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OS PROCESSOS DE LIBERTAO NA AMRICA LATINA E A CONSTRUO DE UMA NOVA ARQUITETURA INTERNACIONAL

David Raby, Universidade de Liverpool

Nos meios da esquerda internacional, e particularmente na Europa, qualquer discusso dos novos governos de esquerda na Amrica Latina parte da constatao de que na Venezuela, na Bolvia, no Equador ou noutros pases afins no h revoluo nem socialismo porque no houve assalto armado ao poder de Estado e boa parte da economia segue em mos do capital privado. Mas ao mesmo tempo, quase todos falam da necessidade de romper velhos esquemas e dogmas e de rever os conceitos de classe, revoluo, estado, etc.

O que resulta praticamente inegvel que os processos de transformao em vrios pases latino-americanos no tm paralelo noutras latitudes, e que num mundo caracterizado pela crescente desigualdade econmica, pela reao poltica, pela explorao intensificada e pela destruio ecolgica, estes processos representam uma esperana e uma fonte de inspirao. Aceite-se ou no o conceito de Socialismo do Sculo XXI, no h dvida de que as realizaes em matria de justia social, de sade, de educao e de protagonismo do Estado no campo econmico so notveis e que at recentemente eram impensveis. O que comeou com Hugo Chvez a partir de 1998 e com maior fora a partir da derrota do golpe reacionrio de 2002 transformou a ideia do que era possvel no mundo unipolar e neoliberal imposto pelo imperialismo com o colapso da Unio Sovitica e do socialismo realmente existente.

necessrio reconhecer que antes de Chvez era praticamente impensvel nacionalizar qualquer indstria rentvel, e que at a palavra socialismo estava quase banida do discurso fora dos partidos comunistas e dos grupos trotskistas cada vez mais marginalizados. Cuba e outros pases que ainda se reivindicavam socialistas eram desqualificados como dinossauros. Francis Fukuyama proclamava o fim da Histria e a terceira via de Tony Blair apresentava-se como a nica alternativa vivel.

No caso venezuelano sem dvida central para o conjunto dos processos latino-americanos necessrio insistir na importncia das medidas implementadas: a re-nacionalizao do petrleo; a nacionalizao de vrias outras indstrias extractivas, manufactureiras e de servios pblicos; as mltiplas misses sociais nos campos da sade, da educao, da distribuio de alimentos e dos servios sociais; a transformao das Foras Armadas e a ruptura poltica e militar com os Estados Unidos; e o protagonismo popular nos Conselhos Comunais e nas Comunas. No por acaso que o derrocamento do governo e da Revoluo Bolivariana ainda uma meta central da poltica regional de Washington.

Ao mesmo tempo certo que grande parte da economia venezuelana segue em mos do capital privado, que a dependncia do petrleo no tem diminudo, e que cada processo eleitoral representa uma ameaa mortal. Para muitos observadores de formao marxista isto seria a confirmao dos perigos do reformismo e da via eleitoral para o socialismo, e que a Venezuela poderia repetir o desastre do Chile de Salvador Allende.

No se pode negar que o perigo de derrota ou de inflexo do processo existe. Mas a experincia da URSS e dos pases socialistas da Europa oriental indica que, mesmo depois de uma revoluo armada e de dcadas de construo de um sistema socialista, o perigo de derrota ou de colapso persiste, que no h nada irreversvel. Em Cuba mantm-se um modelo original e muito valioso de socialismo, mas o debate sobre o futuro do socialismo cubano nas condies actuais no termina. Na Nicargua a revoluo armada e uma dcada de experimentao de democracia popular no foram suficientes para impedir a sabotagem e a derrota (muito embora a experincia tenha deixado bases para uma recuperao do processo nos ltimos anos no contexto mais favorvel da Venezuela Bolivariana e da ALBA, Aliana Bolivariana para os Povos da Nossa Amrica).

A experincia da Nicargua indica um dos pontos fundamentais para uma nova anlise da problemtica revolucionria: que hoje em dia estamos em presena de uma srie de processos populares e revolucionrios interrelacionados. A Venezuela Bolivariana, a Bolvia do MAS e de Evo Morales, o Equador da Aliana Pas e de Rafael Correa, a Nicargua Sandinista renovada, e (a no esquecer) a Cuba Socialista que se mantm e que se integra cada vez mais na nova onda de libertao continental. Tambm necessrio tomar em conta os processos menos radicais mas claramente progressistas noutros pases como o Brasil, a Argentina, o Uruguai, o Chile e El Salvador. muito fcil desqualificar estes processos como reformistas, mas o que fundamental o contexto: um entorno em que a hostilidade do imperialismo a qualquer medida de defesa da soberania e da justia social implacvel, e em que qualquer processo eleitoral se converte numa prova de foras entre o neoliberalismo e os interesses de Washington, por um lado, e o movimento latino-americano de independncia e integrao, pelo outro. Neste contexto notvel a colaborao e o apoio mtuo entre os governos radicais da Venezuela, da Bolvia, etc., e os moderados ou reformistas.

Neste contexto pode ser relevante o velho debate entre estalinistas e trotskistas sobre a possibilidade do socialismo num s pas. Claro que aqui se apresenta outra questo, nomeadamente se existe o que se pode chamar socialismo em qualquer dos pases em estudo: mas a essa discusso chegaremos mais adiante. O que interessa aqui que desde o incio da Revoluo Bolivariana na Venezuela, Chvez insistia na necessidade da extenso do processo a outros pases, e a Venezuela tem sido o epicentro de uma constelao extraordinria e original de novas iniciativas e instituies: a ALBA (Aliana Bolivariana para os Povos da Nossa Amrica), a UNASUL (Unio de Naes Sul-Americanas), a CELAC (Comunidade de Estados da Amrica Latina e das Carabas), Petrocaribe, Petroandina, o Banco do Sul, a emissora Telesur, a Universidade do Sul e outras. Com poucas excepes, os grandes meios de comunicao e os governos do Norte procuram ignorar ou desqualificar estas novas instituies, mas na realidade estamos em presena de uma profunda transformao poltica, econmica e cultural do hemisfrio ocidental.

No que se refere ao debate do socialismo num s pas, muito interessante o argumento do terico cubano Jess Arboleya Cervera. Na sua opinio, as posies tanto de Trotsky como de Estaline eram incorrectas: sim, era possvel comear a construo do socialismo num s pas, mas o internacionalismo e o apoio dinmico dos processos revolucionrios noutros pases (e no s a defesa diplomtica e militar dos interesses da URSS) eram essenciais para a continuao do processo. E o mesmo autor tem uma posio ainda mais interessante (e controversa) sobre a problemtica relacionada com a definio de socialismo: no existe tal coisa como a transio para o socialismo porque o socialismo em si um processo de transio. A caracterstica [essencial] do socialismo o movimento consciente rumo sociedade sem classes... (Arboleya Cervera, 2007: 23, 27; traduo minha).

Quer dizer, tal como dizia no meu livro Democracy and Revolution (Raby, 2006: cap. 3), o que essencial a existncia de um estado de poder popular revolucionrio: uma estrutura poltica em que um governo que representa as classes populares toma o controle das indstrias essenciais de extrao de recursos naturais, que constri ou transforma as Foras Armadas para que estejam ao seu servio, e com um povo mobilizado que o apoie e ao mesmo tempo o pressione para avanar mais. A transformao do aparelho produtivo e das estruturas administrativas um processo prolongado e difcil, e deve ir acompanhado da formao e do aperfeioamento constante de rgos de poder popular.

A partir desta perspectiva possvel analisar os processos actuais na Venezuela e noutros pases de maneira muito mais apropriada. A tomada violenta do poder no uma condio necessria nem suficiente para qualificar um processo de revolucionrio; e tambm a construo do socialismo no se limita nem se identifica necessariamente com a nacionalizao de todos os sectores da economia. O que sim essencial avanar tanto a partir do governo como a partir dos movimentos populares, de cima e de baixo, na transformao de todos as instituies do poder e da vida econmica, social e cultural. Ser necessrio aceitar durante um longo perodo a existncia de um sector econmico privado e de mecanismos de mercado, mas tais mecanismos no devem constituir o imperativo fundamental da poltica econmica.

Na esfera estritamente poltica deve-se aplicar uma estratgia paralela: quer dizer que necessrio e mesmo essencial participar nas eleies, e participar com fora e para vencer, mas sem confiar nos processos eleitorais nem nos votos no parlamento como mecanismos nicos ou suficientes para governar. Neste sentido a estratgia da nova esquerda latino-americana, na qual Hugo Chvez e o Movimento Bolivariano na Venezuela foram pioneiros, de uma guerra de posio gramsciana adaptada s condies da regio e da poca. A estratgia resultou do reconhecimento da inviabilidade da luta armada: que o extraordinrio triunfo cubano s se tinha repetido uma vez, e parcialmente, na Nicargua Sandinista, e que noutros pases s tinha facilitado a militarizao da poltica e a represso implacvel.

Num primeiro momento a concluso de Chvez e seus companheiros foi que se no era possvel fazer a revoluo contra as Foras Armadas, a soluo era fazer a revoluo com elas: quer dizer, a ideia da aliana cvico-militar, que ainda hoje um aspecto fundamental do processo venezuelano. Mas o malogro das duas revoltas de Fevereiro e de Novembro de 1992 convenceu os bolivarianos de que no havia alternativa a uma luta essencialmente poltica pela hegemonia. Era necessrio, sim, ganhar as Foras Armadas para o processo e transform-las progressivamente para que fossem o povo em armas; mas, ao mesmo tempo, era necessrio empreender a luta democrtica e eleitoral.

Neste aspecto, muito embora os bolivarianos da Venezuela e depois os bolivianos, os equatorianos e outros tenham decidido participar nas eleies burguesas, participaram com uma viso claramente revolucionria e de transformao. Quer dizer, no contexto da Nova Ordem Mundial de George Bush Senior, em que o poder hegemnico mundial insistia em s reconhecer governos democrticos, os latino-americanos decidiram aceitar o repto apropriando o conceito da democracia para o povo: ou para ser mais exacto, reapropriando a democracia das elites liberais que a tinham sequestrado e reafirmando o sentido original da palavra, de poder do povo.

A essncia do processo ento a afirmao da legitimidade dos governos populares democraticamente eleitos, e o afianamento desse poder democrtico com a construo de estruturas de poder popular e a transformao de todo o aparelho de Estado. um processo de mobilizao popular constante, fundamentalmente pacfico mas com a disposio de se defender com a fora em qualquer momento em que a oposio os interesses oligrquicos e imperialistas decidam, eles, recorrer violncia. Nas palavras de Emir Sader, nesta terceira estratgia da esquerda latino-americana, no h uma aliana de subordinao aos setores burgueses como houve na estratgia reformista nem o aniquilamento das classes dominantes como foi o caso na estratgia insurreccional; o que se d uma luta prolongada pela hegemonia (Sader, 2011: 138).

Outro elemento essencial desta estratgia o conceito do Poder Constituinte formulado por Antnio Negri (1999) entre outros: a necessidade de uma nova Constituio, no s como documento legal mas como expresso do poder soberano do Povo, e como processo continuado de reformulao do poder de Estado. Na Venezuela, na Bolvia e no Equador o Congresso Constituinte tem sido um elemento-chave do processo de mudana, e a proposta da Constituinte uma demanda dos movimentos populares em vrios outros pases.

A questo militar e a formulao adequada da problemtica da transformao pacfica ou armada central em qualquer anlise dos novos processos latino-americanos. Uma relao cronolgica do processo venezuelano revela claramente que a mudana, mesmo que essencialmente poltica e constitucional, est longe de ser completamente pacfica. Antes pelo contrrio, tem sido marcada por uma srie de enfrentamentos e rupturas violentos: o Caracao de 1989 (revolta popular espontnea esmagada com centenas de mortos), os dois levantamentos militares de 1992, o golpe reaccionrio de Abril de 2002 e a sua derrota, as guarimbas (protestos violentos da oposio) que antecederam o referendo revocatrio de 2004, e as sabotagens e agresses violentas da oposio neste ano de 2014. Tais enfrentamentos so expresses lgicas da raiva de classe da oligarquia e da sua vontade de defender ou restabelecer os seus privilgios (com a ajuda ou mesmo a orientao direta do imperialismo), e como tal so uma prova do carcter revolucionrio do processo, da luta por controlar diferentes elementos do poder de Estado, quer dizer, da guerra de posies prolongada.

Nesse sentido importante lembrar a declarao de Chvez de que esta uma revoluo pacfica mas armada: que as mudanas se fazem democrtica e constitucionalmente, mas se a oposio recorre violncia para impedi-las, o governo vai empregar a legtima fora derivada da vontade popular para se impr. Hoje em dia na Venezuela os militares so em muitos casos os defensores mais fortes da revoluo e do socialismo. Existe sem dvida uma minoria de oficiais reaccionrios solapados, mas o compromisso revolucionrio da maioria parece claro: a formao ideolgica e a experincia do trabalho ao lado do povo nos setores mais necessitados tm transformado a conscincia da tropa e dos oficiais. Chama a ateno o facto de que a oposio tem sido incapaz de mobilizar qualquer apoio militar significativo desde 2002. Isto tem consequncias muito importantes na prtica e tambm no campo terico: quando o monoplio weberiano do uso legtimo da fora est nas mos de socialistas revolucionrios, resulta problemtico afirmar que o Estado venezuelano seja um Estado capitalista em sentido clssico. importante tambm assinalar que muito cedo no seu primeiro mandato o Presidente Chvez cortou os laos militares com os Estados Unidos: em finais de 1999 retirou a autorizao dos vos antinarcticos dos EUA no espao areo venezuelano; em 2001 anunciou a inteno de terminar o acordo IMET de colaborao na formao de oficiais; e anulou um contrato que estava em negociao com a SAIC (Science Applications International Corporation, uma companhia vinculada CIA) para os sistemas informticos das Foras Armadas (Raby, 2011: 161).

O mesmo se pode dizer da Bolvia e do Equador. O processo boliviano tambm se caracteriza por enfrentamentos e roturas violentas, comeando com as chamadas guerras do gs e da gua antes da primeira eleio de Evo Morales e logo com a revolta separatista das oligarquias das provncias orientais em 2008. Tal como na Venezuela, a oposio conseguiu a convocao dum referendo revocatrio em Julho de 2008, mas quando o voto resultou favorvel a Evo a oposio (em coordenao com a Embaixada dos Estados Unidos) comeou uma campanha de assaltos, saqueios e tomadas de edifcios pblicos (Burbach, Fox e Fuentes, 2013: 90-91). Vrios altos oficiais adoptaram uma atitude de insubordinao, mas encontraram uma resistncia categrica por parte dos movimentos sociais e do Presidente Evo Morales, que expulsou o Embaixador de Washington. Como na Venezuela, foi tambm a direita quem recorreu violncia, montando um massacre de camponeses pacficos no Departamento de Pando; e tambm como na Venezuela a maioria da tropa e dos oficiais declarou-se a favor do povo e do Presidente.

Aqui importante assinalar que desde o princpio o Presidente Evo tomou medidas para transformar as Foras Armadas, tal como na Venezuela. Mesmo no sendo ele mesmo militar como Chvez, na sua primeira eleio Evo contava com o apoio de oficiais patriticos, e uma das suas primeiras medidas como presidente foi demitir uns 60 oficiais reaccionrios. Tambm cortou todos os vnculos militares com Washington e reorganizou a Fora Conjunta Anti-Terrorista.

O caso boliviano tambm revelou a importncia da nova arquitectura regional iniciada pela Venezuela com o apoio de outros pases como o Brasil. Na crise separatista de 2008 a recm-formada organizao continental UNASUL emitiu uma declarao categrica apoiando a ordem constitucional e a integridade territorial da Bolvia. A importncia de tais vnculos internacionais tambm se reafirmou em Maio-Junho de 2011 com a inaugurao na Bolvia do CEED (Centro de Estudos Estratgicos da Defesa) para a formao de oficiais de vrios pases da regio, entre eles Venezuela e Cuba. No contexto de um mundo globalizado, defender a soberania nacional, mormente num pequeno pas perifrico, um acto revolucionrio; e se a chave da soberania o controlo da economia, o passo prvio imprescindvel a autonomia militar, o controlo dos meios das foras armadas.

Essas medidas foram essenciais para permitir o passo decisivo, no caso venezuelano, da re-nacionalizao do petrleo, e, na Bolvia, da nacionalizao dos hidrocarbonetos (neste caso principalmente o gs). Mesmo assim foram as medidas de Chvez para reafirmar o controlo pblico da empresa oficial PDVSA que provocaram o golpe de Abril 2002 e a greve patronal de 2002-2003. Est claro que as oligarquias nacionais, mas tambm, e principalmente, as instituies do grande capital internacional o FMI, a OMC, Wall Street, a City de Londres e os centros poltico-militares do imperialismo, o Pentgono, o Departamento de Estado e afins se opem radicalmente aos novos governos latino-americanos. Em certos momentos esto dispostos a negociar com os novos governos, mas na perspectiva de qualquer poder quando se enfrenta com um poder antagnico, na base da realpolitik.

Na realidade, antes da entrada em cena de Hugo Chvez, para o sistema global a hiptese de nacionalizao de qualquer empresa rentvel (no o resgate de um negcio falhado) era tabu. Depois do sucesso de Chvez no caso da PDVSA, e a seguir com outras indstrias venezuelanas, tornou-se possvel de novo expropriar as grandes empresas com base no interesse pblico, mas ainda hoje possvel s quando se tem o apoio de um movimento popular forte e de Foras Armadas autnomas e patriticas. Nesse sentido a situao no nosso mundo globalizado est radicalmente diferente da que existia at a dcada de 1970 quando as nacionalizaes se praticavam com frequncia mesmo na Europa ocidental.

Na Bolvia antes da eleio de Evo as companhias transnacionais apropriavam aproximadamente 82% das receitas do gs e do petrleo, mas agora os nmeros so quase o inverso, o Estado recebe mais ou menos 80%. O Estado tambm nacionalizou algumas concesses mineiras e a maior parte dos sectores eltrico e de telecomunicaes. Promove alis pequenas empresas pblicas em vrias indstrias (minrio de ouro, processamento de alimentos, produo de papel) com a inteno de convert-las em empresas comunitrias (Burbach, Fox & Fuentes, 2013: 85).

No contexto nacional, e principalmente internacional, com o predomnio acentuado do capital financeiro globalizado, o papel do Estado na Bolvia e na Venezuela de facto anti-capitalista. No se trata de eliminar de golpe e de raiz qualquer elemento capitalista, longe disso; mas sim de avanar na afirmao de valores e de estruturas nacionais, sociais e no-capitalistas, na construo dos cimentos de um novo sistema. O Estado neste contexto tem a funo de promover, facilitar e proteger espaos e estruturas de economia socializada e de poder popular, e ao mesmo tempo depende da fora do movimento popular e da democracia interna para se manter e para continuar a avanar. Por isso no tem sentido (des)qualificar um governo deste tipo como reformista, mas sim tem sentido, e necessrio, criticar as suas limitaes e deficincias porque s com a crtica e a presso constante que pode avanar. A formao de governos de poder popular revolucionrio, a luta constante pela transformao do Estado e a criao de estruturas de economia socializada: isto o socialismo dos nossos dias, o Socialismo do Sculo XXI.

Outro aspecto fundamental dos novos processos a construo de novas formas de propriedade social no-estadais: as cooperativas, as empresas auto-geridas, os conselhos comunais e as comunas. Algumas grandes indstrias precisam de ser nacionalizadas e o papel do Estado na gesto global da economia imprescindvel, mas ao contrrio dos velhos modelos socialistas do sculo XX as novas experincias procuram promover o protagonismo popular de todas as maneiras possveis.

Aqui tambm onde se torna necessrio voltar ao aspecto internacional do processo de mudana. O facto de que existem j trs processos nacionais que se podem qualificar de revolucionrios a Venezuela, a Bolvia e o Equador vinculados a dois processos de renovao de revolues anteriores (Cuba e Nicargua) e que tm alis a colaborao de outros governos de esquerda moderada como o Brasil, o Uruguai, a Argentina e outros tem sido fundamental na defesa de cada um dos processos em momentos crticos. Quando houve a greve patronal na Venezuela em 2002-2003 o Brasil mandou petrleo em solidariedade com o governo de Chvez, e como j referimos, quando o golpe separatista na Bolvia em 2008 a UNASUL tomou uma posio categrica a favor de Evo Morales. Quando a Colmbia violou o territrio equatoriano num ataque s FARC em Maro de 2009, a UNASUL tambm tomou uma posio clara de apoio ao Equador e de condenao Colmbia.

Convm tambm prestar mais ateno ao funcionamento da nova arquitetura regional e seu impacto nas relaes regionais e mesmo globais. A organizao mais radical e ambiciosa a ALBA, proposta por Hugo Chvez em 2001 e inaugurada em Dezembro de 2004 pela Venezuela e por Cuba. A Bolvia afiliou-se em 2006, pouco depois da primeira eleio de Evo Morales, seguida da Nicargua, do Equador, das Honduras e quatro pequenos pases anglfonas das Carabas (Honduras retirou-se depois do golpe de direita contra o Presidente Manuel Zelaya em 2009). A Bolvia apresentou novas propostas para ajudar os pases mais pobres do agrupamento, e assim a designao oficial tornou-se ALBA-TCP (Tratado de Comrcio dos Povos).

A ALBA no um acordo de livre comrcio, nem to pouco um mercado comum. um acordo de colaborao econmica, social, cultural e poltica fundada nos princpios de comrcio justo, benefcio mtuo, justia social e sustentabilidade ecolgica. Incorpora muitos acordos especficos, principalmente entre Estados e empresas pblicas dos respectivos pases, mas tambm empresas privadas e sociais. Por exemplo, o intercmbio entre Cuba e Venezuela de servios mdicos cubanos por petrleo; mas tambm o financiamento favorvel por parte da Venezuela duma nova refinaria petroleira em Cuba e a melhoria da agricultura venezuelana do acar e do arroz com tecnologia cubana. Alis importante reconhecer que a ALBA no se limita aos Estados afiliados como scios plenos: existem muitos acordos bilaterais na esfera da ALBA com outros pases. Assim em 2005 a Venezuela assinou um acordo com a Argentina para a construo de navios petroleiros em estaleiros argentinos e a compra de touros cobridores argentinos para melhorar a qualidade do gado venezuelano. Da mesma maneira a Venezuela comprou cimento ao Uruguai em troca de petrleo. Nenhum destes acordos se teria assinado pelos princpios do livre mercado, os produtos no eram os mais baratos ou rentveis: os estaleiros argentinos estavam abandonados; no caso uruguaio as cimenteiras so a mais importante indstria manufactureira desse pequeno pas agrcola e o contrato venezuelano ajudou a salvar a indstria.

Outro elemento da ALBA so as Empresas Grannacionais (EG), novas empresas bi- ou multinacionais de colaborao entre empresas do sector pblico dos respectivos pases. J existem catorze empresas deste tipo acordadas entre Cuba e Venezuela, em sectores to diversos como a medicina, a petroqumica, a tecnologia agrcola, o turismo, a pesca, as telecomunicaes e os transportes. Mas existem algumas EG que operam em vrios dos pases associados e tambm noutros pases que no so ainda scios da ALBA. Funcionam na base da promoo da soberania, particularmente nos campos energtico, alimentar e das finanas (Aponte-Garca 2013: 122-133).

Outra instituio ligada ALBA a Petrocaribe, uma associao entre a Venezuela e 18 pases das Carabas e Amrica Central. Petrocaribe apresentado nos meios de comunicao simplesmente como a proviso de petrleo barato pela Venezuela, mas muito mais do que isso: compreende o financiamento do Fondo ALBA-Caribe que tem financiado muitos projectos de desenvolvimento: da educao rural no Belize reconstruo do mercado central de Port-au-Prince, no Haiti, da construo de casas na Dominica, expanso do aeroporto de Antigua e melhoria da infra-estrutura elctrica em vrios pases. O impacto no Haiti tem sido to grande que mesmo o actual Presidente Michel Martelly (de direita) pediu um acordo especial com a ALBA porque reconhece que o valor recebido maior que qualquer ajuda por parte dos Estados Unidos.

Finalmente existe dentro da ALBA um Conselho dos Movimentos Sociais que procura promover a colaborao entre actores no-estatais dos diferentes pases de toda a regio. evidente que se torna difcil a articulao entre os movimentos sociais e os governos, mas o facto de que o projecto existe indica at que ponto a ALBA quer transformar de raiz as relaes entre os pases. Juntamente com outras organizaes como a UNASUL, o MERCOSUL e a CELAC, a ALBA-TCP um exemplo do que se tem categorizado como o novo regionalismo estratgico, um projeto de integrao contra-hegemnica (Muhr 2013) que tem como meta final a mudana total das regras do jogo internacionais. Nesse sentido a nova arquitetura regional que tem a ALBA-TCP como fulcro central tendencialmente socialista e procura uma mudana de valores a nvel internacional.

As implicaes desta anlise so vrias. Primeiro, significa que no tem sentido promover um nvel de actuao ou de luta excluso dos outros. A luta poltica pela defesa dos governos de Nicols Maduro na Venezuela, de Evo Morales na Bolvia ou de Rafael Correa no Equador tem toda a validade; mas igual valor tm as lutas dos indgenas pela autonomia e pelos territrios ancestrais em cada um desses pases ou dos sindicatos pelas melhorias salariais e de condies de trabalho. A aliana diplomtica de todos os pases da regio na CELAC e na velha OEA (Organizao dos Estados Americanos) pela incluso de Cuba e o fim do bloqueio imposto por Washington tambm tem plena validade. Tambm resulta necessrio, at essencial neste contexto, apoiar a reeleio de governos menos radicais mas progressivos e identificados com a nova constelao regional de foras como o de Dilma Rousseff no Brasil e de Cristina Kirchner na Argentina. Todos estes nveis de actuao so necessrios e fazem parte de uma estratgia combinada, a guerra de posies gramsciana a nvel internacional, ou o que Muhr qualifica de guerra global e pluriescalar de posies (Muhr 2013: 7). O avano combinado de todos estes processos latino-americanos vai abrindo espao e no antes de tempo - a nvel global para uma nova poltica com perspectivas radicalmente diferentes das do capitalismo neoliberal e ecocida hegemnico. J existem indcios de que comeam a surgir projectos inspirados no exemplo latino-americano nalguns pases europeus, fenmeno que s pode ser uma fonte de esperana num continente onde predomina a austeridade, a reao e o avano da extrema-direita.

BIBLIOGRAFIA

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