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    Jos Miguel WISNIK

    2001 [1983] Getlio da Paixo Cearense: Villa-Lobos e o EstadoNovo. In J. M. Wisnik & E. Squeff. O N a c i o n a l e o P o - p u l a r n a Cu l t u r a B r a s i l e i r a . So Paulo: Brasiliense. pp.

    129-191.

    Agradeo a Arnaldo Contier aindicao das fontes de consulta

    sobre o programa do Canto OrfenicoDedico a Marilena Chau

    Arpejo

    o tema

    desta

    pesquisa

    o nacional

    e o popular

    na cultura

    brasileira

    um

    convite

    ao

    erro

    irrecusvel

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    NACIONALISMO MUSICAL

    NACIONALPOPULAR, VANGUARDAMERCADO

    mais do que sabida a ligao que os compositores nacionalistas brasileiros ti-veram com opopular: Villa-Lobos, Mignone, Lorenzo Fernandez, Camargo Guarnie-ri, Luciano Gallet, para citar alguns, usaram fartamente o material folclrico nacomposio de suas peas, e esse uso que marca o perfil caracterstico to reco-nhecvel na msica de todos eles. Mas o que pouco se fala que o povo homenage-ado e imaginado por esses msicos, o povo bom-rstico-ingnuo do folclore, diferedrasticamente de um outro que desponta como anti-modelo: as massas urbanas,cuja presena democrtico-anrquica no espao da cidade (nos carnavais, nas gre-

    ves, no tododia das ruas), espalhada pelos gramofones e rdios atravs do ndicedo samba em expanso, provoca estranheza e desconforto.

    Nosso populrio sonoro honra a nacionalidade, dizia Mrio de Andrade no En-saio sobre a msica brasileira(1928), referindo-se s virtudes autctones e tra-dicionalmente nacionais da msica rural. Essa raiz, que serviria de base pesquisada expresso artstica brasileira, deveria ser cuidadosamente separada da influn-cia deletria do urbanismo, com sua tendncia degradao popularesca e influ-ncia estrangeira1.

    Tempos mais tarde, j em plena euforia musicolgica estado-novista, o crticoLuiz Heitor diria, fazendo o elogio da vocao musical nacional, em tom de rdio-ministrio-da-educao:

    A poca do desconhecimento do valor nacional e da utilidade educacional da msi-ca, no Brasil, j vai ficando para trs. O impulso musical insopitvel entre a nossagente. A msica , por excelncia, o meio de sublimao da alma popular brasileira,uma necessidade de nossa formao, de nossa psicologia nacional.

    Para em seguida fazer o reparo:

    1

    Ver Mrio de Andrade, Ensaio sobre a msica brasileira.So Paulo: Martins. 1962: 163-167. Como sempre, o pensamento de Mrio no esquemtico; ele procura nuanar o seucritrio de valorizao da msica popular rural sobre a msica urbana, nos seguintes termos:Nas regies mais ricas do Brasil, qualquer cidadinha do fundo serto possui gua encanada,esgotos, luz eltrica e rdio. Mas por outro lado, nas maiores cidades do pas, no Rio de Ja-neiro, no Recife, em Belm, apesar de todo o progresso, internacionalismo e cultura, encon-tram-se ncleos legtimos de msica popular em que a influncia deletria do urbanismo nopenetra (...) Por tudo isso, no se dever desprezar a documentao urbana. Manifestaesh, e muito caractersticas, de msica popular brasileira, que so especificamente urbanas,como o Choro e a Modinha.Ser preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano, oque virtualmente autctone, o que tradicionalmente nacional, o que essencialmentepopular, enfim, do que popularesco, feito feio do popular, ou influenciado pelas modasinternacionais.

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    No tomo como ndice a msica vulgar, a cano das ruas, pois essa , apenas, amanifestao inconsciente, no disciplinada, do pensador musical.

    Mas (poderamos perguntar) e

    noelismael sinhdosprazerespixindongajazzbatutaslamartinearibar rosa?

    E teramos como resposta inequvoca do crtico a seguinte hierarquizao:

    Refiro-me, aqui, justamente, aptido do brasileiro, como criador e como aprecia-dor da msica dita artstica. E acho perigosa a confuso que s vezes se faz, noBrasil, englobando sob o rtulo de msica popularno o fundo musical annimo, deque a msica artstica se utiliza, para tonificar-se, mas a msica sem classificao,baixa e comercial, que prolifera em todos os pases do mundo, sem que por issotenha direito a ocupar um lugar na histria da arte2.

    A oposio clara entre a Arte que tem histria, elevada e disciplinada, tonifica-da pelo bom uso do folclore rural (isto , a msica nacionalista), e as manifestaesindisciplinadas, inclassificveis, insubmissas ordem e histria, que se revelamser as canes urbanas.

    Sintomtica e sistematicamente o discurso nacionalista do Modernismo musicalbateu nessa tecla: re/negar a cultura popular emergente, a dos negros da cidade,por exemplo, e todo um gesturio que projetava as contradies sociais no espao

    urbano, em nome da estilizao das fontes da cultura popular rural, idealizadacomo a detentora pura da fisionomia oculta da nao.

    Certamente, tal escolha correspondia descoberta, paixo e defesa de umaespcie de inconsciente musical rural, regional, comunitrio contido nos reisados,nos cantos de trabalho, na msica religiosa, nas cantorias repentes e cocos que seentremostravam nas prticas musicais das mais diversas regies do pas (revelan-do-se e no mesmo momento tendentes desapario). A atlntida folclrica desse

    fundo musical annimo fundia a msica ibrica, sagrada e profana, catlica e car-navalesca (ligada a antigos festejos pagos) com a msica negra e indgena, pro-movendo a magia (animismo ritual dionisaco e feitiaria), o trabalho (ativando aspotncias corporais), a festa, o jogo e a improvisao.

    O problema que o nacionalismo musical modernista toma a autenticidade des-sas manifestaes como base de sua representao em detrimento das movimenta-es da vida popular urbana porque no pode suportar a incorporao desta ltima,que desorganizaria a viso centralizada homognea e paternalista da cultura nacio-nal.

    O popular pode ser admitido na esfera da arte quando, olhado distncia pelalente da estetizao, passa a caber dentro do estojo museolgico das sutes nacio-

    2Luiz Heitor, O Brasil e a Msica. In Msica e Msicos do Brasil. Rio de Janeiro: Casa doEstudante do Brasil. 1950.

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    nalistas, mas no quando, rebelde classificao imediata pelo seu prprio movi-mento ascendente e pela sua vizinhana invasiva, ameaa entrar por todas as bre-chas da vida cultural, pondo em xeque a prpria concepo de arte do intelectualerudito.

    A propsito, Gilberto Mendes observa que a msica folclrica, tomada como re-pertrio passivo da msica artstica, fornecedora de temas e motivaes, noatua diretamente sobre a linguagem musical moderna, enquanto a msica po-pular urbana, ao contrrio, investe ativamente sobre essa linguagem, trazendocontribuies das mais significativas para o seu desenvolvimento3.

    Por outro lado, se a trincheira folclorista tentava de certo modo defender as con-dies de produo da Grande Arte contra o avano da msica popular comercial,ela abria tambm para si mesma um outro flanco crtico, que Mrio de Andrade co-nhecia muito bem: como transpor o universo de uma cultura comunitria e semautoria para o universo da cultura erudita moderna, individualista-esteticista, semestocar radicalmente a prpria definio de arte4?

    No entanto, a plataforma ideolgica do nacionalismo musical consistia justa-mente na tentativa de estabelecer um cordo sanitrio-defensivo que separasse aboa msica(resultante da aliana da tradio erudita nacionalista com o folclore)da msica m(a popular urbana comercial e a erudita europeizante, quando estaquisesse passar por msica brasileira, ou quando de vanguarda radical).

    Est formada a cadeia conflitual bem tpica da discusso brasileira: a conjunoentre o nacional e opopularna arte visa criao de um espao estratgico onde oprojeto de autonomia nacional contm uma posio defensiva contra o avano damodernidade capitalista, representada pelos sinais de ruptura lanados pela van-guarda estticae pelo mercado cultural(onde, no entanto, foi se aninhar e prolife-rar em mltiplas apropriaes um filo da cultura popular). Essa constelao deidias, onde nacional-popular tende a brigar com vanguarda-mercado, j era incisi-

    va, mas implosiva na msica nacional-erudito-popular de 30 e 40, e se tornar de-cisiva e explosiva na rea musical durante as movimentaes da dcada de 60.

    Na mdia da atitude crtica que se produziu no seu contexto, a ideologia nacio-nalista na msica modernista luta por uma elevao esttico-pedaggica do pas,que resultasse da incorporao e sublimao da rusticidade do folclore (o povo in-gnuo), e aplacasse atravs da difuso da cultura alta a agitao urbana (o povodeseducado) a que os meios de massa (especialmente o rdio) davam trela.

    Entra a uma concepo do funcionamento ambivalente da msica para as mas-sas iletradas, como uma dobradia que as liga s formas anrquicas do sensualis-mo vulgar (prenhe de desordem poltica) e que estabelece ao mesmo tempo umcontato com as manifestaes civilizadas da grande arte (reduzida a instrumento de

    instaurao da ordem cvica).Agitadora (mediumpor excelncia do carnaval popular) e apaziguadora (porta-

    dora de um ethoseducativo, caldeado das fontes folclricas para a arte erudita), a

    3Gilberto Mendes, A Msica. In Affonso vila (org.), O Modernismo. So Paulo: Perspecti-va. 1975:130.4Nesse sentido, as reflexes de Mrio de Andrade sobre a arte interessada, isto , arte di-retamente ligada ao conjunto da vida produtiva da comunidade, levariam a pensar numdeslocamento decisivo da sua funo esttica de objeto oferecido contemplao reservada(da sala de concerto, por exemplo). E a idia de arte interessada provm de sua concepode arte popular.

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    msica percebida como lugar estratgico na relao do Estado com as maioriasiletradas do pas, lugar a ser ocupado pelas concentraes corais, pela prtica dis-ciplinadora cvico-artstica do orfeo escolar, pelo samba da legitimidade (que,desmentindo toda a sua tradio, exalta as virtudes do trabalho e no as da malan-dragem)5. No entanto, como a msica popular um espao de resistncia mais

    forte do que sua emulao cvico-patritica, alm do que ocupando uma posiorelativamente ofensiva no cenrio cultural brasileiro urbano-moderno, o resultadono ser na verdade uma converso do carnaval ao dia da Ptria6, mas a instau-rao da movimentada cena da poltico-chanchada populista, onde h lugar para osenador gag danar o seu samba (como na cena famosa de Terra em transe).

    RDIO MINISTRIO DA EDUCAO

    lvaro F. Salgado, da Rdio Ministrio da Educao, discorrendo sobre o uso efi-caz do rdio para fins poltico-culturais (Estado Novo 1941)7:

    A nosso turno adiantamos que, (...) todos os indivduos analfabetos, broncos, rudesde nossas cidades so muitas vezes pela msica atrados para a civilizao. (...) diavir, estamos certos, que o sensualismo que busca motivos de disfarce nas fantasi-as de carnaval, seja a caricatura, o fantoche, o palhao, o alvo ridculo desta festapag. Enquanto no dominarmos esse mpeto brbaro prejudicial combatermosno broadcasting o samba, o maxixe e os demais ritmos selvagens da msica popu-lar....o samba, que traz na sua etimologia a marca do sensualismo, feio, indecente,desarmnico e arrtmico. Mas pacincia: no repudiemos esse nosso irmo pelosdefeitos que contm. Sejamos benvolos: lancemos mo da inteligncia e da civili-zao. Tentemos devagarinho torn-lo mais educado e social. Pouco nos importa dequem ele seja filho.

    VILLA MRIO

    Fora da mdia, as questes do nacionalismo musical em Villa-Lobos e Mrio deAndrade enquanto criadores so sempre mais complicadas.

    Villa-Lobos porque se formou musicalmente no meio dos chores seresteiros esambistas do Rio de Janeiro no incio do sculo, e a sua msica, trabalhada pelasua formao erudita em processo de atualizao modernista, nasce tangenciandoa mesma fonte sociocultural de onde saiu a msica popular urbana de mercado.Durante toda a dcada de 20 o seu grande projeto de composio a srie deChorosonde ele trabalha aquela matriz popular urbana, amalgamada com blocosde outras informaes, primitivas negras e indgenas, rurais, suburbanas e cosmo-

    5Nos anos do Estado Novo, h um surto de sambas que fazem a apologia de uma moral dotrabalho, dentro do clima de ufanismo-nacionalismo-trabalhismo que marcava a propagandagetulista, e combatem a rica tradio da malandragem na msica popular do Rio de Janeiro.Esse assunto foi estudado por Antonio Pedro em Samba da Legitimidade, tese de mestrado(mimeo.). So Paulo: USP. 1980.6O Carnaval e o Dia da Ptria so termos polares de uma ritualizao do dilema brasilei-ro, tal como formulada por Roberto da Matta, em Carnavais, Malandros e Heris. Rio deJaneiro: Zahar. 1980.7lvaro F. Salgado, Rdio Difuso, fator social. In Cultura Poltica6. Agosto de 1941:7993.

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    politas da vanguarda europia , fazendo dela o centro de uma confluncia di-ferida de tempos culturais que focalizava da sua perspectiva oproblema brasileiro(a sinfonizao e a ordenao do tumulto musical nacional). Ou seja, embora sem-pre propagasse a superioridade do folclore sobre a msica popular, Villa-Lobosdeslanchou a sua fulminante trajetria a partir da convivncia ntima do dado eru-

    dito da sua formao com o dado popular urbano, com o que projetou, pela bricola-gede diferentes tcnicas e fontes, e noves-fora o seu talento genial, um alcance vi-olentamente mais amplo que o do nacionalismo ortodoxo.

    Quanto a Mrio, um homem dividido entre um modo socrtico-platnico e ummodo dionisaco-nietzscheano, embora apresente nos seus textos programticostraos daquela resistncia aos aspectos polimorfos da cultura popular (resistnciasubjacente ao paternalismo folclorista de que eu estava falando), lana no Macu-namao imaginrio submerso do mundo indgena-rural como dado emergente nopanorama da cidade, detonando um confronto vivo, polifnico, agnico-lancinante,que flagra as defasagens e sintonias inesperadas entre os vrios tempos culturaisde um pas que vive (como encruzilhadas de destinos) num aglomerado de relaescapitalistas e pr-capitalistas. Se verdade que o programa do nacionalismo musi-cal tem um carter centralizador e paternalista, alimentado pela iluso de imprimirhomogeneidade cultura nacional e de cauterizar a ferida das tenses sociais, oque se tem a considerar, por outro lado, que Mrio de Andrade mergulha de fatonos processos mitopotico-musicais da cultura popular, desentranhando dela con-cepes dionisaco-apolneas e formas mgicas que sero constitutivas de sua po-esia, trabalhadas pelo crivo crtico que desloca, relativiza e reorganiza esses ele-mentos segundo uma informao erudita. a tenso recuperada pelo engajamentoda tcnica que dar sua obra uma modalidade indagativa que no fecha com onvel programtico-apologtico do nacionalismo. Em sua corrente subterrnea, aobsesso pela cultura popular mais o sinal do dilaceramento e da percepo dasociedade em suas tenses ssmicas no aparentes do que um feliz arranjo de clas-ses e raas que se acomodariam harmonicamente para sanear a falta de carternacional. Nesse plano, o nacionalismo de Mrio pode ser lido como expressionismo,tal como fez Gilda de Mello e Souza: Nacionalismo e Expressionismo se empenha-vam... na descoberta de um homem novo, atormentado, dividido, algico, defor-mador, cuja arte acolhia, como mais congeniais ao seu esprito, as manifestaesdo gtico, do barroco, da arte primitiva e popular, em vez das manifestaes cen-tradas no ideal de beleza e imitao, prprio da arte clssica8.

    Na ltima fase de sua vida, a tenso entre o lado doutrinrio e o lado oculto donacionalismo mrio-andradino se torna ainda mais complexa. Sustentculo de umnacionalismo musical difusamente democrtico ao longo de 20 e 30, Mrio de An-drade entra na dcada de 40 sob um profundo dilaceramento, medida que perce-be as contradies e os impasses do seu projeto esttico-ideolgico, e o engaja na

    luta de classes. Nos seus escritos dessa poca extremamente agudo o drama dointelectual burgus que deseja uma arte (em especial uma msica) que concilie po-sitivamente a sociedade (na utopia e na festa) mas que marque ao mesmo tempouma posio precisa na luta que a divide internamente. Como essa tarefa pareceser praticamente insustentvel, Mrio que se divide: de um lado a negatividadecrtica de O Banquete pe a nu os impasses da arte burguesa; pelo outro, emChostacovitch, exprime uma positividade comunista, uma apologia da arte soviticacomo realizao do ideal do artista til s massas, e com aplausos para o papel vi-

    8Gilda Rocha de Mello Souza, Vanguarda e Nacionalismo na Dcada de 20. InAlmanaque6. So Paulo. s.d.:78.

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    gilante do Estado estalinista (pai amigo e severo) quando este corrige os desvios doartista.

    Politicamente, Villa-Lobos e Mrio realizam, cada um a seu modo, tendendo paraa direita ou para a esquerda, ligando-se ao Estado Novo ou antecipando Zdanov, o

    horizonte de destino do projeto nacionalista: pedagogia coral emanada do artista aservio do Estado-Nao9(no tm uma sada para a possvel autonomia das cul-turas do povo a partir de suas bases). A viabilizao poltica encontrada por cadaum deve ser lida em confronto dialtico com o conjunto das suas obras, das quaisno esgota nem de longe o sentido, embora indicando-lhes refraes decisivas.

    DA REPBLICA MUSICAL I

    Ao projetar a hegemonia da msica erudita (bebida no ethospopular folclrico)sobre a msica popular-comercial urbana e as inovaes mais radicais da vanguar-da europia (o que se acentuar de certo modo no fim da dcada de 20, frente atuao no Brasil do professor e compositor Hans Joachin Koellreuter), o naciona-

    lismo brasileiro estava adotando sem saber a ltima soluo platnicapara aquesto da cultura frente ao avano crescente da indstria cultural.

    As discusses que pontuamA Repblica de Plato incidindo sobre o lugar polti-co-pedaggico da msica lanam luz sobre os rumos do nacionalismo musical noBrasil desde o Ensaio sobre a Msica Brasileiraat a atuao de Villa-Lobos no Es-tado Novo, regendo as grandes concentraes orfenicas em nome de uma concep-o cvico-autoritria copidescada pelo Departamento de Imprensa e Propagandado Estado Novo. Aqui no se pode falar em influncia, mas talvez de uma longapermanncia, na tradio ocidental, de um certo equacionamento dopoder psico-poltico-social da msica em vista de sua utilizao pelo Estado (como fator discipli-nador) em contraponto com a sua utilizao nas festas / ritos populares (comoelemento de propiciao da mania, isto , da possesso, do transporte dionisaco,do xtase, da liberao de energias erticas, da reverso pardica das hierarquias,ou da alegre dessublimao da corporalidade).

    O poder atribudo msica tem seu eixo numa ambivalncia consistente na con-cepo de que ela pode carrear as foras sociais para o centro poltico, conferindoao Estado, atravs de suas celebraes, um efeito de imantao sobre o corpo soci-al, ou ento, ao contrrio,pode expelir essas foras para fora do controle do Esta-do, para um regime de centrifugao onde elas se afirmam pela expatriao radi-

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    Talvez por isso mesmo Mrio de Andrade, que altura dos anos 40 radicalizava suas posi-es de esquerda e escrevia textos de crtica contundente ao Estado Novo (principalmentequando discutia msica, a exemplo de O Banquete), no critica a ao orfenica de Villa-Lobos. Ao contrrio: A lio mais profundamente humana que podemos colher da obra deum Villa-Lobos (e no toa que o grande artista dedicou grande parte de sua atividade formao de massas corais...) (...) (...) uma sadia e harmnica fuso social entre a arteerudita e o povo. (Distanciamentos e Aproximaes. In Msica, Doce Msica. So Paulo:Martins. 1963: 364.) O objeto de sua crtica, no mesmo texto, o esteticismo da vanguarda,as criaes exacerbadamente hedonsticas de um Lger na pintura, de um Schoemberg(sic) na msica, como de um Joyce na literatura. Ser escravo de uma classe (a burguesa)ou servidor da humanidade o que diferencia o gnio humano de um Cervantes do gnioclassista de um Proust, o gnio humano de um Villa-Lobos do gnio nazista de um Wagner(:366).

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    cal, longe da vida cotidiana, das ocupaes comuns, das servides impostas10. In-troduzindo no mais ntimo da alma o prprio nda questo poltica, isto , a justaafinao do individual para com o social (e Plato recorre imagem da harmoniasonoracomo metfora da justia e da harmonia da Polis) a msica aparece como oelemento agregador / desagregador por excelncia, podendo promover o enlace da

    totalidade social (quando o n pedagogicamente bem dado) ou preparando a suadissolvncia (quando no). Por isso mesmo, a educao repousa na msica, ela a imitaodo carter(elevado ou inferior) que redunda, por seus matizes ticos deprofunda repercusso subjetiva, no s na contemplao do belo, mas tambm nasconseqncias prticas da realizao da virtude. A adequada dieta msico-ginstica, base da formao do cidado, imprimiria nele o carter sensato e bom,enquanto o uso malbaratado da msica generalizaria, na concepo platnica, a

    feia expresso e os maus costumes.

    No pretendo nem de longe captar aqui a sutileza do pensamento platnico, massim colher os sinais, disseminados ao longo dessa verdadeira purga tica que ARepblica(no dizer de Adorno), de um modelo, historicamente recorrente, de reco-nhecimento e controle do poder da msica atravs de uma triagem do significante,que discrimina a msica aceitvel (elevada, liberadora de impulsos tico-sociais,afirmativos da cidadania e da pertinncia Polis) e a msica inaceitvel (vista comorebaixante, liberadora de impulsos orgistico-passionais, individualistas ou popula-res, isto , prprios dos excessos virtuossticos dos msicos profissionais ou dos ex-cessos festivos de escravos e camponeses).

    Ante a incisividade da msica como ocupadora ambivalente do corpo e da alma,torna-se necessrio fabricar o crivo capaz de separar a boa norma musical (cons-tituda paradigmaticamente pelas prticas que infundem ordem ao corpo social eelevam tudo o que estava cado na Cidade) dos maus usos e das inovaes, capa-zes de insinuar de maneira a mais sensvel a infrao da lei, produzindo umsilencioso deslizamento nos costumes e no modo de viver, e acabando por destruir

    toda a vida privada e pblica, j que no se pode modificar as regras musicaissem alterar ao mesmo tempo as maiores leis polticas11.

    Para efeito de coeso da Polis, Plato afirma a superioridade dos instrumentosmono-harmnicos (a lira e a ctara, instrumentos de Apolo) sobre os instrumentosde muitas harmonias e cordas (a harpa, o bombyx flauta elaborada e virtuossti-ca e o aulospopular, instrumento dionisaco). Gilbert Rouget observa que essasescolhas se do no quadro de uma condenao das inovaes musicais (e j vimoso carter catastrfico atribudo ao deslizamento da norma) e da resistncia ao tran-se12. Assim tambm, condenam-se as harmonias ldia mista, ldia densa, a jnia eoutras, tidas por propiciadoras da indolncia e efeminadas. Em contraposio, re-comendam-se as harmonias capazes de levar temperana, ao herosmo altivo, soberana aceitao da adversidade. Muito sintomaticamente tambm numa potica

    apolnea e antidionisaca como esta, indica-se a dominncia da poesia sobre a m-sica: o ritmo e a harmonia seguem a letra, e no esta a aqueles.

    Em Aristteles, a alteridade do significante que separa a msica superior e in-ferior mais ntida em termos de ethosmodais, alm de que o carter de classeque subjaz oposio salta ao primeiro plano.

    10Cf. Jean-Pierre Vernant, A Pessoa na Religio. In Mito e Pensamento entre os Gregos.So Paulo: Difel. 1973:279.11Plato,A Repblica:424.12Gilbert Rouget, La Musique et la Transe. Paris: Gallimard. 1980:267315.

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    O modo drico, tido como educativo, destina-se ao programa pedaggico dos fi-lhos bem nascidos, enquanto o uso do aulose o modo frgio, mais ligados a uma

    pathos do que a um ethos, satisfazem classe de pessoas grosseiras, compostasde artesos, trabalhadores e indivduos dessa espcie13.

    O motivo pelo qual uma diferena mnima entre dois modos musicais pode gerarconseqncias prticas to gritantemente opostas tem permanecido um verdadeirodesafio musicolgico. Uma interpretao recente tende a ver, no entanto, na dife-rena entre o drico e o frgio, mais do que uma modalizao dentro de um mesmosistema, a incisiva alteridade de sistemas entre um modo pentatnico sem meiotom e um modo heptatnico com semitom essa diferena sendo capaz de preci-pitar, somada s diferenas timbrsticas de instrumentos, de repertrio e de rituali-zaes que as acompanham, um verdadeiro abismo entre dois universos gestuais-sociais-religiosos: o da religio da Polise o da religio dionisaca14.

    Ao aspecto fortemente marcado (na religio da Polis) de integrao social deum culto cvico, cuja funo sacralizar a ordem, tanto humana quanto natural, epermitir aos indivduos se ajustarem, ope-se um aspecto inverso, complementar

    ao primeiro, e do qual se pode dizer em linhas gerais que ele se exprime no dioni-sismo, voz daqueles que no podem enquadrar-se inteiramente na organizaoinstitucional da Polis por estarem excludos da vida poltica; as mulheres, os escra-vos, os grupos campesinos alijados do controle do Estado. O dionisismo aparece,pois, com a voz da margem, das minoridades polticas, s quais oferece um qua-dro de agrupamento15.

    Assim d para entender os critrios musicais defendidos emA Repblica.A dic-ocomposta de uma s harmonia obedecendo a um s e mesmo ritmo constante,em detrimento da representao que necessita de todas as harmonias e de todosos ritmos por abarcar em si mesma variaes de todas as classes, corresponde religio da Polisonde, dos deuses at a Cidade, das qualificaes religiosas svirtudes cvicas, no existe ruptura nem descontinuidade. A norma musical depu-

    rada no uso exclusivo de certos instrumentos e certos modos cristaliza a mediaosocial fora da qual o indivduo acha-se desligado do mundo divino. (Perde aomesmo tempo o seu ser social e a sua essncia religiosa: no mais nada16.) Re-siste, pois, aos excessos individualistas do virtuosismo artstico e experincia reli-giosa diametralmente oposta do transe dionisaco. Com efeito, o que o dionisismooferece aos fiis mesmo controlado pelo Estado como ele o ser em poca clssi-ca , uma experincia religiosa oposta ao culto oficial: no mais a sacralizaode uma ordem qual preciso integrar-se, mas a libertao desta mesma ordem,das opresses que faz supor em certos casos. Busca de uma expatriao radical,longe da vida cotidiana, das ocupaes comuns, das servides impostas; esforopara abolir todos os limites, para derrubar todas as barreiras pelas quais se defineum mundo organizado: entre o homem e o deus, o natural e o sobrenatural, entre

    o humano, o animal, o vegetal, barreiras sociais, fronteiras do eu17.

    13Ver Gilbert Rouget, op. cit.:305.14Cf. Samuel Baud-Bovy, referido por Gilbert Rouget, op. cit.: 311 (quanto oposio entreo modo drico e o modo frgio). A oposio entre a religio da Polise a religio dionisaca,nos termos tratados aqui, feita por J. P. Vernant, op. cit..15Jean-Pierre Vernant, op. cit.:278279.16Idem, ibidem:278.17Idem, ibidem:279.

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    Para concluir essa separao entre dois modos religiosos que parecem conden-sar-se no conjunto de prticas que gravitam em torno da diferena aparentementeirrisria entre o drico e o frgio: O culto cvico se ligava a um ideal de sophrosyne,feita de controle, de domnio de si mesmo, situando-se cada ser em seu lugar noslimites que lhe so consignados. Ao contrrio, o dionisismo aparece como uma

    cultura do delrio e da loucura: loucura divina, que tomada como encargo, pos-sesso pelo deus18.

    DA REPBLICA MUSICAL II

    Em 1928 Mrio de Andrade, que dava cobertura terico-ideolgica aos composi-tores, propondo o desenvolvimento de um projeto nacional-erudito-popular para oBrasil, colocava a inteno nacionalista e o uso sistemtico da msica folclricacomo condio sine qua nonpara o ingresso e a permanncia do artista na repbli-ca musical, dizendo enfaticamente no seu Ensaio sobre a Msica Brasileira que ocompositor que no fizesse msica de cunho nacional (bebida na estilizao do po-

    pular rstico) funcionaria como pedregulho na botina a ser devidamente extirpa-do19.

    A busca de hegemonia nacionalista (alis amplamente obtida na produo musi-cal erudita brasileira at a dcada de 50), assentada sobre o critrio da eficciasocial, extraa a sua legitimidade da afirmada necessidade de determinar e norma-lisar (sic) os caracteres tnicos permanentes da musicalidade brasileira, presentes(segundo essa concepo) de modo inconsciente na msica popular folclrica tantoquanto ausentes da msica artstica de mera transposio europia20.

    A nova msica brasileira, produzida pela determinao do artista decidido a sebasear quer como documentao quer como inspirao no folclore, daria um rele-vo ao carter nacionalnele delineado da o destaque ao compromisso da msica

    artstica com a popular (no que esta perderia a sua primariedade incapaz de tota-lizar e aquela outra a sua irresponsabilidade desenraizada).

    O projeto explcito ser o de fazer a composio erudita beber nas fontes popu-lares, estilizando seus temas, imitando suas formas, em suma, incorporando a suatcnica. A preocupao nacionalista, voltada para o folclore, ser tomada comonorma, com acentuada intransigncia. Mas a passagem concreta do erudito ao po-pular, e vice-versa, permanecer sendo, sempre, o grande problema.

    Mrio alerta os compositores para alguns dos problemas implicados no projetonacionalista: o perigo do exotismo (quando o uso de elementos da msica popular,retirados de seu contexto, resulta simplesmente em efeitos pitorescos) e da banali-dade (j que a msica popular, muitas vezes aplicada s prticas rituais, danahipntica, dirigida ao corpo, fundamentalmente repetitiva, do que pode resultar

    em pura redundncia quando transposta para as formas que procedem pelo desen-volvimento progressivo e pela inovao dirigida ao intelecto como so as formas datradio sinfnica erudita). Alis, nesse ponto justamente que Schoenberg (aolado de um certo desprezo colonizante pelo mundo subdesenvolvido) fazia a suacrtica da msica nacionalista, vendo nela a unio espria dos procedimentos es-

    18Idem, ibidem:279.19Mrio de Andrade, op. cit.:18.20Idem, ibidem:28.

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    truturalmente reiterativos da msica do povo com os procedimentos estrutural-mente evolutivos da tradio erudita ocidental21.

    nesse ponto tambm que incide a oposio estabelecida por Mrio entre a m-sica interessada (aplicada por exemplo ao calendrio agrcola e religioso, como a

    popular rural) e a msica desinteressada (destinada a fins contemplativos, como amsica de concerto). o carter interessado da primeira que lhe d uma base re-petitiva (que se aplica ao ritual) e o carter desinteressado da segunda que lheimprime a desenvoltura evolutiva (dirigida inteleco da progresso das formas).

    A nova msica proposta por Mrio oscila entre ser interessada e desinteressa-da. Em certo momento, diz: O artista tem s que dar pros elementos j existentes(da arte nacional pronta na inconscincia do povo) uma transposio erudita quefaa da msica popular, msica artstica, isto : imediatamente desinteressada22.Duas pginas adiante, referindo-se ao movimento nacionalista, afirma: Pois todaarte socialmente primitiva que nem a nossa arte social, tribal, religiosa, come-morativa. arte de circunstncia. interessada. Toda arte exclusivamente artsticae desinteressada no tem cabimento numa fase primitiva, fase de construo23(e

    est se referindo ao critrio social que justifica a necessidade imperiosa do naciona-lismo musical).

    Em suma, o seu programa aponta para uma msica artstica que encontre aomesmo tempo uma nova funo prtica (a conquista da expresso nacional), e essadupla exigncia ter conseqncias sobre a forma, que ficar dividida entre o des-envolvimento construtivo e a redundncia caracterstica (bem realada nos tpicosostinatos s vezes caricatos da msica nacionalista). Vale lembrar que os pro-blemas colocados por Mrio (quando aconselha os msicos), por mais conscientesque possam ser, ficam sempre externos forma, o que no acontecer no Macu-nama, quando eles sero radicalmente enfrentados no interior da inveno.

    No Ensaio, Mrio discute a complexidade da msica popular folclrica, especial-

    mente no seu ritmo (decodificado muitas vezes pelos compositores eruditos comomeras sncopas), oscilante entre o fraseolgico e o metrificado (Mrio analisa a r-tmica popular brasileira como a superposio complexa de duas estruturas dife-rentes, a rtmica aberta da seqncia discursiva, que procederia por adio infinita,e a rtmica fechada da quadratura do compasso, que procederia por subdiviso pe-ridica, compreendendo a tensa condensao desses dois sistemas, um de origemnegro-indgena e outro de origem europia, como uma soluo original para asprprias tenses implicadas no processo de colonizao). No Ensaio, analisa aindaquestes de melodia, de harmonia, de polifonia, de instrumentao e de formaconstrutiva.

    A idia de carter nacionalrecessivo, adormecido nas fontes populares como omineral disperso sob o solo da variedade regional, de onde deveria ser extrado e

    fundido pelo esforo conjunto de artistas letrados salta vista, principalmente seno esquecermos que, exatamente no mesmo momento em que escrevia o Ensaio,Mrio de Andrade produzia tambm o Macunama, a rapsdia do heri sem ne-nhum carter.

    Recebendo injees macias de folclore (a expresso de Florestan Fernan-des), a msica nacionalista aproximaria intelectual e povo, separados por um abis-

    21Arnold Schoenberg. Las Sinfonias Folkloristas, in El Estilo y la idea:248257.22Mrio de Andrade, op. cit.:16.23Idem, ibidem:18.

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    mo cultural (formulvel, noutros termos, como alteridade de classe), e funcionariaao modo de uma panacia pedaggica para sanar (a nvel doutrinrio) aquela faltade carter que o Macunamaregistra na sua economia simblica como impasse.

    O programa tem uma tintura ao mesmo tempo ilustrada e romnticaque corres-

    ponde bem oscilao quase paradigmtica do intelectual letrado no Brasil frentes culturas do povo. O lado romntico marca a concepo do povo como fonte pro-digiosa da qual emana a cultura autntica e criativa, tesouro-inconsciente-coletivocapaz de transformar apersonaeuropeizante da nao, remetendo-a a um pontode equilbrio profundo onde se daria a individuao(a identidade atingida ao finalde uma via tormentosa de divises entre a mscara social dominante que mostraa fisionomia do colonizador ocupante e o rico repositrio submerso de smbolosque habita o inconsciente coletivo divisado na msica popular rural)24. Sabemosque Mrio de Andrade fez dessa verdadeira saga da identidade (projetada em cr-culos progressivamente abrangentes do plano subjetivo ao plano da sociedade-nao) o eixo da sua obra potica25. O lado ilustrado marca a concepo de povocomo massa analfabeta, supersticiosa, indolente, verdadeira tbula rasa necessita-da de conduo firme e elevao atravs da instruo letrada e da conscincia cvi-ca (em contextos mais crticos, de conscinciapoltica). Freqentemente essas duasatitudes aparecem separadas, mas so contrabalanadas como os dois lados deuma gangorra. Em alguns casos (e o de Mrio de Andrade) o intelectual quer sero orquestrador de sua prpria oscilante superioridade/inferiorioridade frente cul-tura popular, e se projeta imaginariamente num ponto-de-epifania de onde divisa oencontro das guas do povo opaco e do povo luminoso, redimidos da sua dualidadenuma nova unidade transparente e transformadora. Essa transformao, antevistadesse lugar que poderamos chamar de o ponto platnicoda questo moderna dacultura, s pode se dar, no entanto, graas e atravs da ao do intelectual-filsofoque pensa devolver s massas o seu populrio sonoro convertido em msica ar-tstica, propiciando atravs dessa converso o fortalecimento do debilitado carternacional (...os defeitos de nossa gente, rapazes, alguns facilmente extirpveis pelacultura e por uma reao de carter que no pode tardar mais, nossos defeitos im-pedem que as nossas qualidades se manifestem com eficcia. Por isso que o Brasi-leiro por enquanto um povo de qualidades episdicas e defeitos permanentes,diz ele)26.

    O tom abatido mas sobranceiro do texto de Mrio parece estar pedindo um mo-vimento poltico geral que ataque o problema nacional nas vrias frentes (estamoss vsperas da Revoluo de 30) mas a msica tem um lugar privilegiado nessequadro em que se constata uma espcie de doena da cultura (a incapacidade deafirmar a potencialidade produtiva da sociedade) e se prev a sua teraputica (pelorecurso s reservas de carter nacional adormecidas na msica popular). Atravsdessa curiosa operao desalienante, em que o povo-nao recobra o carter que

    lhe falta, o intelectual letrado-pedagogo fica no centro imaginrio, de onde procurareger o coro nacional, levando-o unidade harmnica. Seu papel aparentementemodesto de simples correia conversora (do popular primrio ao popular estetizado)

    24Os termos usados (inconsciente coletivo,persona, individuao), estranhos ao discursonacionalista, foram tomados propositalmente do contexto da conceituao junguiana, e usa-dos localmente aqui, pela sua adequao didtica ao andamento da exposio.25Conforme os estudos de Anatol Rosenfeld, Mrio e o Cabotinismo, in Texto / Contexto,So Paulo, Perspectiva, 1976, e de Joo Luiz Machado Lafet, Figurao da Intimidade, tesede doutoramento (mimeo.), USP, 1980.26Mrio de Andrade, op. cit.:72.

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    exponencial porque comanda idealmente a passagem da sociedade passiva so-ciedade ativa, ou seja, porque comanda a parte mais secreta e decisiva a partepsicossocial do processo poltico. Ele aparece de modo subjacente como o or-questrador da sociedade dividida ( nesse campo devidamente preparado que sevai erguendo a figura singular de Heitor Villa-Lobos).

    Se sociedade falta carter, a msica, no seu poder de re-produzir o carterelevado (j que investida de ethos no caso brasileiro triado da msica popularfolclrica), de generalizar os sentimentos e de agir sobre as massas (traduzido novalor social do ritmo coletivizador e da concentrao coral) aparece j como veculocapaz de promover a elevao de tudo que estava cado na Cidade (conforme nosdiz Plato). Mas o poder da msica, veculo privilegiado de transmisso social, multiplicado ainda mais no Brasil pela sua ampla penetrao, pelo fato de ser o lu-gar de produo de uma linguagem popular original (a msica popular a criaomais forte e a caracterizao mais bela de nossa raa, dizia Mrio de Andrade; na msica, entre todas as atividades artsticas, que o gnio brasileiro conseguiu re-alizar alguma coisa fortemente original e diferente dos moldes europeus, dizia ocrtico Luiz Heitor).

    Em suma, o programa nacionalista parece retirar o msico erudito dos confins dasua gratuidade (aonde o lana cada vez mais a modernizao de um pas perifricoe noalfabetizado) para coloc-lo, pelo menos desejadamente, no centro dosacontecimentos, promotor-beneficirio de um projeto de cultura centralizada e ho-mogeneizada pela convergncia dos traos comuns da psique social, tanto maisfortalecido pela convico de que a msica (e s a msica) pode desempenhar noBrasil essa funo de orquestrador da sociedade dividida, pela fora da sua difuso,e pelo fato de que, no seu campo e registro prprios, a msica popular no Brasil(resultante de um trabalho coletivo secular de apropriaes, selees e snteses cri-ativas) no ficaria a dever cultura erudita.

    Na batida do seu impulso de classe mdia pedagogizante, o paternalismo nacio-

    nalista tem forte atrao para orfeonizar o pas. Pouco tempo antes de Villa-Lobosdesencadear a sua famosa arremetida coral, que se alastrou como um movimentodidtico-poltico-musical que implantou na escola do Estado Novo o ensino do cantocoletivo, Mrio de Andrade tambm louvava as possibilidades teraputicas de mas-sa que se pode extrair da prtica generalizada do canto em comum. Vale a penaler a longa perorao do seu Ensaio sobre a msica brasileira:

    Mas os nossos compositores deviam de insistir no coral por causa do valor socialque ele pode ter. Pas de povo desleixado onde o conceito de Ptria quase umaquimera a no ser pros que se aproveitam dela; pas onde um movimento maisfranco de progresso j desumaniza os seus homens na vaidade dos separatismos;pas de que a nacionalidade, a unanimidade psicolgica, uniformes e comoventes

    independeram at agora dos homens dele que tudo fazem pra desvirtu-las e es-trag-las; o compositor que saiba ver um bocado alm dos desejos de celebridade,tem uma funo social neste pas. O coro unanimiza os indivduos. (...) A msicano adoa os caracteres, porm o coro generaliza os sentimentos. A mesma douramolenga, a mesma garganta, a mesma malinconia, a mesma fercia, a mesma se-xualidade peguenta, o mesmo choro de amor rege a criao da msica nacional denorte a sul. Carece que os sergipanos se espantem na doura de topar com umverso deles numa toada gacha. Carece que a espanholada do baiano se confrater-nize com a mesma baianada do goiano. E se a rapaziada que feriram o assento nopastoreio perceber que na ronda gacha, na toada de Mato Grosso, no aboio doCear, na moda paulista, no desafio do Piau, no coco norte-rio-grandense, umachula do rio Branco, e at no maxixe carioca, e at numa dana dramtica do rio

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    Madeira, lugar de mato e rio, lugar que no tem gado, persiste a mesma obsessonacional pelo boi, persiste o rito do gado fazendo do boi o bicho nacional por exce-lncia... possvel a gente sonhar que o canto em comum pelo menos conforteuma verdade que ns no estamos enxergando pelo prazer amargoso de nos estra-garmos pro mundo...27

    Olhado no conjunto, o ciclo modernista do nacionalismo musical compreende as-sim uma pedida esttico-social: sintetizar e estabilizar uma expresso musical debase popular, como forma de conquistar uma linguagem que concilie o pas na hori-zontalidade do territrio e na verticalidade das classes (levantando a cultura rsticaao mbito universalizado da cultura burguesa , e dando produo musicalburguesa uma base social da qual ela est carente).

    O pulular irrequieto da msica urbana espirrou fora do programa nacionalistaporque ele exprime o contemporneo em pleno processo inacabado, mais dificil-mente redutvel s idealizaes acadmicas de cunho retrospectivo ou prospectivo.Dupla novidade, como emergncia do popular recalcado no mbito da cultura pbli-

    ca brasileira, atravessando uma rede de restries coloniais-escravocratas, e comoemergncia dos meios modernos de reproduo eltrica, a msica popular brasileiraurbana lanava em jogo os elementos sintomticos de um flagrante desmentidodescentralizador s concepes esttico-pedaggicas do intelectual erudito, pro-metendo um abalo decisivo no seu campo de atuao.

    A intelectualidade nacionalista no pde entender essa dinmica complexa quese abre com a emergncia de uma cultura popular urbana que procede por apropri-aes polimorfas junto com o estabelecimento de um mercado musical onde o po-pular em transformao convive com dados da msica internacional e do cotidianocitadino. Como vem no popular distanciado um ethos platnico, acham que eledeve retornar de forma organizadamente pedaggica para devolver o carter perdi-do pela cultura de massas. Acontece que esse retorno nunca pode se dar, essa re-

    gresso origem no encontra o intervalo para se impor, arrastada na esteira doprocesso tecnolgico-econmico onde rola o caos heteronmico do mercado.

    Em vez de olhar de frente esse processo, o programa musical nacionalista resisteat quando pode de forma bastante compreensvel, diga-se ao deslocamentosofrido pela arte na modernidade capitalista, procurando desviar os seus sinais nadireo de uma investidura cvico-pedaggica que buscar apoio no Estado fortecarente de legitimao. Com isso, recusar, junto com Plato, as inovaes musi-cais que sinalizam o desenvolvimento da linguagem, por um lado (na forma devanguarda radical atonal), e as msicas popularescas, carnavalescas e outras quedenunciam o carter multiforme das interpenetraes lrico-satrico-pardico-festivas da msica popular urbana (cujo pique, lastreado de fato numa rica tradiopopular convergente para assimilaes de todo tipo, at hoje no se esgotou aindano campo padronizante tendencial da indstria cultural).

    Quando perdeu esse bonde, o intelectual organizador-da-cultura no Brasil seatrasou de maneira bsica, sempre tendendo a reduzir o popular ao mito da origem(e da pureza das razes, romanticamente) e / ou ao mito dos fins (plenitude daconscincia realizada, mito ilustrado), na modalidade normativa ou instrumental,mas nunca no campo do complexo-contraditrio-contemporneo, campo de afirma-o das mltiplas leituras e escrituras corporais (quanto mais numa cultura sincr-tica), campo de afirmao potico-religioso-sexual do trabalho e do cio, tendendo

    27Idem, ibidem:6466.

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    converter toda as diferentes direes da energia para o canal cvico-poltico, comsua cruzada de contedos.

    Do gramofone ao cinema falado (Villa-Lobos 1929)

    (A stima arte toca os sete instrumentos da civilizao moderna)

    Vim ver o Rio, que tanto adoro, e fiquei triste com os que o esto afeiando detantos rumores diferentes e desgraciosos. O Rio est gramofonizado, horrivelmentegramofonizado...Toca-se, aqui, hoje em dia, tanta victrola, tanta radiola, tantameia-sola musical do momento, do meio da rua, COMO NO SE V EM NENHUMAPARTE DO MUNDO DENTRO DE CASA, NOS BURGUESES SERES DE FAMLIA... Omal, alis, no estar no nmero e na difuso dessa msica mecanizado do sculo,mas na sua qualidade. E com isto no me refiro aos trechos de orquestra, aos solosem diversos instrumentos, por notabilidades mundiais, s melosas rias do bel-canto ou s alucinaes dojazznorte-americano. A ns, brasileiros, que possumosuma arte popular to rica e variada com de nenhum outro povo posso agoraafirm-lo mais do que nunca a ns deve cada vez interessar menos a arte alheia,para que melhor realizemos e imponhamos a nossa em toda a sua beleza e origina-

    lidade, em respeito mesmo ao que dela se acaba de dizer e de pensar na Europa,ATRAVS das minhas composies e dos meus concertos. Os nossos gravadores dediscos, porm, os comerciantes de nossa msica popular, esto muito desorienta-dos. Aceitam tudo, gravam tudo, o que um erro, pois eles que deveriam con-correr para educar o povo e o conseguiriamMAIS FACILMENTE DO QUE NS, OSARTISTAS, graas aos elementos de que dispem. Outra coisa que tambm me en-tristeceu desta vez no Rio: a precria situao em que vo ficando os nossos msi-cos de orquestra, esses hericos e tradicionais lutadores pela vida, com a institui-o do cinema falado. Eu, que passei por l, e que sei das dificuldades que tem otocador de qualquer instrumento para viver, porque nem sempre possvel ganhar-se ao menos o po ensinado, eu bem percebo o negro quadro que se desenha emfrente aos nossos msicos de orquestra, que j esto ficando inteiramente abando-nados por causa dos filmes, que CANTAM, DANAM E TOCAM OS SETE

    INSTRUMENTOS DA CIVILIZAO MODERNA. O cinema-falado uma maravilha,est certo. Mas o ARTISTA INDISPENSVEL s coletividades e eu penso que o quese devia fazer em toda parte do mundo era o que determinou MUSSOLINI, na It-lia: aproveitar o msico de qualquer maneira. Ora, por exemplo, nas salas de es-pera dos cinemas. Aqui mesmo, no Rio de h tantos anos passados, a orquestrasala de espera do Odeon chegou a ser famosa...28

    [...]

    DA REPBLICA MUSICAL III

    A cena cultural do nacionalismo modernista interessante-instrutivo-dramtico-pattica como primeiro momento de confronto entre o intelectual letrado burgus e

    as culturas populares no territrio urbanoindustrial quando a msica popular seabre num leque que vai do folclore aos meios de massa, cruzando na transversalesse campo contraditrio e deixando a msica de concerto meio nua na sua condi-o precria de exerccio imitativo de procedimentos europeus (Il neige!) reduzidoa elites.

    Com a emergncia dos meios de massa a msica da repetio(msica do discoe do rdio proliferante no espao da cidade) d um rude golpe na msica erudita,

    28O Globo, Rio de Janeiro, 20.7.1929. Recortes Mrio de Andrade. IEBUSP. Os grifos dis-paratados so propositalmente meus.

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    pertencente a outro sistema de produo e reproduo, o sistema de representaono espao separado do concerto. O que suficiente para fazer com que alguns m-sicos mais ativos se sentissem reduzidos a uma condio francamente decorativaperante a penetrao crescente da cano das ruas com funo lucrativa e utilit-ria.

    O Estado autoritrio aparece ento como uma espcie de socorro para o msicoerudito perdido em meio ao campo da Arte inteiramente revirado pela nova econo-mia poltica da cultura capitalista, marcada pelo mercado dos objetos em srie.Respaldada por Getlio Vargas, a contra-ofensiva orfenica de Villa-Lobos (ligada auma antiga tradio tendente a fazer da msica o elemento de unificao e deimantao da sociedade em torno do Estado, como se v desdeA RepblicadePlato) busca reconquistar ativamente para a grande Arte o seu prestigioso papelde portadora do sentido da totalidade, perdido no vrtice galopante da crise mo-derna.

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    OS CHOROSE O SAMBA CLSSICODO CABOCLO-DOIDO

    Filho de um funcionrio da Biblioteca Municipal do Rio (Raul Villa-Lobos, profes-sor e autor de livros de histria e cosmografia, alm de instrumentista amador),Heitor Villa-Lobos foi educado para ser mdico e msico, formado no estudo do vi-oloncelo e na admirao de Bach. Mas fascinado pela msica dos chores cariocas(nos diz a lenda biogrfica) tocava clandestinamente violo e saltava a janela doquarto em busca das noitadas musicais. Atravessando esse umbral domstico re-velia do modelo paterno, Villa-Lobos estava devassando uma das fronteiras impos-tas pelo mapeamento cultural da Primeira Repblica, onde o violo, o choro e aseresta (sem falar nas batucadas) eram repelidos do estreito conceito de cidadaniamoral e esttica (e reprimidos policialmente, quanto mais populares). No entanto, e

    justamente enquanto o Villa-Lobos adolescente pulava a janela, as resistncias msica popular urbana (smbolo tradicional do desregramento dominante) estavamsendo minadas em vrios pontos medida que as massas emergiam para o capitalcomo mo-de-obra assalariada flutuante e mal absorvida, na sociedade ps-escravocrata em trnsito para o modo de produo de mercadorias1: quando asformas de msica popular produzidas pelos grupos negros e bomios despontarocom brilho e relevo no mercado fonogrfico.

    Para entendermos o lugar que o artesanato musical dos chores ocupava nessaeconomia cultural em transformao, com seus hbeis instrumentistas (em geraldoublsde funcionrios pblicos e bomios, biscateiros musicais das orquestras decinema e restaurante, s vezes msicos de banda), vamos passar antes por um lu-gar estratgico do processo de resistncia s marginalizaes sofridas pelos grupos

    populares em suas prticas culturais: a famosa casa da Tia Ciata, onde surgiu dasimprovisaes coletivas o samba Pelo Telefone, lanado por Donga em 1917, e queconsagrou o gnero.

    Freqentada, alm de Donga, por Joo da Baiana, Pixinguinha, Sinh, Caninha,Heitor dos Prazeres, a casa onde morava a respeitada babala-miri baiana casadacom o mdico negro Joo Batista da Silva, centro de continuidade da Bahia ne-gra... no Rio, vem descrita no livro de Muniz Sodr, Samba: o dono do corpo2:

    A habitao segundo depoimentos de seus velhos freqentadores tinha seiscmodos, um corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas, realizavam-sebailes (polcas, lundus, etc.); na parte dos fundos, samba de partido alto ou samba-raiado; no terreiro, batucada.Metfora viva das posies de resistncia adotadas pela comunidade negra, a casacontinha os elementos ideologicamente necessrios ao contato com a sociedadeglobal: responsabilidade pequeno-burguesa dos donos (o marido era profissionalliberal valorizado e a esposa, uma mulata bonita e de porte gracioso); os bailes nafrente da casa (j que ali se executavam msicas e danas mais conhecidas, maisrespeitveis), os sambas (onde atuava a elite negra da gingae do sapateado) nos

    1Cf. Francisco de Oliveira, A Emergncia do Modo de Produo de Mercadorias: uma inter-pretao terica da economia da Repblica Velha no Brasil. In Boris Fausto (org.), O BrasilRepublicano(estrutura do poder e economia). So Paulo: Difel. 1975:391414.2Muniz Sodr, Samba: o dono do corpo. Rio de Janeiro: Codecri. 1979.

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    fundos; tambm nos fundos, a batucada terreno prprio dos negros mais velhos,onde se fazia presente o elemento religioso bem protegida por seus biombosculturais da sala de visitas (noutras casas, poderia deixar de haver tais biombos:era o alvar policial puro e simples)3.

    A imagem da polarizao da casa, resguardada por esses biombossutilmentedevassveis, resulta, como foi bem lida por Muniz Sodr, numa metfora viva doterritrio / limite em que se davam os avanos e recuos de um novo modo de pe-netrao urbana para os contingentes negros, que lutavam com a cortina de mar-ginalizao erguida (contra eles) em seguida Abolio, reelaborando os elemen-tos da tradio cultural africana numa gradao entremostrada.

    A riqueza da metfora admite a tentativa de tom-la como base de um mapa davida musical da capital do Brasil do comeo do sculo, pois a tenso entre o salo eo terreiro, entre o que se mostra e o que se oculta, separados por biombos que va-zam sinais nas duas direes, significativa do prprio processo de interpenetraode culturas que vinha ocorrendo.

    Da sala de visitas ao terreiro de candombl, passando pelo samba raiado(ondes se destacavam os bambas da perna veloz e do corpo sutil), polarizam-se doisuniversos diferentes (na ritualidade, na corporalidade, na sociabilidade), o da or-dem religiosa mgica espiritual do mundo negro e o da ordem da convivncia /festejo de salo que a sala de visitas prope e (meio que) imita.

    A contigidade dessas duas ordens e o modo como elas se negam e se traduzemfaz pensar na dialtica da malandragem (que segundo Antonio Candido incor-porada estrutura narrativa do romance Memrias de um Sargento de Milciascomo modo de representao da estrutura social brasileira no comeo do sculoXIX4). A dialtica da malandragem tanto mais saliente se lembrarmos que o mari-do de Tia Ciata tornou-se mais tarde chefe de gabinete do Chefe de Polcia de Wen-

    ceslau Brs: temos a, como no romance de Manuel Antnio de Almeida, aquelaestratgia de convivncia dctil e capciosa entre os imperativos da conduta res-peitvel e os procedimentos da religio e da festa popular, vizinha, nas culturas dopovo, da pardia da classe dominante e da carnavalizao das suas imagens de po-der e da sua verso da histria.

    Na verdade o processo tem mo dupla, e a alteridade das culturas projeta-senuma espcie de jogo de espelhos confrontados, regido certamente ainda pela di-nmica do favor, pois enquanto o negro avana para o lugar pblico onde se faz re-conhecvel e reconhecido, apropriando-se, mimetizando ou distorcendo a seu modoformas de cultura branca de base europia, os polticos e intelectuais brancos voao candombl e apadrinham o samba, reconhecendo nele uma fonte de autentici-dade nacional que os legitima5.

    3Idem, ibidem:20.4Antonio Candido, Dialtica da malandragem. In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros8. So Paulo: USP. 1980.5Eis aqui um campo de problemas aberto reflexo no estudo da msica brasileira: as in-terpenetraes que se do na vida musical do Rio de Janeiro a partir do fim do sculo XIX,matriz cultural do populismo, poderiam ser pensadas como desdobramento ps-abolio daordem do favorna sociedade escravocrata (analisada e interpretada em suas conseqnciasideolgicas e literrias em Roberto Schwarz emAo Vencedor as Batatas. So Paulo: Duas Ci-dades. 1976).

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    So muitos os casos curiosos, dessa poca, exemplos do entreabrir-se paterna-lista do futuroso filo populista.

    Na campanha eleitoral de Jlio Prestes Presidncia, o sambista Sinh, o traomais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade e culta s camadas

    profundas da ral urbana (nas palavras de Manuel Bandeira)6

    , foi com seu con-junto Embaixada do Amor ao Palcio dos Campos Elsios. L organizou-se entouma festa ntima que, se terminou meia-noite com o Hino Nacional, teve seuspontos altos no momento em que O Sr. Jlio Prestes gemeuno pinho lembrando-se daqueles tempos (...) em que era bomio. (...) E todos cantavam e danavam. o que se pode dizer um sucesso real! Num dos belos sales dos Campos Elsios,toda a famlia Jlio Prestes, inclusive o Presidente eleito e o velho Coronel FernandoPrestes, entravam no coro samba de Sinh:

    Ora vejam sA mulher que eu arranjeiEla me faz carinho

    At demaisChorando ela me diz meu benzinhoDeixa a malandragemSe s capaz.

    A malandragemEu no posso mais deixarJuro por DeusE Nossa Senhora mais fcil ela me abandonarMas Deus do CuQue maldita hora!7

    (Tudo isso sem nenhum prejuzo evidente do fato de que o sambista SalvadorCorrea, diretor da Embaixada, era autor do seguinte estribilho: Estava na rodado samba / Quando a polcia chegou / Vamos acabar com este samba / Que seudelegado mandou.)

    [...]

    Outros indicadores do trnsito de sinais musicais filtrando-se atravs dos biom-bos a presena de artistas com informao erudita que se tornam mediadores damsica popular e que so admitidos por essa poca nas salas-de-concerto: em1908 Catullo da Paixo Cearense apresentou-se no auditrio da Escola Nacional deMsica, com sucesso; em 1922 a presena de Ernesto Nazareth em recital na

    mesma Escola provocou tumulto com interveno policial.Catullo: poetastro modinheiro, trovador semiparnasiano que infundia cadncias

    plangentes e nostlgicas (sempre nos motivos da dor e do luar) aos movimentosritmados da msica instrumental (principalmente a de Anacleto de Medeiros), jac-

    6Manuel Bandeira, Crnica da Provncia do Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira.1937:108110. Citado por Vasco Mariz emA Cano Brasileira. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira / MEC. 1977:203.7Francisco Guimares (Vagalume), Na Roda do Samba. Rio de Janeiro: MEC / FUNARTE.1978:60.

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    tando-se de ser o Rei dos Cantores e o introdutor do violo e da modinha no con-certo clssico (no monumental Choros n. 10 para orquestra e coro misto, de quefalarei mais adiante, Villa-Lobos utilizou com grande relevo o Rasga-Corao,cano com letra de Catullo sobre adaptao do xote Iara, de Anacleto de Medei-ros). Nazareth: conhecedor do pianismo chopiniano, compositor sensacional que

    fora colocado nas nuvens pelo francs Darius Milhaud em sua passagem pelo Brasil,transmissor do maxixe ricamente desenvolvido e ciosamente resguardado sob a ru-brica mais apresentvel (segundo seus prprios critrios) de tango brasileiro).Alm destes, Joo Pernambuco, violonista que tocava nos choroso junto com Villa-Lobos, que aprendera violo com cantadores e violeiros nordestinos, operrio noiRio e depois funcionrio pblico, desenvolveu a sua tcnica parecida na mo di-reita com a de Segovia e deu recital na Cultura Artstica de So Paulo, em 1915.

    O caso de Stiro Bilhar, exemplarssimo funcionrio da Estrada de Ferro Central,mostra que os biombos culturais devassveis passavam a ser um dado interno prpria tcnica musical: no seu modo exmio e peculiarssimo de tocar violo, StiroBilhar estilizava a mesma composio (entre as poucas que tinha) conforme asconvenincias do pblico a quem tocava, em gradaes nuanadas do popular aoerudito. O depoimento de Donga: Stiro foi o violonista mais original que conhe-ci... Ele tinha duas ou trs composies s, e s tocava aquilo. (Villa-Lobos diziaque no era o que Stiro tocava, mas como tocava que era genial.) Tinha umaque ele denominava de vrias maneiras, Sonsno sei de que, uma denominaoclssica. Daquilo ele fazia tudo, clssico, popular, virava tudo, tocava pra c, tocavapra l, em cada lugar, conforme a casa e o ambiente tocava aquilo8.

    Vista assim, a simbologia da casa de Tia Ciata, sugerida por Muniz Sodr, aomesmo tempo que d forma a um movimento de afirmao de contingentes negrosno espao social do Rio de Janeiro, capta e configura em suas prprias disposiese tticas de funcionamento o modo de articulao mais geral das mensagens cul-turais da sociedade, que eu quero sistematizar e desdobrar assim:

    O ncleo:

    sala fundos terreiro

    que dispe os planos das danas de salo, do sambae do candombl, poderia ser desdobrado segundo o leque de espaos culturais, eteramos que o salo-de-dana-piano respeitvel contguo, nessa topologia musi-cal urbana, ao sarau (sala onde a msica passa a ser a motivao da dana paraobjeto de contemplao amena) e esse sala de concerto (onde a contemplaoauditiva mais ritualizada e o repertrio investido de uma aura museolgica maisdestacada).

    sala-de-concerto sarau salo-de-baile quintal-de-samba terreiro-de-candombl9

    8Citado por Hermnio Bello de Carvalho em Villa-Lobos e o Violo, palestra publicada emPresena de Villa-LobosIII. Rio de Janeiro: MEC / Museu Villa-Lobos. 1969:140141.9Se quisermos tirar este esquema de dentro da metfora da casa, como conviria a uma des-crio concreta da diversidade das prticas musicais do Rio no comeo do sculo, bem comoa uma representao menos domsticada sociedade, seria preciso levar tambm em consi-derao os cafs-cantantes, os bailes populares, os teatros de revista. Jos Ramos Tinhorod excelente material para isso, em Os Sons que Vm da Rua. Rio de Janeiro: Edies Ti-

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    gramofone

    rdioNa linha horizontal perfazem-se passagens do popular ao erudito atravs de si-

    napses que marcam as fronteiras culturais do nervosismo social, ao mesmo tempoque deixam vazar alguns sinais que, vindos das duas direes, querem percorrertodo o sistema. Sambista, anteprojeto do artista, diria Paulo da Portela num dosseus sambas, indicando o desejo de reconhecimento e da cidadania que animaparte da cultura negra a buscar posio no sistema sociocultural, e que levaria oprprio Paulo a ser eleito Cidado-Samba na dcada de 30.

    (A linha oblqua marca, por sua vez, a ramificao mercadolgica de massa quedeu inesperada margem de penetrao alternativa msica popular, correndo porfora do sistema de difuso da arte).

    Aparentemente, se tomamos como referncia a linha horizontal que vai do can-dombl ao concertoatravs de uma srie de gradaes, estaria diluda inteiramentea luta de classes no conjunto da vida cultural (j que teramos uma diferena me-ramente quantitativa entre o erudito e o popular). Mas a coisa mais complicada. verdade que opopulismo que est se armando a atenua a luta de classes no jogode imagens de um paternalismo de novo tipo onde cultura dominante e culturas dopovo buscam referendar-se num espelhamento, mas o que ele faz colocar a lutade classes no ponto invisvel, no lugar onde ela no parece estar.

    Em primeiro lugar, a polaridade social fica marcada nos pontos terminais dessacadeia, onde a ideologia tem seu ponto de fora: de um lado o ritual religioso po-pular, de outro, o ritual esttico burgus (e essa oposio mais poltica do que sepossa imaginar). Em segundo lugar, j que os signos de classe se confundem em

    seu movimento de ida e volta, onde parecem encontrar-se nos mesmos pontos,eles se distinguem e conflitam (e nisso reside ao mesmo tempo a alteridade declasse e a alteridade do significante) exatamente pelo sentido estratgico do seumovimento.

    Como expresso da marginalidade dos grupos dominados, a ocupao do lugaratravs dos biombos corresponde a uma estratgia popular de resistncia onde,procedendo por avanos e recuos, escaramuas e escamoteamentos, reage-se excluso e firma-se uma identidade polarizada pelo seu ponto mais encoberto: aprtica religiosa.

    Como expresso da cidadania cultural no domnio da Polisburguesa, a ocupaode lugar atravs dos biomboscorresponde a uma estratgia de dominao imagi-

    nria de todo social atravs de sua representao esttica, o que aparece princi-palmente na estratgia de totalizao esttica que quer unir a diversidade socialpara resgatar a unidade harmoniosa da sociedade fragmentada (e nesse sentidoexpressa tambm uma resistncia frente perda de valores a aura da obra dearte, por exemplo com o avano da modernidade capitalista).

    Curiosamente, a primeira estratgia, a dos dominados, vai encontrar seu canalde escoamento social no mercado de msica nascente (e passa da por todo um

    nhoro. 1976, e na Pequena Histria da Msica Popular(da modinha cano de protesto).Petrpolis: Vozes. 1978 (em especial no captulo sobre o maxixe).

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    processo de afirmao e mistura, convertendo o modo comunitrio primitivo deproduo do samba num modo individualizado com suas poticas e seus melo-dismos de autor e procedendo por uma verdadeira guerra de apropriaes auto-rais na fase selvagem de corrida ao mercado)10. A msica popular negra, que temseu lastro no candombl, encontra portanto um modo transversal de difuso (a in-

    dstria do disco e o rdio); e as contradies geradas nessa passagem certamenteque no so poucas, mas ela serviu para generalizar e consumar um fato culturalbrasileiro da maior importncia: a emergncia urbana e moderna da msica negracarioca em seu primeiro surto, que mudou a fisionomia cultural do pas. Enquanto onacionalismo musical quer implantar uma espcie de repblica musical platnicaassentada sobre o ethos folclrico (no que ser subsidiado por Getlio), as mani-festaes populares recalcadas emergem com fora para a vida pblica, povoando oespao do mercado em vias de industrializar-se com os sinais de uma gestualidadeoutra, investida de todos os meneios irnicos do cidado precrio, o sujeito dosamba, que aspira ao reconhecimento da sua cidadania mas a parodia atravs deseu prprio deslocamento.

    Por sua vez, sem acesso ao mercado e sem a mesma fora de expanso, o outroplo forte de afirmao musical, isto , o projeto de representao elevada datotalidade social pela grande arte, buscar meios de escoamento social no apoio doEstado (primeiramente invocado de maneira implcita na pedagogia nacionalista de20, e mais tarde, amplamente desenvolvido no programa do Canto Orfenico, du-rante a dcada de 30 rumo ao Estado Novo).

    O choro e a seresta (contguos no espao bomio mas diferentes na forma e nocontedo, instrumental de cmara o primeiro, cantada e lrico-plangente a segun-da) ocupam a meu ver um lugar paralelo e elstico entre o samba, o salo e o sa-rau, verdadeiras capelas ambulantes (na expresso feliz de Adhemar Nbrega11)tangenciando a batucada e aspirando eventualmente ao statuserudito. Tanto as-sim, fronteirio e ambivalente o lugar social do choro, que dele do duas verses

    curiosamente opostas Pixinguinha e Donga. Donga: Todos os pais daquela pocano queriam o cidado no choro porque era feio, era crime previsto no Cdigo Pe-nal. O fulano (polcia) pegava o outro tocando violo, esse sujeito do violo estavaperdido, perdido! Mas perdido, pior que comunista. Muito pior. Isso verdade o queestou lhe contando, no era brincadeira no. O castigo era serssimo. O delegado tebotava l umas 24 horas12. Pixinguinha: O choro tinha mais prestgio naqueletempo. O samba, voc sabe, era mais cantado nos terreiros pelas pessoas muitohumildes. Se havia uma festa, o choro era tocado na sala de visitas e o samba, sno quintal, para os empregados13.

    J na sua constituio o choro um gnero de sntese instrumental baseado naimprovisao inteligente a que se referia Villa-Lobos. Espao de convergncia datcnica musical da cidade, assentado na classe mdia (seus msicos: funcionrios

    de repartio, carteiros, oficiais, msicos formados em escola e mais alguns traba-lhadores manuais, malandros profissionais e um que outro doutor desgarrado, pro-duzindo um gesturio sonoro original rabiscado de traos eruditos e populares, o

    10Samba que nem passarinho: do primeiro que pegar (frase famosa de Sinh).11Adhemar Nbrega, Os Choros de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC / Museu Villa-Lobos.1975. Sobre o mesmo assunto, ver tambm Jos Maria Neves, Villa Lobos, o choro e osChoros. So Paulo: Ricordi. 1977.12Citado por Hermnio Bello de Carvalho no texto referido nota 8, p. 20.13Muniz Sodr, op. cit.:62.

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    choro funcionou para Villa-Lobos (o Violo Clssico era seu apelido entre os msi-cos) como uma espcie de olho mgicoatravs do qual ele enxergou a msica bra-sileira.

    A exposio cabal dos cmodos contguos da vida musical dependia de momen-

    tos mais acentuados de verdadeiro devassamento dos biombos culturais, quando asrestries que separam as prticas musicais de grupos e classes so suspensas e asdiferenas expostas de maneira simultnea, provocando um efeito de estranha-mento na emergncia do recalcado. Esse devassamento, na dcada de 20, operou-se progressivamente atravs da expanso de dois fatores: o carnaval brasileiromoderno e a sinfonizao das disparidades musicais do pas levadas a efeito por Vi-lla-Lobos.

    O carnaval enquanto movimento ofensivo da estratgia de afirmao dos gruposmarginais ocupa e desapropria simbolicamente o espao urbano, desrecalcandonum caleidoscpio extrovertido toda a gama de gestos corporais / sonoros das ba-tucadas, sambas, maxixes, marchinhas, modinhas e danas de salo, dramatizadosna interpretao pblica dos ranchos, cordes, afoxs, blocos e, pouco a pouco e

    mais e mais, das escolas de samba.A sinfonizao nacionalista, entendida no sentido amplo como conjunto de peas

    artsticas que obedeceu estratgia de controle simblico da totalidade social14,busca representar a nao sintetizando o seu espectro cultural de modo a conferir-lhe uma unidade sublimada, mas, no caso das elaboraes villa-lobsticas, ao preode expor em blocos aglomerados um painel explosivo das prticas musicais diferi-das.

    Odevassamento carnavalesco, cuja maior fora est em no poder ser trans-posto, porque se d no momento da sua experincia mltipla (musical, gestual, se-xual, etc. etc.) tende a ser modificado na medida em que a irrupo que provocabusca reconhecimento oficial, isto , busca para a comunidade popular negra mar-

    ginalizada a cidadaniaque ser tipificada na eleio de Paulo da Portela cidadosamba, e desenhar nos seus desfiles um novo fraseado apologtico (que se fixouprincipalmente depois dos carnavais de guerra do Estado Novo)15. O devassa-mento sinfonizante nacionalista por sua vez vir marcado por um forte didatismopaternalista (simtrico apologtica sambstica); a tenso entre a franca irrupocarnavalizante e um severo escrpulo pedaggico (paternalista e/ou autoritrio)marca o itinerrio de Villa-Lobos. Na batida do populismo, o carnaval emergenteem busca de cidadania ganha traos sinfnicos, e a sinfonizao nacionalista levadaa efeito por Villa-Lobos no se faz sem passar por um devassamento carnavalizanteda msica brasileira.

    A sinfonia nacionalistaj vinha sendo esboada de longa data.

    No programa para o poema sinfnico Brasil, lanado peloJornal do Brasilem1921, Coelho Neto buscava um compositor erudito que escrevesse uma histriamusical apologtica do pas que culminaria no tranado das formas populares ren-didas ao Hino Nacional (com o que Coelho Neto parecia querer converter a econo-

    14No estou usando portanto do sentido habitual de sinfoniacomo gnero de msica or-questral do sculo XIX. Penso, isto sim, num conjunto de obras de vrios gneros que unemateriais sonoros os mais diversos para extrair da um efeito de totalizao.15A trajetria do sambista muito bem apresentada no livro de Marlia T. Barbosa da Silva eLygia Santos, Paulo da Portela: trao de unio entre duas culturas. Rio de Janeiro: MEC /FUNARTE. 1979.

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    mia carnavalesca da festa popular religiosa, orgistica e pardica numa batidade desfile militar do Dia da Ptria, reduzindo a sua horizontalidade mltipla a umahierarquizao vertical autoritria e monocrdica)16.

    No encontrando nenhum msico que empeitasse o seu programa sinfnico, Co-

    elho Neto, que tambm era chegado s sociedades carnavalescas, consegue intro-duzir-lhes uns enredos cvicos. Numa crnica publicada tambm noJornal do Brasillogo depois do carnaval de 1923, apela para o patriotismo das pequenas socieda-des (os ranchos) no sentido de apresentarem como enredo de seus prstitos temasde carter estritamente nacional17. No ano seguinte o Ameno Resed, rancho doqual participavam destacados polticos, literatos e bem-sucedidos profissionais li-berais, inclusive o prprio Coelho Neto, saa com o enredo Hino Nacional. Visto poresse lado, nada nos impede de pensar que no s a proposta do rancho cvico-carnavalesco, mas o prprio programa do poema sinfnico Brasilj era, na verda-de, um primeiro projeto avant la lettrede enredo de escola de samba, com suasalegorias histricas distribudas em partes sucessivas como num grande teatro ro-lante caminhando em cortejo triunfal para a apoteose cvica, ao som da batidacombinada de todas as danas populares. Acontece que o Ameno Resed fez escas-so sucesso naquele ano de 24, e o primeiro secretrio do rancho, em carta ao es-critor, descrevia as dificuldades de associar carnaval e patriotismo.

    Desgostoso com o insucesso do seu programa nas duas frentes, da sinfonia na-cionalistae do carnaval, Coelho Neto escreve um curioso desabafo proftico: Se o

    jri no lhe conferiu o primeiro prmio, no deixou de louvar a idia e certo estoude que no prximo ano, o Ameno Resed ter consolador triunfo vendo o seuexemplo imitado, com o que no s lucraro os ranchos, tendo fartas novidadespara explorar, como o povo que aprender alegremente, em espetculos artsticos,a amar o Brasil atravs da poesia de suas lendas, dos episdios da sua histria edos feitos dos seus heris. Os precursores semeiam, no colhem. Este ano foi o dasementeira; a colheita vir depois, e tima. O primeiro passo foi dado e, j agora,

    ningum poder disputar ao Ameno Resed a glria de haver norteado pelo civismoas suas festas carnavalescas18.

    Do nacionalismo folclorizante j dissemos o suficiente para entendermos que elequer sinfonizar a totalidade social trazendo para a moldura do concerto a msicados espaos populares recalcados e submersos (as danas dramticas, os cocos, ospreges, as rodas infantis, etc.) mas sem saber o que fazer em suas estilizaes,da contigidade excessivamente contempornea e impura da msica urbana. Aqui,

    16Os (...) sons aliaram-se, fundiram-se e a vibram nas langorosas modinhas, nos batu-ques, nos caterets, nos jongos e com tais msicas, expresso sonora de um povo emanci-pado, passamos, sorrindo e cantando, da Colnia para o Imprio e no Imprio, conquistamosas duas formosas liberdades redimindo o escravo e exaltando a Ptria ao prestgio em quehoje a vemos. E tais glrias conseguimos com um s hino, que no era o smbolo de umregime, mas a prpria voz da nao que, com ela, vai seguindo vitoriosamente para o futuro,como a Frana, atravs de todas as vicissitudes polticas, tomou para canto de marcha aMarselhesa (trecho da proposta sinfnica de Coelho Neto aos compositores nacionais porocasio do centenrio da Independncia, lanada noJornal do Brasile reproduzida por OEstado de S. Pauloem 7.2.1922). Analisei detalhadamente o programa de Coelho Neto em OCoro dos Contrrios: a msica em torno da Semana de 22. So Paulo: Duas Cidades / Se-cretaria da Cultura, Cincia e Tecnologia. 1977:1739.17Citado por Jota Efeg, emAmeno Resed, o rancho que foi escola. Rio de Janeiro: EditoraLetras e Artes. 1965:48. A indicao desse texto me foi possvel graas ao trabalho da pes-quisadora Dulce Tupy para a FUNARTE, sobre os carnavais de guerra.18Citado tambm por Jota Efeg, no mesmo texto, p. 50.

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    os teles abertos para a msica rural se arrumam de modo a ocultar a presso damodernidade.

    [Vale acrescentar nesse ponto que podemos entender talvez agora o contextoem que a Arte culta nacionalista buscar apoio no Estado para sustentar seu litgio

    com a msica de mercado: correspondendo a duas formas contrastantes de repre-sentao do drama social, ligadas a estratgias de ideologia cultural opostas, elasdisputavam a primazia da condio de pedra de toque musical da nao, mas emterritrios de expanso desiguais. Embora o erudito e o popular fossem parme-tros relativa e mutuamente dependentes nessa poca (um mimando de certa formao outro), para a sinfonia nacionalista a comercializao fcil da msica popular pa-rece abusiva, para esta a reduo do popular a uma verso subalterna daquelapode chegar a parecer ilegtima.19]

    Insuflada pelo empenho de representao musical da nao atravs da grandeobra, Villa-Lobos jogava nela com toda a fora de suas metamorfoses em blocos avivncia do artesanato popular em amplificaes panormicas. No por acaso o seugrande projeto da dcada de 20, quando a sua msica toma impulso, foi a srie de

    Choros, de cuja expresso mais simples ele partiu at atingir progressivamenteformas complexas onde superps em condensaes e deslocamentos contnuos asbatucadas afro-indgenas (emergentes de uma espcie de inconsciente das formasde dana contempornea), os sambas, os choros e serestas, ponteios, marchas,cirandas, etc., trabalhados em clima de franca bricolagee inveno timbrstica.

    A msica que Villa-Lobos passou a fazer na dcada de 20 nasceu do quadro mo-vimentado das aproximaes erudito-populares do Rio de Janeiro, e exorbitou des-se quadro como se transbordasse um magma sonoro em permanente transfigura-o cuja forma uma conseqncia do desdobramento do material... que eleprimeiramente pesquisava e depois multiplicava num jorro de acontecimentos mu-sicais sempre novos20.

    Contrapondo ao rigor da msica europia o seu informalismo catico, jovem echeio de vida, num vale-tudo experimental antropofgico, Villa-Lobos usa os efei-tos do sinfonismo descritivo, os timbres e os modos debussystas, os blocos sonorospolirrtmicos e politonais (aparentados com a msica do primeiro Strawinsky), ostemas da msica indgena (colhidos em Jean de Lry ou nos fonogramas de Roque-tte-Pinto), os cantos sertanejos, a msica dos coretos de banda, a valsa suburbana,a bateria de escola de samba, e da por diante. Avaliar e analisar uma produoacidentada desse jeito no fcil. Gilberto Mendes sugeriu como critrio que o dis-

    paratado(dos seus altos e baixos, e do mau gosto que advm da mistura geral emtais propores) no um acidente ou um desvio esttico, mas uma dimenso pr-pria da tumultuada procura (do transcendental, do csmico, atravs do sentimentonativo):

    Todos esses compositores (das Amricas), Ives, Cowell, Antheil, Villa-Lobos, so naverdade de um impressionismo e politonalismo baratos, frente tcnica composici-

    19Valer como indcio o episdio narrado por Manuel Bandeira: Me apresentaram Sinh nacmara ardente do Zeca Patrocnio. (...) Sinh tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia passar a noite ali e no parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aven-turas comuns, espinafrava tudo quanto era msico e poeta, estava danado naquela pocacom o Villa e o Catullo, poeta era ele, msico era ele (na mesma crnica j citada).20Gilberto Mendes, A Msica. In Affonso vila (org.), O Modernismo. So Paulo: Perspecti-va. 1975:132.

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    onal de seus contemporneos europeus; mas a gente sente em sua msica, princi-palmente naquilo que parece ruim, mal feito, algo mais que a torna diferente, umaautenticidade, uma independncia em que encontraremos as razes tipicamenteamericanas de uma vanguarda que no tem nada a ver com a vanguarda europia.S nas Amricas poderia surgir uma pop art, o jazz, o tropicalismo, a msica de

    Villa-Lobos e Ives21

    .

    Entre os Choros, que centralizam a produo de Villa-Lobos na dcada de 20, ode no.10 (para orquestra e coro misto), no por acaso o mais clebre, a confirma-o mais significativa dos rumos que a msica do compositor estava seguindo na-quele momento.

    Vale dizer, para introduzir o problema, que o princpio sincrtico que manda noschoros populares extravasa numa violenta ampliao nos Chorosde Villa-Lobos,criando um efeito de distoro panormica. Iniciados por uma pecinha para violonos moldes de Ernesto Nazareth, eles absorvem rpida e crescentemente (por umaprogressiva aumentao das massas sonoras de uma pea para outra) um enorme

    repertrio de significantes musicais diversos da msica indgena (constantementerecorrente), africana (mais rara e circunstancial), popular rural, urbana e suburba-na (aglomerados em constantes recombinaes). H uma inteno (explcita) decaptar o prisma dapsiqumusical brasileira, pelas ambientaes orquestrais ecol-gicas (florestais, sertanejas), pela pontuao de cantos de pssaros, pela citao edesdobramento de cantos rituais indgenas, pela aluso a batucadas, ranchos, val-sinhas, cantigas de roda, dobrados, tudo isto visto a partir das serestas e dos cho-ros22.

    A tcnica investida nessas agregaes realiza metamorfoses onricas do materialmusical de base, submetido a condensaes/deslocamentos no nvel contrapontsti-co (superposies por blocos simultneos de signos e cdigos musicais diferentes edistantes), harmnico (circulao de configuraes modais, tonais e politonais),

    sinttico-discursivo (adjuno constante de motivos sem continuidade linear), doque resulta, desde a primeira impresso, uma figura da simultaneidade das foras,da liberao de energia sem o fechamento que corresponderia representao daforma acabada, e da temporalidade sem finalismo dos fragmentos compostos. aaudio de uma figurao onrica que trabalha com significantes de brasil: o pasinconsciente o conjunto de foras inapreensvel que o texto musical tenta flagrarem sua cintica sonora.

    Nesse sentido mesmo, de levantamento parcial do recalque que separa as pro-dues simblicas das classes, os Choros fazem o papel de devassador cultural,atravessando vigorosamente as sinapses que censuram a passagem de significan-tes carregados de intensidades sensuais, de informaes vitais, de histria reprimi-da.

    O Chorosno.10 pode ser considerado modelar (uma anlise minuciosa mostrariacomo se d ali a articulao de sinais cifrados da diversidade brasileira compondoum mito nacional, que vou traar aqui em linhas gerais).

    21Idem, ibidem:131.22Essa explicitao encontra-se no texto do prprio compositor, Choros: estudo tcnico,esttico e psicolgico de Villa-Lobos, mimeografado e revisto pelo professor Adhemar N-brega no Conservatrio Nacional de Canto Orfenico em 1950, e publicado em Villa-Lobos:sua obra, pelo MEC / Museu Villa-Lobos, 1972.

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    A pea admite uma leitura sinttico-semntica que acompanhe a articulao degestos musicais nacionais, leitura que, aparentemente demode primeira vista,mostra-se adequada ao objeto.

    Ela apresenta (I) uma longa seo orquestral (formada de uma introduo ani-

    madae de um episdio lento) seguida de (II) uma parte final coral-sinfnica decarter progressivamente apotetico. O contraste entre essas duas partes (tomadasaqui bem panoramicamente) ntido.

    A parte orquestral (I) o domnio dos sinais culturais (cosmopolito-primitivo-urbano-suburbano-rurais) trabalhados ao modo de pulses, agregados por super-posio e por adjuno constante23, como energia no-ligada que configura, emcontraste com a parte final, um quadro de foras solta, errticas entre o planoprimitivo e o projeto civilizador (formigamento catico perdido entre o animismoselvagem e a inscrio na histria da acumulao). Ela pontuada por acidentadosndices dinmicos, que despontam ora como irrupes ora como quebras disrupti-vas, ora como focos atritivos, ora como aclamaes rebarbativas. O regime de in-tensidades descontnuas, que era modo padro da vanguarda fauveda dcada de

    20, cobre aqui uma apresentao a-mostrativa dos tempos defasados, intervalados,compactados e espaados do brasil (onde o Brasil?... um sistema de sons quevai guiando / ... / a eletrnica / e musical figurao das coisas24).

    A proliferao de motivos dessa primeira parte corresponde a um diapaso se-mntico: o desdobramento dopotencial (o espao-brasil o campo onde as foraserrticas vasto repositrio de energias litigantes se entrechocam at encon-trarem a ligao consubstanciada na coralidade tonal e ritmicamente peridica daltima parte). Lido sincronicamente, o mito que dispe a passagem dos aglomera-dos intermitentes da seo sinfnica periodicidade apoteticada seo coral-sinfnica cristaliza o destino de potnciacomo seu ncleo de desejo.

    O Choros no.10 inicia-se com um acorde fortssimo percutido em anacruse, com

    a nota superior (sol na trompa) longamente sustentada. Esse acorde fundador sur-ge com um bloco de energia/ intensidade, bordado na flauta por uma transcrioinstrumental do canto do pssaro azulo (primeira apario da vozda natureza so-bre o fundo dopotencial). A esses dois elementos sobrepe-se a evocao, nascordas, do toque rasgado da viola popular, constituindo no conjunto uma primeiracombinao da natureza muda (a forada nota sustentada), a natureza cantante (amelodia do pssaro) e a cultura popular (a batida da viola). Sustentada ao longodos compassos da seo introdutria, a nota inicial proferida pela trompa se abrenum motivo meldico ascendente (no segmento marcado na partitura com a letraA) procedendo por atritos de segunda menor nas trompas que conduzem (resol-vendo-se) a um acorde perfeito menor. Acompanhado de um correspondente mo-vimento de intensidade crescente e de alargamento do campo da tessitura e dos

    timbres instrumentais, esse motivo, que desabrocha da nota inicial como uma vit-ria-rgia, assume aqui o carter de uma alvorada virginal-inaugural, reincidindo emprogressiva ampliao nos segmentos B e C, onde incorpora um tema incaico enun-ciado em acordes paralelos com incidncias dissonantes em ambiente de passara-da, transpondo-se para as cordas, onde desemboca finalmente no motivo nuclearde toda a pea, um acalanto dos ndios parecis, de perfil cromtico descendente,cujas metamorfoses (por diatomizao ou alterao do perfil rtmico) sero estru-

    23Termo empregado por Adhemar Nbrega em Os Choros de Villa-Lobos.24Carlos Drummond de Andrade, A Palavra e a Terra, Lio de Coisas.

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    turantes da obra, e assumiro grande importncia na parte final25. Da primeira notaat o achado do tema se d, portanto, um processo de gnese, a partir do qual omotivo dos ndios parecis pontuar generalizadamente o espao sonoro, ao modode intervenes disseminadas (em gestao onipresente). (Adhemar Nbrega cha-mou-o motivo conspiratrio). Trata-se no entanto de uma gnese acidentada por

    mltiplas superposies sincrnicas: metamorfoses politonais da tocata chorsticaintervindo com suas inflexes sincopadas, refres populares / temas de embolada,solo de trombone derrapando sem expanso meldica o motivo nuclear ampliadoem gesto de choro-seresta (timbrstica e melodicamente distorcido), piano e soprosemitindo quase-clusterspercutidos maneira de dana indgena / Sacre du Prin-tempsprimitivo-moderna, e outras tantas incidncias, em mltiplas combinaes,sempre acirradas pela reiterao polimorfa do motivo nuclear.

    No final da parte puramente sinfnica o clima associativo e disruptivo da soma-tria cultural, que prevalece desde o comeo, d lugar ao desenvolvimento, pelascordas e trompas, de um elemento melodicamente ascendente e reiterativo, cres-cente em intensidade, animando-se no andamento (alm de conter uma aceleraortmica interna ao prprio motivo), que eu chamaria, pelo contraste que instaura,de tema da vontade(pelo modo como ele parece indicar a tendncia a organizar asenergias livres num novo regime de articulao).

    E de fato o tema da vontade (de uma altissonncia mais para Amaral Neto Re-prter, nessa passagem, que para Glauber Rocha) leva o desdobramento do poten-cial(inserido no incio da pea) a um limiar onde ele se interrompe em fortssimo(FFFF). A pausa pontua o que ser a efetiva entrada de um outro regime na eco-nomia rtmico-meldico-harmnica da pea, em andamento trs peu anim et bienrythm.

    Pois a parte final, coralsinfnica (II) , antes de mais nada, o campo daperio-dicidade: ela comea com um motivo insistentemente repetido, clula rtmico-meldica de corte incisivo danante reiterativo (engendrada, diga-se de passagem,

    pelo trabalho de metamorfose do motivo conspiratrio dos ndios parecis) que lan-ada pelo contrafagote atravessa a orquestra e projeta-se no coro (vozes masculi-nas) em movimentos cadentes coleantes articulados pelas vozes em silabaesonomatopaicas imitativas do tupi (jakatakamaraj,jakatakamaraj,jakata jakatakakamarajetc.). A regularidade rtmica do motivo indgena permanecer todo otempo, acrescida da superposio de cadncias de marcha-rancho percutidas no pi-ano, coroada pelas vozes ecoando motivos meldicos advindos dos temas indge-nas, acentuada por interferncias dissonantes diversas. No pice desse processo deprogressivo congestionamento do campo sonoro, onde a batida indgena subli-nhada pela percusso acrescida de instrumentos brasileiros reco-reco, puta ecaxamb