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POLÍTICA DIFÍCIL, ESTABILIZAÇÃO IMPERFEITA: OS ANOS FHC Marcos Nobre e Vinicius Torres Freire 1 RESUMO Trata-se de artigo exploratório e descritivo que pretende circunscrever em suas grandes linhas o modelo político instaurado nos anos FHC. Para tanto, busca as origens desse modelo nos impasses políticos e econômicos próprios da crise de hegemonia característica do período pós-ditatorial, a fim de mostrar como o projeto em curso pretende simultaneamente administrar essa crise e estabelecer as condições para sua superação, o que, segundo a lógica pressuposta, significaria produzir um novo padrão de desenvolvimento subordinado para o capitalismo brasileiro e um novo rearranjo do Estado. Palavras-chave: governo FHC; política econômica; desenvolvimento subordinado. SUMMARY This article proposes an exploratory and descriptive outline of the political model established during the Fernando Henrique Cardoso administration. The authors examine this model's origins in the political and economic impasses generated by the post-dictatorship hegemony crisis, showing how the current project intends both to manage this crisis and to lay the groundwork for overcoming the problem, which means creating a new standard of subordi- nate development for Brazilian Capitalism, as well as a new arrangement for the State. Keywords: Fernando Henrique Cardoso administration; economic policy; subordinate develop- ment. Quem acredita em economista? Eu sou sociólogo, por isso que o plano deu certo. Fernando Henrique Cardoso, 5 de maio de 1998. Não há nada de essencialmente novo neste artigo. Procuramos aqui sistematizar alguns elementos e análises que se encontram a nosso ver dispersos ou insuficientemente explicitados, de modo a tentar esboçar algumas das linhas de força do modelo político que se desenvolveu no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Trata-se, portanto, de uma sistematização que se pretende, na medida do possível, descritiva do processo. O que, por sua vez, insere este artigo na rubrica "análise de conjuntura", com a ressalva de que a análise aqui apresentada não vem deduzida de uma "teoria geral" qualquer, seja ela política, econômica, sociológica, jurídica ou outra. (1) Agradecemos a Ricardo Terra pelas críticas e suges- tões. Ciro Biderman deu con- tribuições valiosas quando da discussão de uma primeira ver- são deste texto. Devemos ao jornalista Celso Pinto e aos eco- nomistas Gilson Schwartz e Demian Fiocca, colunista e editorialistas da Folha de S. Paulo, esclarecimentos impor- tantes sobre os desenvolvimen- tos recentes da economia bra- sileira. Carolina Leme e José Arthur Giannotti fizeram su- gestões de aperfeiçoamento do texto. Os erros e imprecisões são, evidentemente, de nossa responsabilidade. JULHO DE 1998 123

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POLÍTICA DIFÍCIL, ESTABILIZAÇÃOIMPERFEITA: OS ANOS FHC

Marcos Nobre e Vinicius Torres Freire1

RESUMOTrata-se de artigo exploratório e descritivo que pretende circunscrever em suas grandes linhaso modelo político instaurado nos anos FHC. Para tanto, busca as origens desse modelo nosimpasses políticos e econômicos próprios da crise de hegemonia característica do períodopós-ditatorial, a fim de mostrar como o projeto em curso pretende simultaneamenteadministrar essa crise e estabelecer as condições para sua superação, o que, segundo a lógicapressuposta, significaria produzir um novo padrão de desenvolvimento subordinado para ocapitalismo brasileiro e um novo rearranjo do Estado.Palavras-chave: governo FHC; política econômica; desenvolvimento subordinado.

SUMMARYThis article proposes an exploratory and descriptive outline of the political model establishedduring the Fernando Henrique Cardoso administration. The authors examine this model'sorigins in the political and economic impasses generated by the post-dictatorship hegemonycrisis, showing how the current project intends both to manage this crisis and to lay thegroundwork for overcoming the problem, which means creating a new standard of subordi-nate development for Brazilian Capitalism, as well as a new arrangement for the State.Keywords: Fernando Henrique Cardoso administration; economic policy; subordinate develop-ment.

Quem acredita em economista? Eu sou sociólogo,por isso que o plano deu certo.

Fernando Henrique Cardoso, 5 de maio de 1998.

Não há nada de essencialmente novo neste artigo. Procuramos aquisistematizar alguns elementos e análises que se encontram a nosso verdispersos ou insuficientemente explicitados, de modo a tentar esboçaralgumas das linhas de força do modelo político que se desenvolveu nogoverno do presidente Fernando Henrique Cardoso. Trata-se, portanto, deuma sistematização que se pretende, na medida do possível, descritiva doprocesso. O que, por sua vez, insere este artigo na rubrica "análise deconjuntura", com a ressalva de que a análise aqui apresentada não vemdeduzida de uma "teoria geral" qualquer, seja ela política, econômica,sociológica, jurídica ou outra.

(1) Agradecemos a RicardoTerra pelas críticas e suges-tões. Ciro Biderman deu con-tribuições valiosas quando dadiscussão de uma primeira ver-são deste texto. Devemos aojornalista Celso Pinto e aos eco-nomistas Gilson Schwartz eDemian Fiocca, colunista eeditorialistas da Folha de S.Paulo, esclarecimentos impor-tantes sobre os desenvolvimen-tos recentes da economia bra-sileira. Carolina Leme e JoséArthur Giannotti fizeram su-gestões de aperfeiçoamento dotexto. Os erros e imprecisõessão, evidentemente, de nossaresponsabilidade.

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Constitui-se, portanto, em texto ainda exploratório, afetado por umandamento freqüentemente esquemático da exposição. De um lado, oesquema se organiza segundo as noções de "política difícil" e de "estabili-zação imperfeita", noções que, como veremos, são inseparáveis, mas quepara fins de exposição terão seus momentos de independência. De outrolado, o esquema exige que recuperemos — ainda que em suas grandeslinhas — os contornos da "transição brasileira", herança peculiar a queresponde o governo FHC.

Neste sentido, entendemos que todo o processo que culminou com apromulgação da Constituição de 1988 não significou a consolidação de umnovo pacto de dominação, mas, ao contrário, cristalizou a crise de hegemo-nia característica do período da redemocratização. Na mesma época,entretanto, pressões do capital nacional e internacional determinaram oinício de uma abertura econômica, limitada por certo, mas que já apontavaclaramente para a necessidade do estabelecimento de um novo padrão dedependência para o país (o que significa, antes de mais nada, um novopacto de dominação), a exigir a liquidação por inteiro do nacional-desenvolvimentismo. O resultado desse duplo movimento podemos obser-var até hoje: a partir de 1988, diminuiu o grau de indefinição quanto aomodelo de desenvolvimento subordinado brasileiro, ao mesmo tempo queas possibilidades de gerenciamento político se estreitaram sobremaneira.Eis, grosso modo, as origens da "estabilização imperfeita" e da "políticadifícil" dos anos FHC.

O programa Real/FHC é um projeto de refundação econômicadesenhado para conter em si mesmo pelo menos os instrumentos inicial-mente necessários para também criar, e recriar, condições políticas para seugerenciamento, isto é, para administrar a referida e herdada crise dehegemonia. O projeto procura realizar tal gerenciamento distribuindo aolongo do tempo a resolução de conflitos necessária ao próprio sucesso dalógica interna do plano econômico.

No entanto, tal estratégia de administrar perdas e ganhos parece reporcontinuamente os fatores da instabilidade a princípio provisória do plano deestabilização que deu origem ao programa FHC. Tal plano pressupõe, emúltima análise, de forma direta ou indireta, redefinições sobre a apropriaçãode renda pelos grupos sociais ou mesmo por setores desses grupos. Trata-se de um processo cujos elementos principais são, de um lado, a dificuldadede impor perdas definitivas (já que não se tem hegemonia) e, de outro, asindefinições a respeito de a quem caberão os ganhos (os condutores doprocesso que levariam a um novo patamar de dependência). Tais redefini-ções sobre a apropriação de renda se evidenciam nas diferentes maneiraspelas quais o Estado pode impor e redistribuir a carga fiscal, constituir emanipular fundos públicos fiscais ou parafiscais, bem como nas demaisformas de regular a acumulação e, especialmente, o estímulo interno eexterno à acumulação.

É certo que algumas dessas definições estão em curso, estabelecendoclaramente perdas e ganhos para grupos. Mas não há como estabelecer

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perdas definitivas, aquelas necessárias ao cumprimento dos requisitospressupostos pelo programa econômico de FHC: os jogos ainda não estãofeitos. De um lado, a estabilização "transita" para um ponto ainda indefini-do: o "lugar" do país periférico na nova reorganização mundial — se eleexistir — não está estabelecido de uma vez por todas. O que obriga,portanto, a uma administração miúda, cotidiana, do ajuste econômico emque se responde a sinalizações de rota internas e externas nem sempreclaras, tarefa que se conjuga às dificuldades próprias de uma instabilidadecrônica dos mercados mundiais na qual está ancorada, em última análise, aestabilização. Esta seria uma primeira formulação do que chamamos de"estabilização imperfeita".

De outro lado, vê-se já que o grau de indefinição (inerente, sistêmico)do projeto em curso constitui uma agravante do ponto de vista da crise dehegemonia que se arrasta pelos nossos "vinte anos de crise". Como superaressa crise — vale dizer: a definição sobre perdas e ganhos definitivos —num ambiente econômico mundial não apenas instável, mas incerto? Aoanalisarmos o funcionamento do sistema político sob FHC, encontramoscomo que um duplo daquela administração miúda, cotidiana, da "estabili-zação imperfeita": também na política os pactos e alianças são precários, alegitimidade é insidiosa, os limites da ação são escorregadios. No fundo, oalmejado novo modelo de capitalismo subordinado, mas em desenvolvi-mento — sob muitos aspectos indefinido por natureza, como já vimos —,pressupõe atores que, em boa medida, não se formaram, ao mesmo tempoque é preciso dar resposta aos grupos sociais e econômicos ameaçados,dispostos a resistir à imposição de perdas. Tais são alguns elementoscentrais do que iremos chamar de "política difícil".

Note-se, entretanto, que não pensamos a "estabilização imperfeita" emvista de uma virtual "estabilização perfeita", nem pensamos a "políticadifícil" em vista de uma "política fácil" ou de uma "política autêntica" quesobrevirá. Trata-se antes — como veremos — de limitações impostassimultaneamente pelos novos arranjos políticos e econômicos mundiais epela peculiar herança da "transição brasileira", uma transição que não serestringe — como sabemos — à instituição do regime de eleições livres.Mas, além disso, é preciso lembrar que a "imperfeição da estabilização" e a"dificuldade da política" exigiram primeiramente que fossem produzidas ascondições mínimas de seu gerenciamento político, econômico e social.Abreviamos essas condições de legitimidade (difusa) e de hegemonia(instável) sob o nome de "lógica do inevitável", pela qual começaremos.

A lógica do inevitável

Logo ao assumir, Fernando Henrique Cardoso insistiu num discursocontra as volatilidades do mercado financeiro global e na defesa demecanismos de regulação internacionais que reduzissem a vulnerabilidade

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das políticas nacionais diante dos gigantescos movimentos especulativosplanetários. Tal discurso causou perplexidade, porque parecia simplesmen-te cínico querer denunciar uma lógica de cassino que, afinal de contas, eraa própria base da política econômica e da "aposta" de desenvolvimentoinstaurada com o Real. Mas, se cinismo havia, certamente ele não estava aí.A lógica do Plano Real sempre se pôs como a lógica do inevitável: não háalternativa possível ao projeto de estabilização implementado. Neste senti-do, se o plano de estabilização adotado era não apenas o único possível,mas o melhor que se podia fazer diante dessa inevitabilidade, há realmenteque se reclamar da lógica desse único mundo possível a que fomoscondenados.

Sendo assim, foi necessário, em primeiro lugar, produzir legitimidadee hegemonia para que o inevitável fosse reconhecido como tal. Para tanto,o controle da inflação foi a princípio mecanismo eficiente e duradouro paraobter amplo, difuso e desorganizado apoio popular, mas esse apoio erainsuficiente, do ponto de vista do projeto que seria desenvolvido, sem umaaliança real com setores da elite. Caracterizada assim, a aliança como o PFLé — literalmente — a outra face da moeda: a contrapartida de umalegitimidade insidiosa e de um projeto que pretende superar a recorrentecrise de hegemonia pós-ditatorial. O projeto de Fernando Henrique desor-denou a então instável composição de interesses da elite e começou a retirarpoder de facções dominantes do nacional-desenvolvimentismo, submeten-do-as a um projeto que buscava repor, se possível num grau superior, adependência, criando um novo ciclo de desenvolvimento subordinado. Nãose trata, portanto, apenas da unidade ocasional de uma elite sem projetopróprio e disposta a tudo para evitar um governo Lula, como foi o caso daeleição de Fernando Collor.

Note-se, por exemplo, que também a opção pelo virtual "engessamen-to" do câmbio foi pensada entre outras coisas em vista de uma consistênciaintertemporal dessa hegemonia a ser produzida. Mas, de outro lado, há quelembrar que o câmbio não foi apenas "engessado": foi também mantidosobrevalorizado. Deste modo, o câmbio apreciado provocou um processode seleção artificial no parque produtivo brasileiro, financiando indireta-mente a reestruturação dos mais fortes. Num movimento já clássico, aimposição de perdas relativas se dá em parte por meio da socialização doscustos do ajuste, levada a cabo, em última análise, pelo aumento da dívidapública provocado pelas altas taxas de juros, necessárias para sustentar aestabilização ancorada no câmbio. O câmbio sobrevalorizado contribui, porexemplo, para a sobrevivência dos capitalizados à guerra da aberturaeconômica. Alguns se tornam importadores de bens de consumo final; paraoutros torna-se mais fácil e barata a importação de máquinas e deequipamentos para as plantas já instaladas, assim como fica menos onerosaa instalação de novas plantas para as empresas transnacionais que chegam.

Em segundo lugar, a produção da inevitabilidade exigiu uma severarestrição de movimentos da contraparte organizada da sociedade. Nestesentido, a repressão à greve dos petroleiros em 1995 teve caráter exemplar:

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tratou-se de mostrar que seria punida com rigor qualquer tentativa organi-zada de protesto e de negociação política que não se pusesse nos limitescontroláveis do Congresso Nacional2. O processo restante de desorganiza-ção social foi levado a cabo, no caso do emprego privado, pelas altas taxasde desemprego nas bases sindicais mais organizadas e, no caso do empregopúblico, pela política salarial destrutiva e pela repressão sistemática aoseventuais movimentos de resistência do funcionalismo federal. Nessecontexto, vale sempre destacar a grande exceção que segue sendo o MST,o único adversário fora do gabarito estabelecido, exatamente porquefundado num amplo apoio popular e numa sólida organização.

Esses dois requisitos, no entanto, não foram suficientes para estabele-cer um projeto de fato hegemônico para o país. É certo que FHC tratou dese infiltrar nas fraturas expostas da crise de hegemonia resultante daderrocada do modelo do nacional-desenvolvimentismo, entre outras coisaspara defender pelas elites os verdadeiros interesses destas3. Mas a hegemo-nia instável do projeto impõe duas limitações básicas para a ação. Antes demais nada, nunca de sabe ao certo qual o limite para a imposição de perdasaos diferentes grupos. Deste modo, toda iniciativa governamental é, pordefinição, tentativa: dependendo do vulto da reação, decide-se pelo recuo,pela negociação ou por um avanço maior. Assim, foi possível impor aofuncionalismo público federal (e, por conseqüência, também ao funciona-lismo dos outros níveis de governo) perdas que podemos qualificar comodefinitivas. Essa categoria é, até agora, a maior derrotada. Mas há queconsiderar também o caso inverso: no caso da repercussão pública dareforma da previdência, os "vagabundos" deram a Fernando Henrique umaresposta imediata nas pesquisas eleitorais. Toda a astúcia está em ser capaz,em cada caso, de determinar com firmeza onde se negocia e em que termos,elementos que pretendemos analisar na última parte deste artigo.

Uma segunda limitação da ação governamental é a dificuldade emdeterminar com segurança os beneficiários do ajuste. Os candidatos, comobem sabemos, são os óbvios de sempre. Mas não só o futuro da novadependência brasileira é ainda nebuloso, como também a magnitude daresistência (ou, ao contrário, do apoio) das frações da elite ao projeto é emboa medida desconhecida. A atenção aos sinais externos e internos queindicam os rumos do ajuste exige respostas rápidas e muitas vezesimprevistas, cujo resultado é o estabelecimento de perdas e ganhos queterão que ser impostos ou, ao contrário, negociados, mitigados por compen-sações de vários tipos.

Os conflitos fundamentais não resolvidos tornam difícil o estabeleci-mento das condições econômicas pressupostas pela própria estratégia degovernar um país em equilíbrio instável, estratégia centrada na estabilizaçãoda moeda e que pretende a partir daí refundar a economia e rearranjar oEstado. Concomitantemente, a decorrente indefinição desse novo Estado emodelo de capitalismo subordinado, mas em desenvolvimento, dificulta aprópria definição das regras do jogo da nova acumulação, do seu financia-mento e dos seus pólos condutores — dos condutores do novo engate da

(2) Vicentinho pagou caro pornão ter visto isto antes. Ao serconvocado para participar dasdiscussões e negociações emtomo da reforma da previdên-cia (a "primeira"), no final de1995, o presidente da CUT afir-mou que o governo finalmentetinha percebido que era muitomais vantajoso negociar forado Congresso, porque não cus-tava mais que "água e cafezi-nho". Como se sabe, Vicenti-nho terminou tendo que engo-lir bem mais que isso. Mas,para mostrar que esse movi-mento do governo FHC não serestringe ao movimento popu-lar ou de trabalhadores e fun-cionários públicos, basta versob esse aspecto o fato inéditode um presidente da Fiesp(Carlos Eduardo Moreira Fer-reira) lançar-se candidato adeputado federal, demonstran-do que os canais extra-institu-cionais tradicionais estão blo-queados. Sobre a posição doCongresso Nacional no mode-lo de gestão política de Fer-nando Henrique Cardoso, veradiante.

(3) "Nós avançamos muito. Aelite brasileira não percebeuque houve uma mudança qua-litativa", declarou recentemen-te o presidente (Época, ano I,nº 1, 25/05/98, p. 43).

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economia brasileira na nova ordem mundial; em outras palavras, aquelesque dariam força a uma nova onda de investimentos.

Já se vê, portanto, que não é possível a rigor separar "estabilizaçãoimperfeita" e "política difícil". Mas é o que faremos a partir de agora.

Estabilização imperfeita

De um lado, ouve-se que o curso da transição do modelo daindustrialização interrompida ou inacabada para um outro, não se sabe qual,estaria pelo menos por ora envenenado por deficiências na implementaçãodo plano de estabilização da moeda: erros técnicos, falhas e demoras naexecução e problemas causados por constrangimentos políticos circunstan-ciais, tais como o oportunismo eleitoral. De outro lado, o projeto embutidono Plano Real estaria malfadado desde sempre, pois não haveria comocontornar o reencontro dos países periféricos (ou subperiféricos, como orase diz) com seu destino globalmente manifesto, se não é o Plano mesmouma mera estratégia de rendição ao inevitável. A caricatura desses doisdiagnósticos, freqüentes nas oposições, realçaria no primeiro tipo de análisea queixa sobre o "erro no câmbio", o vício de origem do Real, e no segundo,a tentação ou a obstinação de considerar Fernando Henrique Cardoso umaengrenagem decorativa da moenda da nova etapa do capital mundializado.

Uma dessas avaliações por vezes parece demasiada ou exclusivamen-te presa à análise econômica — o país do Real quase chega a parecer vítimade uma projeção econométrica malfeita. Teriam faltado variáveis, a outrasdeu-se pouco peso; uma equação bem montada e tudo o mais constante,como se costuma dizer nesses exercícios de futurologia macroeconômica, eo Plano seria consistente. Mas, sendo "tudo o mais" também o enormeuniverso paralelo dos conflitos sociais e políticos, o valor das variáveis, paraprosseguir na metáfora, cresce ou diminui no tempo de acordo compressões e turbulências na sociedade. Parece uma lição cediça; deixa de sê-lo quando se contam as vezes em que se ouve a expressão "o governo errouno câmbio", para prosseguir na caricatura. No outro tipo ideal comum deanálise, o da moenda do capital global, o vício não é do particularismo, masdo totalismo; ignoram-se sem mais as condições em que as sociedades anteschamadas periféricas poderiam ou não tentar, a partir da reorganização deforças e recursos em seu interior, uma inserção que não fosse suicida, porsubordinada ou ilusoriamente positiva, na nova economia mundial.

Mas a equação fernandina nunca é tão simples. Procura dar conta deproblemas dos nossos "vinte anos de crise" irresolvida, talvez insolúvel;projeta um sistema de equilíbrio instável para administrar os conflitos emboa parte até hoje vivos dessas duas décadas de indefinição política eeconômica. Não se trata de dizer, além de irrelevante, que o programa FHC/Real tenha sido oportunisticamente moldado para sustentar a travessia parao deserto prometido da nova dependência e do novo estágio de progresso

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do capitalismo subordinado. Essa idéia se manifesta da forma mais vulgar nacrítica ao caráter eleitoreiro do Plano Real, bordão que vem demonstrandoa triste incompreensão de grande parte da esquerda em relação a FHC desde1994 e, ainda mais espantoso, até hoje, junho de 1998. É evidente edispensaria comentários a relação entre o cronograma do Plano e o ciclopolítico. O calendário do Real provocara dúvidas e dissensões temporáriasaté entre os próprios técnicos e políticos que o elaboravam. Certamente oPlano Real começara com soluções apenas provisórias para algumasquestões econômicas fundamentais para seu sucesso, segundo a sua lógica.Mas, ao admitir sua provisoriedade, também indicava que se adotavam asmedidas politicamente possíveis num quadro de hegemonia incerta, alémdaquelas necessárias para garantir sucesso eleitoral; adotavam-se as medi-das necessárias também para criar as condições de legitimidade política paragarantir futuras correções de rumo ou reformas de fundo, além de já se darinício à reforma econômica, pois o Plano e a abertura comercial já faziamsuas primeiras vítimas, minoritárias, como condizia à lógica do Real. Talprograma era uma solução condicionada, entre as opções abertas, pelasituação política; era uma iniciativa engenhosa para dar início à coalizão "deA a Z" que Fernando Henrique Cardoso tentaria levar a cabo de modoexplícito durante o seu governo — e para continuá-lo. "Não subestimo asdificuldades da empreitada", dizia o candidato FHC. "As resistências nãovêm apenas do Estado — da classe política, da burocracia —, mas da própriasociedade, que muitas vezes quer a mudança mas não quer pagar o preçoda mudança"4.

Um dos aspectos mais significativos dessa administração pragmáticaparece ser o papel conferido ao BNDES, que em 1997 e 1998 desembolsaria,a cada ano, o equivalente a mais de duas vezes o total de investimentosprevistos no Orçamento da União. O banco, parte do núcleo duro daadministração FHC, não apenas financiaria e de certo modo dirigiria asprivatizações, subsidiando em parte a reorganização dos grandes gruposeconômicos, mas também passaria, aos poucos, a auxiliar parte da reestru-turação industrial. Os desembolsos do banco aumentariam significativa eprogressivamente a partir de 1995, depois da relativa inatividade do BNDESentre 1990 e 1994.

A administração do inevitável foi, portanto, marcada por fases distin-tas. Apesar da "inquebrantável prioridade conferida à estabilização", o Planofoi política e economicamente gerenciado com pragmatismo e certaflexibilidade, como o indicam as seguintes guinadas, sempre na mesmapista, conduzidas pelo governo em aspectos de sua política econômica5.

Fundamentalismo: julho de 1994 a março de 1995 — Vence nogoverno a aposta na auto-regulação do sistema colocado em marcha pelaguerra cambial e pela abertura radical. A baixa da inflação fundamentaria adistribuição de renda, a reestruturação produtiva e o crescimento sustenta-do. Não era preciso estratégia de crescimento, muito menos políticaindustrial ativa. A explosão do crescimento assusta o governo, que faz umaligeira alteração no câmbio e promove restrições monetárias moderadas no

(4) Folha de S. Paulo, 05/06/94.

(5) Cf. Castro, Antonio Barrosde. "Real: a fase não assumi-da". Folha de S. Paulo, 14/05/97. Em linhas gerais, devemosàs reportagens e análises dojornalista Celso Pinto, na Fo-lha, e a Castro, tanto em seusartigos na Folha como no Bo-letim de Conjuntura do Insti-tuto de Economia da UFRJ, ainterpretação da maioria dasfases do plano.

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último trimestre de 1994. Em novembro a balança comercial se torna, pelaprimeira vez em muito tempo, deficitária.

A batalha da moeda e as pacificações: março de 1995 a julho de 1995— Trajetória explosiva na balança comercial provoca a primeira grandeadequação do Real. Começa a funcionar o sistema de banda cambial, comdesvalorização de cerca de 6% do real. Conflitos na equipe econômicatambém conturbam a mudança cambial. Ocorre um ligeiro ataque especu-lativo. O governo recua taticamente na abertura e começa a política depacificações, com a volta de alguma proteção tarifária para o setor deautomóveis e outros bens duráveis. Saldo comercial positivo volta em julho.

Hibernação do vírus cambial: agosto de 1995 a outubro de 1996 —FHC sustenta a aposta na estabilização ancorada (e seus defensores).Morosidade na economia. Banco Central aposta que a estabilização seguiráfirme até 1998, com acerto de câmbio menor que a inflação e alto nível dereservas cambiais para sustentar o déficit em conta corrente.

Naufrágio comercial, vitória das pacificações: novembro de 1996 aoutubro de 1997 — O BNDES, cujos investimentos caíram de 1990 a 19946,torna-se o grande centro do investimento público e executor da políticaindustrial marginal do governo FHC. Financia reestruturação da indústria eas privatizações. Multiplicam-se as medidas de proteção setorial. Governocomeça a acelerar as desvalorizações do real em novembro de 1996,assustado com o déficit comercial. Nova minibanda entra em vigor emmarço de 1997, para conter progressivamente a sangria nas contas externas.

Pós-pacote: outubro de 1997 em diante — Grande baque do sistema deestabilização ancorada em capital externo, depois da crise asiática. Governodá mais peso à Câmara de Comércio Exterior, mas não reorienta fundamen-talmente sua posição em relação à reorganização econômica do país,mesmo com os sinais de recessão e desemprego crescente e do constrangi-mento cíclico do crescimento. No entanto, um representante do "industria-lismo" no governo considerava em março que "a noção de que o país nãovai andar apenas pelo laissez-faire é uma idéia vencedora no governo"7.Ademais, a política central — a estabilização ancorada — é reafirmada, emmaio de 1998, com novas regras para administrar a lenta e gradualdesvalorização do real.

O valor da taxa de câmbio se tornou desde muito cedo uma espéciede carrefour das discussões sobre o Plano Real. Já no começo de 1994 edurante os meses que antecederam o lançamento da segunda fase doprograma de estabilização e da nova moeda, críticos à esquerda e à direita,além de futuros ministros econômicos do governo FHC, apontavam os riscosde uma política antiinflacionária baseada na combinação rígida de âncoracambial e abertura do comércio. De resto, análises de planos concretos deestabilização desse figurino já recheavam a literatura econômica e mesmoo atual presidente do Banco Central do Brasil discutira em artigo acadêmico,anos antes de se tornar o principal ideólogo do Real, as armadilhas criadaspor tais âncoras quando utilizadas como instrumento básico de estabilizaçãomonetária.

(6) Cf. Suzigan, Wilson e Ville-la, Annibal. Industrial Brazilianpolicy. Campinas: Instituto deEconomia da Unicamp, 1997.

(7) Segundo registro de CelsoPinto (Folha de S. Paulo, 17/03/98).

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Depois de tal conhecimento não haveria perdão, e, como o câmbioaparece como o nó central das amarras e armadilhas da política econômicana maior parte do debate, o "erro" na taxa nominal de troca do dólar peloreal fez de Gustavo Franco o São Sebastião do credo monetário, flechadopor todos os lados pelo paganismo exportador. Mas, enfim, onde estava ecomo teria ocorrido o "erro" que envenenou toda a política econômica,contaminando a balança comercial, o balanço de pagamentos, as taxas dejuros e o déficit público, tudo por tabela?

No lançamento do Real, estipulou-se que o valor da moeda nacionalpoderia flutuar até o limite da paridade com o dólar, em relação ao teto,podendo rolar ladeira abaixo quanto ao piso. Como para baixo todo SãoSebastião ajuda e como era política do Plano promover uma engorda dereservas, cevadas por meio de altas taxas de juros, o dólar despencou diantedo real durante o segundo semestre de 1994. A baixa taxa nominal decâmbio, o mais baixo nível médio de alíquotas tarifárias de importação emdécadas e o boom de consumo da estabilização provocaram, de outubro paranovembro de 1994, uma virada de mais de US$ 1 bilhão na balançacomercial. "A taxa nominal de câmbio (R$/US$) ficou apreciada em 16% e abalança comercial passou de um superávit de R$ 12,9 bilhões, nos dozemeses terminados em junho de 1994, para um déficit de US$ 600 milhões, nosdoze meses terminados em junho de 1995", escreveria em 1997 FranciscoLopes, diretor de Política Monetária do BC8. Ainda em 1994, o governotomaria medidas de restrição ao crédito e ao consumo, iniciativas que setransformariam no primeiro pacote recessivo de salvação da moeda a partirde março de 1995. A crise desse ano fez com que, de uma vez por todas, oproblema do programa FHC/Real aparecesse como um problema de adminis-tração econômica, a "teoria da armadilha" — mesmo na esquerda ou até entreeconomistas do governo. Não ignoramos os diversos matizes e tendênciasque agrupamos aqui sob a rubrica da "teoria da armadilha", mas nos interessaconsiderá-los em conjunto não apenas pela crítica comum aos rumos doprocesso de estabilização, mas principalmente pelo fato de pressuporem, emúltima instância, a política como obstáculo, ou, para usar o jargão, comoconstraint. Tampouco nos interessa aqui saber se este pressuposto da políticacomo obstáculo é ou não meramente estratégico — em vista do combateideológico ou da conquista de espaço no interior do núcleo duro de governo.

Pode-se apresentar a "teoria da armadilha" como uma síntese dascríticas ao modelo brasileiro de estabilização ancorada no câmbio, no caso,além do mais, exagerada ou equivocadamente baixo. A "teoria" advoga que,quando exposto ao vírus cambial, um organismo fragilizado pela aberturacomercial e financeira mal-administrada passa a sofrer da doença crônica dodéficit externo. Em um ambiente econômico aquecido, aberto ao comércioexterior e aos fluxos externos de capital, uma taxa nominal de câmbioadministrada e quase fixa em valores baixos (sustentadas por alto nível dereservas cambiais, por sua vez mantidas pelo enorme diferencial entre taxasde juros externas e internas) estimula desmesuradamente importações e temefeito contrário nas exportações.

(8) Lopes, Francisco. "Trans-missão da política monetária".Revista de Economia Política,vol. 17, nº 3 (67), jul.-set. de1997, p. 10.

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Os déficits comerciais crônicos não são apenas resultado direto doaumento do consumo das famílias. Vêm a ser provocados em especialpelos investimentos realizados em importações de equipamentos e tecno-logia a fim de incrementar a capacidade produtiva para suprir o mercadointerno ampliado pela estabilidade, assim como para fazer face à concor-rência dos produtos importados barateados pelo câmbio. O mercadointerno aquecido e o câmbio baixo, por sua vez, tendem a desviarinvestimentos para a produção de bens e serviços não-comercializáveis,desestimulando aqueles dirigidos para a exportação, que se tornara menoscompetitiva e rentável. Os investimentos diretos do exterior tendemtambém a ser orientados para a produção que visa basicamente aomercado interno9.

A manutenção de taxas de crescimento real do PIB per capita passa,então, a estar associada a déficits externos crescentes. A curto prazo, ofinanciamento do déficit, et pour cause a sustentação das reservas queancoram a estabilização, passam, por sua vez, a depender em medidaimportante de capitais atraídos por taxas de juros que cubram em muitoaquelas oferecidas nos mercados centrais. O sistema que detonou odesequilíbrio externo seria, assim, ciclicamente reposto, de modo vicioso.Apesar dos eventuais descontroles, a política de sustentação de um certonível de déficits constantes em conta corrente é intencional, pois os déficitssão o equivalente à poupança externa necessária para completar o nívelinsuficiente do investimento nacional.

No entanto, a médio prazo o custo do passivo externo — investimen-tos diretos, em porta-fólio e dívida externa — tende a crescer de maneirainsustentável, pois não é correspondido pelo aumento da capacidade depagamento do país. Tal fragilidade, somada às instabilidades sistêmicas dosfluxos internacionais de capital, reforça a necessidade de manutenção deum nível alto de reservas cambiais e, portanto, do referido diferencial entrejuros internos e externos. A situação é agravada pelo fato de o conjuntodessas instabilidades tornar menos segura e conveniente a composição dopassivo externo, no qual tenderia a ter maior peso a dívida, em especial decurto prazo, em detrimento dos investimentos. Os investimentos externosrepresentavam 71,87% do financiamento externo em 1994 (contra 28,13%de dívida externa). Em 1997, a fatia do investimento caiu para 43,89%. Oserviço da dívida, por sua vez, tomava 38,9% do valor da exportações noprimeiro ano do Real. Em 1997, esses pagamentos já representavam 71,5%do valor das vendas externas10:

Na prática, é como se o policy maker tivesse que administrar doisconstrangimentos simultaneamente: de um lado aceitar um aumentona tão vigiada e tensa relação déficit em conta corrente/PIB e de outroa necessidade de aumentar as reservas para mitigar a vulnerabilidadeexterna. Em outras palavras, aumenta-se a vulnerabilidade para criarmunição para reduzi-la em um segundo momento11.

(9) Claro que isso se devetambém à estratégia das em-presas internacionais de privi-legiar exportações a partir deoutras bases territoriais. A esserespeito, ver o importante tra-balho de Laplane, Maurício F.e Sarti, Fernando. "Investimen-to direto estrangeiro e a reto-mada do crescimento susten-tado nos anos 90". Economia eSociedade, nº 8, junho de 1997,pp. 143-182.

(10) Carta da Sociedade Brasi-leira de Estudos de EmpresasTransnacionais e da Globali-zação Econômica — Sobeet,ano II, nº 6, jan./fev. de 1998,editada por Octavio de Barros,pp. 2-3.

(11) Ibidem, p. 2.

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O diferencial das taxas de juros internas e externas é o modus desustentação das reservas e, em conseqüência, do câmbio que ancora aestabilização, a qual provocara déficits externos, a política de juros altos eassim por diante, de maneira crônica; tal problema é ainda agravado peloscrescentes riscos de alterar significativamente o câmbio, o que, nessesistema, poderia "abalar a credibilidade" da economia do país (medidaatualmente no mercado futuro de dólar e juros) ou colocá-la em sériosapuros dado o montante da dívida externa pública e da dívida externaprivada não protegida contra desvalorizações.

Tal política em relação ao câmbio, de desvalorização lenta e gradual,foi recentemente reafirmada, em maio de 1998, na mudança de sistemáticade alargamento da banda de flutuação da moeda:

O canal da taxa de câmbio foi, provavelmente, o mecanismo-chave datransmissão da política monetária na recente experiência brasileira. Acombinação de uma grande acumulação de reservas estratégicas [..]com taxas reais de juros extremamente altas não deixa qualquer dúvi-da de que esta é uma política monetária baseada na estabilização12.

O nível da taxa de juros necessária para manter o equilíbrio instáveldo câmbio cria outros sérios fatores de instabilidade macroeconômica emfunção da deterioração fiscal. A taxa de juros necessária para financiar odesequilíbrio externo aumenta o custo de rolagem da dívida interna e odéficit público. Dada a política de esterilizar o excesso de moeda nacionalnecessária para converter os dólares das reservas — o enxugamento de reais—, por sua vez, também aumenta a dívida pública, o que se torna mais umfator de pressão sobre a taxa de juros, que também sustenta o interesse dosdetentores de títulos da dívida interna:

O déficit em conta corrente não é um problema em si, afinal inúmerossão os países que se desenvolveram graças a um volume considerávelde poupança externa durante um longo período. Há também amplaevidência empírica sobre isso. Torna-se apenas crucial monitorar emsintonia fina a capacidade de financiamento e o perfil do passivoexterno que o déficit corrente enseja. Quanto mais investimento emenos endividamento melhor. No caso brasileiro, nos anos recentestem aumentado a parcela do endividamento [...]13.

No projeto original do governo, em linhas gerais mantido até hoje, talpolítica de estabilização engendraria, com ajuda de intervenções tópicas e/ou reguladoras, sua própria correção, reestruturando a economia na direçãoda competitividade e da superação do problema comercial externo e, menos

(12) Lopes, op. cit., p. 10,

(13) Sobeet, op. cit., p. 2.

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circunstancialmente, transformando o parque produtivo de modo a capaci-tá-lo para o novo jogo da competição global por mercados e investimentos— trata-se da conhecida "aposta" governamental.

No entanto, ao longo da gestão FHC passou a ter mais ressonância atémesmo dentro do governo a tese de que o sistema produtivo provavelmentenão virá a se autocorrigir — ou reestruturar — nem mesmo se estiveremperfeitas as demais condições da estabilização pressupostas, que seriampropiciadas pelas ditas reformas do Estado, pela abertura comercial,privatizações etc.

Projeções do economista Fabio Giambiagi14 ressaltavam a necessidadede intervir ativamente em outras variáveis para se fechar o ciclo (e as contas)da estabilização. Os exercícios de Giambiagi apontavam que a trajetóriaprojetada (pelo governo) ou realmente crescente dos déficits em contacorrente levaria o país à quebradeira, mantida a projeção oficial para osdemais indicadores econômicos, a abertura comercial e a política cambial.Para evitar a débâcle no setor externo, seriam necessárias medidas comoestímulo pesado às exportações ou deflação de preços e salários — recessão—, por exemplo. Em outras palavras, decisões políticas sobre a renda e oprivilégio ou não a certos atores sociais e econômicos.

Estaríamos, então, diante da derradeira confirmação da "teoria daarmadilha"? Muito pelo contrário. O que vemos aqui é exatamente o limitede uma visão que considera a política como obstáculo. Porque não vê oprocesso de estabilização econômica como uma resposta aos impasses da"transição brasileira", como tentativa de superar a crise de hegemonia quese seguiu ao fim da ditadura militar e ao esgotamento do modelo donacional-desenvolvimentismo, a "teoria da armadilha" não nos forneceelementos para conceituar e explicar o ziguezague próprio de um plano deestabilização movido a hegemonia instável. O debate estrito sobre opçõesde política econômica oculta ou ignora as condições políticas históricas queengendraram os próprios mecanismos do plano de estabilização, condiçõespolíticas que continuam a delinear o programa econômico e que são a basede seu caráter cronicamente crítico.

Sirva de exemplo disso um documento do Ipea que reconhece, aindaque de maneira genérica e oblíqua, que a estabilização é inviável se não tocarno chão dos conflitos sociais que aparecem como problemas econômicos.Reconhece-o para, no instante seguinte, sugerir medidas, aparentementeadministrativas e econômicas, que seriam a condição de sucesso do Real:

[A estabilização] envolve transformações que alcançam a raiz dosprocessos que permitiram tomar a inflação mecanismo de solução deconflitos, adiando as mudanças que, desde o início dos anos 80, sefaziam necessárias no próprio modelo de desenvolvimento. Dentreessas transformações necessárias, destacam-se a manutenção daabertura externa da economia, a adaptação do sistema financeiro ànova realidade e, principalmente, a reforma do Estado, em suas

(14) Giambiagi, Fabio. "A con-dição da estabilidade da rela-ção passivo externo líquido/PIB: Cálculo do requisito deaumento de exportações noBrasil". Revista do BNDES, nº8, dezembro de 1997.

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múltiplas dimensões: privatização, concessão de serviços públicos aempresas privadas, reorganização da máquina pública e maior con-trole sobre os gastos, simultaneamente à redefinição de prioridades15

—, o que criaria as condições para a economia voltar a crescer demaneira sustentada.

Virados do avesso esse prognóstico e esse conjunto de recomenda-ções de política econômica, ficariam evidenciados os conflitos remanescen-tes dos nossos vinte anos de crise, iniciados no final dos anos 70; ficariaevidenciado que tanto a origem do programa FHC como o seu caráterindefinidamente transitivo, de crise crônica, estão condicionados pelatentativa sempre reposta de acumular capital político para administrar taisconflitos em um período longo de refundação econômica. Esse processo derefundação é em última análise virtual, pois, pelo exposto sobre a situaçãopolítica, jamais são dadas, pelo contrário, as condições para o cumprimentode sua lógica abstrata, econômica, como veremos concretamente a seguir.

Em primeiro lugar, a "teoria da armadilha" apresenta uma equaçãoeconômica que, evidentemente, jamais é neutra em termos políticos, sociais ede renda. Mais importante, no entanto, é que a própria situação política, a quese apresenta no início dos anos FHC, condiciona as diretrizes do programaeconômico que se consubstanciaria como o Plano Real. Trata-se de projetaruma transição econômica administrando perdas e ganhos de atores econômi-cos e sociais de modo a manter baixo o quanto possível o nível de tensãosocial e política — uma estabilização com "custos sociais mínimos", segundoo próprio Fernando Henrique Cardoso, uma formulação sem dúvida ideoló-gica, mas com sua face de verdade. Tal administração de conflitos, e frisemosa palavra "administração", é projetada como uma política econômica queprocura reformar a estrutura produtiva enquanto tenta criar as condições delegitimidade necessárias a este processo de refundação. Apesar da tentativade obter consenso, é inevitável em certa medida que se provoquem baixasem alguns setores que tornariam difícil mesmo o início do programa FHC/Real, emperrado por uma crise de hegemonia — excesso de poderesdivergentes. Como se deu tal administração de conflitos?

Trata-se, à primeira vista, de um programa de governo que, aoprocurar romper econômica e politicamente um dos núcleos do antigoregime nacional-desenvolvimentista, depura o empresariado e promoveforte desestruturação de movimentos sindicais. São Paulo e outras regiõesindustriais mais tradicionais sentiriam com mais força esse processo: osefeitos combinados da "reestruturação produtiva", do desemprego "tecnoló-gico" e da relocalização industrial, e das freadas numa economia muitoindefesa contra os soluços do mercado financeiro mundial, ao qual estáumbilicalmente ligada. A desmobilização induzida pelas mudanças edepressões industriais traduz em parte a "desproletarização da força detrabalho"16 — o aumento do número de trabalhadores autônomos — e aprecarização do trabalho, com a crescente informalização.

(15) Ipea. O Brasil na viradado século: Trajetória do cresci-mento e desafios do desenvol-vimento, 1997, pp. 47-48.

(16) Sobre tais tendências domercado de trabalho, ver: Sin-ger, Paul. Globalização e de-semprego. São Paulo: Contex-to, 1998, pp. 104-117.

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O programa FHC/Real também combate o quanto e como pode aoposição extraparlamentar (tem crescido constantemente o número de açõesdo MST), representante dos excluídos do mercado nacional e do consenso daestabilização. Mesmo assim, e a princípio, encontra esteio para levar adianteesses conflitos, circunscritos o quanto possível. Tal esteio não é nem pode serapenas popular, evidentemente, mas é buscado e criado, em parte, tambémno setor agora relevante da elite. Não chega a ser a quadratura do círculo. Amágica tinha fundamentos muito concretos, como no caso da melhoria darenda média e, em especial, dos mais pobres, em contraste agudo com oshorrores dos anos Collor. Na metade do mandato de FHC, a taxa de pobrezano Brasil era uma das mais baixas nos últimos quarenta anos, embora adistribuição da riqueza continuasse terrivelmente desigual.

O colchão da estabilização monetária ganharia a princípio apoioentusiástico do empresariado industrial organizado, que dizia estar "prontoe reestruturado" para enfrentar os novos tempos. Tal apoio praticamente embloco começa a minguar depois do primeiro ralentissement industrial(meados de 1995 a 1996). Em maio de 1996, os empresários, Fiesp inclusive,chegam a promover uma marcha sobre Brasília, e tentam até articular umpacto pelo emprego com a CUT e pedir reforma agrária. A manifestação foipraticamente ignorada pelo governo; um fiasco e um sinal dos tempos parao baronato industrial.

Tal fracasso era também um sinal de que estava em andamento a"política de salvações" do programa FHC/Real. Em vez de combater asoligarquias mais arcaicas do interior do país, como no começo do século, assalvações de FHC fizeram incursões em seções da parte mais organizada daeconomia industrial brasileira; liquidava-se a oligarquia industrial mais"arcaica", um processo de "destruição criativa", segundo Gustavo "Schum-peter" Franco. Na verdade, para evitar turbulências nessa parte do processode refundação econômica, quase pode-se dizer que se procurava escolheras vítimas a dedo, o quanto e como possível. Ou então era preciso postergara realização da lógica dura do Plano a fim de manter as próprias condiçõesde sua continuidade. Era necessário proteger a parte principal do núcleoindustrial para sustentar a política de abertura comercial e cambial.

Uma das mais agradáveis surpresas trazidas pela abertura e pelaestabilização no Brasil foi que, ao contrário do verificado em outrasexperiências latino-americanas, a mortalidade no campo empresarialfoi relativamente baixa — e o desemprego aumentou pouco. Essavantagem poderá estar sendo perdida — escrevia em março de 1998um profundo conhecedor da economia industrial brasileira a respeitoda natureza da reestruturação e da onda de investimentos do Real17.

Concentração, centralização e relativa desnacionalização são a políticaindustrial negativa do programa FHC (levadas a cabo tanto pela abertura

(17) Castro, Antonio Barros de."Ainda a nova safra de investi-mentos". Folha de S. Paulo,18/03/98.

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comercial como pelas privatizações dirigidas), condições necessárias dareestruturação competitiva, a qual, a não ser por medidas tópicas, deveriaocorrer de maneira automática depois do kick off da baixa de tarifas deimportação. Não havia "estratégia de crescimento"18, embora os setores"industrialistas" da equipe econômica do governo lembrassem, pelo menosa partir de 1996, que talvez esse processo não fosse nada natural. Aindaassim, consideravam, como os demais de seus colegas, que as linhas geraisdo Plano Real estavam corretas19.

Na verdade, esse tripé nacional-desenvolvimentista — empresasnacionais, multinacionais e estatais — já havia sido abalado por Collor. Comsua abertura comercial alucinada, o presidente mais tarde deposto deixoupassar o vento frio da morte pela organização central do patronato nacional-desenvolvimentista, a Fiesp, após o que a entidade entrou em "estado decoma", no dizer de um jovem empresário que discutia com seus pares aperda de poder do baronato industrial paulista nos anos 9020. A crescenteheterogeneidade de interesses da indústria, que já se refletia no surgimentode várias entidades de representação paralelas à Fiesp, ficou evidentedepois do baque da abertura "com erro no câmbio". Não houve força ouinteresse unificado em resistir. Os mais fracos e feridos no processo foramdeixados para trás. Outros foram remediados pelas "vantagens comparati-vas" oferecidas pela única política industrial do período, a dos estados, viaguerra fiscal, tolerada como válvula de escape (política, para os estados, eeconômica, para as empresas aliviadas por poderem baratear o "ajuste" ousua implantação no país).

Processo semelhante de "ajuste" ocorreu com o sistema financeiro. Sebeneficiado em parte pelo aumento da intermediação financeira com aexplosão de consumo do Real, a perda do float proporcionado pela inflaçãolevou instituições corruptas e/ou falidas e ineficientes à quebra — quebraadministrada pelo Proer e paga pela sociedade, mas quebra. A participaçãodo setor financeiro no PIB caiu pela metade do início até a metade domandato FHC. Nem todos foram poupados, mas os sobreviventes, vitamina-dos pelas fusões, aquisições e juros altos, não têm muito do que se queixar,embora estejam sempre pressionados pela ameaça da caneta presidencial,que, discricionária, apesar de constitucionalmente, vem decidindo o grau departicipação de bancos estrangeiros no mercado nacional.

Esse processo de depuração, se não ocorre a conta-gotas, pelo menosmanifestamente evita soluções finais; o sistema de políticas que "rompe otripé" — privatizando e desbaratando a organização tradicional da empresaprivada — também cria os mecanismos com os quais angaria apoio. Juros,câmbio baixo, privatizações dirigidas e proteções setoriais beneficiam amaioria dos vencedores da era da reestruturação ou servem até, em algunscasos, como lenitivo para os avariados da transição. Para os poupados oubeneficiados pelo modelo, tais fatores contribuem para a concentração docapital necessária para que se possa enfrentar a guerra econômica mundi-alizada. Além desses mecanismos automáticos, por assim dizer, é precisoressaltar que políticas pragmáticas de proteção foram necessárias para

(18) Castro, Antonio Barros de."Memórias póstumas de umaestratégia". Folha de S. Paulo,10/12/97.

(19) Os resultados mais geraisdo processo de reestruturaçãoem curso estão descritos noabstract do artigo de José Ro-berto Mendonça de Barros eLídia Goldenstein ("Avaliaçãodo processo de reestruturaçãoindustrial brasileiro". Revista deEconomia Política, vol. 17, nº2 (66), abr.-jun. de 1997, p.11): "The interaction of fourtendencies (globalization, ope-ning of the economy, stabiliza-tion and privatization) hasbeen breaking the triad com-posed of State owned, foreignowned and private family ow-ned private enterprises, whichwas from the fifties to the begi-ning of the nineties the mains-tay of Brazil's Capitalism".

(20) Cf. Piva, Horacio Lafer."Coma, não". Folha de S. Pau-lo, 26/06/96; em resposta a:Semler, Ricardo. "O estado decoma da Fiesp", Folha de S.Paulo, 21/06/96.

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sustentar o próprio processo de "destruição criativa", que é o cerne dapolítica industrial negativa do programa do Real.

No entanto, a administração de conflitos, necessária para legitimar arefundação econômica e tornar possível a acumulação de capital político donúcleo que a conduz, tendeu a produzir os elementos — "desequilíbrioseconômicos" — que tornam cronicamente crítico o processo de estabiliza-ção, processo que a chamada "armadilha" apreende apenas na superfície.Procura-se amainar, distribuindo-os ao longo do tempo ou concentrando-osem setores minoritários a cada vez, os danos inevitáveis, implícitos eexigidos pela própria lógica da estabilização: esses prejuízos se traduziriam,por exemplo, nas transferências de renda que sobreviriam com as alteraçõesfiscais, tributárias, do já precário sistema de proteção social e com a reformado pacto federativo, quase uma guerra civil tributária. Tal sistema deadministração de conflitos conduziu, por exemplo, a uma reforma fiscalprovisória, um adiamento dos embates sobre a renda redistribuída ouregulada via Estado. Tal remendo constitucional foi colocado em práticacom instrumentos como o Fundo Social de Emergência (ainda em 1993),depois Fundo de Estabilização Fiscal, que reservava à União tanto osrecursos que deveriam, pela Carta de 1988, ser repassados a estados emunicípios, como o direito de decidir sobre seu emprego, que seria doCongresso.

Além disso, as medidas necessárias para sustentar o crescimento eevitar a falência externa — o déficit insustentável no balanço de pagamen-tos, na origem desencadeado pelos déficits comerciais provocados pelaancoragem cambial da estabilização — implicariam, em última análise, umadefinição política de estímulos à produção (por quaisquer das vias aindapossíveis nos limites das normas internacionais, e que envolvem, em últimainstância, decisões do Estado sobre apropriação de renda), bem como oprivilégio de certos atores — núcleos empresariais — que teriam condiçõesespeciais para conduzir a retomada de investimentos. Tal retomada nãoestaria implícita na reestruturação econômica. Embora em curso, a reestru-turação dos setores produtivos não estaria, em primeiro lugar, se orientandoautomática e sistematicamente para restaurar a capacidade de pagamentodo país (via exportações e substituição competitiva de importações); alémdo mais, o sistema de financiamento interno estaria prejudicado pelosconstrangimentos decorrentes da própria lógica do programa de estabiliza-ção ancorada, evidenciados nas altas taxas de juros e problemas conexos.Em segundo lugar, a reestruturação por si só não alteraria o ambienteeconômico o suficiente para modificar, no que diz respeito às exportações,as estratégias das empresas internacionais em relação a suas filiais locais. Anão ser nos setores intensivos em recursos naturais, tais empresas estariampor ora investindo tão-somente a reboque de ampliações do mercadointerno, investimentos aliás incapazes de produzir maior efeito de induçãono restante da economia — seria baixo o encadeamento produtivo dessasafra de investimento e baixa sua capacidade de realimentar endogenamen-te o crescimento e de criar empregos21. (21) Cf. Laplane e Sarti, op. cit.

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O adiamento em si de definições desse tipo também não é semconseqüências. Ao postergar, talvez porque impossível sem turbulências atéfatais, a solução dos conflitos necessária para dar seguimento à lógicaeconômica do programa de estabilização, o sistema FHC produz efeitosperversos para a sua própria continuidade. O ralentissement ou as flutua-ções no crescimento econômico têm jogado sobre alguns preços, sobre ossalários e sobre o emprego o custo da inversão dos déficits externos(ressalte-se que o projeto FHC/Real jamais é neutro — que o digam osgrandes detentores de títulos da dívida pública, importadores, empresascapazes de importar equipamentos para sua reestruturação, financistasestrangeiros e empresas que remetem lucros e dividendos).

Em face do sistema de poder, do sistema político de baixa representati-vidade e da natureza do programa de refundação econômica, a não ser que atensão social fuja do controle ou o pressuposto (pelo Plano) fluxo contínuode capital externo seque, a lógica transitiva da presente reforma econômicatende a se reproduzir viciosamente como estabilização imperfeita.

Estabilização imperfeita é a forma da estabilização monetária cujascondições de realização não são preenchidas em virtude tanto das determi-nações políticas que a engendraram como daquelas, decorrentes, quecontinuam a operar durante e sobre o seu gerenciamento. A estabilizaçãomonetária desencadeia e é o núcleo central de um projeto de refundaçãoeconômica que não se completa em virtude do adiamento de definiçõesfundamentais sobre a regulação da apropriação da renda, em suas diversasmanifestações; que não se completa e ganha seus contornos criticamentecrônicos em razão da postergação administrada de conflitos sociais decisi-vos para o cumprimento da própria lógica econômica da estabilização. Talindefinição econômica é um duplo da indefinição do sistema de poder noEstado. Evidentemente, o processo de gerenciamento político e da políticaeconômica do programa de estabilização não é neutro; no entanto, ele nãoimpõe perdas definitivas e necessárias, pressupostas pelo programa, acertos atores sociais, o que implica a "vitória" de outros. Gerencia-se, demodo a não fazê-lo com riscos para a própria legitimidade do programa derefundação FHC/Real, o conflito que seria provocado pelo recurso imediatoa medidas de "ajuste econômico" (isto é, a reforma da arrecadação edistribuição de recursos pelo Estado) que provocariam turbulências.

A estabilização imperfeita é a forma da estabilização e refundaçãoeconômica que pode criar assim tanto as condições de sua própriacontinuidade como as de sua destruição, mas que tende a colocar aeconomia em um compasso moroso por um longo período, com crescimen-to medíocre, a tradução de um programa econômico limitado por umaespécie de "clinch " político.

Trata-se de uma forma que só existe associada a condições e práticasinstitucionais políticas e econômicas específicas de modo a ser reposta acada abalo tanto para garantir sua legitimidade como para tentar garantir o"ambiente estável", fulcro da "credibilidade" que reassegura os banqueirosda "aposta" do programa FHC/Real.

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Para criar tais condições institucionais do plano de estabilização, dolado externo foi preciso completar em marcha forçada a reforma das normassobre fluxos de capitais, garantindo-lhes trânsito livre. Do lado interno, paraadministrar conflitos e manter a credibilidade é necessário tentar diminuir atemperatura política, os percalços e as morosidades democráticas (pois setrata de um plano em permanente instabilidade), via legislação excepcionalpelo Executivo ou por seu núcleo duro (medidas provisórias), ou procurardirigir para o Legislativo toda reivindicação da sociedade civil, ignorada oureprimida, se não encaminhada, pela via parlamentar.

Vamos tentar agora delinear os traços mais gerais desse modelo degerenciamento político dos anos FHC, começando por uma breve reconsti-tuição de suas fontes históricas imediatas.

Política difícil

Não é possível nos limites deste artigo discutir o grande nó da falência(com seus desdobramentos) do assim chamado nacional-desenvolvimentis-mo, ainda que o nosso interesse primordial esteja na versão específica dessemodelo que nos foi legada pela ditadura militar. Trata-se aqui simplesmentede retomar alguns dos elementos centrais da discussão que se trava em tornodo tema, de modo a compreender (por contraste e conseqüência) oscaminhos trilhados a partir de 1994.

O elemento mais evidente do nosso problema é certamente o dafalência do modelo de financiamento do Estado, dependente do mercadofinanceiro internacional. Chamar o desenvolvimento brasileiro de depen-dente-associado significa antes de mais nada dizer uma obviedade: que ograu de autonomia de nosso desenvolvimento é diretamente proporcionalà quantidade de capital exportável disponível nos países centrais. E, comose sabe, o fluxo de capitais externos para o Brasil se interrompe bruscamen-te no final dos anos 70.

Mas é notório que esse modelo (e a versão específica dele que nos foilegada pela ditadura militar) ruiu não apenas do lado do financiamento, mastambém por conseqüência do aumento de complexidade da economia e dasociedade brasileiras, que tornou obsoleto e colocou em crise o sistema degerenciamento político e econômico do período 1964-80. E, neste ponto,encontramos um complexo cruzamento de desenvolvimentos e linhas deação. Para compreender o processo, teríamos que tomar em consideraçãoa falência (sistêmica) do gerenciamento autoritário, mas também os diversosmovimentos de resistência e de oposição à ditadura, bem como asespecificidades próprias de um projeto encampado e levado a cabo pelosmilitares. Daí as dificuldades e as complexidades próprias a toda tentativade explicação da "transição brasileira".

Seja como for, parece-nos que o resultado mais geral desse processofoi descrito com propriedade por Brasilio Sallum Jr.:

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O florescimento da democracia política na Nova República, as inicia-tivas reformistas do governo e o modo como se travou a luta entre osvários centros estatais de poder resultaram em estímulo à formação eà atuação desabrida e bem-sucedida de grupos portadores de interes-ses socioeconômicos particulares na arena pública22.

Com isso, o grau de desagregação política (seja de empresários, sejade outras forças sociais) é tal, a atomização de interesses é de tal ordem, quenão há maneira de controlar ou gerenciar com eficiência e eficácia asnegociações diretas dos grupos com a burocracia de Estado. Como sabemos,nesse modelo político leva a melhor aquele que tiver posições estratégicasmais sólidas, que souber ocupar com maior eficiência a mídia, que tivermaior poder de fogo para chantagear a política pública do momento, ouuma combinação desses elementos.

Considerando-se apenas o arranjo sistêmico da crise, pode-se dizerque, desde

a base da pirâmide social, surgiram ou mobilizaram-se as massaspopulares para ampliar sua participação na renda e na propriedade.Exceção feita aos movimentos dos sem-terra, as mobilizações dostrabalhadores não constituíram inovação notável. Elas apenas apro-veitaram as condições políticas e econômicas mais favoráveis, existen-tes a partir de 1985, para recuperar as posições perdidas e expressar asreivindicações contidas no período recessivo de 1980-198423.

Neste contexto, o problema posto e reposto a cada vez passa a ser:como tornar gerenciável o processo de negociação política nessas circuns-tâncias?

Ora, a situação acima esboçada pode ser caracterizada como uma crisede hegemonia, no sentido de que impunha obstáculos intransponíveis auma acumulação de poder que permitisse que determinados setoresimpusessem perdas a outros, ou mesmo a que se chegasse a um acordosobre perdas e danos do processo de reorganização econômica e desaneamento fiscal do Estado. Como escreve Sallum:

Em cada uma das tentativas, heterodoxas ou ortodoxas, buscava-serecuperar a autoridade do Estado, estabilizando a moeda, jogando oônus do "ajuste" do setor público sobre os ombros ora de um ora deoutro componente da velha aliança desenvolvimentista. Certa vezcortaram-se os rendimentos dos credores externos e internos do Estado,em outro momento restringiram-se os gastos com salários dos funcio-nários públicos e com transferências do Tesouro para as empresas

(22) Sallum Jr., Brasilio. Labi-rintos. Dos generais à NovaRepública. São Paulo: Hucitec/Curso de Pós-Graduação emSociologia da USP, 1996, p.188. Esta parte do artigo apóia-se largamente nas análises des-te autor.

(23) Ibidem, pp. 188-189.

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estatais, mais adiante decidiu-se onerar o empresariado privado comelevação da carga tributária. Mas em todas as situações, os segmentosmarcados como eventuais perdedores, potencialmente onerados pela"solução" implementada, acabaram por encontrar meios para imporseu veto ao ajuste pretendido, obrigando o governo a mudar de rota. Ainflação retomava, então, seu curso ascendente e esvaía-se a autorida-de do Estado24.

É certo que a equação se tornava ainda mais complexa em razão dasdificuldades adicionais de agregação de interesses pela política partidária,isto é, da falta de consistência e de representatividade do sistema de partidose lideranças herdado da redemocratização e, em grande parte, do próprioperíodo ditatorial. Mas o ponto fundamental está em que todas as tentativasde resolver a crise

padeceram de uma limitação básica: tentaram resolver problemasderivados da crise do Estado Desenvolvimentista dentro de seu antigoquadro de referência, tentando recuperar a autoridade do governosobre o Estado e do Estado sobre a sociedade, num momento que estaresistia cada vez mais a seus comandos e em que as circunstânciasinternacionais eram inóspitas25.

Vista desta perspectiva, uma política como a das câmaras setoriais, porexemplo, representou o último suspiro das tentativas de conciliação doantigo modelo com as novas necessidades postas para o gerenciamentopolítico.

A partir de 1988, o grau da indefinição se torna menor, ao mesmotempo que, paradoxalmente, se estreitam as possibilidades para o gerenci-amento político. E o paradoxo se explica pelo fato de que a Constituição de1988, em vez de cristalizar um novo pacto de dominação, cristalizou a crisede hegemonia cujos contornos tentamos apresentar acima. Simultaneamen-te, a partir da posse de Maílson da Nóbrega no Ministério da Fazendacomeçam a se redefinir as relações do país com o capital internacional. Essaprimeira tentativa de reconstruir a credibilidade do país, segundo o jargãotecnocrático, consubstanciou-se na generosa renegociação da dívida levadaa termo pelo ministro. A pacificação das relações financeiras externastambém ficou evidente no começo da flexibilização do fluxo de capitaisestrangeiros, apoiada por uma legislação que foi sendo aperfeiçoada e setornando cada vez mais liberal até a chegada da equipe do Real ao poder.Mas, do ponto de vista do equilíbrio instável que estamos tentandocircunscrever, é importante lembrar que o empresariado de ponta apoiouesse "retorno conservador" pós-Cruzado e a "inflexão liberalizante"26 — istoé, abertura para o investimento, não do comércio.

(24) Ibidem, p. 159.

(25) Ibidem, p. 161.

(26) Sobre o papel de Maílson,cf. Sallum Jr. (ibidem, pp. 178-179). Para um histórico da le-gislação do sistema financeirono período posterior a 1988,cf. Andima. Relatório econômi-co — Brasil para investidoresestrangeiros, 1997, pp. 75-142.

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Permaneceu, entretanto, a inconsistência política e mesmo partidáriada elite, ainda incapaz de refazer e reorientar o pacto de dominação. Deoutro lado, também os movimentos sindicais, populares e de trabalhadoresnão foram capazes de impor um projeto de desenvolvimento alternativo queobrigasse a elite a uma ampla negociação. O resultado desse estado decoisas foi uma solução caótica, marginal e, enfim, provisória para o impasse:o cesarismo alucinado e salvacionista de Fernando Collor de Mello. Collorfoi certamente derrubado por um amplo movimento de massas. Mas foiderrubado também por impor a essa elite dividida — de chofre, semnegociação, causando baixas e desafetos terminais — o pacote mal-embrulhado de um novo projeto de abertura e liberalização. De todo modo,o terremoto Collor ajudou a definir os contornos da nova orientação docapitalismo brasileiro. Mas persistiam, por um lado, grande resistência amudanças e diversidade de interesses particulares na heterogênea econo-mia brasileira e, por outro, movimentos populares e uma populaçãomobilizados e extremamente frustrados com as promessas e os fracassossocioeconômicos da redemocratização, em especial com o neopopulismocruzadista e com o salvacionismo collorido. De resto, a ameaça dahiperinflação estava à vista. Este, grosso modo, o pano de fundo que noslevou do cesarismo alucinado de Fernando Collor ao cesarismo sociológicode Fernando Henrique Cardoso.

Trata-se agora, portanto, de reconstruir o novo padrão de gerencia-mento instaurado por FHC. Neste sentido, é preciso, antes de mais nada,considerar a posição que ocupam os clássicos candidatos a "gerentes" doprocesso político no Brasil: os governadores de estado. E, no caso do projetode Fernando Henrique Cardoso, tratava-se de neutralizá-los. O primeiromovimento desse jogo resultou da própria lógica do Plano Real. Aestabilização da moeda teve um efeito devastador sobre as contas dosestados. Os governadores, de um lado, viram-se às voltas com sériosproblemas de caixa e, de outro, tiveram que enfrentar uma renegociação emtermos bastante restritivos, definidos pelo governo federal. A rolagem dadívida ficou condicionada a ajustes fiscais e ao comprometimento de fatiaimportante da arrecadação para o pagamento das dívidas, pagamentos cujostermos deveriam ser definidos por lei.

Com isso, tivemos durante a gestão FHC governadores extremamenteenfraquecidos, já que o governo federal, detentor, por definição, do monopó-lio de uso dos instrumentos de política monetária, exigiu dos governadores oajuste das contas estaduais. A intervenção extemporânea no Banespa foiapenas um dos exemplos dessa política deliberada de restrição do poder defogo dos governos estaduais, sem contar a verdadeira novela em que setransformaram os processos de negociação de rolagem das dívidas dosestados, manobra capitaneada pelo Ministério da Fazenda. De fato, restaramaos governadores de estado o recurso aos instrumentos fiscais — com osquais levaram a cabo uma desorganizada política industrial movida a "guerrafiscal" — e a válvula de escape das privatizações, já que as receitasprovenientes da venda de estatais não são contabilizadas como dívidas.

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Excluídos os governadores, o Congresso Nacional se apresentavacomo o candidato mais adequado a "instituição de mediação" para fins degerenciamento político. Em primeiro lugar, evidentemente, porque esta éuma função que deve mesmo caber ao Legislativo num regime democrático.Porém, mais importante que isso, trata-se de obrigar os diversos grupos deinteresse e de pressão a dirigir seus interesses para o Congresso, umainstituição dotada de regras para traduzir esses interesses e gerenciá-los.Ou seja, se um grupo de pressão deseja hoje abocanhar uma fatia do fundopúblico ou pretende direcionar uma política qualquer, precisa necessaria-mente estar ligado a um parlamentar ou grupo de parlamentares. É por issotambém que as próximas eleições legislativas devem ser as mais disputadasde nossa história republicana. Daí também que os partidos busquemdesesperadamente ampliar as suas bancadas e investir ferozmente nacapacidade de aumentar ou pelo menos manter seu espaço na próximalegislatura. Visto dessa perspectiva, também o "parlamentarismo informal"que se mostra na formação da equipe ministerial adquire um novo sentido.

Não há dúvida de que parece absurdo afirmar que o Congresso Nacio-nal é a instância de gerenciamento político por excelência na democracia,como se fosse possível pensá-lo de outra maneira. Mas o absurdo está emque, de fato, não foi este o seu papel mesmo em anos recentes. Pelo contrá-rio, pelas análises apresentadas acima, muito freqüentemente o Parlamentonão era o instrumento mais eficaz nem o mais eficiente para se obter vanta-gens relativas na utilização do fundo público. E só se compreende isso tendoem vista a peculiar "transição brasileira" para o regime de eleições livres.

O que estamos querendo dizer é: ao contrário daqueles que, desde apromulgação da Constituição de 1988, simplesmente lutaram contra oCongresso, Fernando Henrique passou a utilizar o Parlamento tambémcomo escudo, passou a conferir ao Congresso o papel de arena legítima parao gerenciamento de conflitos. Mas, como bem sabemos, o Brasil não setornou por isso uma democracia parlamentarista européia. O Executivoconseguiu intervir, por meio de suas lideranças parlamentares, no regimen-to parlamentar e, por meio de negociações de balcão, completou a sua"maioria desorganizada", como a qualifica o próprio presidente.

Fernando Henrique estava amarrado de saída ao Congresso, já quedependia de reformas constitucionais para implantar seu projeto. Mas, deoutro lado, dispunha simultaneamente dos poderes legislativos da Presidên-cia (como o instituto da medida provisória), de uma distribuição de poderinterna ao Congresso que favorece os líderes dos partidos e as Presidênciasda Câmara e do Senado27 e do tradicional loteamento da máquina pública.De posse desses instrumentos, o presidente pôde implantar uma estratégiade gerenciamento político em que demarcou previamente os limites dasnegociações no Legislativo, excluindo, de um lado, o cerne do plano deestabilização e, de outro, concentrando no Congresso os procedimentos de"sintonia fina", as compensações, negociações ou recuos das iniciativastomadas, incluindo-se aí a barganha partidária e os movimentos dosdiversos lobbies ali representados.

(27) Sobre isso, ver os traba-lhos de Argelina Figueiredo eFernando Limongi, mais espe-cificamente o paper Presiden-tial power and party behaviorin the Legislature, apresentadono Encontro da Lasa de 1997,em especial a última parte dotexto. Esta referência tambémserve para lembrar que é indis-pensável uma análise da lógi-ca partidária na regulação con-gressual, elemento fundamen-tal que apareceu meramenteindicado em nosso texto.

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No que diz respeito ao gerenciamento de sua política central,submetida às orientações do núcleo duro de governo, o recurso às medidasprovisórias foi recorde. A parte fundamental, majoritária mesmo, das normasque definiram a política econômica ou as pacificações político-econômicasnecessárias à administração pragmática das insuficiências do Real constitui-se por meio da extensa intervenção regulatória das MPs. Note-se, entretanto,que as edições e reedições de MPs são geralmente negociadas comparlamentares e grupos interessados, o que, na prática, alterou substancial-mente o uso deste instituto, conferindo-lhe um novo sentido.

Não é nosso objetivo aqui discutir a natureza da relação entreExecutivo e Legislativo no governo FHC, mas tão-somente tentar entendercomo funciona em suas grandes linhas o gerenciamento político própriodesse modelo implantado nos últimos quatro anos. É óbvio que o que ogoverno dá com uma mão ao Congresso, ele retira com a outra. Mas éimportante entender como funciona esse mecanismo de regulação docampo político. Também porque esse entendimento permitiria à oposiçãofundamentar a idéia um tanto vaga de que apenas fortalecendo movimentosextra-Congresso ela conseguirá levar o governo pelo menos para a negoci-ação. Se esta análise estiver certa, a fragilidade por excelência do governoFHC está na pressão que não é mediada pelo Congresso28. Se se consegueromper o cordão de isolamento do Congresso e, em seguida, o filtro doExecutivo, FHC invariavelmente cede. Esse modelo o torna desarmado paraenfrentar forças sociais organizadas e expressivas que se ponham fora dosgabaritos institucionais por ele instituídos.

Mas é óbvio que isso não é tudo. O "segundo filtro", o do Executivo,significa que há um cerne de projeto de governo que, embora de delinea-mento relativamente maleável conforme as circunstâncias, é inegociável, demodo que os parlamentares administram um campo de arbitragem deconflitos já estritamente demarcado de antemão. É somente nesse sentidoque o fortalecimento do Congresso sob FHC pode parecer paradoxal: porquese pensa que ele governa contra o Congresso e que toda "vitória" política éuma "vitória" contra o Congresso (ou, ao contrário, uma "concessão necessá-ria ao atraso"). Ou seja, o paradoxo só surge para aqueles que não vêem nasrelações entre o Legislativo e o Executivo o elemento mesmo de funciona-mento do governo FHC, a sua solução peculiar para os impasses do modelopolítico brasileiro. Desta forma, a oposição habitual entre "técnicos sensatos"e "políticos desabridos" é ideológica e, o mais das vezes, meramenteenganosa. O verdadeiro "pêndulo" do projeto de FHC é o que vai dasexigências (em sentido amplo) do gerenciamento da estabilização a umParlamento investido (com as severas limitações já apontadas) do poder deregulação de interesses. Trata-se de um cabo-de-guerra em que ora um lado,ora o outro, avançam ou recuam, ganham ou perdem terreno. Mas toda aestratégia de Fernando Henrique Cardoso — como já deve estar claro a estaaltura — se perderia sem um dos lados da corda.

Passemos, portanto, ao núcleo duro de governo. A lógica de gerenci-amento exigiu a "importação" de uma série de quadros e técnicos adminis-

(28) Uma das sérias lacunasdeste artigo é certamente aausência de uma análise dopapel do Judiciário nesse pro-cesso.

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trativos de fora da burocracia brasiliense aguerridos em torno de tesesfundamentais da estabilização e do gerenciamento econômico em sentidoamplo. É importante notar que isto não significa de modo algum que nãohaja divergências no interior da equipe. Mas trata-se de um funcionamentode tipo — com o perdão da expressão totalmente fora de contexto —"centralismo democrático", ou seja, abre-se a possibilidade de uma ampladiscussão a portas fechadas e exige-se uma estrita unidade na ação.

É evidente também que não é possível implementar uma estratégiacomo esta no conjunto da burocracia de comando. Trata-se de uma lógica aser desenvolvida exclusivamente no âmbito dos setores estratégicos dogerenciamento macroeconômico (em sentido amplo) e da precária políticaindustrial, incluída aí a administração pública. Mas enumerar esses setoressignifica nada menos do que dizer: Ministérios da Fazenda, Planejamento,Administração e Trabalho, Banco Central, Tesouro Nacional, Banco do Brasile Caixa Econômica Federal, Câmara de Comércio Exterior, Banco Nacionalde Desenvolvimento Econômico e Social e ainda o Conselho Administrativode Defesa Econômica. Neste sentido, note-se que o Ministério da Educaçãofoi considerado desde o início parte integrante desse núcleo duro, talvezporque se o pensasse como articulado a uma política de desenvolvimento e apolíticas sociais compensatórias futuras. A nomeação de José Serra para apasta da Saúde parece reforçar essa linha de raciocínio. As demais áreas degoverno (como bem sabemos) cabem aos "políticos desabridos".

Mas de outro lado, como já vimos, o Congresso Nacional, investido depoder legítimo para negociar fatias do fundo público para os interesses querepresenta, é parte tão integrante do modelo de gestão de FHC quanto os"técnicos sensatos". Poder-se-ia caracterizar o Parlamento sob FHC comouma válvula de escape do sistema de pressão próprio do projeto implantadoa partir de 1994. Trata-se efetivamente de um modelo pendular — que nãotem nada a ver com "direita" ou "esquerda".

Cabe ao núcleo de governo a iniciativa. Trata-se sempre de colocar emjogo os elementos capazes de construir o novo patamar de dependênciabrasileiro. Como já se sabe, isto quer dizer: decidir sobre ganhos e perdasrelativos. Mas é freqüentemente difícil controlar o alcance e os efeitos dessasiniciativas, bem como os limites da imposição de perdas. Deste modo, oCongresso Nacional passa a ser o elemento de controle por excelênciadessas iniciativas, acusando o rompimento de algum elo que tem de serrefeito. Nestas ocasiões, o núcleo de governo produz medidas casuísticascapazes de compensar os grupos prejudicados.

Com isso, damos por encerrado o esboço de descrição que este artigo pre-tendeu ser. Sua pretensão descritiva não é de forma alguma um libelo contra obom combate ideológico. Trata-se antes de tentar separar — na medida do pos-

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sível — a discussão sobre o modus operandi do projeto FHC da discussão emtorno do alcance e da validade de suas opções políticas fundamentais, para, sepossível, fazer com que esses dois momentos e níveis diferentes do debate pos-sam se fertilizar mutuamente, sem que se fundem numa pasta homogênea.

No nível descritivo em que procuramos nos manter, tratou-se demostrar como o projeto do governo FHC é uma resposta à crise de hegemoniaque se sucedeu ao fim da ditadura militar em que se procura simultaneamen-te criar condições de gerenciamento político num ambiente de hegemoniainstável e estabelecer as condições iniciais da implantação de um novomodelo de integração à economia mundial. Mas vimos também que essadupla estratégia tem ainda a pretensão de produzir um novo pacto dedominação em que sejam refundados o próprio Estado e a própria economia;vale dizer, o modelo de gerenciamento político instaurado pretende produzira longo prazo um novo modelo político para o Brasil, assim como ascondições iniciais postas pelo Plano Real pretendem estabelecer os parâme-tros de um novo modelo de desenvolvimento capitalista subordinado.

Desta forma, vimos que a "política difícil" e a "estabilização imperfeita"são inseparáveis, embora suas lógicas respectivas não possam ser reduzidas auma unidade. É certo que o plano econômico é determinado na sua base pelanecessidade de gerenciar a crise de hegemonia pós-ditatorial. Mas eletambém pretende pôr as condições para — num sentido bem determinado —superar esta mesma crise, de modo que a sua lógica não é meramentedefensiva ou inteiramente subordinada à lógica política, mas, ao contrário,avança parâmetros que acabam se tornando balizas da própria discussão edo próprio gerenciamento políticos. De outro lado, o modelo de gestãopolítica instaurado nos anos FHC é certamente montado segundo as necessi-dades impostas pelo gerenciamento do plano econômico. Mas ele tambémtraz consigo a pretensão de fornecer as condições mais gerais para que opróprio modelo econômico possa ser implantado, já que pretende induzir onovo pacto de dominação que possa sustentá-lo, cristalizando um modelo degerenciamento político que supere numa direção determinada a longa crise

— política, econômica, social — do pacto nacional-desenvolvimentista.Chamamos, no entanto, esses movimentos de "política difícil" e de

"estabilização imperfeita" porque essas pretensões do projeto do governoFHC estão ancoradas em terreno necessariamente movediço e num timingem boa medida imprevisível. Tais pretensões dependem estruturalmente demercados mundiais cronicamente instáveis, de um cenário de reorganização— política, econômica, social — mundial ainda opaco e incerto, de umareestruturação produtiva interna ainda em curso (e, em boa medida,desconhecida em seu grau e em seu rumo), de um modelo político capazde produzir uma hegemonia instável e precária. Sendo assim, a "políticadifícil" e a "estabilização imperfeita", por sua própria natureza, têm de sercontinuamente repostas e reinventadas, e estão renovadamente postas àprova. Cabe, portanto, àqueles que se dispõem a acompanhar seusdesdobramentos prestar atenção à sua transformação miúda, cotidiana,esforço para o qual pretendemos ter contribuído com este texto.

Recebido para publicação em25 de junho de 1998.

Marcos Nobre é professor defilosofia da Unicamp e pesqui-sador do Cebrap; publicou nes-ta revista "Pensando o impea-chment" (nº 34). Vinicius Tor-res Freire é jornalista, editor deOpinião da Folha de S. Paulo.

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