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    Jos Miguel WISNIK

    1989 Serial. In O Som e o Sentido: uma outra histria das msicas. SoPaulo: Companhia das Letras. 159192pp.

    IV Serial

    I.

    161 Pode-se voltar a entrar na msica do sculo XX por muitas portas: Debussy

    (e o estado de suspenso no resolutiva com que sua msica responde crise to-nal), Darius Milhaud (e as suas superposies de tonalidades simultneas), BlaBartk (e o seu uso criativo e radical dos modalismos pesquisados na msica popu-lar). Satie, Varse e Stravinski, pardia, timbre-rudo e polirritmia, assuntos j tra-tados no captulo inicial, poderiam ser reconsiderados, assim como Charles Ives,por um lado, ou Villa-Lobos por outro, compositores das Amricas, com suas brico-lagens e invenes sonoras to desiguais. Poderia ser comentada a permannciatonal, do lado neoclssico ou do lado romntico, e discutidos os problemas levanta-dos pela relao entre arte e poltica e seus encaminhamentos em Chostacvitch,Prokofief, Hanns Eisler e Kurt Weill.

    No entanto, o assunto ser focalizado, ainda uma vez, sob uma forma teori-camente extrema de contraposio tonalidade, que o dodecafonismo. Trata-se

    de olhar para o mais sintomtico, e o mais sintomtico aqui o mais radical. O sis-tema de doze sons criado por Schoenberg em 1923, depois de um perodo atonalque derivava do aprofundamento das contradies do tonalismo, se apresenta co-mo a decorrncia implacvel e ao mesmo tempo a anttese do sistema tonal. Elerejeita cerradamente oprincpiotonal, isto , o movimento cadencial de tenso erepouso.

    Ao pensar o sistema de composio por sries, com o qual Schoenberg bus-cava uma espcie de descentralizao do campo sonoro, igualando a funo estru-tural atribuda a todas as notas da escala cromtica, desembocaremos num pro-blema crucial da msica contempornea, que o da repetio. Nesse ponto, impe-se uma contraposio entre os dois estilos extremos que marcam as duas metadesdo sculo: o dodecafonismo e o minimalismo. Essas duas tendncias projetam damaneira mais completa, na sua diferena sintomtica, a ciso manifesta na msicacontempornea entre um lado que recusa a repetio e um outro onde se trabalhasobre a repetio exaustiva. A srie dodecafnica foge recorrncia meldica,harmnica, rtmica, atravs de uma organizao simultanesta de todos os materi-ais sonoros, de natureza polifnica e descentrada: o minimalismo uma msicafrancamente iterativa, baseada na repetio de motivos meldicos e pulsos rtmicosque passam por processos de fase e defasagem.

    []

    162 O que pensar de uma deciso to acentuada entre uma msica compostaem sries que fogem evidncia de sua repetitividade, e outra que se compe de

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    sries que partem da evidncia de sua repetitividade? A primeira suspeita , natu-ralmente, que as duas estejam falando da mesma coisa: da ruptura entre o temposubjetivo (vivido como um contnuo) e o tempo musical (vivido como extenso dotempo subjetivo). Por um lado, a msica atonal est relacionada com um trao de-terminante do tempo que foge experincia: o no-tempo inconsciente, enquantotempo no-linear, no-ligado, no-causal, tempo das puras intensidades diferenci-ais. A msica minimalista por sua vez se relacionaria aparentemente com um outrotrao do no-tempo inconsciente: a compulso repetio, cujo retorno em ostina-toesvazia o tempo. Uma teria seu correlato objetivo na experincia urbano-industrial da simultaneidade, da fragmentao e da montagem, tcnicas de choquefundantes da arte das vanguardas, e outra no carter serial-repetitivo do mundops-industrial informatizado, onde se engendra repetio da repetio em larga es-cala, com proliferao generalizada dos simulacros.

    163 Enquanto isso a tonalidade, espcie de lngua corrente da msica, oferece aoego dispositivos de integrao que trabalham justamente entre a ameaa do des-centramento e o centramento reparador, entre a perda e a afirmao de um eixo

    subjetivo. A tonalidade focaliza o prprio equilibrismo que constitui o ncleo emoci-onal do ego, e d a esse ncleo uma linguagem. A transparncia no-verbal entre odiscurso musical e os afetos latentes, a sua capacidade de exprimir direcionalida-des, de criar problemas e resolv-los, de expor processos evolutivos, faz do tem-po musical tonal o ndice de uma certa permeabilidade entre o indivduo e a hist-ria, que uma fase da era burguesa permitiu representar. Mas a tonalidade se esta-belece e permanece tambm, e por suas prprias caractersticas, como uma lin-guagem de ampla vigncia. A cano popular faz dela generalizado e algumas ve-zes excelente uso. Na msica de concerto os retornos atuais ao tonalismo devemcontar no entanto com uma espcie de esvaziamento da histria, porque a grandemsica tonal se alimentava, como vimos, das prprias aventuras evolutivas do sis-tema, agora extintas.

    []164 A msica minimalista, exibe o ioi (egico) latente na msica tonal da ma-neira mais inequvoca: ela pe em evidncia a pulso repetitiva, construindo e des-construindo territrios sonoros na base da sua reiterao. O carter infantilizado dobrinquedo aparece com uma insistncia irritante para quem quiser ouvi-lo comoprojeo sonora da aventura subjetiva. A msica minimalista seria muito mais, sobesse aspecto, sintoma da morte do sujeito, e j foi interpretada como a esttica deuma poca terminal, onde a impotncia para agir e a paranoia universal levariam formao defensiva de um eu mnimo, que teria como nica e dbil camada pro-tetora a mnada da eterna repetio.1

    Essas interpretaes sintomais s so relevantes, no entanto, se elas no

    desprezarem a escuta inerente aos tempos musicais propriamente ditos. Trata-sede pensar melhor sobre o tipo de questo que a no-repetio serial e a repetiominimal esto colocando, em sua prpria oposio, em suas sonoridades, e escut-las no simplesmente como um alarme apocalptico tocado em surdina, mas comoportadoras de fluxos e mutaes que esto operando sobre uma outra forma deinterveno sobre o tempo.

    2.

    O atonalismo aparece na obra de Shoenberg, na altura de 1909, no ltimomovimento do Segundo quartetopara cordas op. 10, como consequncia do pro-

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    gressivo enfraquecimento dos elos tonais pressionados pela modulao contnua(influncia wagneriana que se impunha sobre suas primeiras obras, como o sextetopara cordas Verklrte Nachtop. 4). O horizonte da resoluo tonal, que recua inde-finidamente a cada cadncia, acaba por desaparecer: em msicas com Erwartungop. 17, Die glckliche Handop. 18, Pierr lunarop. 21, ou nas peas para piano op.11 e op. 19, esvai-se a promessa de resoluo num tensionamento permanente cu-ja atmosfera angustiada a da Viena expressionista s portas da Primeira GuerraMundial. No cromatismo das primeiras obras a tenso dissonante, ao invs de fun-cionar como elemento confirmador da ordem tonal, vai recebendo todo o investi-mento de energia e acaba por se tornar, ela mesma, o princpio fundamental daorganizao. A inverso do papel da dissonncia, com sua importncia crescente eno neutralizada, foi comparada por Adorno, falando de Wagner, a uma dvida pro-gressiva cujo cancelamento, como num gigantesco sistema de crdito, indefi-nidamente adiado (em vez de quitado pelo intercmbio cadencial).

    []

    168 Como diz Ren Leibowitz, a srie no um modo nem um tema. No um

    modoatravs do qual circula a melodia, pois ela, a srie, que circula atravs datrama polifnica multiplicada em espelho. No um temaconcebido como umaunidade de identidade meldica pois est destituda de qualquer identidade estvel,apenas oferecendo ocasio para a manifestao de configuraes puramente relati-vsticas. Talvez se pudesse compar-la, por declarada oposio, com o ragada m-sica indiana, combinao meldica derivada da escala e que serve como matriz pa-ra a improvisao (elemento intermedirio entre a escala e o discurso), com a dife-rena evidente (e sintomtica) de que o raga uma estrutura fixa, enquanto a s-rie varivel, no-codificada, relativstica, descentrada e descentrante, servindo composio de obras tipicamente escriturais e no improvisadas.

    3.Com Webern, a dodecafonia ganha uma nova objetividade (um alto grau de con-centrao e uma economia isenta de traos romnticos). Webern pratica um seria-lismo pontilhstico, lacunar, denso de inter-relaes sonoras ao mesmo tempo queradicalmente rarefeito. O campo sonoro pontuado de alturas timbrsticas clara-mente espaadas e vazadas de silncios. Em algumas de suas obras pr-dodecafnicas, com as Cinco peas para orquestraop. 10, o tratamento instrumen-tal, com a ruptura dos timbres, anuncia a futura msica eletrnica. Nas obras do-decafnicas o som aparece ao mesmo tempo como puramente abstrato (na medidaem que um ponto na rede de relaes seriais) e fortemente concreto (porque, li-berado da linha temtica da melodia e da progresso tonal, vibra na pura materia-lidade da sua granulao, do seu impacto, da sua ausncia). Webern inspirou os

    futuros alunos de Messiaen na dcada de 50, Boulez e Stockhausen, a praticaremum serialismo generalizado estendido a todos os parmetros: no s sries de altu-ras, mas de timbres, intensidades, duraes, modos de ataque. que a tcnicamusical caminha ento movida pelo desejo de generalizar o seu domnio sobre ocampo sonoro, exercendo o controle microcsmico de todas as dimenses, e bus-cando a coerncia de todos os parmetros de modo a no conter nenhum elementosuprfluo.

    []

    171 [] Uma anlise grfica da obra de Webern, feita por Carlos Kater, trans-pondo visualmente em linhas e cores a textura das formas seriais, evidencia a

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    enorme visibilidade do seu perfil mondrianesco. Fugindo dos ms atrativos das res-sonncias sonoras, e das direes tensionantes e resolutivas, para se manter numazona de gravitao rarefeita que desmagnetiza (sempre provisoriamente) a polari-zao tonal, o som weberniano parece se localizar mais no espao que no tempo.Mesmo as suas cerradas defasagens, que remetem necessariamente s duraes eao jogo temporal, parecem corresponder mais a uma topologia (e a uma espaciali-zao do tempo) que a uma rtmica.

    O dodecafonismo no tem efetivamente como realizar desenvolvimento. EmSchoenberg, que tenta faz-lo, e que concebeu o campo descentrado da srie comoum lugar para o estabelecimento de novas relaes progressivas, o movimento dasnotas parece o de peixes na gua (que no tem profundidade e cuja direo irre-levante porque j esto imersos na profundidade indiferenciada). Em Webern, noentanto, essa falta de lugar para o desenvolvimento se cristaliza em formas rarefei-tas, condensadas e simtricas, que, se no tm para onde evoluir, apontam para simesmas e para o vazio que as permeia atravs de estruturas exaustivamente auto-referentes. Por isso, Webern um caso nico, distinto tanto de Schoenberg, sua

    fonte, como do serialismo que se baseia nele.

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    172 Da tambm a curta durao de suas peas: sabido que a obra completa,do opus 1 ao 31, cabe em quatro eleps, e muitas de suas peas mais importantesduram em torno de um minuto, ou menos do que isso. O lugar delas no mais,como foi em toda a histria do desenvolvimento tonal, a expanso temporal, mas ainscrio num no-lugar, numa singularidade que corresponderia imploso lumi-nosa de um buraco negro.

    4.

    possvel pensar que a polifonia medieval e renascentista tem certa corres-pondncia com a msica dodecafnica ambas contrapontsticas, uma convergin-do para a tonalidade, outra divergindo dela. (O classicismo seria o ncleo centraldesse espelhamento, e o barroco e o romantismo manteriam tambm, como j foidito, certa analogia simtrica).

    O que interessa registrar aqui, de passagem o papel central que o trtonovem ocupar na msica dodecafnica. Na simetria sem centro da msica webernianaele se investe da maior importncia, como afirma o prprio compositor em um deseus escritos. Compreende-se um intervalo dotado de uma dupla especularida-de: radicalmente simtrico e instvel, divide a oitava pela metade e igual suaprpria inverso; as suas duas notas se estranham sem que nenhuma preponderesobre a outra, apontando suas polarizaes para novos trtonos. Na pera Moiss eAaro, de Schoenberg, a fala de Deus a Moiss se faz sobre um sexteto vocal sem

    palavras, que enuncia em quatro acordes de trs notas a srie fundamental comum trtono central (smbolo abstrato-concreto do Infinito em sua identidade e ubi-quidade, segundo Raymond Court).

    Deus e o diabo como uma mesma ciso do idntico, o corte na unidade daoitava pitagrica, a perfeio sem centro, o microcosmo total como aposta probabi-lstica sobre o vazio, todas essas ressonncias mticas, teolgicas, metafsicas, es-to de algum modo latentes na msica dodecafnica.

    Thomas Mann bordou com elas a polifonia do seu Doutor Fausto, onde a d-vida pactria rolada com a barriga pelo esgotamento da msica tonal cobrada erenegociada. A teoria da msica dodecafnica, de que Mann se serviu para dar vozaos projetos de seu personagem (o compositor Adrian Leverkuhn) pode ser inter-

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    pretada no romance como uma nova forma do contrato fustico (Thomas Mann noo disse nesses termos, mas desta vez o trtono, enquanto elemento instvel e des-territorializado, no seria o mediador, mas o prprio centro oculto do sistema.)

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    173 A apresentao do projeto musical, no captulo XXII do livro, passa pelo cri-vo dialogal do humanista Serenus Zeitblom, amigo de Leverkuhn, que se constituiem narrador e bigrafo do compositor. Zeitblom pondera a certa altura que sob aracionalidade aparente das constelaes seriais reina um fundo de irracionalidadee superstio, de numerologia (sob a capa de matemtica intervalar) e de astrolo-gia (sob esse projeto de universalizao sonora que evoca alguma estranha moda-lidade de msica das esferas). Leverkuhn responde que nessa ambiguidade reside oprprio movimento da vida, e o texto mantm em suspenso pardico a tenso dia-lgica entre as duas vozes dos personagens.

    Se o projeto da arte moderna visto contraditoriamente como progressivo eregressivo (oposio que Adorno figurou no contraponto entre Schoenberg e Stra-

    vinsky, mas ressalvando expressamente que os dois compositores teriam muitomais em comum do que essa anttese possa sugerir), a planificao da obra de artee o controle absoluto, que os artistas modernos procuram estabelecer sobre osltimos vestgios de contingncia livre ou de pura espontaneidade podem ser vis-tos como um eco daquilo que acontece nos estgios avanados do capitalismo mo-nopolista, onde no apenas as pequenas unidades do negcio, mas tambm a dis-tribuio e, em ltima anlise, os ltimos elementos de livre associao do velhouniverso comercial e cultural so assimilados num mecanismo absorvente e total.3A totalizao seria, pois, um trao da vida social moderna, da qual os regimes tota-litrios so apenas um sintoma. A totalizao serial, o controle generalizado detodas as instncias da composio, ecoaria obliquamente a tendncia a integraocompleta de todas as reas da natureza, da sociedade e da vida individual, sob aorganizao total da economia capitalista.

    174 Entende-se assim o princpio de ambivalncia, presente em Adorno e Tho-mas Mann, em que a arte recusa a sociedade existente mas ao mesmo tempo nopode fugir a mimetiz-la, internalizando as suas contradies mais agudas sob aforma de fracassos ou de fraturas formais. No caso do Doutor Fausto essa questoganha uma singularidade e fora redobradas, pois a vida do compositor dodecafni-co encontra-se em paralelo alegrico com a desintegrao da Alemanha de Wei-mar sob o fascismo (onde a forma totalitria desentranha naquela situao de he-catombe histrica os amis recnditos mitos da dominao assumida como nature-za: destino da raa superior, guerra purificadora). A relao entre a arte e a socie-dade no texto de Thomas Mann , no entanto, radicalmente ambivalente pelo seupolifonismo. Com o doloroso contraponto entre a arte progressiva e a histria re-

    gressiva o romancista quis enfatizar (como diz o crtico marxista Fredric Jameson,acertadamente) no o mal do modernismo, () mas antes a natureza da tragdianos tempos modernos: a possesso do homem pelo destino histrico, o intolervelpoder da histria sobre a vida e sobre a criao artstica, a qual no livre parano refletir aquilo contra o que reage.

    tambm sobre a ambivalncia, embora num sentido diferente, que traba-lha Adorno, quando escreve sobre Schoenberg na Filosofia da nova msica. Scho-enberg , para o pensador neo-hegeliano, o artista dialtico por excelncia que as-sume o estado atual da linguagem em toda a extenso de suas contradies. Ocompositor austraco leva, segundo ele, s ltimas consequncias lgicas a prpriahistria da msica alem, vale dizer, da tonalidade como drama. Schoenberg teria

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    encarado a impossibilidade de compor autenticamente uma msica consoladora eafirmativa numa sociedade cuja diviso coisificadora um dissolvente de toda har-monia. Seu maior valor estaria em prosseguir, sob a gide da atonalidade, e por-tanto da negao, aquela busca de coerncia de todos os elementos que deriva damelhor tradio beethoveniana e brahmsiana. Nessa dialtica negativa, o melhormodo de corresponder grande tradio tonal alem (que permanece de certo mo-do para Adorno como o grande modelo) seria atravs de uma msica atonal, quelibera a dissonncia como algo mais racional que a consonncia, pois exibe de ma-neira articulada a relao heterognea dos sons nela presentes. (Nesse sentido, jse v que a consonncia, onde se figura uma unidade sonora aparentemente ho-mognea, adquire historicamente para Adorno o carter de ideologia, no sentidomarxista de falsa conscincia).

    []

    5.

    176 Mas o dodecafonismo surge e se desenvolve, para alm ou aqum da ambi-valncia irnica de Thomas Mann e da ambivalncia agnica de Adorno, imbudo deuma convico otimista acerca do progresso que ele mesmo representa. Schoen-berg teria dito a um aluno, na altura de 1921, que o sistema de doze sons devergarantir a supremacia da msica alem para no mnimo os prximos cem anos.Alm da grandiloquncia nacionalista embutida na frase, que contm ao mesmotempo a ingenuidade e as perigosas implicaes que conhecemos, ela participa dacrena num poder ilimitado da nova msica como idiomaque abriria um extensocampo de possibilidades a serem exploradas para alm da tonalidade. O carterdiretamente produtivo da conquista tcnica, aliado aos pressupostos utpicos daarte modernista (humanizar a ordem industrial, corrigir o esprito materialista eaquisitivo e libertar insuspeitadas energias criativas no conjunto da sociedade)4,

    fazem pensar na sua efetiva implantao e generalizao como a nica alternativaconsequente msica tonal.

    Esse esprito prossegue erigido em profisso de f nos serialistas que seafirma na dcada de 50, Stockhausen, Luigi Nono, mas principalmente PierreBoulez. O tratamento rigoroso de valores durativos, timbrsticos, de intensidade, eno s meldicos, reconhecidos em Webern, leva os compositores a praticarem umserialismo integral, extenso do sistema dodecafnico a todos os parmetros docampo sonoro. Schoenberg est morto, declara Boulez num artigo-manifesto emque contrape as impurezas romnticas do mestre concentrao impecvel deWebern (cuja obra deveria, ainda assim, ser filtrada de seus resduos de periodi-cidade). Mas, depois de devidamente assassinado o pai, nada mais impediria a cla-ra definio e a expanso da nova msica em seus progressivo controle do campo

    sonoro. Os elementos no controlados pela tcnica serial, e no diretamente exigi-dos portanto pelas necessidades do cdigo racional explcito, so tidos como supr-fluos, automticos, excrescentes manifestaes de hedonismo (palavra que co-nota pecado no discurso do cartesiano Boulez).

    []

    179 O ritmo de acelerao galctica dos pressupostos da msica dodecafnica,estimulada pelo avano da tecnologia eletrnica, consumou em poucos anos osprocessos sonoros mais complexos.

    Na msica de Boulez essa acelerao pode ser ouvida nas formas velozes ehiperpovoadas do seu serialismo (que perde aquela concentrao do tipo lacunar

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    que havia em Webern, o seu modelo). Pode-se notar do outro lado que o pensa-mento de Boulez, ao contrrio de Stockhausen, analtico-dedutivo, separador,classificatrio, e toma o serialismo, durante certa fase, como uma ortodoxia avan-ada.

    Outro sinal importante do acelerado descentramento do espao sonoro prati-cado sob as bases de um racionalismo estrito a obra de Xenakis. Ela se compede nebulosas de som resultantes da transposio computadorizada, em termosprobabilsticos (ou estocsticos) de estruturas matemticas. Xenakis pensava naprecedncia da frmula numrica, atemporal, sobre a sua atualizao real tempora-lizada (como uma espcie de novo pitagorismo onde a msica remete ao fundooculto de um universo ordenado numericamente). O seu pitagorismo regido evi-dentemente no pela tetratkys (o equilbrio perfeito dado pela oitava e a quinta)mas, ao contrrio, pela pulverizao estocstica.

    []

    180 Em algum lugar talvez dos anos 70 um ponto de ruptura dispersa a onda da

    msica contempornea em recuos, silncios, viradas de cento e oitenta graus, oumutaes que indiciam a dificuldade de seu manter na trajetria e no ritmo da evo-luo permanente.

    De certo modo, o compositor que atravessou mais inteiro esse cinturo demeteoritos foi justamente Stockhausen, graas a uma flexibilidade que o faz juntara forma e a indeterminao da sua linguagem com fontes completamente distintasou aparentemente distantes de vanguarda ocidental, como a meditao oriental, aastrologia e a dana, unidas na verdade ao flego wagneriano de uma insistenteGesamtkunstwerk(a obra de arte total). Com sua trupe panfamiliar, suas mulhe-res e filhos msicos, (virtuoses de vanguarda e jazzistas-roqueiros), Stockhausen o elo perdido entre a grande msica e uma outra msica que poder surgir.

    6.

    nesse lugar (a crise das alturas que afeta a msica europeia, no squanto a suas alternativas tcnicas e estilsticas, mas na sua tradicional justificaoprogressiva) que surge o minimalismo americano. A msica repetitiva, alm docarter quase excntrico da sua insistncia maqunica, que impressiona primeiraescuta, tem que ser ouvida como uma msica que abdica da construo meldico-harmnica para focalizar o pulso. Essa focalizao exaustiva do pulso, que lhe d aprimazia estrutural, fora alguns possveis casos muito isolados, esteve ausente doarco evolutivo da histria da msica ocidental, e talvez tenha sido recolocada emcena justamente por Stravinski (embora num estilo muito diferente na msica re-petitiva). As estruturas escalares esquemticas da Sagrao da Primavera, com su-

    as superposies politonais quase ruidsticas, so basicamente portadoras de pulsos(vigorosamente regulares e irregulares, quebrados, deslocados).

    []

    181 A configurao heterognea da msica de Stravinski remete assim a umaespcie de simultaneizao na msica contempornea, da qual ele se faz um dosprimeiros sinais: pratica, em rodzio, msica com traos modais primitivistas, msi-ca tonal em vrios patamares de estilo epocal, e msica serial, fechando um crculosincrnico sobre a desintegrao da grande diacronia da msica ocidental.

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    182 As primeiras manifestaes minimalistas datam do comeo dos anos 60, eparecem derivar de algumas consequncias cageanas num clima j depop art(oque favorece duplamente o abandono da arte como discurso da subjetividade).

    Mais remotamente elas apontam para Satie, cuja tendncia natural repeti-o e ao esfriamento de jogos cadenciais ele hiper-realizou na pea Vexations, comsuas oitocentas e quarenta repeties (quando Cage a apresentou, em 1963, fo-ram precisos dez pianistas e dezoito horas para a execuo, o objetivo sendo o deenvolver o ouvinte em som repetitivo, assim como o objetivo de Stockhausen e ou-tros era envolv-los em sons no-repetitivos e no-repetveis).5

    A msica minimal expe processos a nu, que parecem se realimentar no dainterveno do artista mas da sua prpria lgica autnoma at atingirem a entro-pia. Numa pea como Pendulum music(1968), de Steve Reich, por exemplo, trsou quatro microfones pendurados oscilam pendularmente sobre uma fonte sonora(um alto-falante), registrando o som a cada passagem por ela. O que se expe o

    processo gradual de oscilaes mltiplas at o estacionamento de todos os micro-fones em unssono. Temos uma sequncia de pulsos defasados se encontrando edesencontrando at chegarem ao acorde final, a consonncia ao mesmo tempoque a morte do processo. No descabido interpretar essa obra como uma fugaestruturalmente reduzida a componentes mnimos: as quatro vozes se imitampolifonicamente, se divertem aleatoriamente, e caminham em stretto para a en-trada em fase que as imobiliza. Detonado o processo, os executantes se sentam naplateia para assistir a seu desenrolar junto com o pblico. Diz Steve Reich queexecutando ou escutando processos musicais graduais, participa-se de uma esp-cie de ritual particular, liberador e impessoal. Concentrar-se sobre um processomusical permite desviar sua ateno do ele, do ela, do tu, e do eupara projet-lapara fora, no interior do isto.

    []187 Estamos a explorando outra dimenso do tempo musical. (A astrologia tra-dicional relacionava a msica no quadrivium com o smbolo do planeta Marte, liga-do ao smbolo tambm marcial o arete ries , porque ela se faz atravs dessainterveno no tempo que se d sempre a partir de um ataque reconhecvel). Assuperposies de motivos idnticos e gradualmente defasados nessas peas deSteve Reich deixam o ouvinte num lugar de flutuao quanto ao ataque dominante,que se multiplica numa polivalncia relativstica. A deciso quanto entrada doselementos, que orienta a escuta, vai ganhando um alto grau de indecidibilidade(noo prxima da lgica e da temporalidade ps-modernas). Exibe-se uma espciede varredura do campo onde os pulsos se expem como figuras e contrafiguras (demodo comparvel ao efeito visual das gravuras de Escher).

    []

    8.

    188 A msica contempornea, seja atravs de Stockhausen, seja atravs do mi-nimalismo, vai penetrando e descobrindo explicitamente novas situaes numarea que sempre esteve implcita: a relao entre tom e pulso. A intuio das dura-es e das alturas como formas diferentes de uma mesma base frequencial omonolito negro da histria das msicas. Essa intuio ao mesmo tempo arcaica efutura, lugar-comum entre o que h de mais primrio e inconsciente no nascimento

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    das linguagens musicais, e o que vai se evidenciando atravs do mais sofisticadoconhecimento do fenmeno sonoro. O laboratrio de msica eletrnica, que se de-senvolveu na sequncia da Segunda Guerra, tornou-se o lugar privilegiado paraperceber todos os atributos do som como refraes moduladas de um mesmo prin-cpio. O conhecimento microcsmico do dado ondulatrio, a especificao de suasqualidades, encaminha para uma possvel integrao das propriedades do som co-mo diferentes escalas de um nico processo.

    []

    191 Entramos numa cmara universal de msicas que despontam ateno e sedissipam, ficando provisoriamente guardadas em algumas obras. Os timbres semultiplicam com a celeridade das mercadorias, e no fixam o som. A msica umsinal errtico entre essas granulaes, submetido ao poder da repetio. Nesseprocesso de acelerao em queda livre que acompanha o ritmo da dessacralizaogeneralizada do som, o monolito de tom e pulso , se quisermos, a nica refern-cia, enigmtica, bvia e intacta.

    A ciso entre a msica atomizada (serial) e a mnada repetitiva (minimal) um ndice do nivelamento estatstico de todos os eventos no mundo serializado,mas contm tambm a espasmdica busca de aproximao a um centro integradoque resultaria da nova compreenso do contnuo sonoro avanada pela exploraode todos os modos do descentramento.

    Se essa possibilidade latente no estado atual da linguagem tiver condieshistricas para se desenvolver, ela estar abrindo passagens, fazendo pontes entrenveis de linguagem aparentemente distantes e inconciliveis.

    Uma pequena amostra dessas possibilidades pode ser dada se fizermos aexperincia de ouvir Schoenberg no ritmo de uma msica de pulsos*: sequenciar(isto , repetir em crculos) passagens que sero ouvidas como msica minimalista,retornando explicitamente sobre si e destacando aquilo que a verso original apagada memria a cada compasso, por compromisso com a no-repetio. Surgem en-to figuras rtmicas suingadas, linhas-de-baixo de uma impressionante riqueza, quefazem empalidecer, com a sua rica textura acentual e harmnica, toda a msicaminimalista. (De certo modo, Arrigo Barnab intuiu essa potncia rtmica da msicadodecafnica, quando utilizou a tcnica como geradora de clulas repetitivas dan-antes e assimtricas.) Esse dilogo das msicas envolvendo no a evoluo dasalturas mas os timbres e os pulsos est se passando ento, ou principalmente, emoutros lugares, na msica de massas.

    Notas

    1 Conforme Christopher Lash, O Eu Mnimo.2 Webern tornou-se para uma parte importante dos compositores da gerao do

    ps-guerra o mito do inventor extremo, que dispensasse toda bricolage (ou seja,trabalho feito com materiais de variada provenincia) em nome da engenharia(trabalho feito com materiais prprios construo, no extrados de outros con-textos). Num momento em que se busca fundar uma linguagem ps-tonal no-polarizante, sem tnica, num campo sonoro dessacralizado, a nica coisa queparece poder sustent-la a coerncia completa entre o material sonoro e sua

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    organizao, atravs de uma condensao rigorosa que busca a obteno de ummximo de relaes com o mnimo de meios. Nesse quadro, Webern aparececomo aquele fundador que constri a totalidade de sua linguagem, sintaxe e l-xico, e que se constitui em origem absoluta do seu prprio discurso, como umcriador do verbo, o prprio verbo. (Esse comentrio est em J. M. Wisnik, OCoro dos Contrrios: 138. Me utilizei a do questionamento, feito por JacquesDerrida, da oposio lvi-straussiana entre engenharia e bricolage, pgina 239deA Escritura e a Diferena.)

    3 Fredric Jameson, T. W. Adorno, ou Tropos Histrico in Marxismo e Forma: 3435.

    4 Christopher Lash, op. cit.: 147.5 Frederick R. Karl, O moderno e o modernismo: a soberania do artista. Rio de Ja-

    neiro: Imago. 1988:477.