23
A Balada do Cárcere de Reading Oscar Wilde « Tradução de Paulo Vizioli I O casaco escarlate não usou, pois tinha De sangue e vinho o jeito; E sangue e vinho em suas mãos havia quando Prisioneiro foi feito, Deitado junto à mulher morta que ele amava E matara em seu leito. Ao caminhar em meio aos Julgadores, roupa Cinza e gasta vestia; Tinha um boné de críquete, e seu passo lépido E alegre parecia; Mas nunca em minha vida vi alguém olhar Tão angustiado o dia. Eu nunca vi alguém na vida que tivesse Tanta Angústia no olhar, Ao contemplar a tenda azul que os prisioneiros De céu usam chamar, E as nuvens à deriva, que iam com as velas Cor de prata pelo ar. Num pavilhão ao lado, andei com outras almas Também a padecer, Imaginando se seu erro fora grave Ou um erro qualquer, Quando alguém sussurrou baixinho atrás de mim: ?O homem tem que pender.? Cristo! As próprias paredes da prisão eu vi Girando a meu redor E o céu sobre a cabeça transformou-se em elmo De um aço abrasador; E, embora eu fosse alma a sofrer, já nem sequer Sentia a minha dor. Sabia qual o pensamento perseguido Que lhe estugava o andar, E por que demonstrava, ao ver radiante o dia, Tanta angústia no olhar; O homem matara a coisa amada, e ora devia Com a morte pagar. Apesar disso - escutem bem - todos os homens Matam a coisa amada; Com galanteio alguns o fazem, enquanto outros Com face amargurada; Os covardes o fazem com um beijo, Os bravos, com a espada! Um assassina o seu amor na juventude, Outro, quando ancião; Com as mãos da Luxúria este estrangula, aquele Empresta do Ouro a mão; Os mais gentis usam a faca, porque frios Os mortos logo estão. Este ama pouco tempo, aquele ama demais; Há comprar, e há vender; Uns fazem o ato em pranto, enquanto que um suspiro Outros não dão sequer. Todo homem mata a coisa amada! - Nem por isso Todo homem vai morrer. Não vai morrer um dia a morte de vergonha Num escuro traspasso; Nem há de Ter um pano a lhe cobrir o rosto, E no pescoço um laço;

Wilde - Contos e Poemas

Embed Size (px)

DESCRIPTION

wilde

Citation preview

Page 1: Wilde - Contos e Poemas

A Balada do Cárcere de Reading

Oscar Wilde «

Tradução de Paulo Vizioli

I

O casaco escarlate não usou, pois tinhaDe sangue e vinho o jeito;E sangue e vinho em suas mãos havia quandoPrisioneiro foi feito,Deitado junto à mulher morta que ele amavaE matara em seu leito.

Ao caminhar em meio aos Julgadores, roupaCinza e gasta vestia;Tinha um boné de críquete, e seu passo lépidoE alegre parecia;Mas nunca em minha vida vi alguém olharTão angustiado o dia.

Eu nunca vi alguém na vida que tivesseTanta Angústia no olhar,Ao contemplar a tenda azul que os prisioneirosDe céu usam chamar,E as nuvens à deriva, que iam com as velasCor de prata pelo ar.

Num pavilhão ao lado, andei com outras almasTambém a padecer,Imaginando se seu erro fora graveOu um erro qualquer,Quando alguém sussurrou baixinho atrás de mim:?O homem tem que pender.?

Cristo! As próprias paredes da prisão eu viGirando a meu redorE o céu sobre a cabeça transformou-se em elmoDe um aço abrasador;E, embora eu fosse alma a sofrer, já nem sequerSentia a minha dor.

Sabia qual o pensamento perseguidoQue lhe estugava o andar,E por que demonstrava, ao ver radiante o dia,Tanta angústia no olhar;O homem matara a coisa amada, e ora deviaCom a morte pagar.

Apesar disso - escutem bem - todos os homensMatam a coisa amada;Com galanteio alguns o fazem, enquanto outrosCom face amargurada;Os covardes o fazem com um beijo,Os bravos, com a espada!

Um assassina o seu amor na juventude,Outro, quando ancião;

Com as mãos da Luxúria este estrangula, aqueleEmpresta do Ouro a mão;Os mais gentis usam a faca, porque friosOs mortos logo estão.

Este ama pouco tempo, aquele ama demais;Há comprar, e há vender;Uns fazem o ato em pranto, enquanto que um suspiroOutros não dão sequer.Todo homem mata a coisa amada! - Nem por issoTodo homem vai morrer.

Não vai morrer um dia a morte de vergonhaNum escuro traspasso;Nem há de Ter um pano a lhe cobrir o rosto,E no pescoço um laço;Nem através do chão vai atirar os pésPara o vazio do espaço.

Não vai sentar-se, noite e dia no silêncio,Com uma guarda tesaQue há de vigiá-lo quando tenta o prantoE quando tenta a reza;Sempre a vigiá-lo, para que não roubeDa prisão sua presa.

Não vai na aurora despertar com vultos hórridosCruzando o seu umbral:O tiritante Capelão todo de branco,O Xerife espectral,E o Diretor, de negro luzidio, e a caraDo Juízo Final.

Nem vai vestir, com pressa comovente, as roupasDe almas condenadas,Enquanto um médico boçal exulta, e anotaSuas torções crispadas,Manuseando o relógio com um tique-taqueDe horríveis marteladas.

Nem, a arear-lhe a garganta, vai sentir aflitoA sede que antecedeO carrasco, enluvado como um jardineiro,Que vem junto à paredeE ata-o com três correias, para que a gargantaNão sinta mais a sede.

Nem curvará a cabeça para ouvir o OfícioFúnebre ser lido;Nem, enquanto o terror lhe diz dentro do peitoNão ter ele morrido,Com seu caixão há de cruzar, ao se moverPara o estrado temido.

Nem através de um teto vítreo vai fitarO espaço azul... lá atrás;Nem com lábios de argila um dia vai rezarPara implorar a paz;

Page 2: Wilde - Contos e Poemas

Nem, por fim, vai sentir em sua face trêmulaO beijo de Caifás.

II

Nosso guardião passeou no pátio seis semanasO cinza ainda vestia.Com seu boné de críquete e seu passo lépidoQue alegre parecia;Mas nunca em minha vida vi alguém olharTão angustiado o dia.

Eu nunca vi alguém na vida que tivesseTanta angústia no olhar,Ao contemplar a tenda azul que os prisioneirosDe céu usam chamar,E as nuvens divagantes arrastando velosEnredados pelo ar.

Não contorcia as mãos, como o imbecil que tentaNutrir, com cego afã,No antro do negro Desespero, essa enjeitadaQue é a Esperança vã;Ele apenas se punha a contemplar o sol,Sorvendo o ar da manhã.

Não contorcia as mãos, e nunca, fraco ou frouxo,Chorava em seu alinho,Mas o ar, como se fosse anódino saudável,Sorvia ali, sozinho;E, com a boca aberta, ele sorvia o solComo se fosse vinho!

E, no outro pavilhão, eu e as demais almasTambém a padecer,Tendo esquecido se nosso erro fora graveOu um erro qualquer,Olhávamos entanto, com obtuso espanto,Aquele que ia pender.

E estranho era notar, passando, como lépidoE alegre parecia;E estranho era observar o modo como olhavaTão angustiado o dia;E estranho era pensar como era grande a dívidaQue ele pagar devia.

O olmo e o carvalho têm folhagens agradáveis,Primaveril tributo;Já a forca, onde a serpente finca embaixo o dente,É uma árvore de luto,E, verde ou ressequida, lá se perde a vidaBem antes que dê fruto.

O mundano procura algum lugar na alturaComo o maior troféu;Mas quem vai ao encalço do alto cadafalsoE da corda do réu,Para enxergar por uma gola de assassinoA última vez o céu?

Se brilham vida e amor ao som de violinosÉ doce e bom dançar;Dançar seguindo a pauta do alaúde ou flautaÉ ameno e singular;Não é doce, ao revés, quando com ágeis pésSe dança encima do ar!

Com mórbida suspeita, em curiosa espreita,O olhamos dia a dia,Cada um também assim a imaginar seu fim,Por que ninguém sabiaQual rubro inferno horrível sua não visívelAlma atormentaria.

Não mais, por fim, o morto caminhava em meioAos Julgadores seus,E eu sabia que estava na terrível jaulaCom o banco dos réus,E que seu rosto eu nunca mais veria nesteDoce mundo de Deus.

Fomos dois barcos condenados na tormenta,Cruzando um do outro a via;Não fizemos sinal e não dissemos nada...Nada a dizer havia,Pois nosso encontro não se deu na noite santa,Mas no infamante dia.

Sendo dois réprobos, por muros de prisãoVimo-nos, pois, rodeados;Este mundo expulsara a nós de seu regaço,E Deus, de seus cuidados;Na armadilha de ferro sempre à espera do ErroNós fomos apanhados.

III

No pátio o chão é duro, alto o infiltrado muroAos que devem pagar;E era ali nesse limbo, sob um céu de chumbo,Que ele vinha por ar,A cada lado um Carcereiro, por temorDe que fosse expirar.

Ou noite e dia se sentava em sua angústia,Com uma guarda tesaSempre a vigiá-lo - vendo-o erguer-se para o pranto,Curvar-se para a reza;Sempre ali a vigiá-lo, para que o patíbuloNão roubasse da presa.

Era o Regulamento, para o Diretor,Sabidamente o forte;Proclamava o Doutor que é um fato científico,E nada mais, a morte;Dois folhetos por dia o Capelão deixava,Um piedoso suporte.

E cachimbo e cerveja, ao dia duas vezes,Tinha ele em tempo certo;Jamais oferecia esconderijo ao medo

Page 3: Wilde - Contos e Poemas

Seu espírito aberto;E muita vez dizia da sua alegriaPor ter o algoz tão perto.

E carcereiro nenhum indagava porqueTinha esse estranho gosto:O homem, a quem a sina sem mercê destinaNo cárcere tal posto,Precisa colocar nos lábios um cadeadoE mascarar o rosto.

Senão vai comover-se, e tentará ajudarÀquele que o consterna;E o que pode a Piedade em Antro de Assassinos,Presa à mesma caverna?Que palavra encontrar que possa confortarA pobre alma fraterna?

Cabisbaixos gingamos em torno ao pavilhão,Os Bufões em parada!Pouco importava a nós, pois éramos a atroz,Satânica Brigada:E a cabeça raspada e pés de chumbo fazemAlegre mascarada.

E a Brigada rasgava a corda de alcatrãoCom as unhas sangrantes;Ela escovava o chão, esfregava o portão,E as grandes cintilantes;E lavava o assoalho, em alas no trabalho,Com baldes reboantes.

E inda as pedras quebrava, os sacos remendava,Co?a broca erguia o pó;As latas estrugia, os cânticos gania,Suava junto à mó;Porém, no peito de cada homem se escondia,Mudo, um Terror sem dó.

E mudo, todo dia, em onda ele surgia -Onda de ervas coberta;Ninguém lembrava a dura sorte que amarguraA gente tola e a esperta,Até passarmos nós, voltando do trabalho,Por uma cova aberta.

Era amarelo esgar a boca a bocejarE algo vivo a querer;Para o sedento asfalto a lama suplicavaO sangue, seu prazer;E soubemos nessa hora que antes de outra auroraAlguém ia pender.

Reentramos com calma, remoendo n?almaA Morte, o Medo e o Nada;Co? uma sacola o algoz foi-se a arrastar os pésNa sombria morada;E cada homem tremia ao rastejar de voltaÀ tumba numerada.

Invadiam à noite o corredor vazio

Contornos de Temor,Que erravam no desterro dessa rua de ferroCom passos sem rumor,E vinham, entre as barras que às estrelas velam,Brancas faces compor.

Ele jazia como alguém que jaz e sonhaEm doce campo aberto;Os carcereiros observavam-no a dormir,Sem compreender, por certo,Como podia dormir tal sono de abandonoEstando o algoz tão perto.

Os sonhos, porém, somem quando chora um homemQue nunca chorou antes:E assim, sem fim vigiamos nós - nós, os velhacos,Os tolos, os meliantes;E a nossas mentes veio, a rastejar, alheioTerror com mãos crispantes.

Ai! Que tremenda coisa a remoer a culpaQue é dos outros por direito!Té o cabo envenenado a espada do PecadoCravou-se em nosso peito,E foi chumbo fundido o pranto ali vertidoPelo que fora feito.

Com sapatos de feltro os guardas se esgueiravamNas portas com cadeado;O seu olhar de espanto via em cada cantoUm vulto recurvado;E não sabiam por que se ajoelhava a orarQuem nunca havia orado.

A noite toda oramos, loucos pranteadoresDo morto a nosso encargo!As plumas no caixão eram as que agitavaA meia-noite ao largo;E ao sabor do Remorso era o sabor da esponjaCom o seu vinho amargo.

Cantou o galo cinza, e então o galo rubro,Mas nunca vinha o dia:Com formas tortas, de tocaia em nossos cantos,O Terror prosseguia;Turbavam nossa paz todas as almas másQue erram na hora tardia.

Em vôo veloz, iam por nós tal como um bandoQue em meio à neve passa;Com torneio e torção, seu fino rigodãoDa lua faz chalaça,Nesse encontro espectral de andamento formalE repulsiva graça.

Com trejeitos se vão as sombras, mão com mão,Formando uma cadeia;Sua lenta ciranda era uma sarabandaEm fantasmal colmeia,Desenhando - os grotescos - doidos arabescos,Como o vento na areia!

Page 4: Wilde - Contos e Poemas

Fazendo piruetas como marionetes,Saltitavam absortos;Mas com flautas de Horror erguiam seus clamorHediondos e retortos...Seu canto era alongado, seu canto era gritado,Canto que acorda os mortos.

?Oho!? Clamavam. ?Largo é o mundo! Mas que embargoÉ um membro acorrentado!E também é cortês, sim, uma ou outra vezArremessar o dado;Na Casa da Vergonha, entanto, jamais ganhaQuem joga co?o Pecado.?

Não era apenas ar o bando a cabriolarCom tal gozo e prazer:Para quem tinha a vida por grilhões contidaE não podia correr -Chagas de Cristo! - os seres eram coisas vivas,Terríveis de se ver.

Rodavam frente a frente. Rindo tolamente,Uns aos pares valsavam;Outros, com requebrar próprio de um lupanar,Nos degraus se esgueiravam...Com seu desdém sutil e seu olhar servil,A orar nos ajudavam.

Pôs-se então a gemer o vento da manhã,Sem à noite espantar -A noite que tecia a teia da agoniaNo seu grande tear;E, orando ali, bem cedo nos venceu o medoDa Justiça Solar.

Gemendo, o vento em volta dos chorosos murosVagava; até que, enfim -Roda de aço a girar - sentimos o arrastarDos minutos sem fim.Vento gemente! O que fizemos para termosUm senescal assim?

Eu vi então as negras barras (gelosiaCom o chumbo forjada)Movendo-se, ante a minha cama de três pranchas,Na parede caiada,E soube que nalgum lugar fazia DeusSer vermelha a alvorada.

Às seis horas limpamos nossas celas,Às sete tudo é espera...E o vibrar e o voltear de uma asa poderosaSobre o cárcere impera,Pois o Senhor da Morte - o bafo frio e forte -Para matar viera.

Em real pompa não passou, nem cavalgouCorcel branco-lunar.O alçapão corredio e três jardas de fioBastam para enforcar:

Co?a corda da vergonha veio a ação medonhaO Arauto praticar.

Éramos como um bando em pântano tateandoNa suja escuridão:Não ousávamos dar vazão à nossa angústia,Dizer uma oração;Algo morrera em nós, e o que morrera foraA Esperança... a Ilusão.

Pois a cruel Justiça do Homem Segue avante,Vai firme, não trepida:Tanto ela mata quanto mata o forteEm sua mortal corrida...É com tacão de ferro que ela mata o forteA hedionda parricida!

Grossa de sede a língua, à espera das oito horasSentamo-nos à toa,Porque o bater das oito é o sino do DestinoQue nos amaldiçoaE tem a seu serviço um laço corrediçoPara a alma ruim e a boa.

Ficamos cada qual à espera do sinal(Nenhuma opção melhor),Como coisas de pedra em vale solitário,Sem voz e sem rumor;Mas cada coração batia lesto e presto,Qual louco num tambor!

Quando, em súbito choquem, vem do relógio um toqueQue fere o ar invernoso;Então, todo o presídio deu triste gemidoDe desespero ocioso,Igual ao som que chega aos assustados charcosDo covil de um leproso.

E, como muitas vezes no cristal de um sonhoVê-se o pior delito,Eis na trave enganchada a corda besuntadaDe cânhamo maldito,E eis o som da oração que o laço do carrascoEstrangulou num grito.

Somente eu conheci a dor que o fez berrarCom amargor tão forte,E os remorsos violentos e suores sangrentosDe sua negra sorte:Quem vive mais do que uma vida também deveMorrer mais que uma morte.

IV

O Capelão não reza o culto na capelaQuando enforcam alguém:Tem nesse dia o coração muito enojado,Palor nas faces tem;Ou aquilo que traz nos olhos estampadoNão deve olhar ninguém.

Page 5: Wilde - Contos e Poemas

Assim, trancaram-nos ?té quase meio-dia;E eis o sino afinal..Nossos guardas abriram cada cela à escutaCom tinir de metal,E cada homem deixou, pelos degraus de ferro,O Inferno pessoal.

Saímos para o doce ar do Senhor. Porém,Não como se soía,Visto que o medo acizentava o rosto de umE o de outro embranquecia;E nunca em minha vida vi um bando olharTão angustiado o dia.

Eu nunca vi um bando que tivesseTanta angústia no olharAo ver a tenda azul que de céu, no cárcere,Usávamos chamar,E cada nuvem descuidada que passavaLivre e feliz pelo ar.

Mas entre nós havia alguns que caminhavamCom semblante caído,Por que sabiam que eles é que a morte mereciam,Tivessem o devido:O outro matara quem vivia: eles, porém,Quem havia morrido.

Quem peca vez Segunda acorda uma alma mortaPara nova aflição;Ergue-a do pálio maculado e novamenteA faz sangrar então;Grandes gotas de sangue ainda a faz sangrar,E a faz sangrar em vão!

Quais monos ou bufões, eis-nos em feia vesteDe flechas recamada...Íamos em silêncio, à roda, sempre à roda,Na lisa área asfaltada;Íamos em silêncio, à roda, sempre à roda,Ninguém a dizer nada.

Íamos em silêncio, à roda, sempre à roda,E a Memória ferozÀ mente oca invadia com atrozes coisas,Tal como um vento atroz.E à nossa frente o Horror marchava e, rastejando,Vinha o Terror empós.

Andando acima e abaixo, os guardas dominaramSeu bando de animais;Vestiam todos uniformes impecáveis,Trajes dominicais;Mas no que haviam trabalhado a cal nas botasMostrava bem demais.

Pois onde antes se vira escancarada covaJá não havia mais nada:Apenas um espaço com areia e lama,Junto à muralha odiada,E abrasadora cal, para que mortalha

Ao homem fosse dada.

Sim, tem mortalha, esse infeliz! E tal mortalhaPouca gente reclama,Pois sob um pátio de prisão descansa nuPara agravo da fama,E, com grilhões de ferro em cada pé, é envoltoPor um lençol de chama!

E, cáustica, lhe come a cal, o tempo todo,Osso e carne macia;Devora os ossos quebradiços quando é noite,E a carne quando é dia...Dia e noite, porém, devora o coração,Que a fome lhe sacia.

Por um longo triênio, mudas ou raízesNinguém lá vai plantar;Por um longo triênio, estéril, nu seráO maldito lugar,Que há de ficar mirando o azul de céu atônitoSem repressão no olhar.

Julgam que o coração de um assassino os grãosPlantados mancha e estanca.Não é verdade! A terra franca do SenhorNão sabem quanto é franca;E a rosa rubra desabrocha inda mais rubra,A branca inda mais branca.

A rosa rubra vem de sua boca, a brancaDo coração malquisto!Quem dizer poderia por que estranha viaO seu querer faz Cristo,Quando ante o papa até o bastão do peregrinoReflorescer foi visto?

Mas rosa, rubra ou láctea, florescer não lograAqui no ar da prisão;Aqui neste lugar, o cacom o seixo e a pedraSão tudo o que nos dão,Por que sabem que as flores podem nos curarA desesperação.

Portanto, nunca irá rosa alva ou cor-de-vinhoCair despetaladaNaquele estreito espaço com areia e lama,Junto à muralha odiada,A anunciar que Deus quis que a vida de Seu FilhoPor todos fosse dada.

Contudo, embora o odiado muro da prisãoAinda o cerque tirano,E não possa um espírito vagar à noiteCom grilhões a seu dano,E não possa um espírito chorar se jazEm tal solo profano,

Ele está em paz, o desgraçado... Ou logo em pazHá de estar a alma sua:Nada mais o perturba; e ali, ao meio-dia,

Page 6: Wilde - Contos e Poemas

O Terror não o acua,Visto que a terra úmida e sem luz em que descansaNão tem nem Sol nem Lua.

Foi enforcado como enforcam animais:Nem mesmo foi tangidoUm requiém para dar repouso a seu espíritoConfuso e espavorido;Mas bem depressa o retiraram, e o puseramNum buraco escondido.

Sem as roupas de estopa, foi arremessadoAo mosqueiro voraz;E todos riram da garganta rubra e inchada,Do olhar fixo e tenaz...E o desdém que gargalha eivou toda a mortalhaEm que o culpado jaz.

Junto à cova injuriada o Capelão não veioDe joelhos orar,Nem a marcou co'a cruz bendita que deu CristoAo pecador vulgar,Pois era esse homem um daqueles a quem CristoDesceu para salvar.

Mas tudo bem! Cumpriu apenas o destinoTraçado pela vida;E por um pranto estranho a urna da Compaixão,Trincada, será enchida,Pois párias vão pranteá-lo, e os párias choram sempre,E choram sem medida.

V

Não sei se as Leis são justas ou se as Leis são falhas...Isso não cabe a mim.Nós só sabemos, na prisão, que o muro é forte;Como sabemos, sim,Que cada dia é um ano, um ano cujos diasParecem não ter fim.

Mas isto eu sei, que toda Lei que a humanidadeFez para o Ser Humano - Desde que a Abel matou Caim, e desde o inícioDe nosso mundo insano -Transforma o trigo em palha e salva só o fareloCom um cruel abano.

Também sei isto - e que isto seja em toda menteUma noção tranqüila:Tijolos de vergonha é o que usam na prisãoQuando vão construí-la,E grades põem para Jesus não ver como o homemOs seus irmãos mutila.

Com barras o homem borra a graciosa luaE cega o sol feraz:E conservar coberto aquele Inferno é certo,Pois lá dentro se fazAlgo que nem Filho de Deus nem Filho do HomemDevem olhar jamais!

Como ervas venenosas as ações mais visBrotam no ar da prisão;Ali, somente as coisas que são boas no HomemSecarão, murcharão...Guarda a porta pesada a Angústia; e o CarcereiroÉ a Desesperação.

Lá a criança assustada fica à míngua atéQue chore noite e dia;Lá se fustiga o fraco, e se flagela o tolo,E ao velho se injuria;Lá muitos endoidecem, todos se embrutecem,Ninguém se pronuncia.

A nossa pequenina cela é uma latrinaDe treva e sujidade.E o bafo azedo e forte de uma viva MorteSufoca toda grade;Resta a Luxúria só - e tudo mais é póNa mó da Humanidade.

A água salobre que bebemos traz consigoUma nojenta lama,E o pão amargo que eles pesam na balançaTem greda em cada grama,E o Sono, com olhar selvagem, não se deita,Mas para o Tempo clama.

Porém, se a magra Fome e a Sede estão qual áspideE víbora em porfia,Pouco importa a comida na prisão servida,Pois o que mata e esfriaÉ que de noite o coração se torna a pedraQue se ergue quando é dia.

Tendo no peito a meia-noite, e em sua celaCrepúsculo eternal,Cada homem rasga a corda ou gira a manivelaNo Inferno pessoal,Quando o silêncio é mais terrível do que o somDe um sino de metal.

E jamais se aproxima com palavras docesA doce humana voz;E o olho a vigiar constantemente junto à portaÉ impiedoso e feroz...E, nessa alheação, apodrecendo vãoCorpo e alma em todos nós.

E a corrente da Vida assim enferrujamosNa torpe solidão:E alguns homens praguejam, e outros homens choramOu nem gemidos dão...Mas as eternas Leis de Deus rompem bondosasO pétreo coração.

E cada coração no cárcere partido - Na cela ou onde for -É como aquele frasco roto que entregou Seu tesouro ao Senhor,

Page 7: Wilde - Contos e Poemas

E encheu o lar do impuro lázaro com nardoDo mais alto valor.

Feliz o coração partido: pode a pazDo perdão conquistar!Senão, como o homem vai fazer reto o seu planoE do Erro se limpar?Como pode, a não ser por coração partido,O Senhor Cristo entrar?

E o de garganta rubra e inchada, o de olhar fixo,Aguarda enternecidoAs santas mãos que ao paraíso o bom ladrãoHaviam conduzido;E Deus jamais desprezará um coraçãoContrito e arrependido.

Três semanas de vida deu-lhe o homem da LeiCom a rubra casaca,Três pequenas semanas, para curar na almaO mal que à alma lhe ataca,Limpar cada sinal de sangue sobre a mãoQue segurou a faca.

E ele lavou com lágrimas de sangue a mãoQue guiou o cutelo,Pois só o sangue limpa o sangue, e apenas lágrimasLivram do pesadelo...E a nódoa carmesim que fora de CaimDe Cristo é o níveo selo.

VI

No cárcere de Reading junto a Reading TownHá um fosso de má fama,E nele jaz um desgraçado a quem devoramCruéis dentes de chama.Jaz num sudário ardente, e o mísero sepulcroSeu nome não proclama.

E, até que Cristo chame os mortos, ali possaEm silêncio jazer...Não é preciso dar suspiros ocos, nemTolo pranto verter:Aquele homem matara a sua coisa amada,E tinha que morrer.

Apesar disso - escutem bem - todos os homensMatam a coisa amada;Com galanteio alguns o fazem, enquanto outrosCom face amargurada;Os covardes o fazem com um beijo,Os bravos, com a espada!

Page 8: Wilde - Contos e Poemas

Soneto à Liberdade [bilingüe]

Oscar Wilde «

tradução de Nelson AscherNão que eu ame teus filhos cujo olhar obtusoSomente vê a própria e repugnante dor,Cuja mente não sabe, ou quer saber, de nadaÉ que, com seu rugir, tuas Democracias,Teus reinos de Terror e grandes AnarquiasRefletem meus afãs extremos como o mar,Dando-me Liberdade! -à cólera uma irmã.Minha alma circunspecta gosta de teus gritosConfusos só por causa disso: do contrário,Reis com sangrento açoite ou seus canhões traiçoeirosRoubavam às nações seus sagrados direitos,Deixando-me impassível e ainda, ainda assim,Esses Cristos que morrem sobre as barricadas,Deus sabe que os apóio ao menos parcialmente.

Page 9: Wilde - Contos e Poemas

Simão, o Cireneu

Oscar Wilde «

O velho sentou-se com a cabeça encurvada e as costas doloridas enquanto as censuras, fúteis de sua colérica mulher, lhe feriam os ouvidos.Semelhante a uma infindável cascata, ela espadanava toda uma série de recriminações: imbecil barbudo, por que desperdiças o teu tempo vagabundeando pelas estradas? O teu pai, o teu avô e o teu bisavô foram todos guardiães do Templo; se estivesses a postos quando foste chamado, sem dúvida terias sido nomeado guardião como os outros. Agora, porém, um homem mais expedito foi o escolhido. Tu, o mais idiota dos homens, preferiste vagabundear pelas estradas, afim de que, renegado, pudesses carregar a cruz de um jovem carpinteiro sedicioso.- Isto é verdade - disse o velho -, encontrei um jovem que ia ser crucificado e o centurião mandou-me carregar a cruz. Carreguei-a até o cimo da colina e demorei-me porque as palavras que ele pronunciou, embora grandemente maltratado, não eram de pesar por ele mesmo e, sim, pelos outros; as suas palavras retardaram-me lá. Por isso esqueci tudo mais.- Sim, na verdade esqueceste tudo mais e o pouco senso que possuías, e regressaste demasiadamente tarde para ser guardião do Templo! Não estás envergonhado ao pensares que teu pai, teu avô e teu bisavô, foram todos guardiães da Casa do Senhor, que seus nomes estão lá escritos em letras de ouro e serão lidos pelos homens do futuro para todo o sempre? Quanto a ti, velho tonto, quando morreres isolado de todos os parentes, quem se lembrará neste mundo de Simão, o Cireneu?

Page 10: Wilde - Contos e Poemas

O Tribunal divino

Oscar Wilde «

Havia Silêncio no Tribunal Divino e o Homem apresentou-se nu diante de Deus.E Deus abriu o Livro da Vida do Homem.E Deus disse ao Homem:- Tua vida tem sido má, foste cruel para aqueles que necessitaram de socorro, para os que careciam de ajuda foste impiedoso e duro de coração. O pobre te chamou e não o atendeste, e os ouvidos conservaram-se fechados às súplicas dos meus aflitos. Em teu proveito te aposaste da herança dos órfãos e soltaste raposas nas vinhas dos teus vizinhos. Sonegaste o pão às crianças e deste-o aos cães para que o comessem. Os Meus leprosos, que viviam nos pauis, em paz e louvando-Me, tu os perseguiste pelas estradas, e sobre a Minha terra, com a qual Te modelei, derramaste sangue inocente.E o Homem respondeu, dizendo:- Isto eu fiz.E, outra vez, Deus abriu o Livro da Vida do Homem.E Deus disse ao Homem:- Tua vida tem sido má, a perfeição que demonstrei tem-la negado e não notaste o bem que ocultei. As paredes dos teus aposentos foram decoradas com ídolos e do leito das tuas abominações erguias-te ao som das flautas. Construíste sete altares aos pecados que suportei, comeste o que não se deve comer e a púrpura de tuas vestes era bordada com três marcas ignominiosas. Teus ídolos não eram de ouro nem de prata permanentes, mas de carne perecível. Impregnaste-lhes os pés com açafrão, estendeste tapetes diante deles. Com antimônio coloriste-lhes as pálpebras e com a mirra untaste-lhes os corpos. Perante eles porsternasse até o chão e os tronos dos teus ídolos foram expostos ao ar livre. Exibiste ao sol a tua loucura e à lua a tua ignomínia.E o Homem respondeu, dizendo:- Isto, também, eu fiz.E, pela terceira vez, Deus abriu o Livro da Vida do Homem.- Má tem sido a tua vida, com o mal tens pago o bem e com a injúria a bondade. Feriste as mãos que te deram o alimento e renegaste os seios que te amamentaram. O que te pediu de beber partiu sedento e o criminoso que te escondeu na sua tenda, à noite, traíste-o antes da aurora. Preparaste uma emboscada ao inimigo que te havia perdoado, o amigo que ia contigo vendeste-o por dinheiro e aos que te trouxeram o amor pagaste com a injúria.E o Homem respondeu, dizendo:- Isto, fi-lo também.E Deus fechou o Livro da Vida do Homem, e disse:- Naturalmente eu te enviarei para o inferno. Sim, é para o inferno que te enviarei.E o Homem gritou:- Não podes!E Deus perguntou-lhe:- Porque não posso te enviar para o inferno? Qual é a razão?- Porque sempre vivi no inferno - respondeu o Homem.E fez-se silêncio no tribunal Divino. E depois de alguns instantes, Deus disse ao Homem:- Uma vez que não posso te enviar para o inferno, logicamente eu te enviarei para o céu. Sim, é para o céu que te enviarei.E o Homem protestou:- Não podes!E Deus perguntou-lhe:- Por que não posso te enviar para o céu? Qual é a razão?- Porque jamais, em nenhum lugar, fui capaz de admiti-lo - retrucou o Homem.E fez-se silêncio no tribunal Divino.

Page 11: Wilde - Contos e Poemas

O semeador do bem

Oscar Wilde «

Era noite e Ele estava só.Percebeu, à distância, as muralhas de uma grande cidade e para ela se dirigiu. E quando se aproximou, ouviu dentro da cidade o tropéu dos folguedos, o alarido da alegria e o ruído ensurdecedor de muitos alaúdes. E Ele bateu no portão e os guardas o abriram.E Ele viu uma casa de mármore, com belas colunas de mármore à sua frente. As colunas estavam adornadas de guirlandas, e quer fora, quer no interior, ardiam tochas de cedro. Ele entrou na casa.E quando cruzou o vestíbulo de calcedônia, o de jaspe e atingiu o salão dos festins, viu estendido sobre um leito de púrpura marinha um homem cujos cabelos estavam coroados de rosas vermelhas e os lábios rubros manchados de vinho. E ele aproximou-se por tràs, tocou-lhes as costas, dizendo-lhe:- Por que viveis assim?O jovem, voltando-se, reconheceu-O e respondeu-Lhe:Eu era leproso e vós me curastes. Como iria viver?Ele deixou a casa e voltou à rua. Pouco depois viu uma mulher cujo rosto e trajes eram coloridos e cujos pés estavam recamados de pérolas. Atrás dela, cauteloso como um caçador, caminhava um jovem usando uma túnica de duas cores. O rosto da mulher era tão belo como o rosto de um ídolo e os olhos do jovem faiscavam de sensualidade.Ele, rapidamente, seguiu o jovem, e tocando-lhe na mão, indagou:- Por que olhais para essa mulher de tal maneira?O jovem, voltando-se, reconheceu-O e retrucou-lhe:- eu era cego e vós me restituístes a vista. A quem mais eu poderia olhar?Ele correu adiante e tocando no vestido colorido da mulher, perguntou-lhe:- Não há outro caminho para trilhardes que não seja o do pecado?A mulher voltou-se e, reconhecendo-O, replicou-Lhe:- Vós perdoastes os meus pecados e este é um caminho agradável.Ele, então, afastou-se da cidade. E quando a deixara, deparou-se-lhe à beira da estrada um jovem chorando. Aproximou-se, e tocando nas longas madeixas dos seus cabelos, perguntou-lhe:- Por que chorais?O jovem ergueu os olhos. Reconhecendo-O, respondeu-Lhe:- Eu estava morto e vós me ressuscitastes. Que farei agora senão chorar?

Page 12: Wilde - Contos e Poemas

O Poeta

Oscar Wilde «

O poeta vivia no campo, entre prados e bosques. Porém, todas as manhãs ele ia à grande cidade que ficava a muitas milhas de distância, envolvida em névoas tristes, no topo das colinas.Todas as tardes ele regressava. E à luz indecisa do crepúsculo, crianças e adultos juntavam-se à sua volta a fim de ouvi-lo narrar as coisas maravilhosas que ele vira naquele dia nos bosques, no rio e no topo das colinas.E ele lhes contava como os pequeninos faunos escuros o espreitavam dentre as folhas verdes do bosque.Contava-lhes também como o grande centauro o encontrava no alto da colina e, sorrindo, galopava, envolvido em nuvens de pó.Estas e muitas outras coisas maravilhosas o poeta narrava às crianças e aos adultos quando se reuniam a sua volta, todas as tardes, enquanto as sombras se adensavam à apoximação do crepúsculo cinzento.Contou-lhes histórias maravilhosas de coisas supreendentes criadas pelo seu espírito, porque o tinha pleno de lindas fantasias.Um dia, porém, o poeta, regressando da cidade grande através dos bosques, viu, de fato, os pequeninos faunos escuros espreitando-o dentre as folhas verdes. E quando se dirigiu para o lago, as nereidas de cabelos esverdeados emergiram da água cristalina e cantaram para ele ao som de suas harpas. E também quando alcançou o topo da colina, o grande centauro galopou sorrindo, envolvido em nuvens de pó.Naquela tarde quando, ao pálido crepúsculo, os adultos e as crianças se juntaram a ele para ouvir as coisas maravilhosas que vira naquele dia, o poeta lhes disse:- Hoje nada tenho para lhes contar; não vi coisa alguma.Isto porque, naquele dia, pela primeira vez na sua vida, ele os vira de fato e, para um poeta, a fantasia é a realidade e a realidade nada significa.

Page 13: Wilde - Contos e Poemas

O Mestre

Oscar Wilde «

Quando as trevas começaram a cair sobre a Terra, José de Arimatéia acendeu uma tocha de pinheiro e desceu da colina para o vale. Tinha o que fazer em casa. E ajoelhando-se sobre as pedras do vale da Desolação, viu um jovem que estava nu e chorava. Seus cabelos eram da cor do mel e seu corpo tão branco como uma flor. Mas ferira o corpo nos espinhos e sobre os cabelos pusera cinzas, à guisa de coroa.E José, que possuía grandes virtudes, disse ao jovem que se encontrava nu e chorava:- Não me admira que o teu sentimento seja tão grande, porque, realmente, Ele foi um homem justo.E o jovem respondeu:- Não é por Ele que eu choro, mas por mim mesmo. Eu também mudei a água em vinho, curei o leproso e restituía a vista ao cego. Andei sobre as águas e das profundezas dos sepulcros expulsei demônios. Alimentei os famintos no deserto, onde não havia comida; ergui os mortos dos leitos exíguos e à minha ordem, diante de imensa multidão, uma figueira seca novamente frutificou. Tudo que esse homem realizou eu também realizei e, todavia, não me crucificaram.

Page 14: Wilde - Contos e Poemas

O Discípulo

Oscar Wilde «

Quando Narciso morreu, a taça de água doce que era o lago dos seus prazeres converteu-se em taça de lágrimas amargas e as Oréadas vieram carpindo pelos bosques a fim de cantar para ele, consolando-o.E quando perceberam que o lago se transmudara de taça de água doce noutra de lágrimas amargas, desgrenharam as tranças verdes do seus cabelos e disseram:- Não nos admiramos de que pranteeis Narciso dessa maneira. Ele era tão belo!- Narciso era belo? - indagou o lago.- Quem sabe melhor do que vós? - responderam as Oréadas. Ao cortejar-vos, ele nos desprezava, debruçado às vossas margens mirando-vos, e, no espelho de vossas águas, contemplava a própria beleza.E o lago retrucou:- Eu amava Narciso porque, quando ele se debruçava sobre as minhas margens para contemplar-me, eu via sempre refletir-se no espelho dos seus olhos a minha própria beleza.

Page 15: Wilde - Contos e Poemas

A Atriz

Oscar Wilde «

Existiu outrora uma grande atriz. Uma mulher que alcançara tamanhos triunfos que todo o mundo da arte a adorava, curvado a seus pés.O incenso da adoração perfumara-lhe a vida por muitos anos e vedara-lhe os olhos para as outras coisas, de sorte que ela a nada mais aspirava.Não obstante, chegou o dia em que conheceu um homem, a quem amou com toda a força da alma. Então sua arte, seus triunfos e as nuvens de incenso nada mais significaram para ela - o amor era toda a sua vida. Mas embora pensasse assim, o homem que ela amava tornou-se ciumento - ciumento do público que não mais lhe interessava.Pediu-lhe que desistisse da sua carreira e abandonasse o palco para sempre. Ela acedeu sem resistência, e disse:- O amor é melhor do que a arte, melhor do que a fama, melhor do que a própria vida.E logo abandonou alegremente o palco e todos os triunfos para dedicar sua vida ao homem que amava.O tempo transcorreu, o amor do homem começou rapidamente a diminuir e a mulher que tudo havia sacrificado por ele perecebeu-o; a certeza disso caiu-lhe n`alma como a neblina fria do entardecer, envolvendo-a da cabeça aos pés numa mortalha de desespero. Tratava-se, porém, de uma mulher corajosa, decidida, e embora com a mágoa estampada no rosto, não se deixou abater. Compreendeu que teria de sobrepujar a crise da sua vida, a crise da qual dependia o seu destino.Com perspicácia e cruel clarividência, sentiu a realidade que lhe despedaçava o coração. Sacrificara a carreira ao seu amor e agora este amor lhe fugia. Se não encontrasse meios para reanimar a chama que bruxuelava e breve se apagaria totalmente, se conservaria solitária em meio aos escombros de sua vida arruinada.E a mulher, que fora uma grande atriz, percebera que a sua arte, em vez de ser-lhe um estímulo ou uma inspiração nesta fase penosa da vida, demonstrara o contrário - era desvantagem e obstáculo. Alheara-se da orientação dos diretores de cena e das idéias e conselhos dos autores. Até então nada fizera sem eles - cada pensamento, cada entonação de voz e, mesmo, cada gesto era-lhe sugerido, pois esta é a arte do ator. E, agora, quando se via obrigada a pensar, criar e agir por si mesma, sentia-se desamparada, sem recursos, como uma criança repentinamente às voltas com um grande problema. Mas à medida que os dias se passavam, impunha-se cada vez mais ação pronta e enérgica.Um dia, quando andava de um lado para o outro, com o gérmen selvagem do desespero crescendo-lhe no íntimo a cada minuto que passava, um homem foi vê-la. Ele fora empresário do teatro onde ela trabalhara. Viera pedir-lhe que representasse numa nova peça. Ela recusou. Que iria fazer no palco com essa arte falsa que transforma aqueles que a praticam em fantoches, fantoches irremediáveis, movidos por cordéis manejados pelas mãos dos autores e diretores de cena?Agora ela se encontrava face a face com a verdadeira tragédia da vida, ao lado da qual todas as falsas tristezas do palco nada mais eram senão lantejoulas e bambinelas. Contudo, o empresário insistiu, dizendo-lhe que a oferta significava dinheiro para ele, zumbindo-lhe em torno com a persistência de uma mosca no outono, que não quer ser enxotada.Não quereria pelo menos ler a peça? Para livar-se dele, leu-a, e reconheceu que a tragédia impressa era a tragédia da sua própria vida. A mesma situação: o problema estava resolvido.O destino viera em auxílio da atriz numa peça teatral. Ela devia representá-la dominando inteiramente cada detalhe do enredo. Estudou, então, a parte que lhe competia e a representou para um grande auditório. Atuou com fervor do gênio que jamais ultrapassara durante a sua carreira e o aplauso que retumbou de todos os lados foi a homenagem irresistível tributada pelos espíritos e corações dos homens àqueles que possuem gênio.quando tudo chegou ao fim, ela voltou para casa fatigada e um tanto surpresa com os gritos e aplausos da multidão ainda lhe ressoando nos ouvidos. Dera-lhe o máximo, pusera-lhe aos pés o poder e a maravilha da sua alma. Tudo que lhe restava agora era um sentimento de impotência e fragilidade. Chegara à casa entristecida e carregada de flores. Repentinamente, observou que havia dois pratos na mesa preparada para a ceia e lembrou-se de que, nesta noite, fora resolvido o seu destino. Esquecera-o até então. Naquele momento o homem que ela amara entrou, indagando:- Cheguei na hora?Ela olhou para o relógio, e respondeu:- Chegaste na hora, mas demasiadamente tarde.

Page 16: Wilde - Contos e Poemas

O Artista

Oscar Wilde «

Um dia, despertou-lhe na alma o desejo de esculpir uma estátua do Prazer que dura um instante. E partiu pelo mundo à procura do bronze, porque ele só podia trabalhar o bronze. Mas todo o bronze existente no mundo havia desaparecido e em nenhuma parte o metal seria encontrado, a não ser na estátua da Dor que é permanente.E fora ele que, com as próprias mãos, fundira essa estátua, erigindo-a no túmulo de alguém a quem muito amara na vida. E na tumba da morta, que tanto amara, colocou a própria criação, como um símbolo do amor masculino, que é imortal, e a dor humana, que dura a vida inteira.E em todo o mundo não havia bronze, a não ser o dessa estátua.Ele, então, retirou a estátua que moldará, põ-la num grande forno, deixando-a derreter-se.E com o bronze da estátua da Dor que é permanente, fundiu a do Prazer que dura um instante.

Page 17: Wilde - Contos e Poemas