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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul
22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS)
Grupo de Trabalho: GT 02 - A Antropologia e a Alimentação: perspectivas,
desafios e propostas para a leitura do mundo
Título do Trabalho Ajeum bó: a circulação de axé através do movimento da
comida num terreiro de candomblé da Bahia
Rafael Camaratta Santos/ UFRJ
OS MOVIMENTOS DA COMIDA
Prólogo
De acordo com as ebomis do terreiro que foram consultadas para esse
estudo, ninguém acredita que Xangô vem à terra comer o amalá que lhe é
ofertado, mas sim, que a energia de Xangô incorpora a positividade dessa
oferenda. A terra, então, absorve a parte concreta do amalá, enquanto a
energia positiva sobe até Xangô que a devolve em forma de axé sobre a
cabeça de seus filhos.
Quando se afirma no candomblé que os orixás estão comendo, o sentido
vai muito além do material e visível. Conversando com as interlocutoras da
pesquisa busquei saber de quais maneiras os orixás comem, através das
obrigações que lhe são prestadas. Conforme afirmou a ebomi Vanda: “o que se
diz no candomblé é muito metafórico”, o atabaque comeu, o santo está
comendo, Oxalá está de pé, ou Xangô está de pé. “É bem aquela história:
existem mais coisas entre o céu e a terra... que me perdoe o aconchego
shakespeariano, mas a gente vive o indizível e o invisível”. É a partir desse
sentido que elas dão o que seria metafórico que o comer pode ser entendido
Dizem, também, a religião de um modo geral só é religião por conta de
seus mistérios e encantamentos. Uma das explicações sobre como muitas das
coisas que são ditas no candomblé são de ordem metafórica é oferecida pela
ebomi Vanda de Oxum:
Eu estou na roça há mais de trinta e um anos e se você
me pedisse para descrever o que é Oxum eu não conseguiria senão de uma forma metafórica, porque até a forma como eu sinto não dá para descrever, não dá para
concretizar como uma informação. Tem coisa que eu até gostaria de definir para mim mesma e não consigo. Acabo
me representando muito mais como uma cachoeira. Oxum como uma cachoeira eu consigo definir. Mas não como Oxum mesmo, me parece impossível. Ou eu me
descreveria como uma coisa tão superior, mas tão superior que você não iria acreditar, então é melhor não
fazer isso (risos).
O calendário litúrgico do terreiro tem seu início com o ritual das Águas
de Oxalá, na última semana de setembro, e encerra-se no ano seguinte, com a
última festa do ciclo de Xangô1 em julho. O ritual de purificação das Águas de
Oxalá marca o início do ano litúrgico que, como se observa, é desvinculado do
calendário civil. Os eventos estão inseridos em uma noção de tempo cíclico,
não linear. Segue uma dinâmica diferente do calendário católico oficial
brasileiro. Contudo, esse calendário tem uma relação bastante “tensa” que
envolve rompimento e acomodação com o calendário ocidental (oficial). O
início do ciclo é sem setembro e seu término é em julho do ano seguinte,
havendo uma intensificação nos eventos entre final de setembro e final de
outubro.
Na dinâmica do terreiro em um ciclo (um ano) há vários momentos, as
festas, o período de reclusão que coincide com a quaresma – nesse caso os
calendários do terreiro e o católico oficial coincidem. Oxossi e Xangô possuem
seus próprios ciclos de festas, por motivos diferentes. Odé, ou Oxossi, o orixá
caçador dos iorubas é relacionado com antigo reino de Keto, de onde eram
provenientes as africanas que fundaram o que é conhecido como “proto-
candomblé”, o famoso candomblé da Barroquinha, o qual veio dar origem ao
candomblé da Casa Branca e a Irmandade da Boa Morte em Cachoeira/BA2.
Como já foi visto no capítulo dedicado à história do terreiro, o Opô Afonjá
surgiu do seio da Casa Branca, assim como o terreiro do Gantois, assim estes
três terreiros dedicam homenagens anuais a Oxossi no mesmo período,
sempre no dia de Corpus Cristis.
Oṣosi3 é um dos orixás mais populares na Bahia. Seja pelo fato das
senhoras que fundaram o primeiro candomblé, próximo à capela de Nossa
Senhora da Barroquinha, no centro antigo da cidade do Salvador, terem vindo
do reino Ketu local onde é forte a devoção deste orixá (território que foi cortado
entre Benin e Nigéria). Dentre os primeiro escravos que vieram de Ketu
1 Podem ocorrer alterações no calendário geralmente vinculada a eventos de extrema relevância na
comunidade, como o falecimento de algum membro do terreiro, cujos rituais de despedida demandam
cerimônias não compatíveis com festividades. 2 Para saber detalhes sobre o Candomblé da Barroquinha, consultar: SILVEIRA, Renato, 2006.
3 Grafia em iorubá moderno. Daqui para frente aparecerá em português Oxóssi para maior clareza do
texto.
estavam membros da família real Arô, que foram capturados em Iwoyê – a qual
foi saqueado pelo Daomé em 1789.
Tudo indica que a primeira das fundadoras do Candomblé
da Barroquinha, Iyá Adetá, veio nessa leva de escravos provenientes de Iwoyê. Após nove anos de cativeiro, Iyá
Adetá teria conquistado a alforria e ido morar na Barroquinha, onde fundou, no finalzinho do século XVIII, um culto doméstico a Oxóssi em sua casa [...] (SILVEIRA,
2006).
Silveira nos lembra de que “as duas principais festas do calendário da Casa
Branca que comemoram sua fundação: a principal, dedicada a Oxóssi, no dia
de Corpus Christi, e a segunda, dedicada a Xangô, no dia de São Pedro”.
(SILVEIRA, 2006). O mesmo repete-se no Gontois e no Ilê Axé Opo Afonjá. E
neste último a Iyalorixá é uma filha de Oxóssi, Odé Kaiodê, Mãe Stella.
As tradições contam que vieram pessoas dos escalões
superiores dos estados iorubás, em missão secreta, para organizar os cultos assentados na Barroquinha e articulá-
los aos egbés baianos. A mais importante delas foi Iyá Nassô, personalidade do primeiro escalão do cerimonial do palácio de Oyó. Essas pessoas criaram uma nova
forma de organização, ao estruturar o grande candomblé de Ketu tal qual é conhecido hoje. (SILVEIRA, 2006).
Verger afirma que “o lugar de origem de Oṣosi é Ikija, perto de Ijebu
Ode” (VERGER, 2012, p.208). E completa dizendo “também é conhecido no
Brasil sob os nomes de Inlẹ ou Ibualama. De acordo com uma lenda que ali se
conta tratava-se de um caçador que foi seduzido por Ọṣun que o atraiu para o
rio onde morava” (VERGER, 2012, p.211).
Xangô possui seu próprio calendário de festas tanto por ser também um
dos orixás principais da Casa Branca – que também dedica festas a Xangô em
junho – onde Mãe Aninha se iniciou, quanto por ser o orixá da fundadora do
terreiro, que era uma filha de Xangô Afonjá.
O calendário do Ilê Axé Opô Afonjá não é divulgado na agenda cultural
do estado da Bahia por orientação do terreiro, uma vez que o público que
concorre para assistir as festas é imenso. Com exceção do ciclo das festas de
Xangô é realizada uma conferência com a agenda da mãe de santo para que,
na sequência, o calendário seja divulgado no mural que fica na varanda da
casa de Xangô e, recentemente, também na fan-page do terreiro na internet.
Essa conferência do calendário é necessária todos os anos, porque a festa de
Iemanjá não pode, de forma alguma, coincidir com o dia dos finados. E, além
disso, se houver morte de algum membro da egbé4, o calendário é suspenso
afim de que se realize o ritual de axexê como ocorreu em 2012, quando Mestre
Didi faleceu em meio ao ciclo de Oxalá e o calendário foi suspenso para ser
retomado sete dias depois com a festa de Exú.
O Ciclo de Xangô
Segundo Mãe Stella, Xangô é um orixá que se tornou muito popular no
Brasil e em suas histórias aparece frequentemente como um orixá que gosta
de comer muito, de dar comida às pessoas e de festas, razão pela qual, nas
quartas-feiras, dia da semana que lhe é consagrado, oferece-se o amalá – sua
comida predileta à base de quiabos. Conta-se sempre com a participação dos
que lá estão presentes, convidados a compartilhar da comida. É assim que ele
gosta de seu culto: com muita comida e festa. Verger (2012) registrou:
Ṣango é o deus do trovão dos yoruba. É viril e atrevido, violento e justiceiro. Castiga os mentirosos, os ladrões e
os malfeitores. A morte pelo raio é, por esse motivo considerada infamante [...]. Além disso, os sacerdotes de
Ṣango vão dar uma busca no lugar onde caiu o raio, pois querem encontrar as machadinhas ou pedras de raio (ẹdun ara) lançadas por Ṣango e que ficaram na terra,
onde o chão foi tocado pelo raio, nos escombros das casas destruídas ou nos ocos das árvores abatidas pelo
raio. Esses ẹdun ara (pedras neolíticas) são colocados no assentamento de Ṣango, constituído por um pilão de madeira esculpida, alusão à ação das pedras de raio,
brutas e ruidosa, como a mão do pilão quando está em ação (VERGER, 2012, p.307).
O ciclo de Xangô é transcorrido em um período de doze dias – não por
um acaso, o número místico desse orixá – a partir da primeira festa,
obedecendo à seguinte ordenação:
23/06 – Fogueira de Airá (véspera de São João)
4 Comunidade religiosa.
28/06 – Fogueira de Afonjá (véspera de São Pedro5)
29/06 – 1º dia de Xangô (primeira festa)
02/07 – 3º dia de Xangô (segunda festa)
05/07 – 6º dia de Xangô (terceira festa)
11/07 – 12º dia de Xangô (festa de Yamassê, mãe mítica
de Xangô)
De forma significativa, Nicolau Parés registra que as exibições públicas
dos sacerdotes de Xangô eram espetaculares, em especial “o ritual do ajere,
em que desfilavam pela cidade carregando em suas cabeças vasilhas cheias
de brasas e fogo”. (PARÉS, 1995, p.151). Os sacerdotes de Xangô viajavam
das províncias à metrópole para receber a iniciação final do mógbà, o
sacerdote do santuário real em Koso. “Oyo [que] foi a capital de um império
que dominou grande parte da terra dos iorubás desde o século XVII, até as
primeiras décadas do século XIX” (PARÉS, 1995, p.150). Segundo o autor,
havia diversas divindades do trovão na região iorubá e Xangô era o mais
importante deles. Parés afirma que “a longa hegemonia de Oyo na região
favoreceu a expansão do culto a Xangô, que, como um emblema centralizador
da autoridade real, fundiu-se à administração do império” (PARÉS, 1995,
p.150).
A Feira
A Feira de São Joaquim é a maior feira livre da Cidade de Salvador,
ocupando um espaço de aproximadamente 60.000 m², localizada na região da
Cidade Baixa, entre a Baía de Todos os Santos e Av. Oscar Pontes, no bairro
do Comércio. Ao todo são dez quadras, com cerca de quatro mil boxes
espalhados por vinte e duas ruas. Impressiona pela área ocupada e pela
diversidade de produtos comercializados. Na feira podemos encontrar desde
itens alimentícios tradicionais, até artesanato como peças em cerâmicas,
esteiras e balaios, sendo ainda o principal distribuidor dos artesanatos de
barro, como alguidar, e potes produzidos no recôncavo baiano. Sua principal
característica, entretanto, está ligada à comercialização dos artigos religiosos e
5 Um sincretis mo relativizado por Mãe Stella, como visto na sessão 1.9.1, que demonstram os limites da
ruptura com o sincretis mo no tocante as datas do “calendário católico” estabelecidos pela fundadora do
terreiro, Mãe Aninha.
venda de produtos para rituais de candomblé, como orobôs, obis, etc. Cumpre
ressaltar a comercialização de animais vivos relacionados aos rituais do
candomblé. Sua importância é vital para o comércio da cidade devido aos bons
preços. Criada na década de 1960, depois da destruição da antiga feira de
Água de Meninos em 1966, consumida por um incêndio.
A feira oficial do terreiro é a feira de São Joaquim, a mesma em que são
levadas as iaôs no final do período de iniciação, como parte integrante do ritual
de apresentação. As iaôs são levadas à feira para que conheçam as barracas
que vendem os produtos necessários para a religião, mas também para serem
apresentadas ao Exu da feira, ou, Olóojà (o dono do mercado), já que os
caminhos e encruzilhadas da feira são domínio de Exu por primazia6.
Durante as reuniões preparatórias são relacionadas e quantificadas toda
a compra de alimentos necessária para a festa. Após esse levantamento, um
dos filhos irá verificar na despensa da Casa de Xangô quais os itens não
perecíveis já constam na casa, e, portanto, serão retirados da relação, gerando
assim uma lista final de compras.
Quando as filhas de santo vão à feira de São Joaquim comprar os
ingredientes para as comidas da festa o fazem porque, diferentemente do
mercado, elas podem ter contato com os ingredientes: “A gente prefere
comprar na feira porque lá você tem escolha, você abre e olha os ingredientes,
no supermercado não. Você pega um pacote e leva, se estiver bom, tá. Se não
estiver... Às vezes, o papel, o plástico engana a gente e podemos levar para
casa qualquer coisa” (ebomi Vanda de Oxum). Além do fato de na feira haver a
possibilidade de pedir desconto no preço dos produtos, provar se o camarão é
realmente de qualidade, conversar com os vendedores, saber a procedência do
azeite de dendê, dentre outras coisas.
6 “Dinheiro e mercadorias; narrativas, informações e cumprimentos tem em comum o fato de serem
coisas trocadas. São regidas pelo princíp io que governa todas as formas de troca. E porque a troca é
movimento e o movimento implica transitividade, todas elas estão subordinadas a Èṣù, o grande princípio
dinâmico na cosmovisão do candomblé” (VOGEL; MELLO; BARROS, 2001, p.7).
É afirmado que o orixá gosta de comida saborosa, comendo sempre do
melhor. Os ingredientes devem ser de boa qualidade, a comida deve ser muito
bem feita e estar muito bem apresentada. Isso é o básico sobre a comida de
santo para as interlocutoras da pesquisa, para as quais: “o orixá para a gente
é... a gente termina personificando, né. Ele é o amigo, o pai que chegou para
comer da minha comida. Então eu não posso dar uma coisa qualquer” (ebomi
Vanda de Oxum).
Em conversa informal com uma das iaôs do terreiro acabei por entender
porque fui “colocado no bolso” (enganado com elegância) por meus
interlocutores quando pedia para ir à feira acompanhar a compra dos
ingredientes para alguma das festas. Ouvia como resposta: “não se preocupe,
nós vamos” ou “vamos marcar um dia para você ir junto”. Porém o ciclo de
festas e o período de pesquisa de campo chegaram ao fim sem que eu
percebesse que não fui junto com eles à feira. Somente entendi o motivo mais
de um ano depois, quando conversei com essa iaô.
Ela me contou que só recentemente quando já havia completado três
anos de iniciação é que foi convidada, pela primeira vez, pelas ebomis da casa
de Iemanjá para participar da ida à feira. Nessa ocasião pode aprender os
detalhes sobre os vários pratos para agradar às diversas qualidades do orixá,
assim como os ingredientes necessários para tanto. Contou, também, que
convenceu, não sem dificuldade, as suas irmãs e um irmão mais velhos a
comprarem camarão defumado ao invés do camarão seco simples. Segundo a
iaô, o defumado custa um pouco mais caro, porém rende mais e faz resultar
uma comida muito mais saborosa. Contou ainda, que no final da festa todos
vieram elogiar a comida de Iemanjá e ela ficou contente e orgulhosa em dizer
que havia sido sua a ideia da compra de tal ingrediente. Dessa forma, me dei
conta que a ida à feira envolve intimidade entre os participantes dessa tarefa,
no caso irmãos de uma mesma casa de orixá7. Na feira também se desenrolam
aspectos relacionados aos fundamentos da religião, que são segredo (awo)
cujo conhecimento é permitido, em alguma medida, somente aos iniciados. Foi
7 Quando digo da mes ma casa de orixá estou me referindo a pessoas com o mes mo orixá de cabeça.
por isso que, educadamente, fui sendo dissuadido, sem que percebesse, da
ideia de acompanhá-los às compras.
De acordo com Lima (2015), um grupo de ebomis vai à feira de São
Joaquim ou das Sete Portas levando as listas de compras para a festa, levam
consigo as iaôs mais novas e alguns rapazes para ajudar a carregar as
compras. O povo de santo, enquanto caminha pela feira conversa com os
clientes e vendedores sobre assuntos do candomblé, mas também atualiza as
fofocas e jogam conversa fora.
Ao fim da feira, a turma pausa para o almoço e uma cerveja bem gelada, que ‘ninguém é de ferro’, após andar horas entre os becos e vielas da feira com sacolas, carros
de mão e cestos entupidos das compras, observação feita a mim pela própria Iyalorixá. (LIMA, 2015, p.46)
Em conversa com Deuzimar, ebomi de Oxalá, e um dos filhos de santo
mais antigos feitos por Mãe Stella, ele me contou que, “no tempo antigo havia
um senhor na Feira de São Joaquim chamado Matheus que era um senhor
negro, baixinho, careca que só vendia animais e ficava no atracadouro dos
saveiros e era com ele que se compravam os bichos”. Disse ainda, que:
Atualmente existe o Roque que é filho da finada Zeni que tinha barraca na feira da Sete Portas. Zeni já vendia para
as pessoas do terreiro desde o tempo em que Roque era menino. Depois do falecimento de Zeni, foi ele quem assumiu o comando da barraca. Por ter uma relação de
amizade com os fi lhos de santo do terreiro ele próprio leva os bichos para o axé (terreiro), uma espécie de “delivery”,
vende fiado e entrega tudo certinho (ebomi Deuzimar de Oxalá).
Os animais não devem possuir deformações, devem ser novos e da cor correta
para o orixá que será sacrificado. Xangô por exemplo, recebe carneiro, galo,
pato e cágado, todos machos.
Ir à feira faz parte dos rituais. Fazer a feira é também ir ao mercado ou
na barraquinha do lado do terreiro. A importância da feira de São Joaquim é
porque lá se encontra todas as coisas necessárias para a festa. Lá há tudo
para a comida do Santo e comidas para as pessoas da casa e os visitantes.
As principais barracas que os fi lhos de santo vão são as barracas de quiabo e
camarão, azeite e cebola. Em seguida compram-se carnes feijão farinha e
rapadura. O que não existe na feira vão buscar no mercado. As conversas são
as mais variadas e engraçadas. Algumas piadas incluindo pessoas do terreiro e
até sobre a vida dos orixás. Acredita-se nos orixás vivendo em nós. Todos riem
muito. Às vezes sai uma cervejinha sim, sem exageros, como me foi informado.
Dividem-se as compras com as pessoas que vão à feira, para poder carregar,
geralmente vai de 3 a 8 pessoas. Também, pode-se colocar tudo em um
carrinho de mão geralmente conduzido por jovens negros pobres ou idosos que
ganham a vida na feira. A lista é elaborada por duas ou mais pessoas.
Compara-se a qualidade e quantidade com o ano anterior para as devidas
correções. O transporte para a feira é sempre o carro de um dos filhos da casa.
Retornando da feira – o armazenamento
As compras são realizadas faltando poucos dias para a festa, garantindo
a integridade dos alimentos, de acordo com sua categoria. De volta ao terreiro
os itens serão separados de acordo com sua qualidade: os animais têm duas
destinações, os bichos de pena vão para o galinheiro, que fica próximo ao
barracão de festas, e os bichos de quatro patas ficam amarrados por uma
corda, num local em que podem pastar. Estamos diante aqui de um modo de
classificação nativa – bicho de pena e bicho de quatro patas. Esse ponto é
importante em uma etnografia do sistema culinário, no caso, a atenção às
categorias nativas. Os grãos (feijão fradinho, milho branco, etc.), o camarão
seco e azeite de dendê são armazenados na Casa de Oxalá, cuja cozinha é
utilizada para o preparativo das comidas de santo. Nessa casa existem ainda
duas despensas, uma para os utensílios (panela, travessas, peneiras, etc.) e
outra para os mantimentos. Na ocasião do ciclo de festa de Xangô, a exemplo,
os utensílios próprios desse orixá, como as gamelas em que se ofertam suas
comidas, são deslocados para essa cozinha comunal na casa de Oxalá,
retornando no final do ciclo ritual para a despensa da casa de Xangô. Os
alimentos perecíveis, como cebola e quiabo também são armazenados na
cozinha de Oxalá. A cozinha da casa de Xangô fica restrita a alimentação dos
filhos de santo envolvidos na preparação dessa obrigação.
Como Xangô é o orixá principal do terreiro, sua casa possui um
destaque, sendo subdividida em antessala com sofás, mesa e cadeiras para
receber os visitantes. O quarto do peji, onde estão os assentamentos desse
orixá e onde são arriadas as oferendas para ele. Sala para refeição com uma
mesa grande de madeira com diversas cadeiras onde são servidos a ialorixá,
filhos de Xangô e outras personalidades de importância para o axé, durante o
ciclo de festa desse orixá; lá também ocorrem algumas reuniões. Uma cozinha
equipada em que se prepara o amalá das quartas-feiras; onde também são
preparadas as refeições para os filhos envolvidos na obrigação. Uma despensa
em que ficam os utensílios utilizados para Xangô, além de alimentos não
perecíveis em estoque. Banheiro e um aposento para descanso da mãe de
santo. Essa casa também serve como a sede do terreiro e todas as qua rtas-
feiras, durante o ritual de oferecimento do amalá de Xangô, a ialorixá faz
consulta de búzios para as pessoas que previamente conseguiram agendar.
Devido à idade avançada da mãe de santo, esta atividade vêm se restringindo
a ocasiões bem raras.
As Festas de Xangô
No dia vinte e três de junho de 2016, uma quinta-feira, foi realizada a
primeira fogueira de Xangô, denominada Fogueira de Airá – uma das
qualidades de Xangô conhecida na Bahia – que abre o ciclo de festas dando
início às homenagens ao orixá também conhecido como “O senhor da casa de
fogo” (LODY, 2010), sendo o deus ioruba do trovão. Esse ritual não envolve a
circulação de alimentos e nem a realização de matança. A fogueira é montada
em frente à casa de Xangô, permanecendo acessa até o final do ciclo, sendo
mantida pelos seus filhos de santo. Nessa ocasião os atabaques são trazidos
para próximo da fogueira e são tocadas algumas cantigas em homenagem ao
orixá. Alguns filhos viram no santo, fazendo chegar à terra Xangô e sua esposa
Iansã.
Na noite do dia 28 de junho de 2016, em volta da fogueira acessa
anteriormente é realizado um ritual conhecido como Fogueira de Afonjá – que é
a qualidade do Xangô da casa, aquele a qual pertencia a sua fundadora –
assim como na fogueira anterior são tocadas cantigas, os orixás chegam.
No dia vinte e nove de junho de 2016, uma quarta-feira, o terreiro estava
num clima tranquilo, o barracão já estava enfeitado. A decoração contava com
galhos de akoko e birreiro8 nas manilhas que ficam duas à entrada e duas ao
fundo do barracão, além de diversos elementos cênicos vermelhos – cor
atribuída ao orixá – distribuídos pelo espaço e ligados à simbologia de Xangô,
como um oxê, machado de duas lâminas.
Um amigo e eu que estávamos trabalhando no barracão fomos
convidados para almoçar na cozinha da casa de Oxalá9. O prato servido
consistir em feijão (do jeito baiano: feijão mulatinho e o modo de fazer da Bahia
com coentro, hortelã graúda, um pouquinho de cominho e carnes de feijão, ou
seja, carne de sertão10, e carne verde11, além de linguiça calabresa e etc.),
arroz e bife de carne de gado, além de farinha de mandioca há a possibilidade
de se temperar o prato com pimenta, conhecido por molho lambão.
A comida está presente em diversos momentos dos dias de festa, no
café da manhã e também no almoço, além, é claro, da própria comida de santo
servida à noite no intervalo da festa. O cardápio do almoço é, como se pôde
ver no relato, a comida do cotidiano da Bahia, ou como se fala “comida de
branco”. Evita-se o azeite de dendê, uma vez que é uti lizado bastante na
comida de santo, e até mesmo quando é feito peixe, prefere-se escabeche à
moqueca. Sousa Junior (2014) fala brevemente sobre: “a expressão ‘comida de
branco’ é reservada ora aos ‘de comer’ do cotidiano – por exemplo, o
tradicional feijão com arroz –, ora àquelas comidas consideradas sofisticadas”
(SOUSA JUNIOR, 2014, p.132). O autor sugere que a comida de branco não é
novidade, seria do tempo da constituição das religiões de matriz africana, e
intercalam momentos. A literatura desse campo refere-se comumente à fartura
de comida durante os eventos (ver, por exemplo, Machado (2013), Ferretti
(2011) entre outros).
De fato, os cafés dos terreiros são algo que ainda está para ser estudado, o que será apenas possível através de
8 Espécies vegetais facilmente encontrada no terreiro.
9 Essa cozinha é utilizada durante o ciclo de festas para o preparo das comidas votivas e também da
comida comum dos homens e mulheres, como era o caso do almoço de hoje. 10
Charque ou jabá, carne seca. 11
Desde o século XIX vê-se em anúncio de jornal esse termo referindo-se à carne fresca.
uma etnografia cuidadosa e específica. Não apenas os
cafés que encerram algumas festas, mas aqueles que abrem o dia consagrado a determinado orixá, a exemplo
do café de Oxóssi, do café de Oxalá. [...] O café nos terreiros – iniciado ora após a missa católica, ora após o sacrifício dos animais – é sempre temático: no café de
Oxóssi, por exemplo, há muitas frutas; no de Oxalá, embora não se utilize café, por ser considerado tabu para
este orixá por algumas casas, predominam as comidas brancas; e no de Obaluayê, abundam as deliciosas iguarias enroladas na folha da bananeira (SOUSA
JUNIOR, 2014, p.133).
Depois de almoçar fui à cozinha para lavar os pratos, pois esta era uma
oportunidade de adentrar a cozinha e poder observar as mais diversas
movimentações que se dão ali enquanto trabalhasse. Assim que cheguei à
porta da cozinha e vi ebomi Cida sentada numa cadeira cortando cebola,
tomei-lhe a benção e pedi para lavar aqueles pratos e ajudar no que mais
precisasse. Ela respondeu tranquilamente: “pode entrar meu filho!” Como não
havia ninguém utilizando as pias, pude imediatamente começar a trabalhar.
Estavam na cozinha, além de ebomi Cida, as ebomis Thomázia, Eurídes, Ana
Rita, Jane e a equede Carmem. Houve um momento em que ebomi Thomázia
me pediu ajuda para pegar uma bacia grande com água e despejá-la na pia.
Quando peguei o recipiente para escorrer a água, vi que eram cortes das aves
que haviam sido imoladas.
O clima na cozinha estava bastante descontraído e leve. As filhas de
santo mais velhas ficavam brincando umas com as outras, fazendo chiste, com
brincadeiras que demonstravam uma intimidade e um ambiente descontraído
que se faz perceber com frequência nesses momentos na/da cozinha. Lima
(2015) em um texto que discute a cozinha de um terreiro de candomblé traz
outro componente presente nos dias de obrigação:
O ejó (fofoca) é a ‘crônica da novidade’, um dos ingredientes que nunca falta na cozinha, assim como, o sal no qual todas as pessoas são alvos, estejam
alinhadas ou não nos seus afazeres ou na vida dentro do terreiro, razão pela qual o ejó (a fofoca, fuxico, mexerico)
aparece sempre nesse texto, não como um elemento meramente negativo ao candomblé, mas como um demarcador que aciona a tradição (LIMA, 2015, p.41).
Porém nem tudo no candomblé é fofoca. Há muito chiste e humor na
vida cotidiana de uma comunidade de candomblé. As pessoas fazem troças e
piadas umas com as outras o tempo todo. O tom jocoso se faz bastante
presente nas conversas em momentos descontraídos, assim como uma
diversidade grande de piadas internas e deboches sutis entre os irmãos de
santo. Também é preciso falar das cantigas de sotaque e ao fazer isso é
possível traçar um paralelo entre o chiste e as cantigas de sotaque no
candomblé, a qual é composta de versos que fazem menção direta às coisas
indesejadas que podem ser a presença de uma pessoa ou atitude, gesto ou
comportamento em desacordo com as normas ou expectativa da comunidade
religiosa. É uma cantiga cantada com segunda intenção, com a intenção de
dizer uma indireta a alguém, como demonstrou Landes (2002).
Saber das histórias, causos e crônicas da novidade de uma comunidade
de terreiro também reforça o sentimento de identidade comunitária à
semelhança do que foi observado por Fonseca (2005) em seu trabalho numa
comunidade popular do sul do país. Bater os acaçás, como se diz no
candomblé em relação a fazer uma fofoquinha, é importante na consolidação
do sujeito no grupo comunitário religioso, portanto saber quem é desafeto de
quem, quem foi casado com quem e hoje em dia não se falam mais, comentar
sobre a pessoa que veio à festa muito bem arrumada, ou de quem veio
bagunçado. Imitar os mais velhos quando estão zangados ou dando bronca,
escondido deles. Os apelidos que os jovens dão aos mais velhos e comentam
entre si dando risada. Tudo isso faz parte do processo de pertencimento e
formação da identidade desse grupo.
A Matança
Quando cheguei para a matança, por volta das 7 horas, o ritual não
havia começado, pois todos aguardavam a chegada de Mãe Stella. Na mureta
em frente à escola estavam o ogã Weligton, que é um dos axoguns12 da casa e
Cátia, equede de Oxossi. Alguns filhos de santo já estavam por ali. Quando me
dirigi à cozinha da casa de Xangô, vi os balaios com as aves dentro, no meio
da sala. Do lado de fora da casa, estavam dois carneiros (àgbó) jovens, já
12
Ogã de faca, responsável pelo ritual de sacrifício.
devidamente enfeitados com laçarotes. Os galos e os conquéns13 já estavam
com os bicos e patas lavados.
Junto com Mãe Stella chegaram a Obá Terê e a ebomi Cida. Logo em
seguida, os atabaques começaram a tocar. Levantamos e batemos palmas.
Durante todo o ritual fui orientado por um dos irmãos de santo, Bião, a como
proceder. Fiquei prestando atenção nas letras das cantigas, quando num certo
momento percebi que todos balançavam e movimentavam o corpo, ainda
batendo palmas seguindo a música, isso tudo na varanda, sob o alpendre.
Depois os alabês tocaram para as Ayabás – Oxum e Iansã, pois quando se
realiza a obrigação para Xangô, homenageiam-se também suas esposas.
Antes de começar o ritual de matança, do qual não pude participar por
não ser iniciado, observei que todos os filhos de Xangô bateram a testa nas
cabeças dos carneiros, rendendo homenagem. De repente, os dois carneiros já
imolados dentro do quarto do peji de Xangô, sem as cabeças, foram jogados
para a varanda na qual me encontrava. Na mesma varanda havia cinco
grandes balaios enfileirados, que depois entendi estarem ali para receber os
bichos de pena após o sacrifício.
O carneiro, diferentemente das aves que após a matança foram
conduzidas pelas filhas ayabás até a cozinha da casa de Oxalá, é tratado ali
mesmo na varanda. Cortam, tiram o couro e as tripas, separam a carne em
partes e as colocam dentro desse couro, como se fosse uma bolsa, levando em
seguida para ser apresentada a Xangô (os assentamentos desse orixá).
Quanto aos bichos de pena, foram todos depositados nos cinco balaios,
já sem as patas e as cabeças. As iaôs ayabás (de orixás femininos) separaram
os galos num balaio, reservando os outros quatro para os conquéns, para na
sequência serem levados para a cozinha a fim de serem tratados. Não é
permitido carregar aves pelo terreiro fora dos balaios. Por tratar entende-se:
tirar as penas chamuscando-as no fogo, lavar, cortar, limpar, tirar a pele,
escaldar em três águas para aí sim fazer a separação e o preparo. São
separadas, nesse momento, as comidas em duas categorias, as que são axé
13
Galinha de Angola
(para os orixás) e as que são comida (para os humanos). É importante
ressaltar que axé é um conceito polissêmico recorrente no universo do
candomblé. É utilizado para definir não apenas uma energia vital, mas o que
chamamos de comida dos orixás, os fundamentos de um terreiro também são
denominados de axé. De acordo com Azevedo Santos:
A palavra axé em nossa religião passou a ter vários
significados: o local de culto tem essa denominação (“amanhã vou para o axé”); a resposta recebida quando se deseja algo de bom para o outro, como se fosse “que
assim aconteça”; tornou-se até a representação da música baiana – “Axé Music”. Mas para os iniciados do
Candomblé, Àṣe significa, principalmente, força, poder, energia. (Azevedo Santos, 2010, p. 89)
Assim, também chamam de axé as vísceras e outras partes que são
oferecidas cruas aos orixás, bem como os peitos das aves, patas, cabeças e
sobrecu que são tratados e preparados para também serem oferecidos a eles.
Outros cortes como a carcaça, sobrecoxa e coxa, entre outras são cozidos
separadamente para serem oferecidos aos convidados mais tarde, aquilo que
Bastide (2001) chamou de repasto.
Após a matança e o transporte dos bichos para a cozinha da casa de
Oxalá, como eu já havia carregado o botijão de gás e instalado o fogareiro na
palhoça montada em frente à fonte de Oxum, numa instalação temporária, que
serve tão somente para que a preparação do carneiro seja realizada, Jane (que
é a Otum Dagã14), Vanda e a iaô Ana, todas as três de Oxum, contando ainda
com o auxílio da iaô Augusta de Iemanjá começaram a tratar o carneiro.
Conversando com Vanda sobre essa etapa do preparativo da comida de Xangô
ela me falou que adorava cuidar do carneiro:
Antigamente eram as mais velhas da casa de Oxum... Na verdade, continuam sendo as mais velhas, porque as mais velhas de Oxum hoje sou eu e Jane, e depois
Helena... Mas eram umas oito que sentavam ali e
14
Alguns cargos importantes possuem otum e ossi que poderia ser traduzido como auxiliares da esquerda
e da direita respectivamente. A ebomi Cida que é a Ossi Dagã exp lica a função do cargo: “A dagã é para
organizar tudo, de iaô ao ajeum. Então, quando a dagã não está, tem a otum dela ou tem a ossi. Então vai
estar ela ali dizendo: - você botou muito azeite, muito camarão. Porque tem também o toque, nada é
exagerado, na quantidade. E ela tem essa experiência da quantidade: - não bote mais senão vai ficar mais
vermelho.” (Ebomi Cida de Nana) .
passavam o dia fazendo. Era um outro ritual, dentro do
ritual. Então era bem marcado. Depois as velhas foram embora, foram ficando doentes, Tia Zezilda, a Kolabá
[Ebomi Aydé, faleceu em 2016 durante o ciclo de Oxossi]. E aí as moças não se interessaram. Agora que Ana de Oxum, a iaô, tá chegando perto da gente. Mas as demais
não chegaram e foi ficando difícil. Teve um dia que eu e Helena tratamos três carneiros, só nós duas.
Interessante notar que quando os animais imolados foram jogados na
varanda, duas ebomis de Ogum saíram do peji, cada uma segurando uma
bacia de ágata com sangue, foram primeiro na porteira do terreiro e
despejaram um pouco no chão, em seguida por dentro e à direita da porteira
mais um pouco além de percorrer outros caminhos no terreiro realizando a
mesma ação. Este é um dos momentos em que o chão do terreiro come,
quando se transmite axé através do sangue do sacrifício para o solo do
terreiro15. Sobre o ritual do sacrifício é importante mencionar alguns detalhes:
ele não é propriamente secreto, de acordo com Roger Bastide (2001, p.31):
Essa parte do ritual não é propriamente secreta; porém,
não se realiza em geral senão diante de um número muito pequeno de pessoas, todas fazendo parte da religião.
Teme-se sem dúvida que a vista do sangue revigore entre os não-iniciados os estereótipos correntes sobre a ‘barbárie’ ou o ‘caráter supersticioso’ de religião africana.
Café da Manhã após a matança
Acabada a função da matança, instalam-se mesinhas e cadeiras na
varanda, cobertas com toalha de chita e os filhos e filhas de santo ficam
entrando e saindo da casa de Xangô trazendo seus pratos que já estavam
montados na cozinha e que o pessoal chama de kit. O café e as xícaras
estavam do lado de fora para facilitar, pois esse café da manhã conta com a
participação de muita gente. Há um pequeno alvoroço nesse momento, pois
todos estão com um pouco de fome, uma vez que manda a tradição levantar-se
em jejum por volta das seis horas para a obrigação da matança. Além de ser
um momento de descontração, “comensalidade” e partilha. As pessoas
15
Aqui se poderia pensar com Lévi-Strauss, em algo mais próximo da natureza porque cru (o sangue), ao
mes mo tempo em que mais elaborado e próximo da cultura devido à mediação dos utensílios e da ação
elaborada das ebomis. Essa análise estruturalista da comensalidade merece ser desenvolvida em trabalho
futuro.
conversam tranquilas e felizes, os irmãos se reveem, já alguns moram longe e
só aparecem em algumas festividades. A comida do café estava bem
saborosa, tinha pão com queijo, empadinha, fatias de bolo além de mungunzá
(de milho branco).
Depois do café segui para a palhoça onde estavam as ebomis de Oxum,
tomei-lhes a benção e me pus à disposição para ajudar a carregar uma panela
ou levantar algo mais pesado necessário para preparo das comidas. Elas
estavam sentadas tratando a cabeça do carneiro, enquanto eu falava com elas
dava para ver o olho do carneiro bem brilhante como se estivesse olhando para
mim. Vanda, docemente, perguntou como eu estava. Ai Jane disse: “você não
acha melhor ir lá embaixo ver se precisam de ajuda porque aqui temos pouca
coisa por enquanto”. E tem a questão do carneiro e a predileção das filhas de
Oxum por tratá-lo e tudo mais.
A equede Carmem já havia me solicitado para ir trocar as folhas que
decoravam do barracão, mas eu estava tentando me desvencilhar dessa tarefa
para poder ficar perto da cozinha. Com essa intenção, falei com ebomi Cida
que devido a minha pesquisa de mestrado estava interessado nos movimentos
da comida e dentre outras razões estava ali para de preferência para fazer
observação do que acontecia na cozinha, por isso a predileção por trabalhar ali
e não no barracão. Ebomi Cida me respondeu: “então, fique ali perto do
barracão que daqui a pouco eu te chamo”, o que reforça a ideia de que quem
faz trabalho de campo no candomblé não escolhem o que observar, além de
demonstrar a hierarquia dessa religião e que aquilo que pode ser lido como
insolência não é tolerável.
No momento em que estava voltando de trás da casa de Iemanjá, onde
fui jogar as folhas velhas que decoraram o barracão na festa anterior, encontrei
ebomi Thomázia e falei a ela da pesquisa sobre os percursos da comida,
quando ela disse: “olha, chega ali na cozinha e peça para lavar uma louça,
alguma coisa, se plante ali! Fique ali e procure”. Fui e fiquei por ali perto da
cozinha onde havia aquela mesa comprida em que estavam sendo tratados os
conquéns e galos. Tinham diversas pessoas, umas iaôs, algumas ebomis, na
verdade, o pessoal que geralmente trabalha na cozinha, dentre eles Pedro que
é abiã assentado de Oxalá e Cláudio de Xangô que fará em breve a obrigação
de seis anos16. Cheguei e comecei a conversar com eles, quando chegou uma
iaô de Oxum e disse a Cláudio: “Meu pai, o senhor pode amolar essa faca?” E
ele disse pra mim: “Vá lá, meu irmão”. Ela largou a faca na mureta e eu peguei,
pois no candomblé as pessoas não passam a faca (obé) diretamente um para o
outro – pois se acredita que a faca como instrumento cortante pode influenciar
na continuidade ou interrupção de qualquer forma de relacionamento. Fui,
então, lá nos fundos da casa e amolei a faca. Na sequência Pedro levantou-se
para fazer algo e eu já fiquei pilando o camarão seco e conversando sobre
capoeira, escola, trabalhos acadêmicos, sobre um monte de coisas. Ebomi
Thomásia passou e disse: “Viu como é fácil, que o serviço logo aparece”.
Quando terminamos fui guardar o pilão na palhoça17 nos fundos da casa de
Oxalá. Entrei na cozinha, tomei a benção da ebomi Ana Rita e depois da ebomi
Oyá Toki18 (Tutuca), ambas de Iansã, e falei que estava ali à disposição se
houvesse algo para lavar, escaldar, etc. “Ah então aproveita e lava aquela
panela ali” me disse Oyá Toki, confirmando a máxima de que o serviço aparece
quando você se torna disponível.
Já era quase uma da tarde quando começou a função de convocar os
meninos para tocarem os atabaques convidando para o almoço. Mais cedo,
ebomi Ana Rita estava preparando o almoço na cozinha de Oxalá e separando
os pratos em uma das despensas. O almoço era arroz, feijão tropeiro, coxa e
sobrecoxa de frango. Ebomi Cida me pediu para levar uma panela de frango
para a casa de Xangô, para servir as pessoas que almoçam lá, solicitando que
eu voltasse para almoçar com eles ali na casa de Oxalá. Recomendou que eu
não me esquecesse de trazer os panos de prato de volta.
Na casa de Xangô almoçam a iyalorixá, obás, alguns ogãs e os filhos
desse orixá, além de outras pessoas próximas ou com posto na hierarquia
16
Os filhos de Xangô completam a maioridade religiosa com a obrigação de seis anos (pois 12 é número
desse orixá e seis corresponde à metade desse número), diferente dos demais que é aos sete anos. O
dilogun também possui 12 fios contas, enquanto os demais possuem 16 e o tempo de recolhimento
também é reduzido. 17
Essa é a verdadeira palhoça do terreiro, suas paredes são de alvenaria, mas seu telhado é de palha e o
chão de arreia da praia. Por ocasião das Águas de Oxalá, todos os anos, os assentamentos desse o rixá são
transferidos para lá. 18
Este é o seu orunkó, nome de iniciação. A rigor as pessoas deveriam tratar -se por estes nomes no
terreiro.
religiosa. Entreguei a panela que carregava na cozinha de Xangô aos cuidados
da equede Carmem que me pediu para levar para Ana Rita um pacote de pés
de moleque para a sobremesa. Cida brincou comigo dizendo que eu era um
bom garoto de recado por ter trazido os panos de volta. Ofereci-me para
distribuir os pratos, à medida que elas serviam eu colocava os garfos e levava
para quem estava no barracão. Geralmente o molho de pimenta e a farinha
ficam a parte. Nesse dia o molho estava bastante forte, de acordo com o alerta
feito pelas ebomis que estavam almoçando ao meu lado.
Os preparos da comida
Na cozinha as cebolas eram batidas no liquidificador para fazer a cocada
que é a base de praticamente todos os pratos. A cocada é a cebola refogada
no azeite de dendê com camarão seco pilado, elas a chamam assim devido à
semelhança visual com a preparação da cocada-puxa19. Ebomi Thomázia,
próxima a mim, colocou a cebola e o camarão por cima dos cortes das aves na
panela que estava no fogo. Em seguida, equede Cátia passou despejando
azeite de dendê nas panelas utilizando uma concha para isso. Ela tirava o
azeite de um balde dos maiores que eu já vi, do tamanho daqueles potes de
margarina para fabricação em padarias. Depois de um tempo, ebomi Thomázia
perguntou: “quem foi que tirou meu conquém do fogo?”. Ebomi Eurídes disse
que tinha sido ela, pois havia colocado algum axé pra cozinhar, o que
justificaria a sua precedência. O axé, nesse caso, é a comida – que também é
uma forma de energia vital, uma forma de mediação entre o mundo dos
humanos e dos orixás – que será oferecida ao orixá em seu peji, ou como se
diz na linguagem habitual do terreiro, será oferecido aos pés do orixá. Também
se explica a pressa em terminar o preparo do axé em detrimento do preparo
das outras comidas que são destinadas aos humanos pelo fato de não se
oferecer a comida quente a determinados orixás. Para alguns orixás a comida
é oferecida quente, a exemplo de Xangô, para outros elas devem estar mornas
ou frias. Contudo, esse conhecimento sobre a temperatura da comida está
relacionado à categoria de fundamento, somente acessível aos iniciados e
conforme o tempo de feitura vá permitindo. A seguir reproduzo trecho sobre a
19
Que é um doce muito comum em Salvador, vendido em alguns tabuleiros das baianas de acarajé.
reflexão que Rabelo (2015) propõe sobre aprendizagem e fundamento no
candomblé, que é esclarecedora:
Entender o aprendizado no candomblé requer uma
discussão sobre os modos de acesso e circulação do conhecimento religioso. Parte deste é considerado
secreto (fundamento) e mantido fora do alcance não só dos de fora, mas também daqueles, de dentro, que se situam na base da hierarquia religiosa. Mas, conforme já
observei (Rabelo, 2014), tão importante quanto avaliar o papel do conhecimento – na manutenção da autoridade
da casa, na distinção dos mais velhos, etc. – é compreender o lugar que ocupa o não conhecimento na vida do terreiro (REBELO, 2015, p.238).
Algumas observações sobre tratar os bichos e preparar a comida dos
orixás
É importante ressaltar alguns aspectos em relação ao trabalho de tratar
os bichos depois da matança e o posterior preparo da comida para os orixás,
chamado de ajeum. Somente as pessoas iniciadas podem preparar a comida
dos orixás. Os abiãs, aqueles que não são iniciados, podem chegar à cozinha,
mas nunca tocam na comida do orixá, conforme foi afirmado pela ebomi Cida:
“pegam nas panelas pra lavar, catam o camarão, descascam as cebolas, mas
o ajeum mesmo quem prepara somos nós os iniciados”.
Em relação às protagonistas da cozinha do terreiro, a ebomi Cida
informa que no candomblé, de um modo geral, existe um cargo (oiê) chamado
iabassê que é responsável por tudo da cozinha, sendo sempre uma filha de
santo que não se manifesta: “Porque ela vai coordenar a cozinha da manhã até
à noite. Não é ela quem faz tudo, ela é quem coordena” (ebomi Cida de Nanã).
O cargo de iabassê corresponde ao de chefe da cozinha, pois, além de ter a
experiência de saber fazer de tudo relacionado à comida de santo, é ela quem
organiza e escala os grupos de trabalho. Determina o que cada um deve fazer
na cozinha e também, à noite, deve chamar outro grupo para servir os
convidados da festa no barracão. Porém no terreiro o posto de iabassê está
vago e a atribuição correspondente tem sido dividida entre as filhas de santo
mais velhas. Nas palavras da ebomi Cida:
A nossa iabassê faleceu e como a maioria das filhas de
santo se manifestam, né, a Mãe Stella não achou ainda uma iabassê por isso, porque todo mundo se manifesta.
Imagine você, a iabassê que vai organizar e tá de orixá, e ai? Não pode, né! (ebomi Cida de Nanã)
Algumas ebomis tomam a frente na coordenação da cozinha, a exemplo
da Cida que é a Otum Dagã e Jane que é a Ossi Dagã, segundo Cida:
Aqui no terreiro todo mundo faz. E tem outros postos que
ajudam, a Iaquequerê (mãe pequena da casa) que gosta de ficar também na cozinha, ela tá sempre orientando a
gente. Todo mundo sabe cozinhar, mas imagina uma cozinha com todo mundo mandando. Tem que ter alguma autoridade. (ebomi Cida de Nanã)
Observei que essa autoridade a qual Cida mencionou é exercida por ela e
Jane, mas Ana Rita de Oyá também é bastante presente na cozinha
auxiliando-as nessa tarefa de coordenação. Conforme o orixá que é
homenageado pela festa, surgem novos sujeitos na cozinha. Por exemplo, nas
festas de Xangô, Cesário – que é ebomi de Xangô –, é visto cozinhando. Nas
festas de Oxalá outros ebomis, como Osvaldo de Oxalufã e Thomázia de
Oxaguiã também se mobilizam para a tarefa.
Aqui não tem a iabassê, aí fica a gente, a Dagã e umas
mais velhas que gostam. O posto nem é pra ficar na cozinha, mas por gostar tanto, tem a ogalá20, Tutuca, ela gosta de ficar na cozinha. E a gente adora! Quando é o
Olubajé, mesmo, ela coloca os grãos todos no fogo, enquanto tá tendo o sacrifício. E quando a gente chega na
cozinha, tá tudo já cozido é só pra temperar mais tarde, pra não estragar. O camarão não pode temperar cedo. Então, essa parte aí parece que ela se identificou. E de
noite ela está no barracão cantando, chama os orixás, depois canta pros orixás. A função dela não é iabassê,
mas ela gosta. Às vezes, a gente brinca até (risos) teve uma discussão, sua voz: - não, eu gosto de ficar aqui! Né, quentura com garganta, mas ela gosta, mas ela não é
iabassê (ebomi Cida de Nanã).
Em outro trecho da entrevista Cida traz uma reflexão interessante sobre
o fato da maioria das fi lhas de santo se manifestar:
20
Posto responsável por cantar as cantigas dos orixás nas festas e demais obrigações.
É. Isso é a leitura porque hoje os orixás tão mais... as
pessoas estão se identificando mais com os orixás. Então, a maioria se manifesta. Mas aqui tem muitas ebomis, até
nossa iaquequerê, por exemplo, raspada e tudo, mas nunca se manifestou, entendeu?! Não tem orixá?! Tem sim. Mas se o orixá não se manifestou. Tem umas
pessoas que são pra rodar, pra dançar. Outras são só pra proteger mesmo, está ali, ela fez tudo que tinha que fazer
como adoxu, mas o orixá não se manifesta (ebomi Cida de Nanã).
É necessário que as pessoas responsáveis pelo preparo das comidas
possuam bastante experiência para identificar os animais quando estes já
estão sem as penas. Para que não se atrapalhem, pois na festa de Xangô não
come somente esse orixá, as iyabás Oxum, Iansã e Yemanjá também comem.
O mesmo ocorre com os outros orixás, como pode ser visto na fala da ebomi
Cida:
Como eu falei no começo, a festa é de Ogum, mas tem as outras iyabás pra comer. Então, é preciso ter cuidado pra
não pegar o galo e colocar no lugar da galinha. Pra quando for oferecer pra Ogum, já pronto, não colocar a galinha no lugar do galo. Oxum e Yemanjá vão receber as
galinhas e o Ogum os galos. Quem corta, depena, quem abre tem que prestar a atenção para não misturar com os galos, e nem os galos com as galinhas. Então, você fica
nessa parte, a galinha é cá. Ou, no mesmo balaio que pegou, coloque, porque os balaios vêm separados, os
galos e as galinhas. Porque bode e cabra dá pra identificar porque sempre fica uma pessoa: - peguei a cabra, vou até o fim, limpa, aferventa, depois lava, depois
tempera e depois põe na bacia de ágata. Dá pra identificar, e o bode não, coloca no alguidar. Ai a gente
sabe que ali na bacia é a cabra e no alguidar é o bode. Agora a galinha você tem que ficar de olho, porque depois que tira o ovinho tudo é uma coisa só.
Certa vez, depois de uma matança e do café da manhã fui tratar os
bichos de pena. Uma ebomi se encarregou de tratar os pombos. Localizei um
lugar para trabalhar nos fundos da cozinha, forrei a bancada com jornal como
estavam fazendo os outros. Escolhi uma galinha no balaio, peguei emprestada
uma bacia de plástico para poder levar o bicho até a parte interna da cozinha,
onde havia uma panela na qual as galinhas deveriam ser mergulhadas de
ponta-cabeça rapidamente. Esse procedimento serve para que se possa
depená-las. Alguém avisou que a água estava muito quente, então, mergulhei
de forma bem rápida para que a pele não se desmanchasse quando fosse
puxar as penas. Rosa que é equede ficou ao meu lado e conversávamos
enquanto depenávamos. Velhas ebomis estavam sentadas trabalhando e
contavam que antigamente a fonte em que se buscava água para carregar para
Oxalá era bastante longe do terreiro. Não era como agora, que a fonte é dentro
do terreiro. Outra senhora confirmou dizendo que quando era criança ouvia o
barulho da sineta na madrugada e espiava escondida de sua mãe as filhas de
santo subindo a ladeira ao lado do terreiro. Em seguida, um fi lho de Oxaguiã
passou oferecendo batata doce cozida. Naquele momento, Rosa disse-me
baixinho que batata doce era comida de Oxumarê e quem quer agradá-lo
oferece. Interpretei que ao falar baixinho sobre esse detalhe Rosa
provavelmente teve a intenção de evitar que outras pessoas escutassem o que
ela estava me falando, pelo assunto ter proximidade a algo de fundamento e
com o intuito de evitar o ejó (fofoca), sobretudo, pelo fato de eu ser um abiã –
sabidamente não habilitado para esse conhecimento – e pesquisador na roça.
Conforme as pessoas terminavam de depenar as galinhas foram
colocando-as de volta no balaio. Uma iaô de Yemanjá me chamou para
carregar o balaio com ela, perguntei se eu podia carregar, já que meu orixá é
masculino (okurin). Ela não respondeu e fez um gesto para que eu pegasse
logo o balaio. Levamos esse balaio para um pouco distante das pessoas que
trabalhavam, peguei uma grande bacia de alumínio e transferimos para ela os
bichos, em seguida joguei álcool e risquei um fósforo. Uma ebomi com
bastante experiência supervisionou o processo. Esse procedimento serve para
que se consiga retirar completamente os caniços das penas. Enquanto
esperávamos a bacia esfriar, outra ebomi chegou para a iaô de Iemanjá que
estava trabalhando comigo e lhe chamou atenção por não ter me respondido
quando perguntei se poderia carregar o balaio. Passado um tempo ela me
explicou que é somente no momento da matança que as pessoas com orixá
feminino (ayabá) devem alcançar as aves para o axogum, assim como,
carregar o balaio seja para apresentar para o orixá ou para levar até a cozinha.
Consegui uma bacia emprestada – a qual fiquei encarregado de zelar e
devolver ao dono depois – e fiquei ao lado da iaô que foi me ensinando como
cortar a galinha. Fui aprendendo como separar os axés e as carnes que
servirão para os humanos. A primeira coisa que fiz foi separar o pescoço e ela
me alertou que deveria retirar com bastante pele. O pescoço é limpo com
bastante cuidado, removendo-se a pele retirando gorduras e depois colocando
a pele novamente. Depois os pedaços das carnes são lavados por três vezes,
enchendo a bacia com água e limpando as carnes com as mãos. A moela e o
coração são separados por serem axés, as demais vísceras são descartadas.
Terminado esse processo de limpeza das carnes, elas são entregues as
ebomis que as cozinharão.
O preparo da cebola para o ajeum é também de suma importância. Do
lado de fora da casa de Oxalá, me juntei a duas iaôs e começamos a cortar
cebolas. Havia uma saca de cebola para ser cortada. Cada um pegou uma
cadeira e uma bacia e fomos picando as cebolas enquanto conversávamos
descontraidamente. Ebomi Oyá Toki sentou-se próximo a gente para fazer a
mesma tarefa e em seguida uma senhora, ebomi de Ogum, também chegou
começando a trabalhar e conversar. Após retirar a casca da cebola, ela era
cortada segurando-a na mão e cravando-lhe a faca fazendo linhas verticais e
depois um leve corte na horizontal. Essa é uma forma bastante comum de
cortar cebola no cotidiano na Bahia. Cheguei a perguntar a iaô se era preceito
cortar daque la forma. Ela riu e respondeu: “você está na Bahia”. Brinquei
dizendo que se eu tivesse uma tábua cortaria dez vezes mais rápido. Ebomi
Oyá Toki disse que não precisava ser cortado muito miúdo porque seria batido
no liquidificador no dia seguinte. Pedro que é abiã de Oxalá chegou quando já
não restavam muitas cebolas para cortar e perguntou se poderia ajudar. Sua
irmã de santo mais velha – Neide que é iâo de Oxaguiã – pediu para que ele
fosse ajudar a montar o kits para o café da manhã e se ele cortasse cebola
conosco, os pães ficaria com gosto de cebola quando fosse passar manteiga.
Então Pedro ficou somente conversando. Acabado o serviço, as cebolas
picadas foram acondicionadas na geladeira e aproveitei esse momento para
ficar conversando mais um pouco sentado no batente do barracão.
Houve um momento também em que perguntei a ebomi Ana Rita se eu
poderia pegar uma faca e ajudar a equede Vera a descascar os inhames. Ela
disse que sim e me apontou onde estava o obé. Sentei-me próximo de Vera e
comecei a cortar os inhames com ela, que me pediu em seguida que eu
enchesse uma panela com água para que fossemos limpando os pedaços
descascados, deixando-os prontos para serem cozidos. Rapidamente
terminamos essa atividade e lavei os utensílios. Carregamos a panela,
acendemos o fogão e colocamos os inhames para cozinhar. Depois de cozidos,
devem amornar, para depois ser pilados, a partir da massa branca que resulta
desse procedimento é que são feitas as bolinhas de inhame. Ebomi Ana Rita
estava cozinhando o amalá na panela grande (a maior de todas as panelas da
cozinha é sempre usada para cozinhar o prato predileto de Xangô, o dono do
terreiro), e os outros pratos estavam encaminhados: o feijão fradinho estava
escorrido, assim como o milho branco. Passei na palhoça em frente à fonte de
Oxum, Augusta e as ebomis de Oxum cortavam bem miudinho a carne do
carneiro, antes Augusta havia me dito que aferventa a carne uma vez só,
depois é picado para ser cozido. Disse ainda, que a cabeça do carneiro
precisava ser tratada com cautela, pois tem umas glândulas que precisam ser
retiradas, coisa que eu tinha visto fazerem mais cedo.
É necessário tecer alguns comentários sobre o retorno da comida que foi
oferecida ao orixá. No dia seguinte a mãe de santo, ou a mãe pequena
consulta o orixá através dos búzios ou de um obi e pergunta ao orixá se pode
distribuir aquela comida para fi lhos. Às vezes, o orixá consente que se divida
com os filhos. Às vezes ele diz que não consente. E, então, se pergunta o que
é para ser feito e o orixá indica onde colocar. Podendo ser na mata, na água ou
em outro local específico. Um ebomi me contou de uma situação na qual o
orixá determinou que a comida deveria ser colocada no mar e determinou um
local específico na baía de todos os santos onde deveria ser despachada.
Quando é determinado que a oferenda retorne para ser dividida,
geralmente uma ayabá – uma filha de santo de orixá feminino – senta e
começa a fazer uma arrumação, a retirar os ossos, segundo afirmação da
ebomi Vanda:
Quem gosta muito de fazer isso é “Jinuaxê” (ebomi
Helena de Oxum). Então ela senta lá que nem uma rainha e ela começa. Ai as pessoas chegam lá e dizem: Eu
quero aqui, quero tal pedaço. E ela vai repartindo. E as pessoas levam para casa, fazem uma outra comida, alguma outra coisa (ebomi Vanda de Oxum).
A oferta da comida Na cozinha, após o ritual do padê, por volta das cinco da
tarde, as comidas destinadas ao público já se encontram prontas e
descansando – ou seja, esfriando – em uma sala junto à cozinha que serve de
apoio. As comidas são levadas para a cozinha do barracão, que é
propriamente um refeitório onde os abiãs repartem as comidas em pratos
descartáveis para serem distribuídas no intervalo da festa. O axé, ou seja, a
comida que será oferecida a Xangô em seu peji deverá ser conduzida para a
casa de Xangô. Nessa ocasião um filho de Xangô que é também ogã de Oxum
carregou sobre a cabeça uma grande bacia de ágata com esse axé destinado
ao orixá. Dirigi-me para lá, entrei e fui salvar Xangô, fiz o dobalê, bati o peito,
prostrei-me ao chão em reverência ao orixá, agradeci, fiz alguns pedidos. E
naquele momento rápido aproveitei para passar os olhos nos pratos que
estavam dispostos no chão. Na bacia grande estavam os peitos das aves
(galos e conquéns) cozidos e refogados no bambá21. Estavam dispostos de
maneira harmônica formando um desenho circular, as cabeças das aves
também compunham o desenho do prato que ainda contava com diversos
acaçás, sem a folha de bananeira que os envolve normalmente, dando um
toque final ao prato. Ao lado direito via-se um alguidar com omolocum22
destinado à Oxum e localizado próximo do seu local, dentro do quarto de
Xangô. Havia ainda diversas gamelas contendo amalá, que possuíam dois
acaçás, sem a folha de bananeira, além de seis bolinhos de inhame dispostos
por cima do amalá. Havia também outros pratos com outros tipos de axés.
Salvei Xangô junto com outro abiã de Xangô. Saí do quarto do santo e
encontrei o ogã Fábio Lima, segurando duas gamelas pequenas de amalá,
uma em cada mão, que me disse: “Venha. Leve lá”. Ele foi até a árvore que
tem em frente à casa de Xangô e disse: “Faça exatamente como eu estou
21
A cocada que já foi mencionada (cebola e camarão seco pilado refogado no azeite) também pode ser
denominada de bambá, podendo ser a própria “cocada” ou ainda o caldo que resulta desse cozime nto. 22
Feijão fradinho, com cebola, camarão seco, azeite de dendê e ovos de galinha cozidos dispostos
inteiros, comida oferecida à Oxum.
fazendo”. Falou uma saudação, levantou e abaixou três vezes a oferenda e a
depositou aos pés do Iroko23. Pediu para que eu fosse fazer o mesmo
procedimento aos pés do outro Iroko. Assim, fui conduzindo o prato de amalá
que tinha seis quiabos inteiros, seis bolinhas de inhame e dois acaçás por
cima, um em cada extremidade. Levei até o Iroko, passando pelo barracão, em
direção à casa de Ogum.
Em conversa com uma das interlocutoras da pesquisa me foi revelado
que se faz um único prato para ser oferecido aos pés de Xangô, que segundo a
ebomi de Oxum fica muito bonito:
Eu arrumo mais ou menos. Cida já arruma muito bonito.
Ana Rita faz muito bonito também, ela consegue colocar os peitos todos assim... Talvez eu não tivesse treinada paciência e como eu cozinho o dia todo, também no fim
da tarde eu já estou cansada eu termino dizendo... faz você que você faz mais bonito. Às vezes eu acho que já é
o cansaço mesmo que explode. É um único prato. Uma coisa que é importante na comida é a estética. A estética é importante. Quando a gente põe a comida no prato, por
exemplo, não pode oferecer um prato melado de azeite nas bordas. Então quando a gente arruma tudo, ai volta
com um paninho e sai arrumando tudo, limpando, limpando. Então fica parecendo que a comida está desenhada, pintada no prato. A parte estética é
importante. E os acaçás não enfeitam o prato, eles fazem parte do axé. Ele está ali também como axé. (ebomi
Vanda Machado)
A festa do dia Dois de Julho de 2016
O terceiro dia das festividades de Xangô é chamado de itá, que ocorre
justamente em dois de julho, feriado importante no calendário do estado da
Bahia, Dia da Independência do Brasil na Bahia.
Chegando na festa encontrei conhecidos, e juntos entramos no
barracão. Aos poucos as filhas de santo começaram a entrar no barracão,
perfumadas e arrumadas trajando as suas “não sei quantas anáguas” por baixo
das saias rodadas – que como pude conferir mais cedo, dão um “trabalho do
cão”, como se referiu uma filha de santo, para engomar e passar – usam
23
Uma das árvores sagradas cultuadas no terreiro.
também um camisu24, torço na cabeça e contas no pescoço, mokâ25 e dilogun26
para as iaôs, além de contra-egum27 nos braços. Os abiãs de santo assentado
também uti lizam o mokâ e os contra-eguns. As ebomis utilizam uma bata, pois
já não precisam usar tantas anáguas e após a obrigação de sete anos não
utilizam mais o dilogun, mokâ e contra-egum. Podem usar contas maiores e
passam a poder utilizar sapatos na roda. Antes de alcançar esse estágio, todos
entram na roda para dançar descalços. As filhas de santo rodantes também
trazem o pano da costa amarado no peito quando são iaôs. E quando são
ebomis podem amarrar no peito ou na cintura durante as obrigações.
Os homens utilizam calça branca e camiseta branca. Não utilizam torço,
mas sim um chapeuzinho de pano branco chamado filá. A diferenciação de
senioridade entre os homens rodantes, isso é os que entram na roda para
dançar e viram no santo (adoxu), se dá através da bata. Os mais velhos podem
usar batas compridas que podem possuir bolsos, os mais jovens, não.
As equedes (ajóiés) trajam vestidos mais justos ao corpo, torço e sapato,
utilizam também suas contas. Os vestidos muitas vezes são feitos com tecidos
africanos – isso faz movimentar um mercado transatlântico até os dias de hoje.
Conheci em Salvador, anos atrás um nigeriano de Ifé que mercava produtos
africanos para mães e pais de santo da Bahia e de São Paulo. Panos brancos
sempre acompanham as equedes, com os quais enxugam o suor dos orixás
quando estão manifestados.
Os ogãs usam roupa social comum, tipo calça jeans camisa ou camiseta
polo geralmente. Outros utilizam conjuntos estampados de tecidos africanos, o
que tem estado bastante em alta no momento. Alguns poucos vestem terno ou
paletó, geralmente branco, isso é mais comum entre os obás de Xangô.
Observando fotos dos candomblés das décadas de 1930 e 1950 vemos a
maioria dos homens de terno.
24 Blusa parecida com uma bata. 25
Uma espécie de colar feito de palha que dentre outras coisas representa um sinal diacrít ico utilizado
pelo que tem santo assentado e dispensável para os que já concluíram as obrigações de sete anos. 26
Conjunto feito com 16 fios de conta fininhos, podendo haver variação no número quando relacionado a
alguma divindade específica. 27
Bracelete feito de palha que como o nome diz, tem a função de proteger contra eguns (espíritos do
ancestral).
Quando os alabés começam a tocar os atabaques, é sinal de que a festa
começará em instantes. Os obás, ogãs, equedes, convidados e visitantes
foram chegando e tomando seus assentos. Então vai formando-se uma roda de
filhos da casa para salvar os atabaques, depois de ter salvado a porta do
barracão e posteriormente a mãe de santo ou a iaquequerê (mãe-pequena) no
caso da ausência daquela. O chão e os atabaques são salvos levando a mão
ao chão e em seguida à cabeça. Já a mãe pequena como o dobalê ou iká.
Após isso, os rodantes vão para a roda e os demais retornam para seus
lugares. Ogãs e equedes são dispensados desse momento. A roda é sempre
encabeçada pela tia Obá Terê que é a filha mais velha após a mãe de santo e
segue a ordem hierárquica. Forma-se uma roda interna somente com as
ebomis agbás (aquelas que têm mais de trinta anos de santo) atrás de Obá
Terê e envolta delas num círculo maior os demais filhos. Depois se torna só
uma grande roda para o xirê. A primeira música é para saudar Ogum e segue
uma música para cada orixá. Quando se canta para Xangô que é o patrono do
terreiro, todos descobrem a cabeça, até mesmo a mãe de santo retira seu ojá
da cabeça, depois se recoloca. Para chegar às canções que evocam os santos,
passa-se por canções a Ododua e Orunmilá (que são divindades da
cosmologia iorubá, mas que não chegam na terra, não possuem filhos de santo
feitos).
A essa altura da festa a animação já começa a ficar alta. A música é
puxada pela ogalá28 Oyá Toki ou pelo ogã Welligton de Ogum. Funciona no
esquema de canto e resposta (antífona), como as músicas de barracão são
bastante conhecidas a plateia e a família de santo cantam, os visitantes batem
palmas. Surgem gritos estridentes: Kaô-Kabiesilé29 puxado por alguém e
respondido por muitos. O ritmo dos atabaques aumenta, as palmas também e
conforme começam a ocorrer os primeiros barraventos, quando os filhos e
filhas de santo vão perdendo o domínio completo sobre seus corpos e
começam a rodopiar. E as pessoas bastante alegres gritam a saudação do
orixá que se aproxima. Logo em seguida o filho vira no santo, o orixá chega na
28
Posto responsável por cantar as cantigas sagradas no barracão durante as festas e também em
momentos privados relacionados às questões de fundamento do candomblé. 29
Saudação para Xangô.
terra, firma-se no chão após o rodopio, solta o seu estrondoso ilá (seu grito
característico) a plateia e a família de santo gritam juntos: Kaô-Kabiesilé! Kaô
Isso leva alguns minutos, outros orixás vão chegando. As equedes
cuidam dos filhos e filhas de santo quando estes viram no santo. Retiram-lhes
os sapatos, óculos e brincos, retiram também a bata e fazem uma amarração
distinta com o ojá com laços atrás quando se trata de uma àyabá, ou seja,
quando o orixá é feminino. Quando o orixá é masculino, okurin, não fazem os
laços, somente amarra-se o ojá na cabeça. No caso dos homens, lhes é
retirada a camiseta ou bata e amarra-se um ojá branco em volta do tórax.
Segue-se a sequência das cantigas de invocação quando se chega ao fim a
roda é desfeita e os filhos que não viraram no santo voltam para os seus
lugares, quando são ebomis àgbás sentam-se em cadeiras que ficam ao lado
dos atabaques. As iaôs sentam-se em um canto próximo às ebomis, porém em
um nível mais baixo do que as mais velhas.
Então se começa a tocar uma sequência que pode variar de uma a três
canções para cada orixá presente. Os orixás vão até o centro do barracão e
executam sua coreografia, nas quais estão expressando passagens
mitológicas, quando ocorre aquilo que parece ser o ápice da dança, eles a
realizam bem em frente aos atabaques. Algumas danças são executadas
somente por aqueles orixás que estão sendo homenageados pela música, em
outras são acompanhados por outros orixás. Os orixás andam pelo barracão,
saúdam as pessoas, prostram-se no chão em reverência à ialorixá, iaquequerê,
alguns outros dignitários, o pai ou mãe pequena daquele filho de santo.
Quando acaba a sequência das músicas, os orixás são conduzidos para
os respectivos quartos das malas (homens na esquerda, mulheres à direita do
barracão) onde são vestidos com seus trajes de gala que estão na mala de
cada um, juntamente com suas ferramentas. Enquanto isso se executa outra
sequência em homenagem a outro orixá. Quando o último orixá presente é
homenageado e retira-se para o quarto das malas começa o intervalo. Os
atabaques param e quando é dada a ordem pela mãe de santo se inicia a
distribuição dos pratos.
O Ato de Comensalidade durante a Festa
No momento em que se começa a tocar as músicas que invocam os
orixás, os abiãs são chamados para montar os pratos, ou seja, repartir a
comida para o ajeum, para o ato de comensalidade em homenagem a Xangô.
Não assisti a essa parte da festa, porque fui requisitado para essa tarefa.
Na cozinha do barracão, junto à parede ficam dispostas as grandes
panelas com a comida. Na ponta perto da porta sempre fica o amalá, seguido
pela panela de arroz, depois o ebô de Yemanjá, o omolocum, o xinxim de ave
(galinha, galo, ou conquém) todas essas panelas ficam dispostas em cima de
um banco comprido, que vai da porta até a pia. Em cima da pia ficam as
bolinhas de inhame e o eran de carneiro e mais à direita ainda o pote de aruá30.
Alguém, geralmente de Xangô, se habilita a servir o amalá, outro alcança a
bandeja com os pratos plásticos para este da ponta que põe o amalá e entrega
para quem está servindo o arroz (este sempre é difícil de servir porque fica
grudado e é complicado tirá-lo da colher). Essa pessoa entrega a bandeja na
mão de quem está pondo o ebô31 e o omolocum. Feito isso se coloca a galinha
e por último a bolinha de inhame. Às vezes, para dar agilidade ao serviço
contamos com uma pessoa para deslizar as bandejas entre as panelas.
Antes mesmo de começar a servir os pratos, alguém se incumbe de
separar a comida dos erês que virão depois do fim da festa. Então se coloca
grandes porções de comida numa bacia de ágata coberta por outra igual.
Geralmente, uma pessoa específica é quem se prontifica para fazer isso, ela é
uma das abiãs mais velhas ali na cozinha do barracão, o que faz com que,
muitas vezes, ela se sinta a coordenadora da equipe, o que causa conflitos,
pois ela fica dando ordens quase que gritando, sendo que ela própria acaba
não fazendo muita coisa além de ditar ordens. Muitas vezes isso estressa os
outros abiãs que acabam por sair da cozinha. Já presenciei mais de uma vez,
cenas de tensão por causa desse tipo de postura dessa pessoa.
30
Beb ida feita a base de rapadura e gengibre. 31
Prato feito de milho branco cozido temperado com cebola, camarão seco e azeite de dendê.
Durante a festa houve um diálogo com o ogã Fábio Lima bem
interessante, na cozinha do barracão. Enquanto ele comia se dizia
maravi lhado, que adorava aquilo, que adorava azeite e que na África era
igualzinho, comiam tudo com azeite. Então perguntei se usavam camarão seco
também, ele respondeu que não, que camarão era uma coisa da Bahia e que
eles eram muito pobres. Ele se referia à Nigéria, país que visitou há pouco
tempo onde proferiu uma palestra sobre o culto a Xangô na Diáspora32.
A festa da noite de sábado não estava tão cheia como a anterior, pois é
feriado na Bahia. Dois de Julho é o dia da Independência do Brasil na Bahia
que é a data maior do Estado, quando se comemora a expulsão dos
portugueses definitivamente do país, após uma série de batalhas. Todo ano
ocorre um desfile que sai de manhã cedo do bairro da Lapinha em direção ao
Pelourinho. O cortejo é acompanhado por autoridades e muitos políticos. A
imagem da Cabocla percorre as ruas do Centro Histórico de Salvador. Nessa
parada no Pelourinho na hora do almoço serve-se feijoada. À tarde o percurso
recomeça até o Campo Grande. Mas me parece que o que atinge o público que
costuma assistir ao candomblé não é a festa cívica em si – os soteropolitanos
adoram essa festa – mas sim as inúmeras festas de caboclo que ocorrem na
cidade. Lembro-me do tempo em que morei no bairro do Engenho Velho da
Federação e que uma festa ocorria na rua, com mesa gigantesca de frutas e
distribuição de feijoada. Assim, parece que o que concorre mesmo com a festa
de Xangô à noite no terreiro são as festas de caboclo espalhadas pela cidade.
Na maioria das vezes, começo o trabalho servindo os copos de aruá ou
dispondo os pratos nas bandejas. Há um momento em que todas as bandejas
já estão com pratos servidos e com garfos plásticos nas prateleiras da parede e
é necessário retirá-los para montar outros. Neste dia servimos no máximo uns
300 pratos. É preciso servi-los com bastante cuidado para não encostar a
colher de uma panela em outra ou em alguma comida do prato que se esteja
servindo devido às quizilas – são energias que vão de encontro ao orixá da
pessoa. Elas são idiossincráticas, digo isso, pois “saem” (é informado) para a
32
Em 2015 Fáb io Lima lançou o livro “Diáspora e Ancestralidade” em que possui um capítulo sobre essa
conferência chamado “Em torno de duas conferências sobre um rei mít ico para um rei real feita por um
filho do rei Xangô”. (LIMA, 2015)
pessoa no momento de sua iniciação seja como rodante ou como ogã ou
equede. Há também quizilas que são gerais para todos os filhos do terreiro.
Boa parte das quizi las está relacionada à comida, mas não necessariamente.
Também por causa das quizilas servimos alguns pratos sem amalá,
outros sem galinha e alguns só com as bolinhas de inhame e arroz, no caso,
para quem tem quizila com quiabo, galinha e azeite de dendê (epô). Também
tomamos cuidado para deixar uma boa quantidade de aruá para os erês. No
Opô Afonjá eles só comem comida de santo, não comem doces, balas nem
refrigerantes.
Outra coisa bastante comum é ocorrer possessão entre os abiãs que
estão servindo a comida, quando a música que evoca seus orixás está sendo
tocada no barracão. No período em que realizei o trabalho de campo, uma
moça de Oxum sempre tomava um barravento e virava no santo. Isso também
ocorria com Pedro de Oxalá, mas depois que ele assentou o santo, diminuiu.
Nessas ocasiões é preciso que chamemos uma das equedes para suspender o
santo. Nós, os abiãs que montamos os pratos precisamos comer antes para
que quando a distribuição iniciar não haja intervalos ou interrupções. É,
também, como se houvesse uma compensação pelo trabalho árduo ao longo
do dia.
Quando começa a distribuição da comida, geralmente inicia-se um
pequeno alvoroço, pois enquanto saímos com as bandejas aglomeram-se
muitas pessoas próximo à porta o que obstrui a passagem. Temos que cuidar
para não passar a comida sobre as cabeças (o ori) das pessoas, assim como
pelas costas e ainda para não sujar os irmãos, o que inevitavelmente sempre
ocorre. Ninguém volta para casa com a roupa branquinha como veio.
Nessa noite a distribuição da comida foi tranquila e após o intervalo
pudemos ficar assistindo aos orixás dançarem. Teve um momento em que fui
salvar os Xangôs que estavam sentados enquanto as Ayabás dançavam.
Recebi diversos abraços cheios de axé e aproveitei a ocasião para agradecê-
los pessoalmente e também fazer os meus apelos por mim e pelos meus. A
festa seguiu em tremenda alegria e emoção. Essa é uma festa quente,
bastante quente33. Um deus do fogo, do trovão que dança com sua esposa
dona dos raios e dos ventos. Quando a festa acaba, apesar do cansaço, não
se costuma sentir sono.
Após as sequências de músicas para homenagem de cada orixá que se
faz presente na festa chega o momento final em que se forma uma grande roda
no barracão, com os orixás e demais filhos de santo da casa e canta-se uma
música ... Xangô Afonjá areuwá... Xangô Afonjá areuwá... Quando essa música
acaba, a festa acaba também. Os orixás são levados para o quarto das malas.
Os atabaques continuam a tocar por mais um tempo. As pessoas vão deixando
o barracão alguns membros da casa aproveitam para dançarem um pouco em
frente aos atabaques.
***
33
É importante frisar a d istinção entre orixás quente e orixás frios. Xangô, como visto, é um dos orixás
quentes, sua cor é vermelha, sua comida vai azeite de dendê e é oferecida ainda quente. Iansã, sua esposa
também é quente. Já Oxalá, Yemanjá e Oxum podem ser considerados orixás mais frio.