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CARTOGRAFIAS SONORAS: DO OLHAR FIXO PARA A ESCUTA NÔMADE
C. B. O. Ferraz (a)
(a) Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP e coordenador do Grupo de Pesquisa Linguagens Geográficas, [email protected]
Resumo
Este texto apresenta os referenciais com os quais visamos desenvolver o projeto “Cartografias Sonoras: sons/imagens na dinâmica espacial de Dourados (MS) – possibilidades para o ensino e pesquisa em Geografia”, aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para o período 2014-2015. O projeto visa a elaboração de novas formas cartográficas a partir da diversidade sonora constituidora da multiplicidade espacial da cidade de Dourados (MS). Para tal, fomos buscar nos estudos e trabalhos feitos por Gilles Deleuze e Felix Guattari, e de pesquisadores que os têm como referência, os parâmetros para se produzir e experimentar obras imagético-sonoras que promovam derivas minoritárias na linguagem cartográfica hegemônica, abrindo possibilidades para outros pensamentos e imagens espaciais pela linguagem científica da geografia.
Palavras chave: Sonoridade; Imagem; Cartografia; Linguagem; Geografia.
1.Introdução
O projeto de pesquisa “Cartografias Sonoras: sons/imagens na dinâmica espacial de Dourados
(MS) – possibilidades para o ensino e pesquisa em Geografia” se encontra em fase inicial de
desenvolvimento, portanto, o texto aqui não vai discorrer sobre os resultados da pesquisa, mas
visa pontuar os referenciais teóricos que fundamentam os parâmetros políticos e
epistemológicos com os quais nos localizamos no contexto de se pensar a linguagem científica
da geografia a ser experimentada com o referido projeto.
O projeto se justifica pela articulação de ações locais, que objetiva viabilizar, no contexto do
polo Dourados junto a Rede Imagens, Geografias e Educação. A Rede a qual está vinculado
congrega pesquisadores de instituições de ensino superior, grupos e laboratórios de ensino e
pesquisa de vários pontos do território brasileiro e latino-americano, na direção de experimentar
novos pensamentos e ações quanto a linguagem geográfica no trabalho com imagens e o ensino
de geografia. No interior desta Rede, o polo Dourados tem sua área de atuação a partir do
Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados, no
Mato Grosso do Sul. Dourados é uma cidade média, de uns 200 mil habitantes, localizada na
porção sul da região Centro-Oeste brasileira, dita uns 120 km da fronteira com o Paraguai e é a
segunda maior cidade do estado.
Por estar localizada numa faixa de fronteira e por ser produto de um processo de ocupação
relativamente recente (fundada em 1935), fruto da expansão da fronteira agrícola, a cidade de
Dourados apresenta uma diversidade cultural singular, resultado de levas migratórias de
paraguaios, de brasileiros de várias regiões do país, além de japoneses, libaneses e,
principalmente, da forte presença indígena, que aí já se encontrava ou migrou devido a perda de
suas terras originais. Essa diversidade se manifesta numa paisagem em que se tensionam os
referenciais cosmopolitas e internacionais da indústria cultural frente a processos locais de
busca de identidade e de afirmação, muitas vezes marginal, de suas diferenças. Dentre as muitas
possibilidades de experimentar/vivenciar essas diferenças, destacamos aqui o elemento sonoro
como um fenômeno marcante desse lugar.
Para quem se encontra nessa cidade não há como deixar de ser afetado por uma variedade de
sons que musicalmente se territorializa em ritmos como guarânias, sertanejo universitário, funk
carioca, rap, pagodes românticos, músicas de raízes regionais, diferentes tendências do rock e
do pop (nacional e internacional), cantos guaranis, bossa-nova etc. A variedade sonora do
elemento musical se torna ainda mais complexa com a caoticidade do mundo urbano (o barulho
dos motores dos veículos e a cadência das patas dos cavalos puxando as carroças; sons
amplificados pelos autofalantes perante os berros dos vendedores ambulantes; os cantos das
inúmeras aves e os latidos histriônicos dos cães; o ranger dos pedais de milhares de bicicletas e
os escapamentos ansiosos das motocicletas; os sotaques variados das falas e o cantar desafinado
nos cultos religiosos etc.)
Esse caos sonoro expressa o mundo ali acontecendo enquanto lugar, estabelece os diferentes
usos e vivências territoriais com os quais a cidade se regionaliza, as diferentes formas espaciais
do fenômeno urbano, ou seja, sua paisagem múltipla, fragmentada e tensionamente articulada.
Para entender essa dinâmica espacial, os estudos geográficos empregam referenciais conceituais
e metodológicos que almejam capturar essa multiplicidade e colocar a mesma em parâmetros
uniformemente lógicos, viabilizando assim a representação desse mundo numa dada imagem
cartográfica, a qual fixa a localização e a extensão dos elementos selecionados como
fundamentais para estabelecer a forma verdadeira daquele local, delimitando numa determinada
escala aquilo que é pertinente de ser visto e entendido como a realidade ali visualizada (Girardi,
2009; Cartwright, Gartner & Lehn, 2009). Contudo, a força contingencial do nomadismo sonoro
tende a escapar dessa idealização normatizadora da representação cartográfica. Instaura-se a
crise, pois se percebe que a maior parte do mundo sonoramente reverberado no urbano
encontra-se no fora do que se é representado (Santos, 2004). Rizomaticamente surge o desejo
por outras cartografias.
2.De uma ciência que fixa verdades para uma cartografia de sentidos nômades
Como conseguir abordar esse fora da representação cartográfica? A crise decorrente desse
limite da linguagem cartográfica pode ser resolvida por outras formas de representação da
realidade (novas tecnologias e programas computacionais)? O mundo pode ser representado em
sua totalidade pela cartografia?
Tentar responder essas perguntas partindo da perspectiva de articular uma resposta para cada
questão, visando assim solucionar o problema que cada uma delas coloca, é incorrer num
trabalho de Sísifo. É insistir na tradição de um pensamento arbóreo mancomunado com a
metafísica da verdade, do desejo de verdade, e isso faz com que o pensar seja algo em separado
do mundo e sobre ele deve codificar o entendimento correto e único, ou seja, o mundo deve em
sua realidade expressar o que se diz e se pensa sobre ele (Deleuze, Guattari, 1992; Deleuze,
Parnet, 2004). Em tal concepção a multiplicidade deve ser contida em um conjunto de
elementos passível de mensuração, estabelecendo uma dada hierarquia entre os processos e
fenômenos por meio de uma leitura fundamentada na ideia de desenvolvimento via causa-efeito,
o qual estabelece o modelo com o qual o real deve atender as normas estabelecidas pelo
pensamento linearmente quantificador e nomeador, sobrecodificando e uniformizando o mundo
(Moura, Hernandez, 2012; Passos, Kastrup & Escóssia, 2012).
Quando a dinâmica caótica do mundo não atende ao padrão lógico-discursivo desse
pensamento, pautado na busca de normatividade sem contradições, tudo que escapa, do que está
fora dessa forma tomada como a única maneira de se pensar, passa a ser ignorado, por ser
considerado erro e algo menor, ou eliminado, por ser considerado danoso para a forma
entendida como normal, correta e superiora de se viver. Nesse contexto, o discurso maior da
ciência geográfica reproduz essa prática de se pensar o mundo visando organizá-lo em padrões
territoriais precisos, rigorosamente divididos, nomeados, mensurados, classificados e fixados
em modelos e representações cartográficas (Passos, Kastrup & Escóssia, 2012). Quando se
instauram problemas no território, ou seja, aquilo que estava fora rizomaticamente irrompe em
dado lugar, a solução empregada é mapear com maior rigor, fazendo uso de tecnologias mais
precisas capaz de identificar a forma definitiva do fenômeno, para assim elaborar soluções
planejadas de como intervir (Cartwright, Gartner & Lehn, 2009).
Os elementos de intervenção devem partir da identificação da causa que gerou aquele efeito
problemático, para assim elaborar uma resposta, uma solução definitiva para o problema, de
maneira que o território possa ser cada vez mais controlado e usado conforme os interesses dos
que pensam e dominam o mesmo. Mas na dinâmica espacial do mundo algo sempre escapa, é o
fora que provoca rasuras e linhas de fuga ao que se acreditava controlado; aquilo que escapa é o
que se atualiza em novos problemas nesse território idealmente organizado (Deleuze, Guattari,
1995). O fora é a virtualidade a fazer da vida um movimento nômade constante e em aberto. A
cartografia aí não consegue representar a totalidade idealizada em um mundo sobrecodificado,
uniformemente normatizado, não consegue delimitar o fora, localizando-o numa representação
definidora de seu comportamento, de maneira que a racionalidade classificadora do discurso
científico se sinta em condições de controlar.
Diante desse impasse, a postura mais indicada é não ficar na crença de solucionar o problema
via incorporação de outra metodologia ou ferramenta de pesquisa com maior eficiência
tecnológica, capaz assim de resolver a inconveniência dos limites da representação cartográfica,
pois não é uma questão de método mais correto ou de ferramenta metodológica mais precisa
(Girardi, 2009). A questão é entender o mundo como múltiplo, complexo e nômade, não
passível de ser fixado em modelos e normas uniformizadoras, por mais que essas construções
possam auxiliar a estabelecer certa imagem mais estável da dinâmica espacial do mundo. Isso
não significa abrir mão dessas formas de representação, mas assumir que elas sempre terão
limites, principalmente frente a um ideal de controle territorial (Oliveira Jr., 2012). O caminho
passa então a ser de se abrir para outras possibilidades de pensar e recriar não só a cartografia,
mas a própria concepção de ciência. Uma perspectiva de ciência cujo discurso não se paute na
vontade de verdades dogmáticas e fixamente essencializadoras do real, mas um pensar que se
coloque como criador de novos sentidos no próprio encontro com o mundo, como imanente ao
mundo enquanto acontecimento da vida (Ferraz, 2013).
Portanto, uma cartografia que não visa soluções definitivas dos problemas, os quais só são
problemas a partir de uma perspectiva de pensamento que se angustia por não conseguir dar
conta da totalidade, aquele que elabora respostas visando satisfazer a idealização de fixar a
uniformidade de entendimento absoluto e se frustra com a nomadização múltipla e
diferenciadora da vida; uma cartografia que se coloca no contexto dos próprios processos de se
pensar e viver o mundo, pois viver é também questionar tanto as opiniões já dadas como
verdades, quanto escapar de respostas universalmente redentoras. Uma cartografia que não
busca revelar a essência de como o mundo deve ser, mas passe a inventar linguagens capazes de
expressar como ele acontece em sua multiplicidade nômade e diferenciadora.
“entender”, para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar. Para ele não há nada em cima - céus da transcendência -, nem embaixo - brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem (Rolnik, 2006, p. 2).
Nesse aspecto, não mais estabelecer representações fixas como decalques metafisicamente
idealizados de reprodução da realidade, ou seja, não se busca explicar ou revelar a essência
verdadeira do real, mas criar obras que possam afetar a sensibilidade (uma “geografia dos
afetos”) para a dinâmica fragmentária e múltipla da espacialidade, uma cartografia que busque e
expresse sentidos espaciais nômades (Santos, 2004).
3. Da fixação imagética para o nomadismo sonoro
Visando experimentar tal possibilidade é que o projeto “Cartografias Sonoras: sons/imagens na
dinâmica espacial de Dourados” foi pensado. É uma postura política frente os referenciais
hegemônicos (maior) de ciência e de cartografia. A postura não é negar o que se tem de
cartografia representacional sobre a cidade, mas buscam-se linhas de fuga perante essa
concepção que se coloca como a única forma científica de se fazer cartografia; objetiva-se
experienciar cartografias menores, ou seja, outras possibilidades de linguagem cartográfica
(Barbosa, 2012; Oliveira Jr., 2012), linguagens não restritas a lógica da representação imagética
do território em seus referenciais tecno-cientificistas, que não fique restrita a fixação numa
escala de um elemento espacial, mas que busque o sentido de criação artística de outras
possibilidades de apresentar a dinâmica espacial do mundo (Cartwright, Gartner & Lehn, 2009).
A prática maior da cartografia entendida como científica, que tem como referencial a concepção
de fixar a imagem do território numa representação matematizável do real, é a de estabelecer
um olhar imóvel e selecionador dos fenômenos a serem representados. Nossa intenção aqui é, a
partir dessa concepção já consagrada, buscar experimentar outras formas de cartografar,
desestabilizadoras dessa concepção, ou seja, de “... aprender o movimento que surge da tensão
fecunda entre fluxo e representação: fluxo de intensidades escapando do plano de organização
de territórios, desorientando suas cartografias, desestabilizando suas representações” (Rolnik,
2006, p. 3); para tal, vamos buscar na sonoridade urbana a potência da mobilidade em uma
cartografia que agencia imagens e sons a partir de uma escuta nômade (Santos, 2004).
O que embasa essa experimentação é o referencial agenciado a partir das obras de Gilles
Deleuze e Felix Guattari, assim como por pesquisadores que abordaram e exercitaram os
conceitos desses dois pensadores em estudos voltados para o diálogo com as artes imagéticas,
sonoras e a linguagem cartográfica (Santos, 2004; Cartwright, Gartner & Lehn, 2009; Barbosa,
2012; Oliveira Jr., 2012; Moura, Hernandez, 2012), ou seja, estabelecer uma geografia de
intensidades que se referencia na força e mobilidade dos corpos enquanto meio espacial.
Os mapas são mapas de intensidade; a geografia, além de ser uma física em movimento, é mental e corporal [...]. Não é nunca o princípio ou o fim que são interessantes, o princípio e o fim são pontos. O interessante é o meio (Deleuze, Parnet, 2004, p. 53-54).
A cartografia, a partir dessa perspectiva, busca elaborar mapas de intensidades do meio em que
o movimento dos corpos (seus pensamentos, sentimentos e processos de criação) se dá enquanto
vida. Nesse sentido, a pesquisa visa experimentar a linguagem cartográfica por uma geografia
que aborda o fenômeno urbano a partir da intensidade dos corpos sonoros, exercitando uma
escuta nômade em uma espacialidade que foge das tentativas de fixar o território em modelos de
representação visual (Santos, 2004). Como indica Suely Rolnik (1989), o sentido da cartografia
não é aquele de explicar e apresentar uma solução para o problema sonoro, como se assim o
espaço voltasse a uma normalidade ideal para ali permanecer fixado em uma paisagem sem
problemas e tensões, sem movimento, ruídos ou sujeira, ou seja, sem vida. A questão não é essa,
mas exercitar a escuta nômade no contexto da dinâmica múltipla e tensa da espacialidade. Essa
sonoridade caótica da cidade é a força que incita e reverbera a criação de caminhos, linhas de
fuga, trilhas marginais, linguagens como pontes capazes de expressar outros sentidos do viver –
um pouco de possível em meio ao turbilhão da sonoridade espacial.
Para expressar essa caoticidade do espaço urbano, a partir de sua sonoridade, o encontro com as
linguagens artísticas, notadamente as imagéticas (vídeos e fotografias, mas também desenhos e
grafites), será o elemento desafiador e potencializador da criação de novas cartografias. Aposta-
se aqui na criação de imagens sonoras que forcem o pensamento a se desterritorializar do
entendimento uniformizador e busque expressar a multiplicidade poética de sensibilidades em
construção/destruição/criação do viver numa cidade, num lugar qualquer.
4.Bibliografia
Barbosa, C. (2012). Cartografias escolares: o vídeo como mapa aberto. Campinas, SP. Disponível em: www.geoimagens.net . Acedido em 4 de junho de 2014.
Cartwright, W., Gartner, G. & Lehn, A. (eds.) (2009). Cartography and Art.. Berlin: Springer-Verlag
Deleuze, G., Guattari, F. (1992). O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34.
Deleuze, G., Guattari, F. (1995). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. Rio de Janeiro: Editora 34.
Deleuze, G., Parnet, C. (2004). Diálogos. Lisboa: Relógio d’água editores.
Ferraz, C. B. O. (2013). O Capital no cinema: as diferenças entre linguagens e as possibilidades geográficas. In Cazetta, V., Oliveira Jr., W. M. (eds.). Grafias do espaço: imagens da educação geográfica contemporânea. (pp. 109-142). Campinas, SP. Editora Alínea.
Girardi, G. (2009). Mapas desejantes: uma agenda para a Cartografia geográfica. Pro-Posições, Campinas, SP, 20 (60), 147-157.
Moura, C. B., Hernandez, A. (2012). Cartografia como método de pesquisa em arte. Disponível em:http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Arte/article/viewFile/1694/1574 [Acedido em 30 de maio de 2014].
Oliveira Jr., W. M. (2012). Mapas em deriva - imaginação e cartografia escolar. Geografares: Revista do Mestrado e do Departamento de Geografia, Centro de Ciências Humanas e Naturais (UFES). Vitória, ES. 11/12, 1-49.
Passos, E., Kastrup, V. & Escóssia, L. (Eds). (2012). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina.
Rolnik, S. (2006). Cartografia Sentimental - transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade.
Rolnik, S. (1989). Cartografia ou de como pensar com o corpo vibrátil. Disponível em: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/pensarvibratil.pdf [Acedido em 2 de junho de 2014].
Santos, F. C. (2004). Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua. São Paulo: EDUC/FPESP.