juízo de valor sobre o sentido da vida como um todo genérico e dos seus entrelaçados direitos pessoais e colectivos.SEGUNDO, porque é capaz de compreender o valor da sua vida individual e as consequências de renunciar a ela conscientemente.Assim, a morte como um acto de liberdade é uma reflexão exclusivamente pessoal. O grau de compreensão, aceitação e tolerância social, se bem que possam servir de pontos de referência, não devem ser determinantes na hora de exercer um direito que é exclusivamente pessoal.Em casos de doenças irreversíveis e de defeitos físicos que incapacitam a pessoa para sobreviver por si mesma — tetraplegia, por exemplo —, quase toda a gente afirma compreender as razões. Ou seja, o desejo comum, o senso comum,200considera as referidas circunstâncias não desejáveis. A tolerância, pelo menos, perante a opção de renunciar a elas mostraria a superioridade dos dominantes.

201A DIGNIDADE E A MORTESó a análise que o indivíduo faz a partir das próprias circunstâncias pode determinar o conceito da própria dignidade. Só a consciência pessoal pode aceitar como digna e tolerável uma circunstância dolorosa que outra consideraria irracional, indigna e insuportável.Toda a pessoa tem o direito de rejeitar qualquer análise que lhe seja imposta por outra consciência, tanto pessoal como colectiva — teocrática ou democrática. A pessoa só pode reger-se pela sua consciência. Reger-se pela consciência significa algo mais que a liberdade de pensar. Reger-se pela consciência têm implícito o direito a que a vontade seja escrupulosamente respeitada. Só terá o justo limite que lhe impõe o direito de outra consciência a disfrutar da mesma liberdade. Não pode haver nenhum impedimento para a liberdade operar em consciência, dentro dos limites éticos da igualdade.Numa verdadeira cultura da vida, o direito à morte como acto de liberdade de consciência é a conduta moral positiva.202Diz-se que viver em sociedade implica deveres e direitos. Sim, mas quando uma parte é a que impõe as normas, à outra só resta o dever da obediência e o direito à pateada estéril como única forma de desacordo. Isso não é respeito mas sim paternalismo.Quando se nega a alguém um direito cujo exercício efectivo é essencial para que se cumpra a sua vontade, e com isso o respeito por si mesmo como ser humano livre, a essa pessoa só lhe resta o dever da humilhante resignação. Essa escravatura da consciência é a verdadeira cultura da morte.Sem o direito de se ser dono e senhor de toda a sua pessoa, o ser humano não disfruta de plenos direitos.Não pode haver dignidade possível nem livre arbítrio sem liberdade plena.Se não se tiver o direito de renunciar à vida, ninguém é dono dela.203RAZÃO E EVOLUÇÃOA vida evoluiu corrigindo sistematicamente o erro. Se o direito do indivíduo a renunciar à dor irracional fosse um erro contra a vida, a razão pura acharia o meio de corrigir o desequilíbrio. Hoje, o desequilíbrio universal é provocado pelo fundamentalismo, tanto religioso como político-jurídico, que defende a obrigação moral de sofrer. O que o senso comum recusa, que é o mesmo que dizer a justiça e a razão!204A MORTE E A TRANSCENDÊNCIAPor agora, é impossível a prova empírica que demonstre a transcendência do ser consciente. Mas só aceitando a ideia de uma perspectiva diferente da nossa consciência depois da morte pode o indivíduo libertar-se do escravizante temor.A morte existe para alguma coisa no esquema da vida. Pode considerar-se que é sempre regeneração, um método infalível de corrigir o erro. Não é boa nem má. De um ponto de vista

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ético, é positiva se for voluntária e procurar o equilíbrio. Trata-se de uma lei da matemática universal. Se não existir a consciência ética é uma lei amoral. Depois da consciência ética, pode ser um bem ou um mal, depende do equilíbrio entre o prazer e a dor. Só o indivíduo pode valorizar e julgar a conveniência de aceder a um plano distinto no equilíbrio cósmico.Quando o ser toma consciência de que é mortal, o seu erro não é que aspire à imortalidade, o erro é que aceite o sofrimento irracional e suporte qualquer circunstância humilhante se alguém lhe prometer que com isso tem a certeza de205conseguir a referida imortalidade. É essa a tragédia do ser humano: um temor exacerbado à ideia de morrer, como um acontecimento negativo, converteu-o em escravo de sofrimentos e circunstâncias dramáticas que, racionalmente, não fazem sentido.Considerando indigno ou insuportável um sofrimento, quem renuncia voluntariamente à vida achar-se-á num lugar melhor, equilibrado. Terá transcendido positivamente.Quando a morte é provocada para a pessoa se libertar do sofrimento produzido por uma doença incurável ou por uma circunstância dramática, é a própria vida quem procura o equilíbrio. E a razão a impôr-se ao instinto. A morte tem mais valor moral que a vida.206ONDE VAIS?Onde vais, matéria? Vou em busca de sentido. Por que aceitas então a dor sem sentido?Por que embalas o filho? por que choras se sofre? Por que o queres livre, sábio e trabalhador?Porque buscas sentido, vais buscando o bem, sistematicamente, corrigindo o erro.Essa metamorfose torna-te mais perfeito; só tem uma meta: chegar a superior.Tudo quanto te dói clama ser corrigido; é teu único objectivo superar o temor.Vais evoluindo, renasces a cada instante vais sempre para diante acossando a dorAté o derrotares não cedes no teu empenho, até te proclamares eterno vencedor.E este todo o sentido: corrigir a injustiça evitando à vida sem sentido a dor.Mas a toda a vida, mas a toda a vida, não apenas à vida do ser dominador.OS PRECONCEITOSEra a noite de estrelas no nosso paraíso. Ela vestia o seu traje de Eva. Na orla do nosso pomar, ansiosa e com toda a vida na palavra, implorava recuperar o sonho que nos fugia. Mas os meus preconceitos feitos de palavras apodrecidas e envenenadas arrasaram toda a beleza.Como o furacão, ululavam nas minhas atávicas e corrompidas entranhas com a resignação do ser domesticado. És uma rameira! És uma perdida! Seria tudo isso, mas era a minha vida inteira.E foi-se afastando aquele suave canto. Foi-se esfumando o sonho.Amor, serei o que quiseres! Era o que eu mais queria.Mas o meu corpo vazio afastou-se caminhando. Saí do paraíso por cobardia.Quando me voltei, para a ver vestida de lua, eram cinco da manhã.209Em noites de lua cheia, às cinco da manhã, envio-lhe do inferno duas pérolas em memória de um nome... QUERIDA, OBRIGADO.210CRENÇA E RAZÃOComo é lógico, o passo seguinte no processo de metamorfose evolutiva tem de ser a razão científica e pura que substitui a crença cega, ou seja, a verificação da prova empírica para corrigir a incoerência.Aqueles que afirmam que a ciência tem de converter-se em amoral e arrogante enganam-se. A ciência nunca se pode transformar em amoral porque nasce do desejo humano de procurar a verdade. É absurdo que o ser humano sinta a necessidade imperiosa de conhecer-se a si mesmo cientificamente para acabar por se prejudicar. A razão, então, não faria sentido. Que alguns seres humanos utilizem os conhecimentos científicos para impor o domínio amoral é coisa muito diferente.As religiões negam-se a aceitar a metamorfose, a evidência. Estrangulam a mangueira. Sempre travaram o fluir racional. Os seus temores provocaram a catástrofe da intolerância e do fanatismo.

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211A vida tinha — e tem - prevista a metamorfose da razão crítica, a ética da consciência pessoal como método acelerado para a correcção de erros.O erro mais grave cometido pelo ser humano é não ter corrigido a dor e a crueldade da dominação instintiva. Persistir na perfeição da crueldade caçadora e dominadora, em vez de rejeitá-la, desqualifica-o como ser superior.Se a metamorfose racional tem como finalidade corrigir a dor e a crueldade amoral da natureza, uma espécie que atinge a capacidade do raciocínio é, precisamente, porque quer libertar-se desse terror. Porém, quando consegue isolar-se dos devoradores, esquece-se da responsabilidade que tem para com os seus irmãos de vida e começa a devorá-los. Extermina a fera e ocupa o seu lugar. E esta a verdadeira culpa do ser humano, o seu pecado original: traiu-se a si mesmo. Violou a lei. Traiu a própria consciência. Interrompeu o processo da metamorfose que visava uma superioridade ética e moral.As religiões apoiam e exploram este comportamento incoerente e feroz. O ser racional, quando tomou consciência de que já era livre, que era adulto, que devia pensar com justiça, converter-se em protector e defensor responsável em vez do protegido inconsciente e irresponsável; quando — como diz a parábola — comeu da árvore da ciência, viu-se assaltado pelo pânico da responsabilidade. E nega-se a ser pai. Não aceita a responsabilidade de ser livre e de libertar a vida da injustiça, isto é, do que a sua consciência recusa e o atemoriza. Para evitar a responsabilidade dos seus actos, inventa um pai e põe-se a rezar-lhe. Não faz mais do que enganar-se a si próprio dado que tal pai não existe. A sua consciência é esse pai deus a quem reza. Quando se diz isto às religiões, estas entram em santa cólera e acusam o racionalismo crítico212e científico de ser menos que o espírito do mal. O ser humano não quer ocupar o lugar de Deus-Pai, porque não lhe interessa assumir essa responsabilidade.As religiões são culpadas do crime, da traição, porque são as maiores promotoras de que o ser humano continue eternamente no seu lugar de escravo de seu pai, ou parasita herdeiro de seus bens, irresponsável quanto ao seu poder de causar sofrimentos aos outros seres vivos em benefício próprio.Há pais que convertem os filhos em inúteis. As religiões fazem outro tanto com a humanidade.O perigo de catástrofe para a vida está em que a razão seja eternamente boicotada pelos seus inimigos, em que a metamorfose não se processe.Todo o fenómeno desconhecido atemoriza o ser vivo; é fácil manipular psicologicamente esse temor no humano aproveitando para tal a ignorância e a superstição.O temor é o pior inimigo do ser humano. Se a vida é um processo contínuo de metamorfose, aqueles que utilizam o terror da morte e a dor para dogmatizar e impor a sua opinião são culpados de atentar contra a lei da vida.213EXISTO INUTILMENTE OU O VALOR DA VIDAExisto inutilmente para a vida porque não tenho forças para cantar, nem um barco com canhões, como o pirata, para sentir-me livre sobre o mar.Há um secreto ritmo, um fogo, uma esperança, Um toque feminino em torno do eterno, mas nem eu o canto, nem me canta a vida: quando fazemos o balanço, temos zero.Ponho todas as minhas forças, perdoo e amo,mas sempre me dá zero, negativo.Existo, portanto, inutilmente.Sou, e não posso ser; não estou morto nem vivo.Como o zero, não tenho valor algum, e se eu não tenho nenhum valor, existo inutilmente para a vida, e existo inutilmente para o amor.EUTANÁSIA E RAZÃO,A METAMORFOSE QUE NUNCADEIXAM CULMINAR

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A dúvida já não está em saber se a eutanásia, como um acto racional, deve ou não deve ser um direito pessoal cujo juiz é a consciência. A dúvida está em saber se alguém pode obrigar-me a viver na desrazão.Não há crise de valores ou de religiões. As religiões são a crise.A vida evolui como a água que corre por uma mangueira. A mangueira não se pode estrangular para deter a água. Rebentará.A mentira, ou o erro não corrigido a tempo, provoca sempre a catástrofe. Quando se descobre que uma hipótese é inexacta e não se modifica, também. As religiões encontraram-se com insolúveis contradições no seu afã de explicar a origem, sentido e valor da vida. Cometeram graves erros dedutivos, mas negam-se a corrigi-los.215AS SEITASO fenómeno das seitas e da sua proliferação é compreensível. Em todas as crises os sectários aproveitam-se do temor da liberdade, da dor e da morte que toda a pessoa sente, a fim de escravizá-la oferecendo-lhe em troca a protecção do seu mito.Em tempos, o cristianismo aterrorizava os seus fiéis ameaçando queimá-los vivos. Hoje ameaça-os com o castigo eterno se abandonarem a sua protecção. Os muçulmanos esquartejam e esventram as mulheres grávidas com o fito de provocar o terror em todo o membro do rebanho que possa ter a tentação de abandoná-lo.Quando são acusados de ser os responsáveis desta bárbara exploração, os pregadores repetem sistematicamente a mesma argúcia: mas não é Deus quem o faz, ele não é responsável por esta barbárie!Claro que não, mas os rebanhos aí estão aterrorizados e silenciosos sem uma consciência crítica, incapazes de se rebelar contra os pastores.216Fora de Deus espera pela condenação eterna! - dizem os adoradores do mito que adoptaram como protector.Se bem que isso fosse um milagre, gostaria que aos pastores se lhes iluminasse o raciocínio e entendessem que a razão não pretende ridicularizar e menos ser pejorativa ou arrogante.Se o ser humano — a vida — procura o conhecimento, a origem e o sentido da sua existência, é absurdo que se detenha na ideia de que a sua meta se encontra na descoberta de um ser protector. É uma incoerência. Se é capaz de idealizar um ser superior, a meta dele é «SER SUPERIOR».É verdade que o ser superior é misericordioso, justo, compassivo, caridoso, bondoso e nobre: Buda, Cristo, Maomé, Marx, Engels, Voltaire, Sócrates, Che Guevara, Fidel Castro, Georges Roos, Dom Quixote têm todas estas virtudes. Todos pretendem a libertação, não a escravatura.O característico de um ser superior é que, antes de ser protector, ele é um defensor. Caso haja alguém que não entenda, ou não queira entender, estou a referir-me a um ser superior, não a um ser dominante.Defensor de quê? De uma justiça ética universal. «Age bem, e faz o quiseres» (santo Agostinho). O ser humano não pode proteger a vida contra a lei da dor, mas a razão pode defendê-la de todo o parasita que atente criminosamente contra ela escravizando-a. A eutanásia voluntária é o culminar da razão que encontra sentido e bondade na morte.217EUTANÁSIA, TEMOR E TRANSCENDÊNCIASó um temor exacerbado à ideia da morte e a consequente desintegração material pode levar o ser humano a converter-se num ser sem critério nem vontade própria, programado desde antes de nascer para ser escravo de qualquer espertalhão conhecedor da psicologia do terror e da forma de manipulá-lo a seu belo prazer. Só o conhecimento do nosso próprio processo evolutivo pode libertar-nos dessa escravidão. O crente age bem por medo do castigo, o racional porque se entende a si mesmo.218QUERER-ME BEMEu faço com o sonho uma aliança

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que me livre de esperar inutilmenteo milagre de alcançar, ingenuamente,o favor de não morrer, que não se alcança.Que me humilha e me degrada a circunstânciade implorar ao divino absurdamentea um senhor e pai nosso indiferenteque responde à minha dor com desconfiança.E querer-se, o querer também a morte como parte do mistério e do destino como mescla de débil e de forte.Que é amor querer-me bem como adivinho que me guie a razão e não a sorte por desejo e vontade do divino.O MAL SAO DESEJOS FALSIFICADOSNo processo evolutivo, o desejo faz o órgão. Uma palavra pode ocultar intencionalmente — ou não - uma mentira. Um desejo, nunca. O desejo pode ser interessado e egoísta, ou generoso e nobre, mas não mente. Se o desejo, tanto o pessoal como o comum, considera a tetraplegia ou a doença terminal como algo não desejável, quem falseia a verdade é o crente que considera um dever moral o facto de sofrer. O crente falseia a verdade porque é inconscientemente um ser dominante que baseia a sua razão de ser no facto dessa falsidade existir. O juiz que aplica a lei, afirmando cumprir com um dever, inconscientemente deseja que a lei exista porque lhe interessa o seu bem-estar. Pais, advogados, políticos, médicos, sociólogos, jornalistas, psiquiatras, psicólogos, desejam que o mundo exista em função dos seus desejos e não que os seus desejos existam em função de um mundo sem dor. E assim até formar esta trama infernal que toda a gente classifica como injusta, depravada e corrupta, sem que todavia ninguém seja, ao que tudo indica, directamente responsável pela incoerência.220Dizia o sábio que estaria disposto a dar a vida para defender o direito de uma pessoa expressar os seus pensamentos.Se se entendem as razões pelas quais uma pessoa deseja renunciar à vida é porque lhe é injusta a consciência ética! O justo então não é proibir porque assim o estabelece a lei, mas modificar a lei que protege um costume supersticioso.O juiz, tal como o sábio, deveria ser o defensor da razão e não apenas o protector de astúcias e ambiguidades políticas.Que tipo de humanidade racional é essa que compreende quem reclama um direito mas não modifica a norma que impede que se exerça livremente esse direito?Os fundamentos de direito em que se baseiam os juízes para justificar que o interesse da vida humana se encontra acima da vontade pessoal parecem de duvidosa moralidade.Antepor o interesse colectivo ao pessoal podia ter fundamento em circunstâncias excepcionais de emergência, mas não se deve transformar num costume totalitário que anule a consciência pessoal. Na normalidade, este princípio predominante deve manter-se dentro dos princípios de uma razão evolutiva - constitucional. Liberdade, justiça e igualdade.Para poder utilizar obrigatoriamente o indivíduo em função do grupo teria de ocorrer um perigo real de extinção da espécie. Como não é essa a circunstância, negar o direito a libertar-se da dor irremediável é uma crueldade.A tolerância é uma virtude dos espíritos moralmente superiores.O Estado e a religião, na sua condição de grupos e de castas institucionalizadas para dominar, não têm razões de peso ético e moral para negar o direito da pessoa a pôr termo à sua vida.221A vontade pessoal é mais nobre porque o que a razão pretende não é terminar com a vida, mas com a dor, que não tem sentido para a vida. O que pretendem o Estado e a religião é impor um princípio de autoridade. Mas um princípio que anula a liberdade de consciência é um princípio totalitário, imoral. É verdade que o tirano dirá que proporciona aos seus escravos tratamento humanitário e um razoável bem-estar, mas não é esse o sentido da vida racional. O sentido da razão tem de ser libertar a vida do absurdo. Um dos grandes absurdos é que se negue o direito a morrer racionalmente. E o outro, que sejam os fundamentos do direito que marquem o caminho

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à consciência ética, e não a consciência ética que vá corrigindo sistematicamente o erro e marcando os fundamentos de direito. Para tal teriam que governar os justos e os sábios. Hoje em dia, quem o faz são os intolerantes e os néscios!Para alcançar a condição de humano é imprescindível que a pessoa se liberte da tutela dos deuses, do predomínio da crença! Do mesmo modo que é imprescindível ao ser humano libertar-se da tutela dos pais para alcançar a verdadeira maturidade psicológica. Da tutela de deuses e pais é fácil uma pessoa libertar-se, o que é impossível, ao que tudo indica, é fazê--lo do cruel paternalismo das religiões e do Estado. Nenhum destes possui a tolerância e a nobreza dos deuses, nem o amor dos pais! É injusto - por ser escravizante - que o Estado, com a cumplicidade dos juízes, se arrogue o direito de proteger a vida da pessoa contra a vontade desta, ao mesmo tempo que toleram crueldades aberrantes contra a vida. Esta conduta paternalista podia ter sentido se as razoes expostas por quem deseja renunciar a ela não fossem compreendidas - e partilhadas - por uma maioria democrática, ou por uma minoria intelectual ética e moralmente qualificada.222Diz-se — como prova de imparcialidade - que a justiça é cega e surda. Semelhante conduta num juiz, mais do que uma virtude é um sintoma de corrupção ética. Se um juiz esquece a parte sentimental e afectiva transforma-se num ser amoral. Ou seja, num animal.Seria monstruoso que o Estado utilizasse o indivíduo como mero consumidor de produtos farmacêuticos, cobaia do sistema sanitário e dos seus técnicos, ou da moral religiosa. Porém, parece ser assim!O direito e a verdadeira ética são aqueles que toleram e respeitam as ideias dos outros com o mesmo respeito e tolerância que reclamam para as suas.A justiça só deveria competir julgar se os códigos se ajustam a uma conduta ética, e não se a conduta ética se ajusta aos códigos.No que se refere ao sentido da vida, cada indivíduo é um ser único. Como ser racional tem o direito de fazer os seus próprios juizos de valor e a determinar até que limites de degradação física - ou sofrimento irracional - está disposto a suportar para a conservar. Ou o que é o mesmo, até que grau de humilhação está disposto a chegar. Só assim haverá evolução racional.Cada indivíduo é um projecto da vida em busca da verdade. Sempre que alguém proíbe uma pessoa de se libertar de um sofrimento irracional, está a proteger-se a mentira e a maldade, pois suponho que só ao diabo pode ocorrer essa ideia genial da obrigação moral de suportar a dor porque isso purifica o homem. Quando se sacraliza o império da lei e os fundamentos de direito que a sustém, mata-se a razão e cria-se o mal. As leis não poderão proteger todos os casos de injustiça, mas a razão sim. Como? Reduzindo as dimensões do poder a grupos223humanos cujas decisões possam ser controladas democraticamente, e a palavra possa ser lei. A justiça passaria então do povo para o Estado, nasceria na consciência de cada ser humano e não apenas na consciência de grupo que propõem as castas dominantes.Entre grupos de pessoas que se conhecem, escolher os mais nobres, sábios e justos é simples. No caso concreto da eutanásia, os juízes mais idóneos são aqueles que mais nos amam, conhecem e respeitam.Considero que a interrogações de carácter pessoal só a razão pessoal pode dar respostas ajustadas ao direito humano. Só a razão, com base na sua circunstância, dispõe de todos os dados para efectuar um juizo de valor justo e equilibrado. Só o sentido da dignidade pessoal pode julgar se é preferível renunciar ou não à vida. Só a razão pessoal pode dizer quando dispõe da liberdade e da felicidade necessária para viver.Se não está na sua perspectiva de futuro como ser humano existir em função de conceitos éticos e morais de outros;Se não é seu conceito de vida agarrar-se à ideia protectora de um mito e submeter-se à vontade deste;Se a pessoa considera que ser humano, e vida, é um estado de equilíbrio entre o físico, o psíquico e o anímico ou espiritual, que não consiste em ser um cérebro pensante e em sentir com maior ou menor sensibilidade;

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Se se considera que a vida tem como único propósito evitar a dor inútil que a razão não pode de modo algum justificar a não ser criando um inferno absurdo;Se se considera que a morte é uma lei suprema universal de que a razão pode fazer uso, com o único propósito de evitar o irracional; que expliquem os juízes e todos aqueles que224justificam o sofrimento incurável como exemplaridade moral, em que consiste o delito, o crime ou o mal da eutanásia voluntária.O imoral é que se classifique em nome da ciência, do direito e da razão para desqualificar quem reclama o direito a não existir racionalmente.A eutanásia não é uma lei planificada a partir da consciência imoral - ou amoral — de um Estado, mas um direito e uma liberdade tutelada pela consciência pessoal e com a colaboração - se fosse necessário - de alguém que nos ame e respeite o suficiente para que não sobreponha as suas crenças ou interesses aos nossos.225ASSIM É A LEIOnde não predominar a razão pura sobre a lei, sobreviverá eternamente a injustiça.Quando a filosofia se transforma em fundamento de direito, a razão imobiliza-se, nasce então o fundamentalismo, a intolerância, o fanatismo.Se uma pessoa existe em função de um código normativo que impõe conceitos éticos e morais de outros, para que é dotada de uma consciência ética pessoal?Quando se faz esta pergunta, aqueles que desejam o predomínio da lei sobre a razão, isto é, aqueles que não desejam modificar a norma que protege o seu interesse pessoal ou de grupo, afirmam que isso é filosofia.E donde nasce o direito?Na sentença ao meu pedido de eutanásia - no qual se pergunta se deve ser castigada a pessoa que prestar a ajuda —, o fiscal diz, segundo os fundamentos de direito, e o juiz confirma, que os conceitos de liberdade, justiça e igualdade que a Constituição defende não vêm ao caso. Assim é a lei! — parecem dizer.226Mas o juiz, o fiscal e todo o ser bem nascido, tem o dever moral de ser justo. E a justiça é, antes de ser lei, razão ética e humana. A justiça é um projecto da vida — a verdade — que visa o bem.O justo não é a igualdade perante a lei. O justo é a igualdade ética e moral entre qualquer pessoa e aqueles que fazem a lei e os encargados de a aplicarem. O que se deve julgar é a moralidade ou imoralidade da petição.Quando um juiz não se interroga se uma demanda é justa ou injusta, converte-se num imoral fundamentalista.Um verdugo pode executar uma pessoa e lavar a consciência, dizendo que cumpre o seu dever. Um juiz que lave a consciência com a lei e os fundamentos de direito, em casos de condutas éticas democraticamente reclamadas como direito pessoal, é um delinquente. Entender-se-ia que dissesse que está obrigado a interpretar a lei e a aplicá-la segundo os fundamentos de direito, mas como o que se julgava na minha demanda não é um delito mas uma modificação de norma, deveria argumentar se lhe parece justo ou injusto a rejeição que os códigos e os seus fundamentos o obrigam a proclamar. Deste modo, os legisladores teriam um qualificado ponto de referência humana na hora de legislar.Pode-se lavar a responsabilidade dizendo que isso é um assunto a resolver pelo legislador, e enquanto a norma nos beneficiar, o mais cómodo é cumprir com o dever.Se a autoridade ética e moral individual não tem o mesmo peso e consideração na hora de legislar que a dos escolhidos como castas dominantes - autoridades —, o indivíduo é um simples escravo de consciência. Poderá dispor de um raciocínio, de uma consciência ética coerente, mas sem mais autoridade que a de um simples animal doméstico. O cordeiro que é sacrificado, não o que se sacrifica a si mesmo.227POBRES POVOS

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Ganha sempre o mais feroz quando luta em nome do povo - isso é o que ele diz -, mas é ele o tonto da aldeia a quem é dada uma medalha, uma condecoração e uma espingarda e a quem põem a fazer de cão de guarda domesticado para que vigie o rebanho do dono. Ele julga-se o chefe de Estado, o caudilho que ama o povo, mas ele não passa do tolo da aldeia. A fera é o amo, o dono invisível.Coitado do povo!Que triste destino ser guardado por um cão feroz que se imagina que ele e o seu amo são os únicos animais bons!228CHEGAM OS REIS MAGOSJá chegam com as oferendas os Reis Magos para os meninos de rua de Bogotá, de Madrid, do Brasil ou do Panamá, órfãos esquecidos de Deus de tão vagos.Mandam-nos os ricos pelos estragos que causam à imagem da cidade: lindas bala de chumbo por caridade por que não sofram mais fazem-lhes afagos.Matar os mendigos como uma pragapara que os proteja de todo o malo deus omnipotente do capitale não infectem a sua casta como uma chaga,a dos escolhidos; para isso pagam,para matar os meninos que cheiram mal.A ESPERADo fundo do tempo onde espera a memória para redimir a vida da dor, um atávico sonho de químicos impulsos vai--se repetindo: tique, taque, tique, taque... Amor, amor.Um mistério indecifrável prestes a explodir a cada instante vai e vem pelo meu labirinto infinito, regressando sempre como luz e sombra. A cabala, a fantasia, a matemática cifra no fundo do tempo onde estamos perdidos espera vigilante o fim da mentira.230A RENÚNCIASempre presente como um tormento,como um feitiço, pela palavra que pronuncioucomo o insecto que vôa enlouquecidocom uma ideia pelo infinito de uma obsessão.Uma palavra, talvez perdida, sem importância, uma comparação inexacta, talvez, não quero saber se é premeditada, com aleivosia; seja falsa ou verdadeira faz-me estremecer.Um sensível lamento do lugar profanado onde esteve a minha chama prestes a voltara acender-se com a magia de uma palavra terna, de umnome saudoso, mas há chamas que mais vale não deixar renascer.232Viver é somente uma eterna renúnciae há renúncias que são impossíveis de poderexplicar; por exemplo, a umas mãos amigas que me oferecemternura, como dizer-lhes: «não quero a ternura,porque me faz sangrar».Sempre renunciando desde que nascemos ao que não queremos nunca renegar aos maiores prazeres: amor, liberdade, vida. E, contudo, levam-nos sempre a renunciar.Sempre presente como um tormento algo que nunca consigo explicar.TERCEIRA PARTEAOS CORDEIROSQueridos amigos:Não foi possível o triunfo da razão!Quando esta carta for lida, terei morrido por erro de forma. Há três culpados directos do crime: o Estado, a religião e todos aqueles que se escudam atrás da lei para impor a sua vontade. Os que a fazem e os que colaboram na sua criação e aplicação ainda que duvidem da moralidade dela.

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Tinha a esperança de que a razão se impusesse ao fanatismo e à superstição. Ou seja, que fosse devolvida ao indivíduo a consciência pessoal. Enganei-me! Existe um condicionamento psicológico insuperável para o ser humano eticamente degenerado: o medo ao castigo se desobedecer.E o que temem os indivíduos que compõem um governo democraticamente eleito para legislar de acordo com os princípios constitucionais?A verdade, a liberdade, ou talvez a sua consciência, e por isso a submetem a uma suprema enteléquia chamada Estado,235a impune vontade de um amo invisível que impõe a sua autoridade e destribui a sua justiça através da palavra sagrada que é a lei. Deste modo se libertam da responsabilidade, da culpa e do medo.Enquanto tiverem cordeiros para devorar, continuarão a seduzi-los!236CARTA ABERTA AO CHEFE DE ESTADO ESPANHOLMajestade, protesto:Tenho diante de mim um texto dos Excelentíssimos senhores magistrados da Sala segunda, Secção terceira, do Tribunal Constitucional, Don Luis López Guerra, Don Eugénio Díaz Eimil e Don Júlio González Campos, a explicar as razões pelas quais me rejeitaram um recurso de amparo promovido por mim em consequência de uma sentença desfavorável da Audiência Provincial de Barcelona que denegava a minha petição para que não fosse castigada penalmente a pessoa que me facilitasse a substância química que eu, livre e voluntariamente, solicitasse com o objectivo de terminar a minha vida de forma racional e humana, encontrando-me incapacitado fisicamente de levar a cabo tal acto por mim próprio. Só assim se cumpriria o princípio de igualdade, pois toda a pessoa goza da liberdade de pôr termo à vida, se for essa a sua vontade.Sofro de tetraplegia.237Há já alguns anos que ando a bater à porta dos palácios de justiça, mas os seus servidores têm acabado sempre por erguer novos obstáculos: o Defensor do Povo disse que a resolução do assunto compete ao Legislativo; o subsecretário do presidente do Governo, com o poder de legislar, responde, mais ou menos, que a lei é a lei e que a ela nos devemos ater; o juiz da Primeira Instância analisa a minha demanda com base na filosofia de códigos que a Constituição tornou obsoletos; a Audiência de Barcelona diz que não sou obrigado a viver, mas que existe um vazio legal para julgar o assunto que lhes exponho; o ministro da Justiça afirma que não existe vazio legal, e por último, os senhores juízes do Constitucional rejeitam o recurso por erro de forma, quando dois tribunais já haviam entrado na análise de fundo, que era o mais importante.Isto não é cumprir com o dever de fazer justiça; isto é astúcia burocrática; pôr entraves, obstaculizar.A forma nada tem a ver com a justiça. A forma é apenas o caminho que se deve seguir para que a burocracia seja mais eficaz e funcione.Rejeitar o recurso por erro de forma é além disso uma burla, pois, em primeiro lugar, a demanda nunca deveria ter passado por nenhum tribunal quando se sabia desde o princípio que só o Tribunal Constitucional poderia julgar o fundo do tema.Como entender então que se ande enredando o assunto pelos tribunais de justiça, quando se sabe que nenhum juiz poderá dar uma sentença definitiva?O erro de forma pode ser desculpa suficiente para rejeitar o recurso por parte dos juízes, mas não é ético. Deveria ter sido suficiente desculpa - ou atenuante - para o aceitarem,238o facto de não ter meios económicos para pagar a um advogado particular e ter tido de procurar assessoramento e apoio jurídico gratuito onde o havia. Dá-se a circunstância deste advogado — altruísta - ter a sua residência em Barcelona.Majestade: como chefe do Estado, peço-vos que deis uma lição de ética aos vossos servidores, se não puderdes chamá--los à ordem. Ser juiz supõe ser algo mais do que um simples burocrata. O

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fundamento de toda a ética e de toda a moral é — ou deveria ser — o respeito e a tolerância, mas não apenas de baixo para cima.Já é bastante humilhante a condição de súbdito sem que eu a tenha solicitado, mas respeito o jogo enquanto este me parecer equilibrado, racional e justo.De qualquer modo, é bastante humilhante que uma determinada moral religiosa tente impor-me os seus conceitos e crenças sem que eu o queira, mas respeito as regras porque assim é o jogo enquanto me parecerem equilibradas e justas, e dado que aceitá-las é um acto voluntário.Também é humilhante que me obriguem a sobreviver contra minha vontade, em nome da sacralidade do sofrimento e supostamente do interesse colectivo. Respeito o facto pois assim é o jogo, mas não me parece respeitável, nem justo, nem equilibrado, nem bom. Por isso recorri aos juízes, que lavam as mãos através da forma demonstrando assim a sua manifesta má vontade.Devo pensar que os senhores juízes seguem instruções do Conselho de Estado porque são juízes e autónomos?Eu expunha-lhes um conflito de interesses entre três maneiras diferentes de entender o sofrimento incurável, e o valor que este tem no sentido da vida; a religião pretende justificá-lo como um acto de exemplaridade moral e a possibilidade239de ganhar a benevolência do seu deus. O Estado, ou melhor, as castas que o compõem, utilizam-no no seu próprio interesse, pois têm de contentar a todos aqueles que têm o poder de mistificar o sentido e o valor da vida, em função de justificar a sua própria razão de pertencer a uma casta dominante. Para a religião, a vida é de deus; para a filosofia jurídica do Estado é um valor que está acima da vontade pessoal; a mim estas conjecturas parecem-me aberrações, dado que quem as proclama são exactamente pessoas.Por minha parte, penso que a vida é - como tudo no universo — uma questão de equilíbrio: quando o prazer e a dor se desequilibram de tal forma que sofrer se torna intolerável, só o desejo e a vontade da pessoa têm autoridade moral para decidir se interessa suportá-lo ou não.Dizer que me não respondem por um erro de forma e que não se julga é a melhor maneira de confirmar que os juízes não são livres no momento de cumprirem o seu dever.Alguém me comentava que um membro do Conselho de Estado dissera que a eutanásia não seria legalizada por agora porque não era conveniente politicamente. Eu negava-me a acreditar, mas os factos vieram confirmar que era verdade.Eu não peço a legalização da eutanásia, peço apenas um direito e uma liberdade pessoais. Se cada pessoa é um universo — um fim em si mesma — é irracional julgar os seus actos com base em conceitos éticos e morais absolutos de carácter religioso, político ou profissional. A única coisa que têm a julgar aqueles que negam à pessoa o direito de ser dona e soberana absoluta do seu próprio corpo, da sua vida e da sua morte, é se o acto de terminar a vida, livre e voluntaria -mente, atenta contra algum direito ou liberdade de outra pessoa. Isso seria dignificar o ser humano. Isso seria igualizar240os conceitos de transcendência que alguns grupos dominantes têm acerca do sentido e do valor da vida como prolongamento de uma espécie em relação a um absoluto e metafísico fim, com o relativo e concreto interesse pessoal, que é o que tem um espaço e um tempo realmente conhecidos.Para a pessoa psicologicamente madura, morrer é uma opção; depende da dor que tenha de suportar para disfrutar do prazer de viver. A morte voluntária, quando tem por finalidade terminar com um sofrimento incurável ou intolerável, é uma forma racional — se se quiser, uma intuição, um conhecimento da matéria — que procura nesse trânsito, transmutação ou desintegração, outro equilíbrio; a permanência num estado mais agradável do que o que se quer deixar para trás por intolerável. O desejo da morte, quando o sofrimento é incurável, não é um atentado contra as leis da vida; é apenas o desejo de encontrar um lugar mais aprazível noutro ponto do universo. Todo o ser vivo recusa a dor. Do ponto de vista pessoal, a morte é um facto inexorável. Portanto é aberrante que seja o interesse de outrem que lhe seja imposto como e quando, nestas condições, tem de terminar a vida. Trata-se da morte de uma pessoa e não da dos outros.

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As pessoas existem realmente ou apenas existem as autoridades? Somos pessoas verdadeiramente livres, como nos é prometido pelo poder político, ou consciências escravizadas como crianças eternamente imaturas?O direito de pernada, aqui entre os vossos vassalos, está tão arreigado que cada casta ou instituição crê ter o direito de ignorar — com um desprezo próprio de velhacos — qualquer norma ética e moral nova que pretenda superar esse anacronismo irracional.241A norma constitucional: todos a assinaram e ninguém quer cumprir a parte que não defenda o seu próprio interesse.Recorri aos juízes em busca de um direito e de uma liberdade pessoais que, no meu entender de ingénuo leitor, a Constituição me garante; supõe-se que se tenho direito à vida, também devo ter - ou deve haver - direito à morte. Direito à minha dignidade, à minha personalidade. A não ser torturado. A não acreditar, ou a acreditar. Isto é, os meus actos só têm de ser racionais, compreensíveis para a maioria (democrática) para ser tolerados.Porém, o meu pedido tornou-se um tema de controvérsia feroz entre os interesses que cada casta tem em relação à liberdade. Uma das frases que muito me foi repetida é: «Ponde de lado a Constituição e as leis...»Políticos, padres, médicos e juízes, cada um deles fazia a análise com base na sua ética e moral particular. Cada qual se enredava num debate genérico sobre a eutanásia e a sua legislação mas sempre do seu ponto de vista de grupos que baseiam a própria razão de ser no facto de se sentirem autoridades protectoras das consciências de todas as pessoas que não gozam do privilégio de fazer parte desse grupo — ou grupos - que impõem a sua autoridade. Debateu-se, mas não com o honesto e justo propósito de dignificar a pessoa que faz parte do rebanho a que dizem servir, mas com o absurdo e astuto fim de se servirem dela e dele - pessoa e rebanho -a troco de uma suposta protecção com aparência de máfia paternalista contra o medo da morte e da dor. Com isto cria--se uma interminável cadeia de dependência ou escravidão que os seres dominantes não querem romper devido aos seus interesses corporativos. Estas castas não desejam uma respeitosa e igualitária interdependência: desejam o domínio.242Eu exijo o direito constitucional porque é a única forma ética que me garante a libertação do totalitário e abusivo domínio das castas.As promessas são sagradas, menos para os espertalhões e os imorais.Considerações constitucionais:Considerando que a justiça emana do povo, como o expressa a norma ética e moral do Estado (a Constituição), e considerando que o artigo 1º- preliminar — diz que a Espanha se constitui num Estado social e democrático de direito que defende como valores superiores do ordenamento jurídico, a liberdade, justiça e igualdade, e considerando que mais de 60% dos espanhóis — segundo os cálculos mais rigorosos - afirma que o direito e a liberdade que peço — devem ser-me - ser-lhes - concedidos, pareceria — ou é evidente — que aos políticos, juízes e demais grupos corporativos importa pouco a opinião maioritária — democrática — desse povo de que emana a consciência do que é justo. Também não parece importar-lhes muito o que diz o artigo 9º, cujo texto afirma que esses três princípios da nova ordem jurídica que a Constituição defende devem ser reais e efectivos.Mas há, para além da opinião maioritária do povo — desprezada como ignorante —, uma opinião autorizada da outra minoria intelectual que não faz parte do sistema oficial, mas com autoridade ética e moral no que aos direitos e liberdade se refere, que pensa da mesma maneira que a maioria e que também é ignorada nas suas opiniões porque não pertence às castas dominantes.Considerando todos os artigos - promessas - que a Constituição dedica ao assunto dos direitos e deveres pessoais,243apelei aos senhores juízes para que arbitrassem sobre quem faz batota ou não cumpre as regras do jogo da democracia. Os senhores árbitros «sacudiram a água do capote» por uma questão de forma, quando - repito - já dois tribunais haviam entrado na análise de fundo, que era o mais

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importante. Trata-se de um acto de má fé, injusto. Eles sabem que nenhum outro tribunal pode falhar a meu favor porque o impede um ordenamento jurídico - já obsoleto — próprio e resíduo de outros totalitarismos. Os árbitros falharam a favor do amo, que é o mesmo que dizer a seu favor, pois são juízes e parte.Majestade, protesto:É verdade que existe um vazio legal, porque o direito e a liberdade pessoais que peço se confrontam com códigos e conceitos éticos e morais que não estão de acordo com o novo ordenamento jurídico democrático no qual a dignidade, personalidade e liberdade pessoais são o fundamento para a dignidade, liberdade, respeito e auto-estima do povo.Sempre constituímos um rebanho e parece que há muita gente interessada em que continuemos a sê-lo.Dizem que aqueles que não conhecem a sua história -povos - estão condenados a repeti-la. Os humilhados sempre se revoltaram contra a hipocrisia e o totalitarismo. Dizei a vossos vassalos que joguem limpo, que sejam honestos; que os juízes devem ser justos e não astutos.Parece-me um absurdo que me tenham feito esperar três anos ou mais para voltar ao mesmo sítio. Só se entende a desculpa burocrática do erro de forma se tal for feito com o único propósito de ganhar não sei que tempo. Esperar que eu morra de nojo entretanto?244Quando se falta ao respeito a uma única pessoa, falta-se ao respeito ao povo todo!Em nome da sociedade.Em nome da sociedade e da sua segurança jurídica, não se pode cometer um atropelo, uma injustiça, contra um direito pessoal.A sociedade é formada por um grupo de pessoas que assume normas para defender interesses comuns. É possível que o desejo e a vontade de levar a cabo um acto de liberdade pessoal, se bem que não cause dano nem prejuízo algum a outras pessoas, possa ser um erro devido a um juizo de valor mal perspectivado. Mas se se recorre à opinião para comparar pareceres entre o pessoal e o colectivo, e a opinião maioritária é coincidente com a pessoal, é porque não há erro no juizo de valor e porque, portanto, o que a pessoa reclama deve ser tolerado e concedido. Se essa liberdade for negada, neste caso com a desculpa de que assim é a lei, o que se está a impor é a vontade daqueles em quem o grupo delegou a responsabilidade de fazer cumprir a sua vontade. A justiça, então, já não emana do povo - de uma soma de vontades pessoais — e o conceito terá sido corrompido pelos mesmos juízes encarregados de administrá-la, em conivência com os políticos, religiosos e demais castas que utilizam os seus conhecimentos científicos, mágicos, místicos e míticos para impor a sua vontade a todos aqueles que não pertençam aos grupos considerados como o sistema de controle e autoridades ética e moral.Diz-se, num sofisma, que se se permitisse a cada pessoa fazer a sua vontade, a sociedade estaria desprotegida contra o mal.O mal é o sofrimento irremediável - e, portanto, irracional — para todas as pessoas que não crêem nesse sofrimento245como a misteriosa vontade de um deus. Também há um mal por alguém causar a outra ou a outras pessoas um dano reparável, ou irreparável, a fim de conseguir um benefício ou interesse pessoal ou colectivo. Assim, uma pessoa que se encontre em circunstâncias de sofrer de alguma doença incurável e irreversível que a levará num período de tempo mais ou menos curto ao desenlace da morte, através do sofrimento ou de outros estados de deterioração física ou psíquica, também incuráveis e irreversíveis, estes podem levar a pessoa a desejar terminar a sua vida em lugar de suportar um mal que em sua opinião não merece a pena ser suportado, para sobreviver uma existência com tão pouco valor. Não se pode considerar que esta sociedade, que lhe nega o direito a uma morte livre e voluntariamente decidida, está a agir de uma forma maldosa ao impor-lhe a obrigação de sofrer um mal que de nenhum modo deseja? Não está a pessoa desprotegida contra o mal ao ser obrigada a suportar o sofrimento porque este lhe é imposto por uma maioria no seu próprio interesse: o de manter um princípio de autoridade?

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Majestade: respeitosamente protesto porque me sinto desprotegido contra a maldade de algumas minorias - pois a maioria do povo está de acordo com os meus argumentos — que dizem actuar em nome do Estado, cuja máxima autoridade Vós representais.Considero que a Constituição foi feita com o nobre propósito de superar todo o tipo de intolerâncias e fanatismos totalitários. Eu apelei honestamente para os tribunais de justiça com o propósito de reclamar um direito que, sinceramente, creio ser-me garantido nessa norma ética e moral do Estado.Os magistrados do Tribunal Constitucional - Sala segunda, Secção terceira - cometeram um acto injusto. Creio246que num juiz, isso é igual a cometer deliberadamente uma maldade.Dizem que não se pode tolerar a morte decidida como um acto de vontade pessoal. Eu penso que é a única das mortes que a Humanidade poderia justificar ética e moralmente.Os juizes argumentaram erro de forma quando eu lhes perguntava se era justo que se castigasse quem me prestasse a ajuda que quero que me seja prestada.Diz-se que essa ajuda me causará a morte. Basta que a razão entenda que às vezes a morte é menos espantosa que a dor que é preciso suportar para viver, para que seja humana e justa essa liberdade.Parece que todos podem dispor da minha consciência menos eu!247A VERDADEIRA VIDAQuerido deus:Em maior ou menor grau, todas as religiões propõem o sofrimento como meio de purificação espiritual. Segundo elas, a verdadeira vida está depois da morte. Para que chegámos a racionais, então? Para nos transformarmos em sofredores vocacionais? Para convencer costumam recorrer à exemplaridade do sofredor paciente. Mas se alguns seres humanos, para entenderem o afortunados que são, precisam de ver sofrer outros, é porque não têm capacidade de amar. Não é portanto nenhuma vontade suprema quem nega à pessoa o legítimo direito de se libertar do sofrimento, mas sim a corrupção moral do ser humano que se converteu num parasita da dor dos outros, sempre que esta lhe confira algum benefício ou satisfação pessoal.A maior das corrupções morais do ser humano é sem dúvida o ter querido justificar o sofrimento como meio de ganhar a benevolência da vontade ou princípio criador da vida — pai.248Um dos fundamentos comuns a toda a religião ou filosofia que proponha a perfeição ética e moral do ser humano é a renúncia e o sacrifício em função do valor superior — em teoria.- Se é exemplar eticamente renunciar à escravidão de determinados sentidos.Se é exemplar renunciar à posse do prazer que pode conferir-nos qualquer bem material, no que isso comporta de sofrimento na exploração e embrutecimento de outros.Se a vida é um bem superior, renunciar a ela voluntariamente é um acto digno — pelo menos — de ser respeitado e tolerado pelos que dizem ser defensores da vida;Renunciar à vida é o maior sacrifício que pode fazer um ser humano. A vida não é superficial. O sofrimento incurável é algo supérfluo; uma humanidade que o justifique em função da ética está corrompida moralmente. Uma justiça que se ampare em ambiguidades conceptuais, linguísticas ou formais para não responder ao pedido de um direito que a razão considera universal, é o fracasso da própria razão. E o fracasso da razão é o fracasso da própria justiça. E o fracasso da justiça é o inferno.Não crês, tu também, que assim é?249A FALTA DE SENTIDO... A VIDA, O BEM ACIMA DA VONTADE PESSOALQuerido João Paulo II:Li a tua última carta a opinar sobre a eutanásia. Metes-me dó.Quem faz de mestre não pode mentir. Quem disser que és infalível, mente.Nunca se poderá fazer passar uma mentira por uma verdade sem cometer um crime contra a razão e a vida. A vida, como a morte, pode ser um bem ou um mal. A mentira é afirmar que não

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se pode morrer racionalmente: boa reza para os irracionais! Eu conheço pessoas de família e amigos que tratam com amor de pessoas - farrapos humanos - a quem dariam a compassiva ou caridosa e doce morte, a fim de libertá-las do inferno em que ficaram presas. Quando lhes é perguntado se querem isso para si próprios, ficam horrorizados e desejariam que uma consciência protectora os libertasse de tal horror. Todos sabemos que essa consciência compassiva e protectora só pode ser a razão. Os que de má fé querem semear a dúvida afirmando que a razão e a velhacaria são a250mesma coisa, fora com eles! Todos sabemos que esses farrapos humanos são a consequência de uma medicina aberrante, de um paternalismo supersticioso e ignorante e não de nenhuma vontade sobre-humana.Esta forma aberrante de protecção da vida que tu defendes e desejas impor como obrigação moral é, antes de mais, um parasitismo imoral do sofrimento. Negar a uma pessoa a liberdade de morrer antes de se transformar num farrapo, tanto por se libertar a si próprio da falta de sentido como por amor e respeito para com quem lhe presta auxílio, é negar-lhe o direito ao amor, e é, também, negar o valor moral do senso comum, e estético, da generosidade e do pudor. É o fracasso da razão!Só a consciência do ser humano pode salvar a vida do perigoso e estéril abuso das leis, em geral nobremente concebidas mas astuta e fraudulentamente aplicadas.Não terei morrido - como trataram de argumentar os explicadores — por desespero, por falta de capacidade para suportar a dor ou por falta de afecto e carinho, nem mesmo por ressentimento nem como um acto de protesto ou imolação contra o princípio de autoridade. A única verdade é que não quis ser tetraplégico. O que fracassou foi o método. Ter de morrer de inanição não é a boa morte, não é o que escolhe a razão. Ter de morrer de sede e fome para renunciar racionalmente à vida é a vingança dos néscios contra a liberdade e a razão. Lamento que tenham levado a sua avante, isto é, que tenha vencido a falta de sentido do fanatismo e a intolerância. O meu propósito era obrigar os juízes a emitir uma sentença que, caso fosse negativa, equivalesse moralmente a uma condenação a morrer de fome, mas até os amigos me consideraram incoerente.251Considero que se enganam a si mesmos os apologistas da purificação através do sofrimento, ou de outras escravidões da consciência pessoal. A morte como acto voluntário não quebra a lei da vida; quem quebra as leis da vida são os apologistas de qualquer sofrimento incompreensível.Aqueles que, em nome da moral cristã, recomendam a morte pela fome como a mais ética, ou como pecado menor, a única coisa que estão a negar a um semelhante é a caridade e a compaixão, o amor.A maldade está na intenção do acto, não no acto em si!252AS NEFASTAS CONSEQUÊNCIAS DA CULTURA DO MEDOQuerido fanático:Não me digas que o digo e faço parece mal ao teu deus, diz-me se te parece mal a ti. Não te interrogues sobre o mal que faço ao teu deus, mas sobre o mal que te faço a ti.Tu que me falas de Jonas como exemplo de arrependimento perante o terror que sente quando se encontra no ventre da baleia e pensa que vai morrer. Tu que pedes mão dura e castigo exemplar para todos os Jonas corruptos do nosso tempo, parece que não entendes, ou não queres entender, a psicologia do medo e como este é utilizado para domesticar.Para provar os catastróficos resultados desses métodos de controlo psicológico, não precisas mais do que observar-te a ti mesmo e a essas massas de seres fanatizados, sem critério próprio, facilmente convertíveis em ferozes matadores de outros seres com o fito — estranho paradoxo - de obter, como prémio, a imortal transcendência. Basta observar todo o253fanatismo sectário de carácter religioso ou político. Quando o ser humano renuncia à responsabilidade de pensar por si próprio, perde toda a possibilidade de transcendência.

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Transforma-se num ser temeroso facilmente escravizado por qualquer velhaco conhecedor da psicologia do terror e da forma de manipulá-lo em seu proveito.Justificar sofrimentos degradantes, infernais, com o intuito de obter a benevolência do Pai, é uma dessas cruéis artimanhas hipócritas dignas do melhor humor negro, se não fosse as nefastas consequências que teve, e tem, para a humanidade. Nobre e exemplar não é uma pessoa arrepender-se - e muito menos por medo do castigo -, o exemplar, nobre e humano é não trair a própria consciência. Nenhum ser vivo deseja a dor, a traição, a escravatura ou a injustiça.254A TEOCRACIA INFERNALQuerido mestre de teológicas matérias:Não me expliques a deus, explica-te a ti próprio. E não te escondas manhosamente atrás das tuas leis e imperfeições para justificar as tuas incoerências.Se nos for imposto um ser superior como nosso amo e senhor, a cuja autoridade protectora é submetida a nossa consciência, caímos numa armadilha irracional de eterna escravidão. Mas se supões que fomos criados livres, o único senhor da vida é a consciência. O único deus, a ética de uma razão pura, nobre, humana, generosa e tolerante. Sem auto-engano e sem traição.Quando afirmas que o homem nega deus como sinónimo de arrogante e prepotente, mentes, pelo menos em parte. A pessoa que renuncia à tutela dos deuses, se for verdadeiramente coerente, fá-lo-á porque crê numa escala de valores humanamente mais justa, generosa, tolerante e responsável. Quando estes princípios são verdadeiros, a pessoa torna-se255mais humilde, humaniza-se. Se é mentira, tanto os mestres que explicam as intenções da vontade criadora da vida, como aqueles que a negam, o que procuram é o poder e não a justiça. Quando alguém não se explica a si próprio, auto-engana--se e, mais do que ascender, desce em perfeição ética e moral.Se o ser humano se dedicasse a conhecer a própria psicologia, o que procura e aquilo a que realmente aspira, concluiria que o seu dever não é interpretar a vontade e os desejos do ser idealizado. O seu dever é comportar-se como o ser que idealizou.Tu, mestre, afirmas interpretar os desejos e a vontade de um Deus através da sua obra. Negar um princípio criador é negar a evidência de nós próprios.O que ponho em dúvida é a capacidade dos explicadores em expô-la, e mais ainda, em impô-la em nome dele.Mentes premeditamente?Sim. Comportas-te segundo a psicologia do cão que julga interpretar os desejos e a vontade do dono, mas enganas-te, interpretas-te a ti mesmo.Mestre, o ser racional já não pode ser dominador porque não quer ser dominado.Não pode ser injusto, porque não quer a dor para si. A lei é inexorável: quem a não cumpra provoca o caos, a dor e o mal. A falta de uma conduta ética respeitadora e tolerante entre os seres racionais, conduz irremediavelmente à morte. Chame-se-lhe apocalipse ou autodestruição.As crises das religiões sobrevivem porque a sua estrutura ideológica parte de uma falsa interpretação da lei evolutiva: negam-se a aceitar o predomínio da razão ética sobre a crença, que é o mesmo que negarem-se a ser coerentes e responsáveis pelos seus actos.256Se não se modifica a hipótese sobre a origem da vida, se se persiste na ideia de que o ser inferior pode interpretar a vontade do ser superior, o que se cria é o absurdo: o mais forte diz interpretar a vontade do dono e submete os débeis à sua tirania. Deste modo acabam sempre por produzir a catástrofe, a disputa. Os explicadores degeneraram sempre para a corrupção moral. As castas religiosas e políticas organizaram a sua própria espécie em função do princípio da autoridade, mas esse princípio é o desejo de que exista um ser inferior. A dominação é a lei. É como se uns pais bem intencionados nunca aceitassem a total emancipação dos filhos.Não é que as religiões sejam as únicas responsáveis, mas têm uma grande parte de responsabilidade nos sofrimentos da humanidade — e da vida. São as mais eficazes manipuladoras psicológicas para que o ser humano mantenha a sua condição de ser eternamente imaturo. É absurdo este princípio. Um mundo regido pelo temor, e não por uma

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consciência ética respeitadora, só cria ressentimento e mentira. A consciência de um ser humano não pode ser submetida à vontade de outrem. Só pode haver a igualdade de direitos e de deveres, e nesta igualdade não cabe o autoritarismo teocrático ou democrático, querido mestre.257QUERIDO COMPANHEIROComo nos têm enganado os falsos mestres!Estou louco, muito louco.Etu?Talvez estejas calmo!Eu estou triste, muito triste.Etu?Talvez estejas contente.Queres que te conte o mais lindo quadro de pôr-do-sol que estou a ver além ao longe?A moldura é a janela do meu quarto. Desce até ao mar - dois quilómetros, ou menos — uma mata de pinheiros em companhia de um ribeiro.Ao fundo, o mar azul abrançando-se ao céu vestido de ocaso vermelho, ocre, azuis e negro. É lindo, indescritível! Se pudesse agarrá-lo e fazer-lhe um poema com uns quantos versos de doido alucinado, feliz, alegre e contente! Sonho, por exemplo, que sou omnipotente e posso enviar a um amigo que mora no inferno um pedaço de céu: este que contemplo258e ilumina lá ao fundo o sentir do belo: o amor, a amizade, a ternura, o sonho.Gostaria de mandar-te um poema pequeno. Uma coisa assim como tu, positiva. Mas não sou poeta e não sei como fazê-lo.Por isso estou tão triste; porque me enganaram os falsos doutores. Disseram-me que sou feito à semelhança de um deus, e não é verdade. Não é verdade!Um abraço muito forte ao amigo da alma que se encontra no inferno. Apesar de me soar a tópico e a monotonia: só merece o céu!Por isso estou triste, porque não posso, e tenho de conformar-me com o típico abraço muito forte, muito forte, companheiro.Diz-me se continuas apaixonado por aquela mulher, ou se já te transformaste num idiota.259O SENTIDO DA VIDAQuerido explicador da obra de deus:Pareces-me um ignorante a quem fizeram crer que o importante é falar como um papagaio, sem tom nem som!Como princípio universal, deixando de parte o eu e a circunstância, à vida dão sentido duas coisas fundamentais: a liberdade e o desejo de vivê-la.Para que uma pessoa se considere livre, tem de ser capaz de movimento, e de raciocínio, que ambos funcionem em uníssono - o equilíbrio. Quando o cérebro falha, falha a consciência, e portanto o sofrimento não existe. Mas, se falha o corpo, a razão fica enredada numa armadilha infernal da qual nunca conseguirá libertar-se. Poderá resignar-se e fantasiar, ser útil, ou acreditar que o é, porque os encarregados de prestar-lhe apoio psicológico, minimizando a dor e aumentando o temor, lho fazem crer. Poderá converter-se num místico celibatário, ou imaginar complicadas formas de práticas sexuais, mas essa matéria, em teoria viva, jamais260obedecerá à ordem de acariciar outro ser humano que esteja triste, ou que peça socorro para que o salvem da morte. Não sentirá jamais o prazer de ser livre. Sentirá apenas, como uma condenação enquanto for vivo, o humilhante desespero de pedir socorro.Alguns confundem - interesseiramente — ser útil com ser utilizado!A morte racional é, mais do que um acto de desespero, um desejo de achar a libertação de um inferno no qual — estranho paradoxo - a razão nos meteu.INFERNO: medo cultivado com o propósito de dominar em forma de terror psicológico a dor física insuportável.

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Quando um Estado e uma religião impedem, por meio de fiscais e juízes, o direito a abandonar voluntariamente esse inferno, poder-se-ia considerar que toda a razão em que se baseiam assenta na maldade.Poder-se-ia dizer que toda a lei que impede que se ajude a morrer racionalmente representa a maldade. E a humana razão do médico Kevorkian, a bondade quando ajuda a morrer um semelhante.261DIÁLOGOE tu, que queres ser quando fores grande?Só quero ser rico.Não preferes ser sábio, nobre e justo?Não é a mesma coisa?A riqueza é sempre injusta, portanto não pode haver um rico bom.Ser bom é igual a ser sábio e justo, então?Isso mesmo, filho.Mas há ricos bons!Isso é um disparate. Enquanto houver um rico que tenha conhecimento de que existe um miserável e não repartir com ele a sua riqueza, não se poderá dizer que haja um rico bom.Ser bom é ser nobre. Ser bom é dizer meu e querer dizer nosso.Há muitos espertos que parecem justos, nobres e bons: são legisladores, régios charlatães, tiranos velhacos, nobres usurários que pensam que um bom é um parvo ou um pobre um ingénuo, porque não tem tanta inveja como eles.262CARTA A UM PADRECA VAIDOSOÉ membro da Opus Dei. Acusa-me de ser tão arrogante que me quero parecer com Deus por reclamar o direito de dispor da minha vida.Querido padreca:A alternativa à eutanásia, como um acto de vontade pessoal, é a conduta positiva. Superar o temor e rejeitar a dor é tornarmo-nos humanos.No que se refere ao sofrimento incurável, toda a alternativa que não tenha como propósito pôr-lhe termo é um sofisma. A morte como conceito universal negativo em relação à vida não existe. Tal dedução lógica é errónea. E uma distorção racional derivada do sentido do temor. O negativo é matar. Mas justificar o sofrimento como um meio de purificação moral só poderia ocorrer a um ser moralmente degenerado por uma consciência culpada. E quem se sente culpado, ou bem que é injusto ou é idiota. Se sabe que é injusto e não deixa de sê-lo, é mau. E, se é idiota, não pode ser autoridade moral, pois de certeza que se há-de enganar.263Quem justificar a dor como como dever moral, ou é um idiota ou um malvado.Vaidoso padreca, que ontem me tratavas por...estimado senhor. E hoje, sério e circunspecto, me tratas porExmo senhor Sampedro. Tu, que proclamas a verdade de Cristo, e te gabasde intelectual rigor. Tu, que te proclamas exemplo moral e do teu Deus grato e fiel servidor. Tu, que ao ignorante como eu desprezas. E eu,QUE IGNORANTE!, creio que os vaidosos, porquesão ignorantes, os despreza deus.Tu, que pedes a Deus. LIVRA-ME DO MAL! Eu penso, padreca, que isso não é rigor intelectual,é resignação. Se podes livrar-te dos teus próprios males, para queincomodas o teu próprio Pai? Ser vão é mal,digo-te eu! Para que julgas que morreu Cristo? Para que ocupasseso lugar de deus!Padreca, padreca, onde estão os teus rigores de raciocínio?Ele quis ensinar-te - refiro-me a Cristo - como rebelar-secontra a injustiça, como se extermina a dor do mundo. Até com a morte, se não houver outro remédio, se liberta um homem da tirania de qualquer dor.

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264Não quero morrer, como afirmas, manipulador desuperstições. O que não quero é ser do inferno um fiel residente,com muitos afectos, carinhos e mimos emmeu redor.Tu estás muito contente com a tua boa sorte. Poiscomo vês, eu não o estou com a minha. Sim, já sei, em tua opinião, padreca, é por ignorânciae desconhecimento das excelências do serda vida exemplar e fiel sofredor.Ah, que patetas são alguns padres e outrosvaidosos lacaios de deus. Parecem saídos de uma monstruosidade,de uma aberração. Trazem o inferno nas próprias mentes, e falam deignorância com más intenções. Pois chamar-nosblasfemos a nós que queremos ser a deus iguais(o ser que eles crêem nobre, justo e bom).Conclusão, padreca: não entendes a vida, nem amasa vida, nem crês em deus. Só tens é medo, muito, muito medo.Es como uma criança que os falsos mestres não deixaramtornar-se adulta.ASSINADO: EXMO SENHOR SAMPEDRO265CARTA A UM PREGADOR (E PASTOR)Querido pregador — e pastor:A crise das religiões tem duas causas essenciais: a primeira é que uma parte do rebanho te despreza por seres incoerente e contraditório; a segunda, porque o mito salvador que lhe ofereces nunca mais chega. Os primeiros são os mais evoluídos eticamente. São os que pensam que tendo idealizado o mito, ou a utopia como paradigma do justo - Cristo, Buda, Marx, Lenine, Fidel Castro, Che Guevara, Dom Quixote, Georges Roos... —, se convertem em revolucionários discrepantes de toda a conduta dominante que não se ajuste a esse princípio ideal.Tu, como bom enganador, sabes que a democracia, ao conceder ao indivíduo maior liberdade de consciência, provoca a crise do temor à liberdade dos crentes. Um ser psicoamestrado e dominado mediante o temor do castigo, condicionado pelo medo da dor, assusta-se. Comporta-se então como o animal que, quando é libertado depois de ter sido criado em cativeiro, quer regressar à segurança protectora da sua prisão.Já é duvidoso é que continues a incensar os temerosos como seres moralmente exemplares. E aos revolucionários os classifiques como perigosos influenciados por um espírito maligno, e de duvidosa catadura moral.As crises das religiões têm sempre a mesma origem: alguns seres buscam a verdade, a justiça, mas deparam sempre com um pregador, um espertalhão intermediário, que diz já as conhecer e se põe a falar em nome delas. Pregador, continuas a pescar no rio revolto dos temores, tabus e superstições!A eutanásia é um bem que a razão propõe. Todo esse sofrimento a que a nossa consciência diz não, é lei indiscutível. Quem discuta essa lei, não importa donde saque o artigo, o código, versículo ou salmo, pagará o seu preço em sofrimento.Quem justifique a crueldade com qualquer animal, ou escravize, terá que pagar por isso.Aqueles que justificam sofrimentos irracionais em nome da ética médica, da moral religiosa, do bem colectivo, ou de um deus, terão que pagar por isso.Aqueles que dizem que conhecem a vontade de um deus, mentem, e terão que pagar por isso.Aqueles que dizem que deus dá a vida e a tira, mentem, e terão que pagar por isso.Aqueles que negam ao ser humano a propriedade da vida, mentem, e terão que pagar por isso.Aqueles que dizem que o ser humano não pode pedir ajuda para morrer a um semelhante, mentem, e terão que pagar por isso.Aqueles que obedecem por temor e não por princípios éticos, mentem a si próprios. Atraiçoaram a consciência e terão de pagar por isso.

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267Aqueles que dizem que a morte não é negociável para o criador da vida, têm o espírito mesquinho de um ser inferior, e por conseguinte mentem, e terão de pagar pela sua mesquinhez.Aqueles que dizem ou dão a entender que para se ser recto de consciência, generoso, nobre e justo, é condição imprescindível a pessoa submeter-se à vontade do seu deus, mentem, e terão de pagar por isso.Porque desde o dia que renegaram ser irmãos de todos os seres vivos se traíram a si mesmos. Traíram a consciência e inventaram um dono para continuarem a ser eternamente seres inferiores.268NÉSCIONéscio, quando eu morrer, cerrarei os olhos. Tu dirás que estou morto.Tu dirás que é pecado. Eu estarei satisfeito.Tu obedecerás a um Deus. Eu dir-te-ei: silêncio!Tu dirás que me amaste. Eu digo que não é verdade.Tu amas-te a ti mesmo. Eu sei que tens medo.Tu dizes: por minha culpa! Eu respondo-te sempre:270se a intenção foi má, não há desculpas,hipócrita.Se a intenção foi boa,de que te acusas, néscio?MONÓLOGOSenhora Intolerância, que faço eu aqui? Não quero estar na sua companhia. A senhora cheira mal. A sua presença repugna-me.Por que teima em acompanhar-me? Sou maior de idade!Para construir sonhos é preciso que a nossa razão conte com a energia vital da ilusão, o entusiasmo e a liberdade. Para voar são precisas asas. E para andar, um corpo que nos leve onde os sonhos querem chegar.A senhora é muito contraditória. Anima-me a cultivar a arte de voar com a imaginação. Ouço-a, e deito a minha a voar livre, inocente e pura, para que percorra as paisagens que mais lhe agradarem. Dou-lhe, em meu entender, bons conselhos: que respeite as outras, que não lhes impeça nunca o direito e a liberdade de viajar onde quiserem. Que o que ela imaginar, não o queira fazer imaginar às outras. Que, se quiser ser livre, seja muito prudente, para não prejudicar outra liberdade. Que preste ajuda a quem lha solicitar, deste modo nunca se poderá enganar. Que não imponha as suas271crenças ou os seus princípios morais. Se cumprir escrupulosamente estes conselhos, pode ir em busca de qualquer sonho para que ele se torne realidade, se for possível.Mas, minha senhora, quero insistir no meu mais enérgico protesto pela sua falta de respeito e consideração para com a minha protegida: ela é ingénua e não compreende a importância da sua omnipotente autoridade nem as suas contradições. Sempre a ouviu dizer que, quando se quer, até os sonhos se tornam realidade.O caso é que, minha senhora, esta minha tresloucada imaginação — ingénua, de casta pobre e escassa formação - chega-me todos os dias queixando-se de que a senhora não a deixa passar. E quando espantado lhe pergunto: para onde?, responde-me com ar e tom de melancólica tristeza: mais além.Quero que entenda, minha senhora, que ela não se refere ao mais além do espanto e do medo do inferno, do castigo ou do prémio, que a senhora imagina. Não a esse mais além religiosamente burocrático e normalizado, vingativo como todos aqueles que não acreditem possuir a resignação e obediência devida.

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Ela pensa que neste quadro que contempla no horizonte, entre essa beleza sedutoramente sugestiva onde o mar parece beijar apaixonadamente o céu, está a sua amada e possível liberdade.Só por essa metamorfose, a que a senhora chama morte, se pode chegar a ele. Mas a senhora, como não a entende, ao que parece, não a quer deixar passar. A senhora só a deixa imaginar o que à senhora lhe interessa. O que não lhe convém impõe que se cale.Exijo, minha senhora, que seja permitido à minha querida e pequena imaginação o cumprimento do imaginado. O desejo272dela é viajar para além da vida; para essa paisagem de sonho que o céu lhe pinta no horizonte ao entardecer. Há aí uma praia de areia dourada, e um sonho que pode ser vermelho, azul ou ocre, ao desintegrar-se para todos aqueles que não têm ilusões nem entusiasmo suficientes para a felicidade.Se a senhora se opõe a que sejam atendidas as minhas exigências, pensarei que há muito de verdade no que afirma a minha querida imaginação. Ela acusa-a de ser estúpida, pois diz que quando lhe pergunta se a senhora gostaria de ocupar o lugar dela, lhe responde que não. Deus me livre! — afirma a senhora. Se assim é, não entende o suficiente para ocupar o lugar de autoridade moral que ocupa. Lembre-se: o que não quiseres para ti...Minha senhora, quem proibe sonhar mata a esperança, e cria o inferno.273UM AMIGOUm amigoque sinta como eu o mesmo palpitar;um amigocujo coração seja o meu, e o meu o dele;um amigocuja dor seja a minha dor;um amigopara pôr fim à dor infinita;um amigoque me empreste a mão para o meu suicídio;um amigoque não creia em deuses mas sim no amigo;um amigoque acabe connosco quando estamos feridos de morte.Esse amor existe, mas está proibido.274FUNDAMENTOS DE DIREITO E RAZÃO PESSOAL(A armadilha infernal)Reflexões sobre o direito de uma pessoa terminar a sua vida como renúncia a um bem pessoal.Senhora Justiça:Na hora de fazer um juizo de valor, os juízes dão aos fundamentos de direito o peso de uma verdade dogmatizada, e à razão pessoal a leveza da filosofia.Porém, o direito e os seus fundamentos não são mais que princípios éticos emanados da razão humanizada. Em consequência, na hora de recorrer aos fundamentos de direito para determinar se um acto ou um propósito estão bem ou mal — fazer justiça —, deveria ter mais peso na balança a razão do que a lei. A lei pode estar astuta e ambiguamente concebida com um propósito de domínio, a razão pura não. Esta evolui normalmente com o conhecimento.A lei não poderá prever todos os casos injustos, a razão sim!275Quando a lei tiver dúvidas, porque os costumes evoluiram com o passar do tempo — como acontece hoje com a eutanásia, proposta como um acto da vontade pessoal para a libertação de sofrimentos irracionais -, deve prevalecer o peso da razão ética pessoal.

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Só há uma norma fundamental de direito, a Constituição. Para julgar comportamentos não criminosos, só há — ou deveria haver — um intérprete, o juiz. Haveria diferentes e por vezes contraditórias sentenças?Para isso existe o povo de quem emana a sua autoridade, o jurado democraticamente escolhido que as confirmaria como bem ou mal colectivo, ou como bem ou mal pessoal. O legislador, por último, mais do que leis, faria análises ético-morais. Creio ser a senhora inimiga de toda a crueldade, de toda a escravidão, de toda a mentira, de toda a intolerância e incoerência. Faça com que os seus alunos a entendam. Por favor!276CARTA AOS SENHORES JUÍZESSenhores juízes:Considero que na hora de julgar determinadas condutas ético-morais, como no caso que lhes exponho, não deviam ter outra norma fundamental a não ser a Constituição, porque se assim não for, não são os juízes a julgar mas sim os políticos quando escrevem a lei e criam a ratoeira e a ambiguidade.Só se os juízes e jurados tivessem a potestade de sentenciar de acordo com a norma constitucional, e as suas consciências fossem como um computador humano — e humanizado -que recebe sistematicamente conhecimentos e informação para entender o que é social e democraticamente tolerável, e também conveniente reformar ou corrigir, a justiça seguiria o ritmo do processo evolutivo de uma sociedade democrática formada por indivíduos livres e responsáveis.Em Abril de 1993, recorri aos tribunais de justiça com um pedido formalmente apresentado pelo meu advogado Dr. Jorge277Arryo Martínez que, em síntese, perguntava se deve ser sancionada judicialmente a pessoa que me prestar ajuda, sabendo que é com a finalidade de provocar voluntária e livremente a minha morte.Há demasiadas pessoas que, aparentemente capacitadas para fazerem um juízo de valor, se perguntam, e me perguntam, se realmente desejo morrer, e que me indicam que se assim é posso provocar a mim próprio uma pneumonia ao bloquear uma sonda, não curar uma infecção urinária, injectar-me um vírus, morrer de fome, ou conseguir que me mate discretamente qualquer pessoa.No meio de tantos e absurdos doutores que aceitam e propõem toda a espécie de formas aberrantes de morrer, menos a voluntária e legalmente permitida, parece-me que a função dos juízes tem de ser algo mais do que aplicar códigos ao rebanho como um mudo e fiel guardião que defende os interesses do seu degenerado amo. Quando um juiz guarda silêncio face a uma lei obviamente hipócrita, e portanto injusta, nessa sociedade não pode haver nobreza nem bondade. Se a justiça é a exigência de uma conduta ética respeitadora, a função do juiz deve ser a de mestre mais que a de vigilante.Se aceitarmos que deve haver algumas normas e meios para julgar comportamentos irresponsáveis, em casos de condutas éticas - não criminosas -, a justiça deveria ser imediata para que tivesse vida, de contrário é como se estivesse enlatada, e a única coisa para que serve, em lugar de corrigir situações injustas, anacronismos e tradicionais barbaridades, é para perpetuá-las.O desejo e a boa vontade são a origem de todo o bem e de toda a justiça.278A esperteza, a duplicidade, a hipocrisia e a astúcia são a origem de toda a confusão e desconfiança social e universal.A vida evolui corrigindo sistematicamente o erro, dela deveriam copiar os humanos.E um grave erro negar a uma pessoa o direito a dispor da sua vida porque é negar-lhe o direito a corrigir o erro da dor irracional. Como bem disseram os juízes da Audiência de Barcelona: viver é um direito mas não uma obrigação. Todavia, não o corrigiram, nem ninguém parece responsável para o corrigir.

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Aqueles que esgrimem o direito como protector indiscutível da vida humana, considerando-a como algo abstracto e acima da vontade pessoal, sem excepção alguma, são os mais imorais. Poderão disfarçar-se de doutores em filosofias jurídicas, médicas, políticas ou metafísico-teológicas, mas desde o momento em que justifiquem o absurdo transformam-se em hipócritas.A razão pode entender a imoralidade, mas não pode nunca justificá-la. Quando o direito à vida se impõe como um dever. Quando se penaliza o direito à libertação da dor absurda que implica a existência de uma vida absolutamente deteriorada, o direito transformou-se em absurdo, e as vontades pessoais que o fundamentam, normativizam e impõem tiranias.Recorri aos tribunais de justiça para que os senhores decidissem se me assistia ou não esse direito que a minha consciência considera exclusivamente de âmbito moral. E creio que humanamente qualificada. Recorri à justiça, não só para que respondessem a um assunto de interesse pessoal, mas também porque considero meu dever denunciar a injustiça279e rebelar-me contra a hipocrisia de um Estado e de uma religião que, democraticamente concebidos, toleram a prática da eutanásia se esta for levada a cabo com discrição e secretismo, mas não com a sensatez e a clareza da razão libertadora. E também para denunciar que nunca pode prevalecer o interesse de nenhuma tirania ou tirano acima da razão ética da consciência do homem. Justificar sofrimentos irremediáveis por causa do interesse de alguém que não seja o desgraçado ser humano que os padece é criar o inferno para que diabos e diabinhos gozem com o espectáculo dos condenados, ao mesmo tempo que filosofam gravemente sobre o sentido da dor.O juiz que não se revolta perante a injustiça vem a ser um deliquente.Claro que pode acalmar a sua consciência culpada afirmando que cumpre com o seu dever, mas se consente que alguém utilize o sofrimento de outros no seu próprio interesse, se consente que a justiça se faça de surda, quando ele sabe que o faz porque politicamente não interessa ouvir, esse juiz torna-se cúmplice da deliquência manhosamente organizada sob a aparência de nobres e respeitáveis instituições: família, Estado, religião.Dizem alguns políticos, teólogos e outros falsos aprendizes de profeta que a minha luta poderia servir-me como aliciante e dar-me motivos para viver.Deveria ser também o dever de um juiz perseguir quem insulta a razão e castigá-lo severamente.O meu único propósito é defender a minha digniddade de pessoa e liberdade de consciência, não por capricho, mas porque as valorizo e considero um princípio de justiça universal. Com uma sentença favorável, talvez não se voltasse a280obrigar outro ser humano a sobreviver enquanto tetraplégico, quando não fosse essa a sua vontade. A minha luta teria sentido se a justiça me concedesse o bem que para mim reclamo; se não for assim, todo este esforço que alguns dizem poder dar sentido à minha vida terá sido inútil.Espero que não pensem como os teólogos, políticos e aprendizes de profeta que o que dá sentido à minha vida é a faculdade de reclamar um direito e uma liberdade, isso sim, dando por adquirido que não me serão nunca concedidos. Espero que não sejam os senhores cúmplices de tanto logro e falta de respeito pela razão humana. Nenhum esforço inútil tem sentido.A intolerância é o terrorismo contra a razão. Qualquer esforço humano que tenha como finalidade libertar a vida do sofrimento, da crueldade e da dor, e seja convertido em estéril com interessados sofismas é um fracasso do bem e um triunfo do mal.Se não for concedida a cada indivíduo a oportunidade de fazer tudo aquilo que a sua consciência considera bom, não há perfeição ética possível porque não há evolução possível.Se não for concedido ao indivíduo o direito a uma morte racional, voluntariamente decidida, a humanidade não poderá chegar a aceitar culturalmente a própria mortalidade. E se não se entender o sentido da morte, também não se entende o sentido da vida.O juiz tem o mandato de velar pela segurança jurídica do grupo. Mas, por coerência ético-moral, para que essa tarefa fosse equilibrada e justa, teria antes de defender a consciência individual. O Estado tem meios repressores para se proteger das possíveis agressões individuais. Todavia,

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281o indivíduo está indefeso para se proteger do abuso das agressões do Estado. Se o juiz se dedica a aplicar códigos é um fanático fundamentalista que, obviamente, está de um dos lados.E seu dever corrigir este erro!Atentamente.282OS FIÉIS LACAIOSOs fiéis lacaios que servem o rei, para susterem a sua régia figura aplicam - ciosos - a picara lei com autoritária e fiel mão dura.Guarda com rigor a sagrada forma, para manter cada qual o seu posto. Fazer, vigiar e aplicar a norma, com boato, pompa, e algum pai-nosso.E eu que não tenho de lacaio alma, observo aterrado como à justiça, em vez de juízes a servem lacaios ébrios de soberba, cheios de cobiça.Os fiéis lacaios servem seu amo, com gesto submisso e abnegação, e o amo honra-os pela lealdade com algum afago.Enquanto nós, os escravos, reclamamos — obstinados a emancipação.Para nos libertarmos da tirania de amos e lacaios, da indignidade e da humilhação.284DIREITOS HUMANOSSenhor direito humano:Eu perguntei aos juizes espanhóis se era justo castigar penalmente a pessoa que me prestasse ajuda para morrer. Os juizes respondem com manigâncias burocráticas de erro de forma, e os políticos legisladores com códigos ameaçadores. O Papa e os bispos com o castigo da condenação eterna.O Tribunal de Direitos Humanos em vez de responder se o que eu pedia se ajustava ou não a um direito pessoal - e humano — também lava as suas mãos com o tal erro de forma. Não se esgotaram as vias jurídicas no país de origem, dizem. Os espertalhões protegem-se entre si!A intenção é, obviamente, o silêncio paternalista e prepotente. Ou seja, o desprezo impune à igualdade em autoridade moral e à liberdade de consciência.Não podem troçar da ética sem pagar as consequências em sofrimentos humanos. Terei partido com a tristeza de não ter podido ajudar a que triunfasse a razão. O Tribunal dos Direitos285Humanos é a inércia de uns homens, justos no seu conceito, transformados em lacaios da hipocrisia universalmente organizada.Em nome do dogma ou do princípio da sua falsa autoridade mentem, caluniam, e desqualificam com o fito de triunfar. Mas quando não é a verdade que triunfa, mas sim o simples interesse, o que se cria é o caos.Parece que a astúcia universalmente organizada tem a sua residência no tribunal dos Direitos Humanos de Estrasburgo.286EM NOME DA CIÊNCIA, MENTEMSenhora Verdade:«Não quer morrer, o que pretende é chamar a atenção, que lhe demonstrem afecto e carinho.» Ou seja, ou me engano a mim próprio ou minto. Isto é o que a imoral velhacaria do sociólogo, psicólogo, teólogo e toda a espécie de parasitas profissionais dão — em seu nome — a entender. Quando sabem que só há uma forma de confirmar se o que se afirma é ou não certo. Concedei-o! Mais, se este direito existisse, desfazer-se-iam todas as dúvidas e não haveria lugar para a desqualificação absurda e enganadora.É óbvio que, instintivamente, nenhum ser vivo deseja a morte. Mas a eutanásia não é um desejo instintivo mas um acto racional. É um comportamento ético que aspira a um bem, um bem que só o é se se der a circunstância determinante e concreta de um mal racionalmente irremediável. A eutanásia é um acto da vontade que tem de vencer o temor instintivo de entrar num lugar desconhecido. Afirmar, em287

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nome do conhecimento, que ninguém deseja morrer para que psicologicamente se possa demonstrar que é certo esse instinto, é reduzir o ser humano à condição de irracional. É negar a superioridade da razão sobre o instinto. Claro que se cada um fosse dono da sua consciência, na melhor das hipóteses os charlatães não teriam de que falar.É desolador verificar como troçam de si os velhacos. Lamento!288ÉS UMA PESSOA MUITO IMPORTANTE PARA OS OUTROSSenhora Ética:Todos temos um pouco de sábios e muito de loucos, mas querer transformar um adulto numa criança é faltar-lhe ao respeito. Fazer uso de técnicas de condicionamento psicológico com o propósito de reforçar o temor da morte, ou de agarrar-se à vida dê por onde der, de conseguir que uma pessoa se conforme com a sua tragédia e se sinta útil, é lícito e coerente com os seus fundamentos, sempre que se tratar de uma opção pessoal e não de uma imposição ideológica ou paternalista.Se se diz a uma pessoa que ela é muito importante para outrem mas se não se lhe explica o funcionamento psicológico dos laços afectivos, não se está somente a enganá-la, ou a induzi-la a enganar-se a si própria, como se está também a utilizá-la sem que ela tenha disso consciência.Pessoalmente, considero censurável esta conduta dominante. A afectividade deve ser uma relação de generosidade289mútua e consciente. Pode ser muito importante que existam presos para que funcione o sistema carcerário, mas o que não se pode justificar de modo algum é a obrigação de que haja presidiários para que tenham trabalho, emprego, salário, os carcereiros. Parece que os seus alunos não a entendem!290A CIÊNCIA, A TÉCNICA E A INTERCOMUNICAÇÃOCom todo o meu respeito, queridos doutores:A democracia, ao deixar o indivíduo mais livre, tanto política como espiritualmente, provoca a crise do temor à liberdade.A interpelação do universo e da vida, do seu sentido e valor através do mito, levantaram tantas contradições e incertezas, que o procedimento lógico de um ser racional é comprovar quanto há de verdadeiro e falso ou de corrupção ética e moral nos doutores.O perigo para todos aqueles que se empenham na busca da verdade está no fanatismo dos dogmáticos. Eles continuarão com o seu totalitário e infalível fundamentalismo, obstinados em demonstrar que as causas do sofrimento radicam nos apologistas da razão.Não é preciso ninguém civilizar o ser humano. Ele próprio o consegue quando o deixam viver, amar e pensar em liberdade. Ele tem todo o conhecimento para adquirir a perfeição ética e moral, porque vem desde a própria origem com uma memória cósmica.291Se se quer proteger os fracos há que ensinar-lhes ética, razão crítica, e não manhas e dupla moral.A ética é a arte de ensinar respeito e nobreza. O dogma é a esperteza do mais fraco, do mais degenerado.A ciência terá sempre uma influência positiva para libertar o ser humano da nefasta influência que seitas e religiões exercem sobre ele. O conhecimento liberta o indivíduo da superstição e do temor. Quando se conhece o fenómeno que causa a escuridão da noite, o indivíduo deixa de perguntar por que tem medo da noite, para se perguntar apenas por que tem medo. Ao conhecer-se a si próprio, cada um é mais livre porque os trapaceiros já o não podem manipular com sofismas.O avanço da técnica e da tecnologia, como veículos de intercomunicação entre grupos com mitos diferentes, pode servir para alargar o conhecimento entre eles e evitar assim que os apologistas do terror os explorem aproveitando-se do irracional sentido de territorialidade que os humanos, tal como os animais, possuem.

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As religiões são pragas que a razão deve eliminar, mas receio que para resolver a crise tentem fazer o que fizeram sempre: matar os mestres da razão científica pura com a patacoada absurda de que são os filhos-filhas de um selvagem Satã. E com este propósito que estão a ser usados os meios tecnológicos de comunicação. Ou por algum amoral civilizador. Esperemos que desta vez a insensatez não leve a melhor! Já sabemos o que significa civilizar: tudo menos nobreza, bondade e justiça. Toda a consciência tem a possibilidade de alcançar a perfeição através das próprias reflexões, mas para tal precisa de ser absolutamente livre e responsável pelos seus actos. Basta de doutores exemplares!292A ÉTICA PICARESCA, E O AGRAVO COMPARATIVOQuerida amiga, mulher:Hoje vi e ouvi o ministro da Justiça dirigindo-se ao povo para cometer - impunemente - o mais descarado dos agravos comparativos contra uma parte dos cidadãos - ou cordeiros. Afirmava ele que, após ter posto à consideração do governo se era justo mandar uma mulher para a prisão por ter feito um aborto, tinham chegado à conclusão de que o não era. Bravo, senhor autoridade e excelentíssimo senhor, até aqui estamos de acordo!E por que razão, pelo contrário, quer enviar para a cadeia a pessoa de família, médico ou amigo que nos ajude a morrer quando lho pedimos, quando consideramos que é o momento de fazê-lo, e quando a pessoa que nos ajuda o faz porque nos ama, nos respeita, está de acordo connosco, e não sobrepõe os seus princípios aos nossos? - interrogava-me eu.No caso da mulher que decide não trazer mais dor ao mundo, há uma consciência que decide o que considera293melhor, tanto para si própria como para um possível futuro ser humano - que não é mais do que o prolongamento de si mesma. É um acto de vontade.No caso da ajuda a uma morte voluntária, é a pessoa que decide em relação a si mesma.Comparando a responsabilidade da mulher e o seu legítimo direito a não suportar nem projectar sofrimentos no futuro, com o direito de um tetraplégico a libertar-se dos seus, eticamente é bastante mais clara e simples a tolerância e protecção jurídica da vontade do tetraplégico que a da mulher. Que fique bem claro! Creio que parir um filho é um acto reservado à exclusiva vontade da mulher. Eu, querida amiga, apenas pergunto: por que se defende politicamente uma liberdade e se castiga outra? E não acuso apenas o ministro falsário, mas todos os grupos políticos que se negaram a reformar um código penal que astutamente confunde eutanásia com suicídio.Querida mulher, talvez tivesse sido melhor não o terem parido.294NEGUEM-SE A PARIRNão há erro maior do que o de nos gerarmos. Não há crime maior do que o de nos parirmos. Se sabemos como vão escravizar-nos, e com falsas esperanças seduzir-nos.Enquanto houver uma criança triste, escravizada por qualquer propagandista do viver. Enquanto houver um só ser triste e humilhado, que se neguem as mulheres a parir.Enquanto disser o poderoso: assim é a vida! quando a vida está cansada de sofrer, a verdade injustamente escarnecida, que se neguem as mulheres a parir.Enquanto houver um ser humano sem alimento, resignado e humilhado por pedir, enquanto disserem que enobrece o sofrimento, que se neguem as mulheres a parir.296Enquanto continuarem sem dizer por que os parem: para ser livres ou escravos de um senhor?, que se neguem a parir ou que declarem as mulheres que caminho é o melhor.Que talvez seja melhor imaginá-los que gerar muitos filhos não nascidos, que pari-los para vê-los acabar em escravos ou em amos mal nascidos.Enquanto continuarem, por amor, parindo filhos para vê-los condenados a viver, explorados por hipócritas e pícaros, que as mulheres se neguem a parir.DA LIBERDADEQuerido ministro da Justiça:

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Eu também quero fazer qualquer coisa por ti e pelo povo a que pertenço. Eu também quero dar-te alguns conselhos a ti e aos juízes, a todos aqueles que se armam em doutores.Um dia recorri a vós reclamando liberdade. Reclamando o direito a reinar dentro de mim mesmo. Para ser meu próprio pastor, meu juiz e meu médico. Respondestes-me com códigos para que visse através dos vossos olhos, para que pensasse e sentisse com os vossos sentidos. Dizeis que o fazeis pelo bem da vida como um valor superior. Também o faço pelo bem da vida, mas acima de tudo pela dignidade e pela liberdade do homem.Aconselho-vos a que deixeis de tutelar a minha vida e a minha morte. Eu sou o meu próprio mestre.Aconselho-te, ministro, juiz e jurista, a que sejas honesto contigo mesmo. Se ages por temor não és ético.297Diz uma amiga minha que o que espanta o ser humano é o conceito de eternidade. Segundo ela, o que aterroriza o homem é a ideia do nunca jamais. Uma vida sem final causaria pavor. Uma morte sem retorno à vida, também. O que assusta é o conceito do eterno. Segundo esta hipótese, o ideal para o ser humano seria o eterno retorno, a certeza de que se pode voltar sempre ao ponto de partida. Mas voltar ao ponto de partida equivaleria ao estático. E o estático equivaleria ao eterno.Como o que parece o estático não existe no universo - tudo é movimento, puro ritmo e matemática —, a vida e a morte formam parte desse movimento.Por exemplo, uma tetraplegia é o estático, o eterno. O que te causará espanto é a falta de liberdade, a falta de movimento. Estas carências causar-te-iam mais dor e temor que a ideia da morte. A morte é o movimento. Aconselho-te a que legalizes o direito ao movimento.Se partires o pescoço um dia, tu que deténs o poder, não deixes nas mãos de nenhum bem intencionado profissional a tua vontade. Se a tragédia te visitar um dia e ficar para sempre a residir na tua alma, asseguro-te que pensarás em desalojá-lo seja lá como for. Se ela não se for embora, optarás por abandoná-la tu. A vida procura sempre a libertação de qualquer parasita. A vida conta sempre com a morte como aliada contra o mal. Transpor ou não a fronteira dos teus próprios temores dependerá de ti! Mas não cries um carcereiro a ti próprio. Não se armem em carcereiros de vós próprios nem de nenhum ser humano! Não sejas tão néscio! Não sejas refém de nenhum profeta tresnoitado.Aconselho-te a deixares sempre uma porta aberta para a liberdade. Dá a ti próprio a oportunidade de começar de298novo, quando cometeres o erro irreparável de partir o pescoço. Não fiques sozinho, desamparado à mercê da vontade e do capricho dos reprogramadores profissionais. Talvez em determinada circunstância te ocorra começar além da vida. Mas se não fores dono de ti mesmo, negar-te-ao o direito a partires, ou negar-te-ão a ajuda, o que é a mesma coisa. Dir--te-ão, como a mim me disseram: nós não estamos aqui para isso. Proíbe-no-lo a nossa ética profissional.Aconselho-te a não deixares a tua morte nas mãos de qualquer ética profissional. Aos profissionais deixa-lhes apenas o poder de curar as tuas enfermidades, e quando não tiverem ciência para o fazer, não lhes dês legalmente qualquer autoridade sobre ti.Para arrancares de ti a dor incurável não necessitas de um médico ou de um sacerdote, por exemplo; basta-te o amor e a ajuda de alguém querido. Aos técnicos deixa apenas a responsabilidade de diagnosticar que o mal é irreparável. Sub-meteres-te ou não à sua ética profissional para sobreviveres um pouco mais deve ficar ao teu livre arbítrio. Só tu deves saber se queres quantidade ou qualidade de vida. Se desejas reabilitar-te ou começar de novo, partindo para outro estado e para outro tempo, ou para o nada, conforme as tuas crenças. Aos padres deixa o direito e a liberdade de falarem do seu deus e nada mais.Por que te digo que na melhor das hipóteses a dada altura desejarás a tua libertação?Porque entre duas circunstâncias dramáticas, optaremos sempre pela que menos dor e temor nos cause. Ou seja, pela mais agradável.Podes desejar a tua libertação por diversos motivos. Por um sentido ético e estético. Não te esqueças de que és um ser

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299psicoamestrado culturalmente para sentires pudor, respeito e auto-estima por ti próprio, tanto física como psiquicamente. Se um dia souberes que a partir desse instante e para sempre serás um corpo sem movimento a que os outros irão limpando todo o resíduo fisiológico, pode ser que se alterem os teus conceitos.Os profissionais empenhados em não fracassar na tua obrigatória reabilitação, dir-te-ão que isso é natural. Na melhor das hipóteses, percebes que isso está certo, mas antes programaram-te para que sentisses nojo e repugnância por tudo isso: a merda, a urina, os moncos e as babas não entram em nenhuma génese como conceito da beleza. Tudo isso é chamado feio e repugnante. Tudo isso não entra na explicação teológica e ética sobre o valor e o sentido do sofrimento.Aconselho-te a pensares bem antes de te condenares a ser um sofredor porque a ética e a moral de certos grupos ideológicos assim to exigem. Acima de tudo sê honesto contigo próprio. Pensa que podes vir a estar na circunstância de te sentires um morto consciente de que pensa e sente como um vivo. Desejas isso para ti? Imagina-te a ti mesmo e a outra pessoa a mudar-te de posição de três em três horas aproximadamente até ao fim dos teus dias. O teu corpo será limpo, lavado, purgado e estimulado para que não apodreça. A ética do profissional correspondente sairá vitoriosa, mas tu jamais poderás fazê-lo por ti próprio.Que pensarás então da apologia da ética dele? Deixa o teu absolutismo absurdo e pensa nisto. Talvez te habitues a que os teus pudores não te façam sentir vergonha e humilhação cada vez que te sentires exposto à manipulação dos outros, mas o mais certo é não te habituares nunca.Aconselho-te a que ponhas em dúvida toda a ética e moral que afirma o valor da vida como absoluto e que está acima300do interesse pessoal. Isso é uma aberração jurídica para justificar a tirania ou a escravatura. Não pensas talvez que uma pessoa sensata não seja capaz de valorizar a própria vida e o sentido que esta tem?Porque se não pensas assim, é porque consideras essa pessoa irracional.Será que um ser vivo precisa de um juiz, teólogo, chefe de Estado, médico ou ministro para sobreviver?A organização social é necessária e até justa, às vezes, mas subtrair à pessoa a propriedade da sua vida e da sua morte é valorizá-la menos do que a um animal. Se a vontade dela já não existe, se é propriedade do Estado, da religião ou da lei, qual é o seu sentido ou razão de ser? O absurdo é que alguém diga por exemplo que se lhe acabou o desejo e a vontade de viver e tu argumentes que isso é o fracasso da sociedade.Quando a vontade e o desejo de uma pessoa é deixar de ser tetraplégica, canceroso incurável, esquizofrénico, carne de manicómio, doente senil, moribundo, etc, continua a ser uma pessoa ou é já um objecto que só serve para satisfazer os desejos ou a vontade de outrem?Pensa, ministro e juiz, que não há violação mais imoral do que a de alguém que se apodera da vontade de um ser indefeso. Pensa que não se pode estar mais indefeso do que alguém que não se pode valer de si próprio e que não há outro juiz que faça cumprir a tua vontade, até a de morrer. Isto é, ter a liberdade de renunciar a todos os teus direitos pessoais. E esta a liberdade que qualquer pessoa física e psiquicamente capacitada pode exercer à vontade. Desde que a vida existe, nenhuma espécie precisou que ninguém explicasse o seu sentido e valor. Qualquer ser vivo tem esses conhecimentos gravados nos átomos da sua memória genética301desde que começou o movimento do universo. Cada ser define a própria vida com a mesma inteligência, valentia, sabedoria e justiça que o mais manhoso dos moralistas. O desejo e a vontade são a sabedoria da matéria viva. O paradoxal é que ao ser mais evoluído de todos, racionalmente, se lhe pretenda negar o direito a libertar-se de toda a opressão, incluindo a própria vida.Pensa que podes chegar a desejar a morte porque o espectáculo da vida te aborrece. O teu desejo será voltar atrás, ao paraíso perdido, mas sabes que só se pode seguir na mesma direcção: sempre em direcção à morte, para se começar de novo.

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Todo o desejo e vontade que tenha como propósito evitar o absurdo está permitido por uma lei universal. Quando não puderes cumprir o teu desejo e a vontade de voltar para trás, resta-te a possibilidade de chegar ao final. A morte é o princípio de outro espaço, de outro tempo para a nossa matéria. Quem te disser que não é possível a morte voluntária ou é parvo ou um brincalhão.Se se utiliza o desejo e a vontade para prolongar o tempo de estada como espectadores e actores na comédia da vida, também se pode utilizar esse mesmo desejo e vontade para a modificar pondo-lhe um termo, se esse prolongamento não nos interessar. Quando a ciência modifica o tempo de vida, imagina-se que tenha como finalidade prolongar o prazer, mas não a dor e o sofrimento. Prolongar o sofrimento quando isso não corresponde ao desejo nem à vontade pessoal é uma forma de totalitarismo que te impõem os profissionais por um falso conceito da sua ética particular. É a aberração da medicina e a degeneração da consciência e do princípio humano de sanação. O dever moral de um profissional302da medicina é prestar ajuda a quem lha peça, não é competência sua dizer-lhe e muito menos impor-lhe a forma de morrer.Não deixes que te manipulem psicologicamente o sentido do temor com o fim de reprogramar-te. Se não queres ser reabilitado, procura que a lei não deixe a tua consciência nas mãos dos reabilitadores.Quando recorreres ao hospital, dir-te-ão que estás ali voluntariamente. É verdade, mas também é verdade que não tens outra opção. E se te acontecer revoltares-te, considerar-te-ão transtornado e aplicar-te-ão o tratamento em conformidade.Querido ministro, legisla para a liberdade do homem e o bem da vida. Pensa que para o ser humano, a hipocrisia, o engano, ou qualquer outra forma de adquirir vantagem com que se possa dominar o outro lhe é mais atractivo que uma justiça ética e universal. Há sempre alguém que nos oferece a sua protecção com a condição de lhe entregarmos a nossa vontade. O absurdo começa quando não se quer protecção e se é obrigado a ser protegido.Toda a dependência pode ser benéfica entre duas pessoas sempre que exista consentimento. O respeito mútuo tem de ser o fundamento de toda a ética e de toda a moral.Neste momento estou a pensar em ti, querido juiz, que tiveste a oportunidade de me fazer justiça protegendo o meu direito à liberdade, e não o fizeste por medo. Já sei que te escudaste por detrás dos códigos, mas antes de mais nada era teu dever fazer justiça. Creio que pesou mais o temor de ser castigado que a dúvida razoável de que eu não tivesse razão e direito.A vida não cria homens escravos. O dever moral do ministro da Justiça é evitar que o façam os homens.303Evoluir significa que cada hipótese deve ser renovada na consciência de cada geração, mas antes na consciência do indivíduo, dia após dia, instante após instante. O dever do ministro da Justiça é facilitar a evolução.Deixem o ser humano livre e este conseguirá encontrar por si mesmo a verdade. Escravizem-no e converter-se-á num malvado.Eu conto-te a parte que os propagandistas de viver o sofrimento querem fazer esquecer. Eu conto-te o inferno. O céu contam-no os apologistas da vida nos seus editoriais, e com a resignada consideração dos reabilitados. É muito louvável a tarefa deles, mas o certo é que existe o inferno dos desesperados. Um inferno cuja evidência se quer ocultar e afogar.O sentido e o valor da vida só o poderá desvendar o conhecimento. Entretanto, garante a liberdade e o direito para que cada ser humano possa sempre começar do zero. Há uma só lei: não romper o equilíbrio enquanto não conhecermos o segredo, o código, o enigma do movimento universal. Ou seja, o respeito.Não estendas a tua própria ratoeira, ministro. Não cries o teu próprio inferno, a tua própria escravidão. Se um dia deres conta que a tua própria vida te cortou as mãos e os pés, por exemplo, as pernas para que não possas segui-la, e os braços para que jamais possas tocá-la, ficarás a saber que isso é a dor eterna. Porém, uma autoridade reabilitadora dir-te-á que se pode viver sem eles. A tua mulher, ou o teu filho, a tua mãe, o teu pai, o teu irmão ou o teu amigo dar-

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te-ão um beijo. Farás o esforço titânico de tentar abraçá-los mas sentirás a mais terrível e torturadora das impotências ao não poderes fazê-lo. Mas um reprogramador profissional dir-te-á304que é possível uma pessoa habituar-se a viver sem isso. De vez em quando o teu corpo cobrir-se-á de imundície, como se um invisível e sádico torturador quisesse expor-te a pública humilhação, a um atroz tormento por algum aleivoso crime cometido. Nessa altura, de certeza que quererás ser o teu próprio dono. Se gostares de viver com tão pouco, apela aos técnicos, eles reabilitar-te-ão. Se não queres viver com tão pouco prazer, não fiques à espera da oportunidade de que alguém te preste caridade e ajuda. Tu que podes, confere a ti mesmo o teu próprio direito. Se assim não fizeres, quando desesperares haverá sempre um reabilitador para te repetir que se pode sobreviver apesar de tamanha degradação. Dir-te-ão que são funções naturais do corpo humano. Só é preciso uma pessoa habituar-se a tudo isso!Se um dia partires o pescoço, eu te digo, para o caso de te interessar, ministro, o que é o inferno. Como a mim, dir--te-ao que o descrevas, mas hão-de querer que destaques o bom. Quererão que colabores com eles, e lhes sirvas de exemplo vivo de que ao ser humano é possível suportar qualquer tipo de tortura e de humilhação sempre que alguém saiba convencê-lo. Far-te-ão ver que és um ser único e admirável porque conseguiste, com a sábia colaboração e generosa ajuda dos salvadores de vidas, sobreviver com o teu espírito de lutador exemplar. Serás a prova, a confirmação empírica dos conceitos deles. Far-te-ão sentir que o mérito é todo teu. No fim, o triunfo repressor da tua própria lei será total. Tu, para não reconheceres os próprios erros, dirás que estás contente.Pode-se sobreviver no inferno?E claro que pode. Basta olhar à nossa volta. Todavia, o céu está sempre na nossa consciência.305Quando te falo do inferno e do céu, não é que acredite no inferno nem no céu. Refiro-me ao inferno que tu criaste com as tuas próprias leis, ou que consentes que se mantenham.Dá uma prenda a ti mesmo e não consintas que exista uma lei que conceda a outrem o direito de proteger-te da tua própria vontade. Se assim fizeres, terás ganho o aplauso da vida. Terás defendido a liberdade e a dignidade do homem. Mas se consentires que a dor e a crueldade perdurem, não representarás mais do que a figura de apóstolo do diabo que recria com o seu poder vítimas para o inferno.306O REGRESSORegressar à escuridão ou ao nada por curiosa intuição do raciocínio: a instantânea conexão de um olhar com a explosão vital de um suicídio.Como um átomo mudando de lugar pelo frio polar de um neurónio que perdeu o caminho para regressar ao tortuoso caos que a sua alma assola.O desejo instintivo de perder-sepor uma suprema interrogação,o criativo impulso de sabero que existe do outro lado do horizonte.Regressar ao paraíso perdido, liberto da carga que aprisiona o viajante sonho que a vida fez como o único deus da pessoa.308Regressar à inquietante incerteza pela senda do certeiro projéctil com o suave sedativo que me ilumine em ignoto caminho, como uma candeia.Rebentar o sofrimento de vivercomo um mago recriando o universo,que estanca com um mágico elixira desordem infernal de um descontentamento.Regressando à escuridão ou ao nada pela curiosa intuição do raciocínio é de deus uma ordem à alvorada para deter as voltas do destino.FAZ HOJE VINTE E SETE ANOS.

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Hoje, vinte e sete anos depois, o inferno continua a ser a minha morada. Tenho à minha volta seres que me amam. Tratam de mim com paciência, respeito e carinho, mas não posso tocar-lhes, nem agradecer-lhes com uma festa da minha mão. Continuo no inferno porque ouço a chuva, mas sei que ela não pode acariciar-me o corpo, como acontecia dantes. Continuo no inferno porque não posso exprimir o amor à mulher como deseja o meu cérebro. Ela diz que com a minha boca lhe basta. Que lhe basta a minha forma de ser para se sentir satisfeita e plena. Contudo, sinto que tem saudades do meu sexo, da forma que ele tinha, da minha maneira de interpretá-lo e de vivê-lo com outras mulheres, que ela diz continuar a imaginar. Assegura-me que a minha ternura lhe basta para se sentir mulher. Mas a mim, não. Sentimos como mulheres e homens através dos nossos corpos. Não é capaz de entender o que significa não sentir nada sexualmente. Sim, imagina, mas não sabe o que nada significa em relação à sensibilidade corporal.309Vi e senti as chamas do inferno quando Rosita, a mais nova das minhas queridas sobrinhas - tinha então três meses —, foi deixada sozinha comigo. Manuela, a minha cunhada, a pessoa que me torna mais suportável esta vida que não aceito viver, dissera-me que se a menina chorasse a única coisa que devia fazer era falar um bocadinho com ela. A criança desatou a chorar e eu falava com ela, e falava e quanto mais coisas lhe dizia mais ela chorava. Depois, começou a tossir; percebi que se engasgava, e face à impossibilidade de acalmá-la com as minhas palavras, achei mais prudente calar-me. Aterrorizava--me a possibilidade de que se asfixiasse, e eu deitado na cama sem poder fazer nada. Lembrar-me-ei sempre desse dia como o cúmulo da impotência. Tal como naquela tarde em que a minha mãe — morreu de desgosto com o que me acontecera, mas os médicos diagnosticaram-lhe um cancro — caiu no corredor. Estávamos os dois sozinhos, também. Ela desmaiara e eu, a dois passos dela, não podia ajudá-la. Pensei na morte dela e repetiu-se a imagem da minha cabeça unida ao lastro do corpo morto, a única coisa que funcionava.Tive então, de novo, a visão rápida do passado. Recordei o riso de minha mãe, a sua ternura, a voz clara e profunda que conversava comigo, em pequeno, e os olhos, os olhos dela, que me perguntavam mil coisas que a voz não se decidia a formular, quando eu regressava de viagem. E recordei aquele movimento tão triste dos seus lábios quando me disse, junto de meu pai: «Ambos te preferimos assim. Não queremos ver-te morto.» E sei, porque mo disseram depois de ela ter saído dali, que por detrás do sorriso que esboçava no meu quarto, passava o dia a chorar pelos cantos da casa. «Talvez esta tarde também tenha chorado» - lembro-me de ter pensado naquele dia, enquanto ela jazia inerte no chão.310E isso não soube nunca. Quando recuperou os sentidos não lho perguntei, e ela, como sempre, selou os lábios com o silêncio. Poucos dias depois saiu do inferno que havia suportado durante doze anos.Evoco tantas coisas destes vinte e sete anos. Evoco tantas situações desde a imobilidade, que mil e uma vezes perguntarei, gritarei, se for necessário: por que me haveis negado a liberdade de morrer a tempo? Por que me haveis condenado a esta morte em vida que é olhar para o céu, da cama, olhar para o mar, da cama, ver os seres humanos, da cama, e sentir que se me acabou a possibilidade de demonstrar o amor? Eu, que tanto amei as mulheres, tive de renunciar a isso há vinte e sete anos. Achava que era a forma de sofrer menos - e ainda continuo a achar; vinte seis anos depois voltei a provar a doçura de uns lábios. Já quase havia esquecido essa ternura. Regressou com eles o amor da mão de uma mulher a quem adoro, mas também regressou o inferno, porque também retorna o desejo de sentir o meu corpo a abraçar o dela mas a impotência nem sequer me permite acariciá--lo com a mão. Quando falamos da minha necessidade de morrer, noto que fica triste, mas ela sabe que não pode levar-me a melhor, ela entende o meu sofrimento, e diz-me «nunca havemos de discutir por tu reclamares a eutanásia». Sei que gostaria que um dia lhe dissesse: «Desde que nos amamos, já não quero morrer.» Mas não está à espera de que o faça, tem gravada na mente uma frase minha em que lhe disse que só uma pessoa egoísta poderia pedir-me que fizesse marcha atrás. Em vez disso, ouve-me com um

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sorriso irónico quando lhe digo: «Depois de morto virei ter contigo à cama e tocarei o teu corpo todo e possuir-nos-emos um ao outro.»311Uma vez disse-me: «Nunca ouvi dizer a ninguém que um morto tenha voltado para fazer amor.» Eu rio, porque penso muito sério, muito sério, do fundo da matéria pura, que acontece o mesmo com um tetraplégico, jamais algum voltou a sentir o corpo entrelaçado no de uma mulher excepto em sonhos. Ela ri, mas adivinha-me o pensamento e responde muito séria, muito séria, com a coerência e convicção do ser respeitador, que o que peço é justo, e que já não consigo passar mais tempo nesta não-vida, que me obrigaram a suportar ano após ano, durante vinte e sete anos.Vinte e sete anos depois faço o balanço do caminho percorrido e não obtenho um saldo de felicidade. Não fui pelo caminho que teria querido seguir. O tempo correu contra minha vontade. Fui um tormento para os entes queridos e fui, ao mesmo tempo, atormentado pela dor deles. Hoje continuo nas mesmas circunstâncias que há vinte e sete anos. Manuel, o homem que levantou a minha cabeça da água e me perguntou o que se passava, modificou com o seu gesto a mecânica universal do destino, que se projectava naquele instante para a libertação material do meu corpo. Eu quero sair do inferno, pois interrogo-me: Que sentido tem a dor absurda contra a vontade do ser humano?312CARTA DE DESPEDIDA DE RAMÓN SAMPEDROEsta é a carta inédita que Ramón Sampedro escreveu à família pouco antes de morrer.Reproduzimos o original em galego e a tradução em português.Pela primeira vez, a família de Ramón Sampedro facultou este comovente documento para publicação. (N. E.)313Querida família:Quando lerdes esta carta, espero estar dormindo para sempre.Também espero que entendais que isto era o que eu queria há muitos anos, e que façais o possível para que pareça que foi uma morte natural.A pessoa a quem pedi o favor de deitar o conteúdo das pílulas no frasco de sais de fruto foi um dos miúdos que andava por aqui, mas não tinha consciência do que fazia.Se bem vos lembrais, havia um frasco de sais de fruto quase vazio. Ali lhe mandei esvaziar o pó dos comprimidos e deixei--o ficar uns tempos com a desculpa de que me fazia falta, para que não se pudesse saber quem tinha sido. Depois, tomá-los foi coisa fácil: à última pessoa que ficou comigo para me virar ou para ver a televisão, antes de se ir deitar, pedi-lhe um copo de água com um pouco de sais de fruto, e deu-me, sem saber, o conteúdo dos comprimidos para dormir.323Por isso vos digo que não façais perguntas a ninguém. Chamai o meu médico, Carlos Peón. Se ele certificar que foi morte natural, rasgai esta carta e nada mais, mas se por qualquer motivo me quiserem fazer uma autópsia, então mostrai--lhes esta carta. Penso que serão suficientemente honrados para não vos instaurarem um processo absurdo.Repito que o melhor que podeis fazer é não dizer a ninguém a verdade, que tomei uma dose excessiva de soníferos, porque a primeira coisa que as pessoas perguntarão é... quem mas deu?E por muito que digais a verdade, e que não haja nenhuma denúncia, as más línguas, essa gente mesquinha a quem só interessa mexericos e calúnias, hão-de dizer que fostes vós que me haveis dado os comprimidos, ou outras calúnias piores.Teria querido que o fim da minha estadia convosco tivesse sido diferente. Teria preferido contar com a vossa colaboração. Despeço-me de todos, como quem vai de viagem durante larga temporada, ou como quem parte para nevagar, ou emigra — já que é isso a morte, um sono, ou uma viagem muito longa!Mas nunca me fiei. Tive sempre medo de que se pedisse a alguém que me fizesse o que me fez a inocência de uma criança, acabasse — como acabam todos os segredos - sendo sabido de todos, ou seja, um segredo público.

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Espero que quando me recordardes nalguma conversa de família e vos perguntardes pelos motivos, ou porquê, nunca vos ocorra duvidar de que - se calhar - foi porque não me sentia bem tratado. Não foi isso!Não é possível dar mais apoio, mais respeito, amor, carinho e calor humano solidário a alguém. Isto é, não se pode fazer mais do que todos vós haveis feito por mim.324Mas o que não podemos dar a ninguém, por muito que o queiramos, é a esperança. Essa só nasce no fundo de nós próprios. Eu perdi a minha no dia em que me disseram que não havia mais nada a fazer para curar-me.A vida tem de ter um sentido. E tem sentido enquanto esperamos alguma coisa. Quase nunca - ou nunca - sabemos o quê, mas enquanto dispomos de um corpo sensível e vivo que nos possibilita disfrutar do sentido da liberdade que nos dá o seu movimento, teremos sempre a sensação de poder ir de um horizonte a outro, em busca dessa coisa indefinida e maravilhosa que nos libertará da rotina e do monótono cansaço de lutar para viver de uma maneira normal.Viver é como jogar na lotaria. Se pensarmos bem, sabemos que as possibilidades de que nos toque a felicidade que queremos são de uma num milhão, ou em dez ou vinte, mas continuamos a jogar porque há uma hipótese. Há lugar para a esperança! Mas se ficamos sem o corpo, é como se ficássemos com a pírrica esperança de que nos possa tocar uma miserável terminação, mas nunca um prémio importante. Pode ser que haja quem queira jogar assim, mas eu não. Eu quero jogar nessa lotaria proibida, na da morte. Talvez para além da vida haja outra lotaria, e se jogarmos nela — talvez -nos possa sair um prémio dos importantes. Há uma esperança na incerteza!Quando iniciei os trâmites para reclamar por via judicial o direito a uma morte voluntária, todos vós simplificáveis o assunto com a frase: Ao que parece, quer morrer!Ninguém quer morrer, mas se nos encontramos numa encruzilhada e já sabemos como um dos caminhos é horrível, o mais lógico será seguir por outro, porque apesar de não sabermos, temos a esperança de que este possa ser melhor.325Foi isto que decidi: o caminho que me esperava era - como foi até aqui - horrível. Então decidi meter pelo outro.Levo uma bela recordação de todos vós, e espero que conserveis a mesma de mim.Se me amais - e sei que sim — deveis alegrar-vos em vez de ficardes tristes, pois por fim se acabou o meu pesadelo depois de tantos anos.Morrer não é mais do que uma pessoa deitar-se para dormir um sono muito longo. Que cada um de vós seja feliz no resto de caminho que ainda vos resta por diante. Se tiverdes paciência, serenidade e ânimo alegre, tenho a certeza de que assim será.A vida vale a pena ser vivida enquanto podemos valer-nos por nós próprios; quando deixa de ser assim, é melhor terminá-la, pois continuar não tem sentido. O que acontece é que devia ser um acto de liberdade pessoal, e que nos fosse mais fácil encontrar ajuda quando precisamos dela. Isso seria também uma forma de amor!Perdão por partir sem me despedir.Por vezes demonstraríamos mais amor por uma pessoa se lhe oferecêssemos ajuda para morrer do que para viver.Amei-vos o melhor que soube e pude. Todos vós me haveis amado do mesmo modo. Só posso pagar-vos com a maior prova de gratidão: morrendo. E vós respeitando a minha vontade.

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