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. novembro 2016 36 AGROSSILVOPASTORÍCIA Teresa Pinto-Correia, membro da comissão organizadora do Congresso, conta que a ideia de organizar um evento com esta projeção surgiu em conjunto com os colegas espanhóis, da Universidad de Extremadura, com base na necessidade de produzir conhecimento que contribua para a sustentabilidade do monta- do. “Quando começámos a organizar o con- gresso percebemos que há um longo caminho a percorrer. Olhando para outros sistemas agrossilvopastoris com características seme- lhantes às do montado, verificámos que ain- da estamos numa fase inicial no que toca a cruzar diferentes disciplinas para entender o sistema como um todo. Assim, esta necessida- de de produzirmos conhecimento integrado, por forma a encontrarmos soluções que con- tribuam para uma gestão sustentável destes sistemas únicos, tão valorizados como o mon- tado, que se encontra em declínio, levou-nos a organizar este congresso que esperemos que seja o primeiro de muitos”, afirma Tere- sa Pinto-Correia, responsável pelo ICAAM, a unidade de I&D da Universidade de Évora. Criar sistemas agrossilvopastoris sustentáveis O foco do congresso incidiu em temas rela- cionados com estes sistemas naturais que combinam as árvores e o pastoreio animal em regiões do mundo onde prevaleçam ape- nas duas estações do ano, o verão e o inver- no, com especial incidência no impacto da seca nestes sistemas que são dinâmicos. É, por isso, necessário estudar novos modelos de gestão legitimados por políticas públicas adequadas, que contribuam para criar siste- mas agrossilvopastoris sustentáveis. A este propósito um dos palestrantes principais Guy Beaufoy, representante do European Forum on Nature Conservation and Pasto- WORLD CONGRESS SILVO-PASTORAL SYSTEMS “A PAC é destinada à agricultura e não à floresta” A Universidade de Évora organizou o primeiro congresso subordinado ao tema “Silvo- -Pastoral Systems in a changing world: functions, management and people” , um evento que contou com a participação de 300 pessoas. Entre 27 e 30 de setembro, investigadores vindos dos quatro cantos do mundo, reuniram-se em torno do mesmo objeto de estudo, o sistema agrossilvopastoril, com o objetivo de partilharem conhecimento que possa ser aplicado à prática. Texto . Maria Luísa Ferrão Gab. Com. UÉvora Gab. Com. UÉvora

WORLD CONGRESS SILVO-PASTORAL SYSTEMS “A PAC ......o sistema radicular, acabando por morrer a médio/longo prazo. Para além desta questão, há que registar as datas em que os animais

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Teresa Pinto-Correia, membro da comissão organizadora do Congresso, conta que a ideia de organizar um evento com esta projeção surgiu em conjunto com os colegas espanhóis, da Universidad de Extremadura, com base na necessidade de produzir conhecimento que contribua para a sustentabilidade do monta-do. “Quando começámos a organizar o con-gresso percebemos que há um longo caminho a percorrer. Olhando para outros sistemas agrossilvopastoris com características seme-lhantes às do montado, verificámos que ain-da estamos numa fase inicial no que toca a cruzar diferentes disciplinas para entender o sistema como um todo. Assim, esta necessida-de de produzirmos conhecimento integrado, por forma a encontrarmos soluções que con-tribuam para uma gestão sustentável destes sistemas únicos, tão valorizados como o mon-tado, que se encontra em declínio, levou-nos a organizar este congresso que esperemos que seja o primeiro de muitos”, afirma Tere-sa Pinto-Correia, responsável pelo ICAAM, a unidade de I&D da Universidade de Évora.

Criar sistemas agrossilvopastoris sustentáveisO foco do congresso incidiu em temas rela-cionados com estes sistemas naturais que combinam as árvores e o pastoreio animal em regiões do mundo onde prevaleçam ape-nas duas estações do ano, o verão e o inver-no, com especial incidência no impacto da seca nestes sistemas que são dinâmicos. É, por isso, necessário estudar novos modelos de gestão legitimados por políticas públicas adequadas, que contribuam para criar siste-mas agrossilvopastoris sustentáveis. A este propósito um dos palestrantes principais Guy Beaufoy, representante do European Forum on Nature Conservation and Pasto-

WORLD CONGRESS SILVO-PASTORAL SYSTEMS

“A PAC é destinada à agricultura e não à floresta”A Universidade de Évora organizou o primeiro congresso subordinado ao tema “Silvo­­Pastoral Systems in a changing world: functions, management and people”, um evento que contou com a participação de 300 pessoas. Entre 27 e 30 de setembro, investigadores vindos dos quatro cantos do mundo, reuniram­se em torno do mesmo objeto de estudo, o sistema agrossilvopastoril, com o objetivo de partilharem conhecimento que possa ser aplicado à prática.

Texto . Maria Luísa Ferrão

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ralism (EU), confessou que, não obstante as políticas europeias oferecerem, em teoria, as ferramentas que o sistema precisa para ser gerido correctamente, o problema está em adaptá-las às especificidades de cada estado--membro e de cada região. “O sistema políti-co é muito burocrático e vertical e existe um conflito de interesses com a vertente da agri-cultura”, afirma Beaufoy, que explica que os subsídios da Política Agrícola Comum (PAC) são destinados à agricultura e não à floresta. “A União Europeia torna bem claro que existe uma linha que divide a floresta da agricultu-ra e, sendo o sistema agrossilvopastoril um misto das duas vertentes, impõe-se aqui um problema que cabe a cada estado-membro gerir”, afirma Beaufoy, referindo também a importância da Rede Natura 2000. Esta con-siste num conjunto de áreas designadas para conservar os habitats e as espécies selvagens raras e vulneráveis na União Europeia, onde se incluem os sistemas agrossilvopastoris, co-mo o montado. A Europa quer proteger estes sistemas porque eles promovem a biodiversi-dade, mas o programa Natura 2000 não tem um orçamento próprio, ficando a vertente ambiental também dependente do orçamento da PAC, que, naturalmente, prioritiza a agri-cultura. Assim, há aqui um nítido conflito de interesses que afeta negativamente este tipo de sistema, o agrossilvopastoril, que é natu-ralmente integrado. Guy Beaufoy sugere que o grande desafio dos estados-membros, e em particular de Portugal, será tentar combi-

nar a PAC com a Rede Natura 2000, articu-lando ambas as políticas a partir da palavra dos agricultores. Trata-se de algo complexo, mas possível. E já há estados-membros que conseguiram conciliar-se neste sentido. Por exemplo, em França, antes do programa Na-tura 2000 ser fechado, houve um diálogo que envolveu a participação dos agricultores, dos silvicultores e dos caçadores no sentido de se definirem objetivos em conjunto e de se ne-gociarem os sistemas de pagamento. “Se os que pisam os terrenos se sentirem envolvidos

na elaboração das políticas, tudo funciona melhor”, afirma Guy Beaufoy, que nos conta o sucesso que tem tido o Burren Programme, um projeto que nasceu numa região da Irlan-da, desenhado pelos agricultores locais. “Tem como objetivos assegurar a gestão sustentável da agricultura local de elevado valor natural, contribuir para a gestão positiva da paisagem e do património cultural de Burren e para a melhoria da qualidade da água e da eficiência da utilização da mesma. Este é um programa que tem tido bons resultados e há interesse na União Europeia em implementá-lo noutras re-giões”, afirma o conferencista.

Conhecer os recursos disponíveisDa Universidade do Missouri, nos EUA, o pro-fessor Shibu Jose trouxe um novo olhar sobre os sistemas agrossilvopastoris que passa por uma intervenção a partir do conhecimento em pormenor dos recursos disponíveis. Estes sistemas têm a capacidade de combinar a ver-tente ambiental e económica. As árvores enri-quecem o solo, reciclam de forma eficiente os nutrientes disponíveis na terra, contribuem para o sequestro de carbono e proporcionam sombra, abrigo e comida ao gado. Todo este contributo traduz-se em benefício económi-co para o proprietário. “Conseguimos provar que as sombras dadas pelas árvores provo-cam menos stress nos animais e isto traduz--se em maior ganho de peso, maior produção de leite e mais crias”, afirma o professor, que é também responsável pelo departamento florestal da Universidade do Missouri. Ao combinar a floresta com o pastoreio há que assegurar que o gado não pode danificar as árvores. Por isso, quando as árvores são jo-vens e mais frágeis, o gestor deve assegurar a respetiva proteção. Shibu Jose confirma que quando esta gestão é feita de forma correta não há desvantagem na combinação. “Esta-mos envolvidos num projeto de investigação que analisa o impacto do gado na floresta jo-vem e em árvores adultas. A ideia é medirmos esse impacto nas diferentes etapas de cresci-mento das árvores e também analisarmos o comportamento da pastagem. Verificamos que o ensombramento também influencia de forma positiva a pastagem, dado que favore-ce o crescimento de erva, por ali existir mais humidade acumulada nas raízes das árvores, especialmente no verão”, afirma o professor, confessando que também já se concluiu que a erva nos sistemas agrossilvopastoris cresce mais cedo do que em zonas mais secas, onde não existem árvores, e é de melhor qualidade. “Em suma, os animais beneficiam da sombra, da qualidade e quantidade da pastagem dispo-nível e da proteção das árvores, sobretudo em picos de calor e de frio. Shibu Jose acrescenta

“A União Europeia torna bem claro que existe uma linha que divide a floresta da agricultura e, sendo o sistema agrossilvopastoril um misto das duas vertentes, impõe-se aqui um problema que cabe a cada estado-membro gerir.”Guy Beaufoy, European Forum on Nature Conservation and Pastoralism (EU)

Apresentação de posters

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Rocio Juste

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ainda que as árvores, além de limparem o ar, também purificam a água. Como é que isto acontece? A experiência do professor Shibu, feita com Populus, árvores parecidas aos nos-sos choupos, provou que estas têm comunida-des de micróbios nas raízes que utilizam os antibióticos, dados aos animais pelo homem e posteriormente excretados pelo gado, como fonte de alimento. Além disso, se tivermos pastagem na floresta, a possibilidade de ha-ver troca de nutrientes entre a flora é maior e evitam-se as perdas que normalmente acon-tecem em terrenos áridos. É por isso que esta combinação, árvores e gado, tem vantagens em termos económicos e ecológicos.Não obstante o conhecimento que tem vindo a desenvolver-se na forma como os recursos se relacionam, o agricultor continua a ter de enfrentar dificuldades, em regiões onde o clima é mais severo. No Alentejo, em particu-lar, temos o verão e o outono como períodos críticos quando se trata de alimentar o gado. Nesta altura, o agricultor tem de dar “de co-mer à mão”, embora o que seja económico é o gado “comer a dente”. Para que isso aconteça, durante o máximo de tempo possível, deve haver uma boa gestão da pastagem, tendo em vista a redução de custos.

Maneio adequadoQuando falamos em boas práticas de gestão da pastagem, Elvira Sales Baptista, professo-ra no ICAAM, sugere um maneio adequado. Por exemplo, no verão e outono é importante que as vacas não estejam a amamentar, dado que assim as necessidades de nutrição são menores. Quanto à instalação de prados per-manentes, há que ficar atento às necessidades do solo. “As pastagens melhoradas são um investimento grande e há que entender em primeiro lugar quais são as correções de solo a fazer, antes de instalar os prados”, afirma a professora. Por vezes, quando esta correção não é feita em condições, o prado permanen-te é instalado e as plantas não desenvolvem o sistema radicular, acabando por morrer a médio/longo prazo. Para além desta questão, há que registar as datas em que os animais entram e saem das parcelas, por forma a criar um histórico de comportamento da paisagem, estimular um maneio que evite o pisoteio sempre nos mesmos locais e não permitir o malhadio e o acarro em zonas com grande densidade de árvores. Curiosa é a reação da natureza à intervenção do homem. “Quando há gado na floresta, o nível de matéria seca no solo aumenta. À volta das árvores come-çam a crescer cardos, que funcionam como protetores das próprias. E porquê? Porque os animais vão deixar de se abrigar junto das ár-vores que desenvolvem este tipo de arbusto”,

O programa do congresso incluiu visitas de campo

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afirma a professora Sales Baptista. Trata-se de um sistema integrado que combina o solo, a pastagem, as árvores e os animais, e, por is-so, qualquer intervenção que se faça vai afetar alguma das suas componentes.Para além da vertente teórica, o programa do Congresso também proporcionou aos parti-cipantes visitas de campo. Foram visitadas a Herdade do Barrocal, onde a combinação de ovelhas e vacas cruzadas coexiste em 2400 hectares, dos quais 1330 hectares são de mon-tado de sobro, a Herdade da Camoeira, onde a saúde do solo é a chave para um bom sistema de produção de gado mertolengo, a Herdade da Falcoeira, que tem como objetivo melhorar

a qualidade da cortiça e promover a renova-ção do montado, e a Herdade das Feijoas, cuja atividade principal é a tiragem de cortiça e a montanheira como fonte secundária de ren-dimento. “Nas visitas ao terreno, o contacto com os produtores foi fundamental. Creio que a ideia que esteve presente na cabeça dos in-vestigadores foi o facto de que a investigação consequente é aquela que resulta das questões que se colocam na prática e que, por outro la-do, é olhando de uma forma multidisciplinar para estas questões que a investigação ajuda os proprietários a encontrarem soluções”, afirma Teresa Pinto-Correia, que chama a atenção para outra vertente de valorização do

montado, uma prática ainda pouca enraizada em Portugal. Trata-se do recreio no montado, que passa por trazer as pessoas ao campo e mostrar-lhes como funciona todo este ecos-sistema. “A maioria das pessoas vive nas gran-des urbes e não está sensibilizada para esta realidade rural. Os proprietários dos mon-tados também acabam por estar um pouco isolados na defesa do ecossistema e, por isso, penso que seria benéfico para as partes trazer as pessoas para o campo, sensibilizá-las para a importância deste ecossistema, incluir nos programas das escolas visitas de campo, por forma a começarmos a viver com o nosso ter-ritório”, conclui Teresa Pinto-Correia.

“A maioria das pessoas vive nas grandes urbes e não está sensibilizada para esta realidade rural. Os proprietários dos montados também acabam por estar um pouco isolados na defesa do ecossistema e, por isso, penso que seria benéfico para as partes trazer as pessoas para o campo, sensibilizá-las para a importância deste ecossistema, incluir nos programas das escolas visitas de campo, por forma a começarmos a viver com o nosso território.”Teresa Pinto-Correia, ICAAM – Universidade de Évora