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XV: As lembranças de um lugar esquecido “Quando a gente ia chegando no Km115 o maquinista diminuía a velocidade, e todo mundo pulava do trem em movimento. Se não pulasse ia parar no Sarandi, aí tinha que vol- tar a pé. Algumas vezes, nós se reuní- amos na venda para ouvir os jogos no velho rádio valvulado. Eu nunca me esqueço da final da Copa Centenário de 55 entre ‘Curinthia e Parmeira’, eu comemorei tanto o título do Timão, que cheguei a subir no telhado da venda” (sic). Alegrias, tristezas e histórias do vilarejo Santa Cruz Km 115 de Sarandi O ano era 1975, quando um grupo de amigos começa a come- morar. Eles beberam, cantaram, se divertiram e soltaram muitos rojões. Até o maquinista deixou o trem e foi participar da festa. O motivo é que esses amigos haviam feito um bo- lão na loteria esportiva, e acertaram os treze pontos. A grande surpresa foi quando conferiram o valor que cada um receberia. Atualizado, não passaria de R$ 18,00; o que não era suficiente nem para pagar os rojões que haviam soltado na noite ante- rior. Esta é uma das tantas histórias que fazem parte do patrimônio Vera Cruz Km 115. Situado em Sarandi, foi fun- dado por volta de 1937 por José Amilin. Na época, as cidades eram nomeadas pela quilometragem de Londrina até o local. Marialva era o Km 113, a vila Km115, Sarandi Km 118 e Maringá Km 120. O pioneiro Manoel Pinheiro, religioso que era, decidiu colocar uma grande cruz no vilarejo, e nos finais de semana as pessoas se reuniam no cruzeiro para celebrar a missa. A partir daí, o local passou a ser chamado de Vera Cruz Km 115. Antônio Filho, 86, primeiro farmacêutico de Sarandi, lembra que na época não existia a Avenida Co- lombo, e todo o trânsito era feito por ali. Tudo passava por Vera Cruz. Milho cozido, pipoca, algodão doce, pé-de-moleque, quentão, pes- caria. Nada faltava nas grandiosas quermesses do Km 115. Nos anos 50 o vilarejo parecia um cenário de no- vela. O pequeno posto de gasolina, a escola, a venda e a igreja de madeira com banquinhos ao redor, onde os ca- sais apaixonados admiravam a beleza da lua. Além disso, tinha um bar, duas máquinas de beneficiar arroz, uma de beneficiar café, e até açougue. E como todo vilarejo que se pre- ze, não faltavam os grandes bailes no fim de semana. Todos se reuniam na praça da igreja e dançavam animados ao som da sanfona. Durante a noite sob a luz do lampião, as conversas eram colocadas em dia. Manoel Cardoso, 82 O fim do “Ouro Verde” “O baile era muito animado, o sanfoneiro fazia o povo mexer o es- queleto. Naquele tempo, a gente junta- va na casa de quem tinha rádio e ficava a noite inteirinha ‘proseano’ e ouvindo os ‘modão’ de viola. Sem contar que naquele tempo o rádio funcionava à pi- lha, ela era muito grande, maior e mais cara do que o próprio rádio. No fute- bol, essa venda era a galeria de troféus do nosso time. Tinha tanto troféu, que alguns já estavam querendo sair pela janela” (sic). Francisco Neto, 62 Antônio Filho, 86 “O trabalho de parto que eu aju- dei a Dona Sebastiana fazer demorou três dias. Foi o mais comprido que eu já vi na minha vida. Nem dormir direito eu conseguia naquele tempo. O povo me acordava de cinco a seis vezes na noi- te pedindo ajuda. Eu não sou formado, mas nunca deixei de atender ninguém. A matéria-prima para fazer os medica- mentos vinha de São Paulo, eu pegava o meu guia de farmácia e ia montando os medicamentos. Hoje isso é proibido, mas naquela época era a única saída”. O café era a cultura que mo- vimentava a região. A maioria das pessoas trabalhava nas lavouras e, nos finais de semana era comum ir à vila fazer compras. O destino de Vera Cruz, porém, começa a mudar. Em primeiro lugar surgiu a Avenida Colombo, desviando o movimento. O trem parou de transportar passa- geiros. Além disso, o XV não era re- gistrado como área urbana, e não re- cebia investimentos da Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná. A decadência do lugar deu-se com a geada de 75, que ficou conhecida como “geada negra”. As plantações de café foram destruídas e só resta- ram dor e sofrimento para aqueles que investiram tudo o que tinham no sonho do “Ouro Verde”. A primeira conseqüência foi o fechamento de uma venda, do único bar e do pos- to de gasolina. Muitos começaram a vender as terras e partiram para a cidade em busca de emprego. O pioneiro Manoel Cardoso, 82, lembra da geada de 1975 e conta que “muitos homens deitaram ricos e acordaram pobres, vários se sui- cidaram quando viram às lavouras. Alguns chegaram a beber veneno”, relata. Quem ficou, trabalhou por cerca de três anos arrancando os pés-de-café que a geada destruiu. “O povo fazia o maquinista parar o trem para comprar lingüiça na minha venda. Toda semana eu matava um por- co, e preparava aquela lingüiça purinha e saborosa de lamber os beiços. Um dia as crianças começaram a tirar sarro em um cliente, de repente ele sacou um revólver e disse que queria ver quem ia tirar sarro nele, e começou a atirar. Um tiro passou raspando a orelha de um freguês, felizmente ele era ruim de mira. A polícia veio e levou ele, mas logo soltaram”. Aroldo Palácio, 73 “Os bailes daquele tempo eram bem diferentes do que a gente vê hoje. Os homens iam de paletó e gravata e todo mundo levava uma arma na cintu- ra. As mulheres usavam aqueles vesti- dos rodados. Oh, tempo bom! O pessoal dançava agarradinho, se o rapaz pedisse para dançar com a moça e ela dissesse não, ela não podia dançar com mais nin- guém a noite toda. O respeito entre as pessoas era bem maior do que hoje. E se alguém desonrasse a família, todo mun- do resolvia na bala” (sic). José Lázaro, 78 Os Pioneiros Reportagem: Crisitane Brito Douglas Cardoso Wilians Zanchim Fotografias: José Luiz de Souza As dificuldades eram grandes. O pioneiro Manoel Cardoso, 82, conta que o trem ia até Apucarana e, o restante do trajeto até a vila era feito na pequena Catita da Viação Garcia. O trem chegou à região na dé- cada de 50. A linha foi construída pela Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná. A popular Maria Fumaça era guiada por um espanhol chamado Francisco Gimenez. Todos os dias na hora do almoço o trem passava apitando. As pessoas de- sembarcavam da cor do carvão que movimentava as caldeiras. Com o passar dos anos, o nome da vila mudou. De Vera Cruz Km115, o local passou a ser conhe- cido simplesmente como XV. As irmãs fantasma Conta-se que um rapaz do bairro tinha começado um namoro com uma moça muito bonita Passado algum tempo a irmã dela morre, e alguns me- ses depois ela também. “Um dia esse moço veio aqui na venda. Daqui a pouco ele começa a gri- tar igual um louco, dizendo que estava vendo os caixões das duas mulheres aqui dentro, e eu olhava e não via nada. Esse homem ficou branco. Saiu cor- rendo e nunca mais voltou aqui” relata Aroldo Palácio, 73. Um crime no XV “Uma família de São Paulo mu- dou para a vila. Uma das filhas do casal sofria de distúrbios mentais. De repente, a menina aparece morta em cima dos trilhos” diz Aroldo Palácio. “Mas uma coisa começou a in- trigar. Como poderia a moça ter sido atropelada e não ter uma gota sequer de sangue no lugar? A família voltou para São Paulo, e todo mundo passou a suspeitar deles. O caso foi engavetado e ficou esquecido no tempo” fala. Causos A venda do XV hoje. No passado, era possível encontrar tudo o que pudesse imaginar Os anos dourados “Todo fim de tarde era gosto- so, quando nossos amigos passavam na venda depois de um dia de traba- lho pesado. Naquela época quase não existia cerveja, porque ninguém tinha geladeira, então todo mundo tomava aquela ‘branquinha’ e ficava contando ‘causos’ encostado no balcão” lembra o pioneiro Aroldo Palácio, 73. Como em todo lugar do Brasil, o futebol era uma das diversões das mais apreciadas.“O povo lotava o campo A decadência do lugar deu-se com a “geada negra” de 1975 que até hoje existe ao lado da igreja. Todos torciam pelo Vera Cruz”, diz o pioneiro Francisco Neto, 62. Comen- ta, ainda, que “a disputa esquentava quando Sarandi e Vera Cruz se en- frentavam”, isso porque a rivalidade já existia fora do campo. O pioneiro Manoel Cardoso explica o motivo. “ A Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná cadastrou Sarandi e Marial- va como cidade, e nós ficamos sem in- vestimentos”.

XV: As lembranças de um lugar esquecido primeiro lugar surgiu a Avenida Colombo, desviando o movimento. O trem parou de transportar passa-geiros. Além disso, o XV não era re- gistrado

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Page 1: XV: As lembranças de um lugar esquecido primeiro lugar surgiu a Avenida Colombo, desviando o movimento. O trem parou de transportar passa-geiros. Além disso, o XV não era re- gistrado

XV: As lembranças de um lugar esquecido

“Quando a gente ia chegando no Km115 o maquinista diminuía a velocidade, e todo mundo pulava do trem em movimento. Se não pulasse ia parar no Sarandi, aí tinha que vol-tar a pé. Algumas vezes, nós se reuní-amos na venda para ouvir os jogos no velho rádio valvulado. Eu nunca me esqueço da final da Copa Centenário de 55 entre ‘Curinthia e Parmeira’, eu comemorei tanto o título do Timão, que cheguei a subir no telhado da venda” (sic).

Alegrias, tristezas e histórias do vilarejo Santa Cruz Km 115 de Sarandi

O ano era 1975, quando um grupo de amigos começa a come-morar. Eles beberam, cantaram, se divertiram e soltaram muitos rojões. Até o maquinista deixou o trem e foi participar da festa. O motivo é que esses amigos haviam feito um bo-lão na loteria esportiva, e acertaram os treze pontos. A grande surpresa foi quando conferiram o valor que cada um receberia. Atualizado, não passaria de R$ 18,00; o que não era suficiente nem para pagar os rojões que haviam soltado na noite ante-rior. Esta é uma das tantas histórias que fazem parte do patrimônio Vera Cruz Km 115.

Situado em Sarandi, foi fun-dado por volta de 1937 por José Amilin. Na época, as cidades eram nomeadas pela quilometragem de Londrina até o local. Marialva era o Km 113, a vila Km115, Sarandi Km 118 e Maringá Km 120. O pioneiro Manoel Pinheiro, religioso que era, decidiu colocar uma grande cruz no vilarejo, e nos finais de semana as pessoas se reuniam no cruzeiro para celebrar a missa. A partir daí, o local passou a ser chamado de Vera Cruz Km 115. Antônio Filho, 86, primeiro farmacêutico de Sarandi, lembra que na época não existia a Avenida Co-lombo, e todo o trânsito era feito por ali. Tudo passava por Vera Cruz.

Milho cozido, pipoca, algodão doce, pé-de-moleque, quentão, pes-caria. Nada faltava nas grandiosas quermesses do Km 115. Nos anos 50 o vilarejo parecia um cenário de no-vela. O pequeno posto de gasolina, a escola, a venda e a igreja de madeira com banquinhos ao redor, onde os ca-sais apaixonados admiravam a beleza da lua. Além disso, tinha um bar, duas máquinas de beneficiar arroz, uma de beneficiar café, e até açougue.

E como todo vilarejo que se pre-ze, não faltavam os grandes bailes no fim de semana. Todos se reuniam na praça da igreja e dançavam animados ao som da sanfona. Durante a noite sob a luz do lampião, as conversas eram colocadas em dia.

Manoel Cardoso, 82

O fim do “Ouro Verde”

“O baile era muito animado, o sanfoneiro fazia o povo mexer o es-queleto. Naquele tempo, a gente junta-va na casa de quem tinha rádio e ficava a noite inteirinha ‘proseano’ e ouvindo os ‘modão’ de viola. Sem contar que naquele tempo o rádio funcionava à pi-lha, ela era muito grande, maior e mais cara do que o próprio rádio. No fute-bol, essa venda era a galeria de troféus do nosso time. Tinha tanto troféu, que alguns já estavam querendo sair pela janela” (sic).

Francisco Neto, 62 Antônio Filho, 86

“O trabalho de parto que eu aju-dei a Dona Sebastiana fazer demorou três dias. Foi o mais comprido que eu já vi na minha vida. Nem dormir direito eu conseguia naquele tempo. O povo me acordava de cinco a seis vezes na noi-te pedindo ajuda. Eu não sou formado, mas nunca deixei de atender ninguém. A matéria-prima para fazer os medica-mentos vinha de São Paulo, eu pegava o meu guia de farmácia e ia montando os medicamentos. Hoje isso é proibido, mas naquela época era a única saída”.

O café era a cultura que mo-vimentava a região. A maioria das pessoas trabalhava nas lavouras e, nos finais de semana era comum ir à vila fazer compras. O destino de Vera Cruz, porém, começa a mudar. Em primeiro lugar surgiu a Avenida Colombo, desviando o movimento. O trem parou de transportar passa-geiros. Além disso, o XV não era re-gistrado como área urbana, e não re-cebia investimentos da Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná. A decadência do lugar deu-se com a geada de 75, que ficou conhecida como “geada negra”. As plantações de café foram destruídas e só resta-

ram dor e sofrimento para aqueles que investiram tudo o que tinham no sonho do “Ouro Verde”. A primeira conseqüência foi o fechamento de uma venda, do único bar e do pos-to de gasolina. Muitos começaram a vender as terras e partiram para a cidade em busca de emprego.

O pioneiro Manoel Cardoso, 82, lembra da geada de 1975 e conta que “muitos homens deitaram ricos e acordaram pobres, vários se sui-cidaram quando viram às lavouras. Alguns chegaram a beber veneno”, relata. Quem ficou, trabalhou por cerca de três anos arrancando os pés-de-café que a geada destruiu.

“O povo fazia o maquinista parar o trem para comprar lingüiça na minha venda. Toda semana eu matava um por-co, e preparava aquela lingüiça purinha e saborosa de lamber os beiços. Um dia as crianças começaram a tirar sarro em um cliente, de repente ele sacou um revólver e disse que queria ver quem ia tirar sarro nele, e começou a atirar. Um tiro passou raspando a orelha de um freguês, felizmente ele era ruim de mira. A polícia veio e levou ele, mas logo soltaram”.

Aroldo Palácio, 73

“Os bailes daquele tempo eram bem diferentes do que a gente vê hoje. Os homens iam de paletó e gravata e todo mundo levava uma arma na cintu-ra. As mulheres usavam aqueles vesti-dos rodados. Oh, tempo bom! O pessoal dançava agarradinho, se o rapaz pedisse para dançar com a moça e ela dissesse não, ela não podia dançar com mais nin-guém a noite toda. O respeito entre as pessoas era bem maior do que hoje. E se alguém desonrasse a família, todo mun-do resolvia na bala” (sic).

José Lázaro, 78

Os Pioneiros

Reportagem:Crisitane BritoDouglas CardosoWilians ZanchimFotografias:José Luiz de Souza

As dificuldades eram grandes. O pioneiro Manoel Cardoso, 82, conta que o trem ia até Apucarana e, o restante do trajeto até a vila era feito na pequena Catita da Viação Garcia.

O trem chegou à região na dé-cada de 50. A linha foi construída pela Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná. A popular Maria Fumaça era guiada por um espanhol chamado Francisco Gimenez. Todos os dias na hora do almoço o trem passava apitando. As pessoas de-sembarcavam da cor do carvão que movimentava as caldeiras.

Com o passar dos anos, o nome da vila mudou. De Vera Cruz Km115, o local passou a ser conhe-cido simplesmente como XV.

As irmãs fantasmaConta-se que um rapaz do bairro

tinha começado um namoro com uma moça muito bonita Passado algum tempo a irmã dela morre, e alguns me-ses depois ela também.

“Um dia esse moço veio aqui na venda. Daqui a pouco ele começa a gri-tar igual um louco, dizendo que estava vendo os caixões das duas mulheres aqui dentro, e eu olhava e não via nada. Esse homem ficou branco. Saiu cor-rendo e nunca mais voltou aqui” relata Aroldo Palácio, 73.

Um crime no XV“Uma família de São Paulo mu-

dou para a vila. Uma das filhas do casal sofria de distúrbios mentais. De repente, a menina aparece morta em cima dos trilhos” diz Aroldo Palácio.

“Mas uma coisa começou a in-trigar. Como poderia a moça ter sido atropelada e não ter uma gota sequer de sangue no lugar? A família voltou para São Paulo, e todo mundo passou a suspeitar deles. O caso foi engavetado e ficou esquecido no tempo” fala.

Causos

A venda do XV hoje. No passado, era possível encontrar tudo o que pudesse imaginar

Os anos dourados

“Todo fim de tarde era gosto-so, quando nossos amigos passavam na venda depois de um dia de traba-lho pesado. Naquela época quase não existia cerveja, porque ninguém tinha geladeira, então todo mundo tomava aquela ‘branquinha’ e ficava contando ‘causos’ encostado no balcão” lembra o pioneiro Aroldo Palácio, 73.

Como em todo lugar do Brasil, o futebol era uma das diversões das mais apreciadas.“O povo lotava o campo

A decadência do lugar deu-se com a “geada negra” de 1975

que até hoje existe ao lado da igreja. Todos torciam pelo Vera Cruz”, diz o pioneiro Francisco Neto, 62. Comen-ta, ainda, que “a disputa esquentava quando Sarandi e Vera Cruz se en-frentavam”, isso porque a rivalidade já existia fora do campo. O pioneiro Manoel Cardoso explica o motivo. “ A Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná cadastrou Sarandi e Marial-va como cidade, e nós ficamos sem in-vestimentos”.