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Núcleo Especializado da Infância e Juventude EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO HABEAS CORPUS COLETIVO – DECISÃO ADMINISTRATIVA ILEGAL IMPETRANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO PACIENTES: ADOLESCENTES DOMICILIADOS OU QUE SE ENCONTREM EM CARÁTER TRANSITÓRIO NA COMARCA DE URÂNIA/SP IMPETRADO: JUÍZO DA COMARCA DE URÂNIA A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seu Núcleo Especializado da Infância e Juventude, pelos Defensores Públicos subscritores, agindo nos termos do artigo 134 da CF c/c. o artigo 5º, inciso III, da LC nº 988/2006, vem à presença de Vossa Excelência impetrar 1

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Núcleo Especializado da Infância e Juventude

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

HABEAS CORPUS COLETIVO – DECISÃO ADMINISTRATIVA ILEGAL

IMPETRANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO

PACIENTES: ADOLESCENTES DOMICILIADOS OU QUE SE ENCONTREM EM CARÁTER

TRANSITÓRIO NA COMARCA DE URÂNIA/SP

IMPETRADO: JUÍZO DA COMARCA DE URÂNIA

A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seu Núcleo

Especializado da Infância e Juventude, pelos Defensores Públicos subscritores, agindo

nos termos do artigo 134 da CF c/c. o artigo 5º, inciso III, da LC nº 988/2006, vem à

presença de Vossa Excelência impetrar

HABEAS CORPUS COLETIVO

em favor de adolescentes que sejam apreendidos pela suposta prática de ato

infracional na Comarca de Urânia/SP, contra decisão administrativa proferida pelo

Juízo da Vara Única da Comarca de Urânia, nos autos do processo administrativo nº

0000165-54.2020.8.26.0646, pelos fatos e fundamentos jurídicos a seguir aduzidos.

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1. DOS FATOS

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS)

classificou como pandemia a disseminação da contaminação pela COVID-19, doença

causada pelo novo Coronavírus.

Em decorrência disso e com o aumento do número de casos no Brasil, foi

declarada Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN),

materializada na Portaria nº 188/2020 do Ministro de Estado da Saúde.

O Decreto Estadual nº 64.862/2020, do Governador João Doria,

reconheceu tal situação e adotou medidas temporárias e emergenciais de prevenção

de contágio, dentre elas suspensão de aulas e eventos, evitando-se a aglomeração de

pessoas, que foi alterado pelo Decreto Estadual nº 64.864/2020.

No dia 21 de março de 2020, foi publicado o Decreto Estadual nº 64.879,

do Governador João Doria, que reconhece o estado de calamidade pública decorrente

da pandemia do Covid-19.

A situação trazida pela pandemia é multifacetária, trazendo reflexos graves

não só na esfera da saúde, mas também social, econômica, trabalhista, afetando a

todos, incluindo-se as crianças e os adolescentes.

E, nesses termos, este Egrégio Tribunal não foi alheio à questão, editando

uma série de atos normativos com o intuito de adequar a prestação jurisdicional à

atual situação, buscando a garantia de direitos, sem aumentar o risco de transmissão

comunitária do vírus.

Assim, o Conselho Superior da Magistratura editou uma série de normas,

notadamente os provimentos CSM nº 2546/2020, 2549/2020 e o comunicado nº

47/2020, a respeito do funcionamento do Poder Judiciário em primeira instância e

sobre as medidas socioeducativas em cumprimento no Estado de São Paulo.

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No mesmo sentido, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação

nº 62/2020, a respeito da “adoção de medidas preventivas à propagação da

infecção pelo novo coronavírus – Covid-19, no âmbito dos sistemas de justiça

penal e socioeducativo”.

Por fim, o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Recomendação

nº 71/2020, recomendando a não realização, pelos/as Promotores/as de Justiça, da

oitiva informal, utilizando-se, para decisão acerca da representação ou não de

adolescente, das peças de informação existentes.

Desse modo, fica claro que as autoridades do Sistema de Justiça vêm

empreendendo esforços para adequar, provisoriamente, sua atuação, de modo a

evitar a majoração na transmissão do Coronavirus, mas, evidentemente, sem violar

direitos e garantias fundamentais ou normas expressas da legislação processual.

No entanto, em 09 de abril de 2020, a partir de Ofício encaminhado pelo

Comandante da 2ª Companhia de Polícia Militar de Jales/SP, o Magistrado da Vara

Única de Urânia/SP, através de uma decisão administrativa, concedeu autorização para

que, durante o período de isolamento social:

“1) Caso haja notícia da ocorrência de ato infracional, ou algum

adolescente seja surpreendido na prática de ato infracional,

com o fim de evitar a condução dos adolescentes nas viaturas,

e para evitar o contato dos adolescentes envolvidos com

quaisquer outras pessoas, os Policiais Militares devem sempre

buscar formas alternativas de colocar o adolescente em

contato com a Autoridade Policial competente, por meio de

vídeos chamadas por exemplo, priorizando que este exerça o

juízo de valor quanto a situação, a gravidade do fato e

necessidade de encaminhamento do adolescente ou liberação

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para os pais ou responsáveis. E ainda, caso haja necessidade

de perícia, devem preservar o local dos fatos e contatar a

Autoridade Policial, para que este requisite a presença do

perito, sem a necessidade de encaminhamento do adolescente.

2) Sem prejuízo, não havendo dúvidas, se o ato infracional for

cometido sem violência real ou presumida, ou grave ameaça à

pessoa, mesmo que em situação flagrancial, desde que haja o

comparecimento dos pais ou responsáveis legais no local, a

Polícia Militar deverá elaborar o Boletim de Ocorrência

Circunstanciada, nos termos descritos, no item 2.5 do ofício,

com a versão completa do adolescente acerca dos fatos,

colhida na presença do responsável legal, com informações

sobre a moradia, matrícula escolar, informações quanto a

testemunhas, que devem ser devidamente qualificadas, e

poderá liberar o adolescente sem a necessidade de seu

encaminhamento a Autoridade Policial. Referido Boletim de

Ocorrência da PM deverá ser encaminhado por e-mail para este

Juízo da Infância e Juventude da Comarca, com cópia, no

mesmo e-mail, para a Delegacia de Polícia responsável, para

que a Autoridade Policial competente determine a realização

das diligências e investigações necessárias, inclusive eventuais

requisições de perícias.

3) Se cometido com violência real ou presumida, ou grave

ameaça à pessoa (casos previstos no artigo 122 do Estatuto da

Criança e Adolescente, em que é cabível a apreensão e

internação do adolescente), e ainda, se se tratar de ato

infracional equiparado ao delito de tráfico de entorpecentes

(tendo em vista que nos termos da Súmula 492 do Superior

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Tribunal de Justiça, cabível a apreensão e internação mesmo

que não haja violência), ou ainda, se pelas circunstâncias

houver dúvida quanto a natureza do ato infracional, o

adolescente deverá ser encaminhado a Autoridade Policial, que

é responsável pelo juízo de valor, quanto a gravidade do ato

infracional e sua repercussão social, para decidir se o

adolescente será apreendido ou liberado aos pais.

4) Como já explícito acima, as requisições de eventuais perícias

ao Núcleo de Criminalística e Instituto Médico Legal, devem ser

feitas pela Autoridade Policial competente. A presente

Autorização tem validade somente enquanto perdurar a

determinação de quarentena e isolamento social no Estado de

São Paulo, como medidas de contenção da disseminação do

novo coronavírus, causador da pandemia de Covid-19.

Encaminhe-se cópia da presente Decisão-Ofício ao Comandante

da 2ª CIA da Polícia Militar de Jales, ora requerente, bem como

a OAB local.”

Em suma, verifica-se que o Juízo de Urânia, por meio de decisão

administrativa, concedeu à Polícia Militar prerrogativas alheias a tal órgão,

subvertendo completamente não só o processo legalmente estabelecido pelo Estatuto

da Criança e do Adolescente, mas a própria divisão de atribuições trazidas na

Constituição Federal e na Constituição do Estado de São Paulo, além de ter

estabelecido procedimento diverso dos estabelecidos por este Tribunal de Justiça e

pelo Conselho Nacional de Justiça, tudo isso em prejuízo dos/as adolescentes

eventualmente apreendidos na Comarca, que terão seus direitos ao devido processo

legal frontalmente violados.

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2. DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO HABEAS CORPUS COLETIVO

As ações constitucionais, enquanto espécie de garantia constitucional1,

visam conceder proteção e eficácia plena aos direitos fundamentais, guardando

verdadeira relação de interdependência com tais direitos. Assim é, porque, enquanto

os direitos declaram a situação subjetiva particular de seu titular, as garantias, em

especial as ações constitucionais, criam mecanismos para assegurar que o referido

titular usufrua da situação subjetiva declarada.

Nesse passo, como afirma Geisa de Assis Rodrigues2, “é cediço que as

ações constitucionais garantem a existência dos direitos e das liberdades

fundamentais e por isso demandam o mesmo regime constitucional”.

Destarte, o conteúdo e a amplitude do “direito-garantia”3 consubstanciado

em cada uma das ações constitucionais deve ser compreendido de acordo com os

métodos de interpretação/aplicação próprios dos direitos humanos fundamentais.

Aplicam-se, pois, às ações constitucionais, dentre outros, os princípios da

unidade, da máxima efetividade e da concordância prática das normas constitucionais.

Com efeito, de há muito a jurisprudência, visando garantir efetividade

máxima ao direito de livre locomoção, vem interpretando o conteúdo da garantia

constitucional do habeas corpus de modo à, harmonizando-o com os direitos

constitucionais à tutela jurídica efetiva e célere (CF, art. 5º, incisos XXXVI e LXXVIII),

1 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em sua obra Direitos Humanos Fundamentais, 2ª ed., Saraiva, pp. 32/33, fala em três espécies de garantias constitucionais: garantias-limites, garantias-institucionais e garantias-instrumentais, sendo essas últimas correspondentes às ações constitucionais.2 Rodrigues, Geisa de Assis. Reflexões Em Homenagem Ao Professor Pinto Ferreira: As Ações Constitucionais No Ordenamento Jurídico Brasileiro.

3 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed, Editora Jus Podivm, pp. 617.

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permitir a utilização do chamado habeas corpus coletivo, o qual objetiva resguardar a

liberdade de locomoção de uma coletividade de pessoas que esteja ameaçada ou

vilipendiada de forma homogênea, por ato ilegal ou abusivo, mediante o manejo de

uma única ação constitucional.

Nesse passo, adéqua-se a garantia constitucional/processual do habeas

corpus ao que Mauro Cappelletti e Bryant Garth chamaram de “segunda onda de

acesso à justiça”4, pela qual se propõe justamente a utilização de instrumentos

processuais voltados à tutela de direitos e interesses difusos como meio de romper as

barreiras ao amplo acesso à justiça.

Veja-se, como exemplo de utilização do habeas corpus coletivo para tutela

de direitos de pessoas submetidas à Execução Criminal em um mesmo

estabelecimento, o seguinte julgado:

“HABEAS CORPUS – REGIME SEMIABERTO – INEXISTÊNCIA DE

ESTABELECIMENTO PENAL ADEQUADO – COLÔNIA PENAL –

FORÇOSA A COLOCAÇÃO DOS REEDUCANDOS NO REGIME

MENOS GRAVOSO – DOMICILIAR – ATÉ QUE SEJAM

DISPONIBILIZADAS VAGAS NO LOCAL ADEQUADO NA FORMA

DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS – ORDEM CONCEDIDA A FIM DE

QUE SEJAM COLOCADOS NO REGIME DOMICILIAR TODOS OS

ENCARCERADOS DO REGIME SEMIABERTO QUE CUMPREM

PENA DO PRESÍDIO DE DOIS IRMÃOS DO BURITI. No caso

vertente, a execução da pena no regime que lhes foi designado

– semiaberto - é direito inegociável, e, a inexistência de

estabelecimento penal adequado, não enseja ao Estado a

possibilidade de manter os encarcerados em regime mais

gravoso. Imperativa a colocação em regime domiciliar. Os

4 Obra “Acesso à Justiça”. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 31.

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artigos 91 e 92 da Lei de Execução Penal, especificam o

estabelecimento referente a cada modalidade de cumprimento

de pena, estipulando no caso do regime semiaberto. Doutrina:A

Colônia Penal deve ser “estabelecimento penal de segurança

média, onde já não existem muralhas e guardas armados, de

modo que a permanência dos presos se dá, em grande parte,

por sua própria disciplina e senso de responsabilidade. É o

regime intermediário, portanto, o mais adequado em matéria

de eficiência.” - O Poder Judiciário não pode ser conivente com

o descumprimento da lei pelo Poder Executivo, quando não

providencia os estabelecimentos adequados aos reeducandos,

conforme prevê o ordenamento jurídico.” (TJ/MS – 1ª Turma

Criminal – HC 2009.032499-0/0000-00 – Impet.: DPEMS –

Pacientes: Internos do Presídio de Dois Irmãos do Buriti –

Relato: Des. Dorival Moreira dos Santos – Jul.: 12/01/2010, v.u.)

Ressalte-se, por oportuno, que o cabimento do habeas corpus coletivo

torna-se ainda mais incontroverso quando destinado à resguardar o direito de

locomoção de crianças e adolescentes.

Isso porque, além do princípio da máxima efetividade das normas

constitucionais, bem como dos direitos à efetiva e célere tutela jurisdicional, aplica-se

à tutela jurisdicional da liberdade de ir e vir das crianças e adolescentes o dever de

integral proteção e promoção dos direitos das crianças e adolescentes (CF, art. 227),

o qual permite o reconhecimento de lesão ou ameaça de lesão a tais direitos por

meio de qualquer tipo de ação judicial. Irretocável, quanto ao tema, o disposto no

artigo 212 do ECA, in verbis:

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“Art. 212. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por

esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ações

pertinentes.

Logo, nos moldes do artigo 5º, inciso LXVIII, da CF/88, interpretado em

consonância com o exposto acima, resta inequívoco o cabimento do presente writ,

uma vez que visa defender o direito de locomoção de adolescentes que forem

apreendidos pela suposta prática de ato infracional dentro dos limites da Comarca de

Urânia/SP contra ato judicial que, conforme será exposto a seguir, é inconstitucional,

ilegal e abusivo.

3. DO CONSTRANGIMENTO ILEGAL

O Código de Menores de 1979 trazia em seu bojo a Doutrina da Situação

Irregular, que era calcada na ideia de incapacidade dos menores e no dever de tutela

dos mesmos pelo Estado.

A “situação irregular” dos menores era declarada tanto pela conduta

pessoal destes (caso de infrações), como por atos da família (maus-tratos) ou da

Sociedade como um todo (abandono), e fazia com que fosse atribuída aos mesmos a

condição de “objetos da tutela protetiva do Estado”.

Interessante, para o presente caso, notar a descrição das principais

características da Doutrina da Situação Irregular trazida por João Batista Costa Saraiva,

em sua festejada obra “Compêndio de Direito Penal Juvenil – Adolescente e Ato

Infracional”, Editora Do Advogado, 3ª edição, pág. 24/25:

“Do trabalho de Mary Beloff extraem –se as principais

características da Doutrina da Situação Irregular:

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a-) As crianças e os jovens aparecem como objetos de proteção,

não são reconhecidos como sujeitos de direitos, e sim como

incapazes. Por isso as leis não são para toda a infância e

adolescência, mas sim para os “menores”.

b-) Utilizam-se categorias vagas e ambíguas, figuras jurídicas de

‘tipo aberto’, de difícil apreensão desde a perspectiva do

direito, tais como ‘menores em situação de risco ou perigo

moral ou material’, ou ‘em situação de risco’, ou ‘em

circunstâncias especialmente difíceis’, enfim estabelece-se o

paradigma da ambigüidade.

c-) Neste sistema é o menor que está em situação irregular; são

suas condições pessoais, familiares e sociais que o convertem

em um ‘menor em situação irregular’ e por isso objeto de uma

intervenção estatal coercitiva, tanto ele como sua família.

(...)

e-) Surge a idéia de que a proteção da lei visa aos menores,

consagrando o conceito de que estes são ‘objetos de proteção’

da norma.

f-) Esta ‘proteção’ freqüentemente viola ou restringe direitos

porque não é concebida desde a perspectiva dos direitos

fundamentais.” (g.n.)

Em virtude da mencionada concepção, que enxerga no menor o objeto da

norma protetiva, ele, enquanto ser incapaz, era despido dos direitos mais básicos

concedidos aos adultos, como os direitos à liberdade, a não ser obrigado a fazer ou

deixar de fazer algo senão em virtude de lei, ao devido processo legal, à ampla defesa

etc., ficando a mercê do “prudente arbítrio” das autoridades constituídas.

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É neste contexto que surge o “juiz de menores”, que devia atuar na

“proteção geral dos menores”, para além da lei, como um “bom pai de família”, com

faculdades ilimitadas e onipotentes de disposição e intervenção sobre as famílias e as

crianças, com amplo poder discricionário. Veja-se, nesse sentido, a literal disposição do

artigo 8º do Código de Menores:

“Art. 8º - A autoridade judiciária, além das medidas especiais

previstas nesta Lei, poderá, através de portaria ou provimento,

determinar outras de ordem geral, que, ao seu prudente

arbítrio, se demonstrem necessárias à assistência, proteção e

vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de

poder” (g.n.)

Todavia, a experiência de anos sob a égide da doutrina da situação

irregular, fez ver que atuação ilimitada dos órgãos estatais, desconectada com

parâmetros mínimos de direitos a serem compulsoriamente observados, ainda que

voltada à suposta proteção dos menores, gerava desigualdades e arbitrariedades, que

mais oprimiam que protegiam essa parcela da sociedade.

Calcada nessa experiência, bem como inspirada no texto da Declaração

Universal dos Direitos da Criança de 1959, a Constituição Federal de 1988, após

afirmar a vigência para todos, sem qualquer tipo de discriminação, dos direitos

humanos fundamentais (art. 1º, inciso III; art. 3º, incisos I e IV; e art. 5º, caput),

introduz no ordenamento jurídico brasileiro, por seu artigo 227, a Doutrina da

Proteção Integral, segundo a qual, as crianças e os adolescentes são considerados

como pessoas em desenvolvimento, dotadas, pois, de todos os direitos e garantias

conferidos aos adultos e mais daqueles necessários para assegurar seu crescimento

saudável.

Reafirmando a adoção deste novo paradigma, o artigo 3º do ECA,

editado em 1990, declara:

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“Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos

fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da

proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,

por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e

facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,

mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e

de dignidade.”

Supera-se, pois, a visão da criança e do adolescente como objetos da

norma protetiva, passando-se a enxergar neles os sujeitos titulares dos direitos

garantidos pela lei.

Em suma, sob essa nova ótica da Doutrina da Proteção Integral, o Estado

deixa de atuar como “tutor de menores”, para atuar como “tutor de direitos”5, posição

pela qual ele, por seus agentes, deixa de intervir no exercício dos direitos postos às

crianças e adolescentes e passa a criar possibilidades para que referido exercício se dê.

Ou seja, ao invés de privar o “menor incapaz”, “em situação de risco” ou

“em situação irregular” do exercício de seus direitos “para protegê-lo”, o Estado, por

força dos novos dispositivos constitucionais e legais, deve adotar postura positiva de

criar meios para que a criança e o adolescente, na qualidade de pessoas em

desenvolvimento, consigam exercer todos os direitos fundamentais.

Reflete bem este modo positivo de atuar do Estado para zelar pela

promoção dos direitos das crianças e adolescentes o artigo 16 da Convenção das

Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, promulgada no Brasil por meio do Decreto

99.710/90, que determina:

“Art. 16.

5 Edson Seda – Artigo: “A Criança e o Afamado Toque De Cidadania” – www.edsonseda.com.br

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1. Nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias

ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio, ou

sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a

sua reputação.

2. A criança tem direito à proteção da lei contra essas

interferências ou atentados.” (g.n.)

No mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente não deixa

margem para quaisquer dúvidas:

“Art. 110. Nenhum adolescente será privado de sua liberdade

sem o devido processo legal.”

Reforçando ainda mais a concepção de que a criança e o adolescente são

pessoas dotadas de todos os direitos inerentes à condição humana, não podendo

sofrer restrições nesses direitos que não partam exclusivamente da constituição e da

lei, o ECA extingue a figura do “juiz de menores” dotado de gama ilimitada de poderes,

traçando o perfil do “juiz da infância e juventude”, que atua para promover os direitos

desta parcela da sociedade, respeitando tais direitos, dentro dos limites legalmente

fixados para sua atuação.

Nesses termos, o antigo poder normativo, extremamente amplo, do

qual dotava o Juízo de Menores é absolutamente incompatível com a atual

normativa vigente no país.

O artigo 149 do ECA, que disciplina o uso das portarias pelo juízo da

Infância e Juventude, está assim estabelecido:

“Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através

de portaria, ou autorizar, mediante alvará:

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I - a entrada e permanência de criança ou adolescente,

desacompanhado dos pais ou responsável, em:

a) estádio, ginásio e campo desportivo;

b) bailes ou promoções dançantes;

c) boate ou congêneres;

d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas;

e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão.

II - a participação de criança e adolescente em:

a) espetáculos públicos e seus ensaios;

b) certames de beleza.

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, a autoridade

judiciária levará em conta, dentre outros fatores:

a) os princípios desta Lei;

b) as peculiaridades locais;

c) a existência de instalações adequadas;

d) o tipo de freqüência habitual ao local;

e) a adequação do ambiente a eventual participação ou

freqüência de crianças e adolescentes;

f) a natureza do espetáculo.

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§ 2º As medidas adotadas na conformidade deste artigo

deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as

determinações de caráter geral.”

Note-se, inicialmente, que não há qualquer autorização legal para que a

autoridade judicial regulamente processo de apuração de ato infracional. O poder

regulamentar mediante portaria se refere unicamente à presença ou participação de

adolescentes nos locais ou eventos trazidos pelo próprio artigo.

Ou seja, o artigo 149 do ECA, proíbe as portarias editadas relativamente

a situações não previstas em seu bojo, bem como as portarias de caráter geral,

porque revogou o poder normativo conferido aos vetustos “juízes de menores”.

Nesse sentido, veja os ensinamentos de Antônio Fernando do Amaral

Filho, trazidos na obra coletiva “Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado –

Comentários Jurídicos e Sociais”, que foi coordenada Munir Cury, editora Malheiros,

10ª edição, pág. 736:

“Não mais se cogita do antigo poder normativo.

Houve coerência e juridicidade ao se extinguir o poder

normativo do art.8º do Código de Menores.

Não é do Judiciário ditar normas de caráter geral, mas decidir,

no caso concreto, a aplicação do Direito objetivo.

Juiz não é legislador, não elabora normas de comportamento

social. Julga os comportamentos frente às regras de conduta

da vida social. Essas geralmente decorrem do processo

legislativo, reservado pela Constituição à outra órbita.” (g.n.)

O mesmo entendimento foi esposado pelo STJ em decisão que revogou

portaria que criava o chamado “toque de recolher”.

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“ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PODER

NORMATIVO DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA. LIMITES. LEI

8.069/90, ART. 149. 1. Ao contrário do regime estabelecido

pelo revogado Código de Menores (Lei 6.697/79), que atribuía à

autoridade judiciária competência para, mediante portaria ou

provimento, editar normas "de ordem geral, que, ao seu

prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência,

proteção e vigilância ao menor" (art. 8º), atualmente é bem

mais restrito esse domínio normativo. Nos termos do art. 149

do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), a

autoridade judiciária pode disciplinar, por portaria, "a entrada e

permanência de criança ou adolescente, desacompanhada dos

pais ou responsável" nos locais e eventos discriminados no

inciso I, devendo essas medidas "ser fundamentadas, caso a

caso, vedadas as determinações de caráter geral" (§ 2º). É

evidente, portanto, o propósito do legislador de, por um lado,

enfatizar a responsabilidade dos pais de, no exercício do seu

poder familiar, zelar pela guarda e proteção dos menores em

suas atividades do dia a dia, e, por outro, preservar a

competência do Poder Legislativo na edição de normas de

conduta de caráter geral e abstrato. 2. Recurso Especial

provido.” (RECURSO ESPECIAL Nº 1.292.143 – SP, RELATOR :

MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCK)

Desse modo, fica claro que a decisão administrativa proferida pelo Juízo

ora apontado como autoridade coatora é inconstitucional e ilegal, tendo o Juízo se

arvorado de competência legislativa, que não lhe pertence.

Ao proceder desta forma, o Juízo viola frontalmente o direito

constitucional ao devido processo legal dos adolescentes residentes na Comarca de

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Urânia ou que porventura sejam lá apreendidos, trazido expressamente no texto

constitucional:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à

vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos

termos seguintes:

(...)

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem

o devido processo legal;” (g.n.)

Outra não é a garantia emanada pelo ECA, como já citado:

“Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao

respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de

desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e

sociais garantidos na Constituição e nas leis.

(...)

Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como

crime ou contravenção penal.”

E o ECA prevê expressa, clara e minuciosamente como deve se dar o

processo de apuração de ato infracional quando da apreensão de adolescente, sem

nenhuma margem para alegação de omissão:

“Art. 171. O adolescente apreendido por força de ordem

judicial será, desde logo, encaminhado à autoridade judiciária.

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Art. 172. O adolescente apreendido em flagrante de ato

infracional será, desde logo, encaminhado à autoridade policial

competente.

Parágrafo único. Havendo repartição policial especializada para

atendimento de adolescente e em se tratando de ato

infracional praticado em co-autoria com maior, prevalecerá a

atribuição da repartição especializada, que, após as

providências necessárias e conforme o caso, encaminhará o

adulto à repartição policial própria.

Art. 173. Em caso de flagrante de ato infracional cometido

mediante violência ou grave ameaça a pessoa, a autoridade

policial, sem prejuízo do disposto nos arts. 106, parágrafo

único, e 107, deverá:

I - lavrar auto de apreensão, ouvidos as testemunhas e o

adolescente;

II - apreender o produto e os instrumentos da infração;

III - requisitar os exames ou perícias necessários à comprovação

da materialidade e autoria da infração.

Parágrafo único. Nas demais hipóteses de flagrante, a lavratura

do auto poderá ser substituída por boletim de ocorrência

circunstanciada.

Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o

adolescente será prontamente liberado pela autoridade

policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua

apresentação ao representante do Ministério Público, no

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mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato,

exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua

repercussão social, deva o adolescente permanecer sob

internação para garantia de sua segurança pessoal ou

manutenção da ordem pública.

Art. 175. Em caso de não liberação, a autoridade policial

encaminhará, desde logo, o adolescente ao representante do

Ministério Público, juntamente com cópia do auto de

apreensão ou boletim de ocorrência.

§ 1º Sendo impossível a apresentação imediata, a autoridade

policial encaminhará o adolescente à entidade de atendimento,

que fará a apresentação ao representante do Ministério Público

no prazo de vinte e quatro horas.

§ 2º Nas localidades onde não houver entidade de

atendimento, a apresentação far-se-á pela autoridade policial.

À falta de repartição policial especializada, o adolescente

aguardará a apresentação em dependência separada da

destinada a maiores, não podendo, em qualquer hipótese,

exceder o prazo referido no parágrafo anterior.

Art. 176. Sendo o adolescente liberado, a autoridade policial

encaminhará imediatamente ao representante do Ministério

Público cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência.

Art. 177. Se, afastada a hipótese de flagrante, houver indícios

de participação de adolescente na prática de ato infracional, a

autoridade policial encaminhará ao representante do

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Ministério Público relatório das investigações e demais

documentos”.

Como se vê, a decisão administrativa proferida pelo Juízo de Urânia

subverte completamente as determinações legais sobre como deve se dar o processo

de apuração de ato infracional.

A decisão estabelece uma “forma alternativa de colocar o adolescente em

contato com a Autoridade Policial”, violando frontalmente o dever de imediata

apresentação de adolescente apreendido em flagrante à Autoridade Policial

competente, no caso, o/a Delegado/a de Polícia (art. 172 do ECA).

Estabelece que a Polícia Militar elabore Boletim de Ocorrência

Circunstanciada e garante a este órgão o poder de decidir pela liberação ou não de

adolescente, competência que pertence ao/à Delegado/a de Polícia e deve se dar nos

termos trazidos pelo ECA (arts. 174/175 do ECA).

Também estabelece que o referido Boletim deve ser encaminhado ao

Juízo e não ao Ministério Público (art. 176 do ECA).

Por fim, também confere à Polícia Militar o poder de analisar a tipificação

do ato infracional, sua gravidade e a necessidade de manutenção da apreensão, caso

em que o mesmo deverá ser encaminhado à autoridade policial. Novamente, trata-se

de juízo que o ECA confere ao/à Delegado/a de Polícia, além de construir um rol de

hipóteses de apreensão diverso daquele trazido pelo ECA (art. 174).

Além disso, o Juízo, por meio de decisão administrativa, subverte

completamente a distribuição constitucional de atribuições às polícias. Dispõe a

Constituição Federal que:

“Art. 174. A segurança pública, dever do Estado, direito e

responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da

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ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,

através dos seguintes órgãos:

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de

carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as

funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais,

exceto as militares.

§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a

preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros

militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a

execução de atividades de defesa civil.”

Da mesma forma, dispõe a Constituição do Estado de São Paulo:

“SEÇÃO II

Da Polícia Civil

Artigo 140 - À Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por

delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito,

incumbe, ressalvada a competência da União, as funções de

polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as

militares.

(...)

§2º - No desempenho da atividade de polícia judiciária,

instrumental à propositura de ações penais, a Polícia Civil

exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à

defesa da ordem jurídica. (NR)

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§3º - Aos Delegados de Polícia é assegurada independência

funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária. (NR)

(...)

SEÇÃO III

Da Polícia Militar

Artigo 141 - À Polícia Militar, órgão permanente, incumbe, além

das atribuições definidas em lei, a polícia ostensiva e a

preservação da ordem pública.”

A decisão do Juízo, no entanto, confere à Polícia Militar atribuições

exclusivas da Polícia Civil, violando, assim, frontalmente o texto constitucional federal

e estadual.

Por fim, de se ter em conta que este Tribunal de Justiça, bem como o

CNJ, já vem tomando as medidas cabíveis para adequação dos processos e

procedimentos em virtude da pandemia atualmente vivenciada pelo país.

Seria uma completa afronta à ordem jurídica que cada Juízo de cada

Comarca estabelecesse um procedimento específico para seu território, causando

verdadeiro caos e insegurança jurídica extrema.

No mesmo sentido, é violação patente à hierarquia do Tribunal que um

Juízo de primeiro grau desrespeite as normas proferidas pelos órgãos mais altos do

Judiciário Paulista, criando um procedimento próprio em violação ao estabelecido

pelos órgãos competentes.

Assim, pelo exposto, a decisão administrativa proferida pelo Juízo de

Urânia é material e formalmente inconstitucional, ilegal e não deve mantida.

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4. DO PEDIDO DE LIMINAR

O fumus boni iuris da medida pleiteada foi devidamente exposto na

presente peça, restando claro que a decisão ora impugnada é formal e materialmente

ilegal e inconstitucional.

Quanto ao perigo de dano irreparável, este fica evidente ao

considerarmos que qualquer adolescente que venha a ser apreendido na Comarca de

Urânia não terá respeitado seu direito ao devido processo legal, podendo ser

processado à revelia das normas estabelecidas pela Constituição Federal e pelo ECA.

Assim, requer-se a concessão da medida liminar a fim de que seja,

imediatamente, suspensos os efeitos da referida decisão.

5. DOS PEDIDOS

Por todo o exposto, requer-se:

a) SEJA CONCEDIDA A ORDEM, LIMINARMENTE, para o fim de

determinar a suspensão dos efeitos da decisão administrativa proferida pelo Juízo da

Comarca de Urânia, até o julgamento do mérito do presente writ;

b) Ao final, SEJA CONCEDIDA A ORDEM PARA CASSAR A REFERIDA

DECISÃO, determinando-se seja respeitado o procedimento previsto pelo ECA, bem

como as normas publicadas por este Tribunal de Justiça e pelo CNJ em relação às

medidas emergenciais relativas à pandemia de COVID-19.

Outrossim, informa-se acerca da previsão legal contida na Lei

Complementar Federal nº 80/1994 (art. 128, inc. I), quanto à necessidade de intimação

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e vista pessoal, de todos os atos processuais, bem como da contagem em dobro dos

prazos.

São Paulo, 27 de abril de 2020.

ANA CAROLINA OLIVEIRA GOLVIM SCHWAN

Defensora Pública do Estado de São Paulo

Coordenadora do Núcleo Especializado da Infância e da Juventude

DANIEL PALOTTI SECCO

Defensor Público do Estado de São Paulo

Coordenador Auxiliar do Núcleo Especializado da Infância e da Juventude

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