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0 XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI Grupo de Trabalho : GT 28 – Ruralidades: ambiente, processos e atores sociais Título do Trabalho: Trabalho escravo no agronegócio, no Piauí: desafio às políticas públicas de erradicação Autoria: Paula Maria do Nascimento Masulo Acadêmica do Mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Auditora Fiscal do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego – Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Piauí, Bacharel em Direito pela Faculdade CEUT / Teresina e Especialista em Educação em Direitos Humanos (UFPI). E-mail: [email protected] Maria Dione Carvalho de Moraes Socióloga, Professora Associada do Departamento de Ciências Sociais (DCS) da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e dos Programas de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP), em Antropologia e Arqueologia (PPGAArq) e em Sociologia (PPGS), da UFPI E-mail: [email protected]

XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · 2012), em razão de terem sido flagradas mantendo empregados nas atividades econômicas da soja, algodão e carvoaria, em desrespeito

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE

e PRÉ-ALAS BRASIL

04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI

Grupo de Trabalho: GT 28 – Ruralidades: ambiente,

processos e atores sociais

Título do Trabalho:

Trabalho escravo no agronegócio, no Piauí: desafio às políticas públicas de

erradicação

Autoria:

Paula Maria do Nascimento Masulo

Acadêmica do Mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI),

Auditora Fiscal do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego – Superintendência

Regional do Trabalho e Emprego no Piauí, Bacharel em Direito pela Faculdade CEUT /

Teresina e Especialista em Educação em Direitos Humanos (UFPI).

E-mail: [email protected]

Maria Dione Carvalho de Moraes

Socióloga, Professora Associada do Departamento de Ciências Sociais (DCS) da

Universidade Federal do Piauí (UFPI) e dos Programas de Pós-Graduação em Políticas

Públicas (PPGPP), em Antropologia e Arqueologia (PPGAArq) e em Sociologia

(PPGS), da UFPI

E-mail: [email protected]

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1 Introdução

O Estado do Piauí inclui-se entre os grandes produtores de grãos do país,

especialmente a soja, cujo cultivo se surge no estado a partir dos anos 1980. Essa

produção, que segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária –

EMBRAPA (EMBRAPA, 2012), iniciou na safra 1987/88 com 0,2 mil hectares de

área cultivada e 0,2 mil toneladas colhidas, alcançou, na safra 2010/2011, um total

de 378.100 mil hectares cultivados e uma safra de 2.439,0 toneladas. Com isto,

passou a ocupara a 3ª posição dentre os maiores produtores de grãos do Nordeste,

seguindo os Estados da Bahia e Maranhão, que produziram juntos 10.704,6

toneladas de grãos.

Além do grande volume produzido, também a produtividade vem sendo

gradativamente crescente. Conforme EMBRAPA (2012), a soja dos cerrados

piauienses encontra-se entre as mais altas taxas do Brasil, qual seja 3.300kg por

hectare, desde os resultados da safra de 2007/2008 que foram de 3.200kg por

hectare. A modalidade de produção rural do agronegócio no Piauí é publicizada

pelas próprias empresas que anunciam, na imprensa local, a posição que ocupam

na produção de grãos no Estado (JORNAL O DIA, 2010).

Se estas são características do agronegócio – ou seja, da “soma total das

operações de produção e distribuição de suprimentos agrícolas, das operações de

produção nas unidades agrícolas, do armazenamento, processamento e distribuição

dos produtos agrícolas e itens produzidos a partir deles” (DAVIS; GOLDENBERG,

1957 apud CRUVINE; MARTIN NETO, 1999, p.1) – no entanto, este crescimento

econômico, no Estado do Piauí, não corresponde a avanços nas relações de

trabalho assalariado rural nessas atividades. Nelas, encontram-se trabalhadores/as

submetido/as a condições de trabalho análogo ao escravo.

A corroborar essa afirmação, tem-se atualmente dez empresas piauienses

incluídas no Cadastrado de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a

condições de trabalho escravo, a chamada “Lista Suja do Trabalho Escravo” (M.T.E,

2012), em razão de terem sido flagradas mantendo empregados nas atividades

econômicas da soja, algodão e carvoaria, em desrespeito ao previsto nas

legislações trabalhista, de saúde e segurança no trabalho caracterizando ofensa à

dignidade da pessoa humana.

2

A presença de trabalho escravo, sobretudo, nas relações de trabalho rural no

país, levou ao combate a esta forma laboral, na agricultura, envolvendo instituições e

entidades diversas1 as quais conseguiram pautar politicamente o tema de forma que

este encontra-se atualmente com sua compreensão difundida no seio da sociedade

e consolidada nos três poderes do Estado. As primeiras práticas denunciadas por

diversas instituições sociais datam dos anos 1970 (CPT, 2012), e resultaram na

adoção de diversas medidas estatais coibitivas, inclusive, de ações preventivas por

parte de instituições da sociedade civil. No entanto, tais ações são insuficientes,

carecendo-se de outras sustentadas por políticas públicas visando à erradicação

desta prática que persiste no país, e no Estado do Piauí.

Este cenário justifica a proposta do presente trabalho cujo foco são as

relações de trabalho no agronegócio piauiense que, em que pese a utilização de

tecnologias modernas de produção, ainda apresenta, em alguns casos, práticas

degradantes de trabalho ao seu processo de expansão. Assim, há constatação da

existência de trabalho análogo ao escravo em diversas fazendas produtoras de

grãos, em diversos municípios, a partir de 2004, cujos trabalhadores, do sexo

masculino, resgatados, já somam 619 (M.T.E, 2012). Esta realidade é uma flagrante

demonstração de desafio às políticas públicas de erradicação adotadas ao longo de

décadas, pelo Estado Brasileiro.

Esta face (in)visível do agronegócio ocorre em empresas com relações

formais de produção, materializando-se como supressora de direitos humanos e

sociais, como redutora de custos operacionais, e remetendo a relação entre capital

e trabalho a um passado secular, pré-capitalista, quando, segundo Le Goff e Schmitt

(2002, p.564), a riqueza da produção rural provinha da expropriação direta de

trabalhadores pelos “donos do trabalho”.

Uma pergunta nos interpela: na relação atual entre capital e trabalho: como

compreender a presença de situações análogas à de escravidão nas relações de

trabalho, no campo, no capitalismo contemporâneo e no interiro do agronegócio?

Segundo a OIT (2011),

1 São instituições dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e da sociedade civil, dentre as quais cita-se a Comissão Pastoral da Terra, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, dentre outras e organismos internacionais (Organização Internacional do Trabalho – OIT, Organização dos Estados Americanos – OEA).

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Primeiramente, destacam-se os fatores de ordem econômica. Por um lado, estão os trabalhadores rurais que são premidos pelas necessidades de sobrevivência. A maioria deles são homens nordestinos, negros (pretos ou pardos), com baixa escolaridade e sem qualificação profissional. Encontram no trabalho rural temporário a única possibilidade de obter algum rendimento monetário que permita sustentar a família e a eles próprios. Por outro lado, estão os empregadores rurais: homens brancos, procedentes de famílias de proprietários de terra, originários principalmente da Região Sudeste. A maioria com ensino superior completo. As famílias dos empregadores entrevistados ou eles próprios adquiriram terras em decorrência de incentivos fiscais fornecidos pelo governo. A maioria dos empregadores recorre à tecnologia de ponta ou à tecnologia intensiva para melhorar a produtividade de seus empreendimentos (OIT, 2011, p.167).

Daí, a importância de compreender processos de trabalho no meio rural do

agronegócio piauiense, à luz da existência de trabalho escravo em sua cadeia

produtiva. Este é um fato de notório conhecimento público, a partir de notícias

divulgadas pelas mídias, por entidades representativas de trabalhadores (CONTAG,

2012) e da sociedade, por fiscalizações realizadas por instituições governamentais,

bem como por processos judiciais que tramitam na Justiça Federal, relativos a este

afrontamento do ordenamento jurídico e a princípios constitucionais do país.

Distinguimos, em especial, a afronta ao principio da dignidade da pessoa humana de

quem tem no labor a fonte de sua reprodução social.

A realidade dos atores sociais nessas relações de trabalho, no agronegócio

piauiense, precisa não apenas ser denunciada e punida. Ela necessita também de

análises que a coloquem em diálogo com a literatura especializada, objetivando um

aprofundamento da sua compreensão, no interior das mudanças e metamorfoses

ocorridas no mundo do trabalho agrícola contemporâneo.

Para tanto, também se torna necessário compreender a natureza social, em

suas múltiplas dimensões. Do processo de modernização agrícola nos cerrados

piauienses a expansão agrícola, sobretudo, da região sudoeste do estado e suas

consequências para, sobretudo, populações camponesas que vivem um processo

de proletarização, às voltas com a lógicas de um meio ambiente de trabalho

empresarial (MORAES, 2000; REIS, 2010; REIS e MORAES, 2011).

Nesta direção, a partir de pesquisa em curso, no Mestrado de Sociologia da

UFPI, e com base em fontes documentais, este artigo apresenta, para leitura e

debate, uma elaboração inicial da problemática, a partir de elementos de sua história

no Brasil e no Piauí, e de definições jurídicas e conceituais.

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2 Trabalho escravo contemporâneo ou análogo ao trabalho escravo: aspectos históricos, conceituais, jurídicos e políticos

Desde 1888, com o advento da Lei Áurea, acreditava-se que o trabalho

escravo tinha sido abolido de vez no Brasil. Entretanto, em 1971, o Bispo católico

Dom Pedro Casaldáliga, da Prelazia de São Félix do Xingu, no Pará, espanhol

radicado no Brasil desde 1968, denunciou em carta aberta a existência de trabalho

escravo na região amazônica, sendo considerada o documento precursor das

denúncias de trabalho escravo contemporâneo no país (PRELAZIA DO XINGU,

2012).

Àquela época, estava sendo construída a Rodovia Federal BR-230, a

chamada Rodovia Transamazônica, projetada no Governo Emílio Garratazu Médici

(1969-1974), para fazer a ligação rodoviária entre os Estados do Amazonas, Pará,

Tocantins, Maranhão, Piauí, Ceará e Paraíba, sendo considerada a terceira maior

rodovia do Brasil (TRANSPORTES, 2012). Contudo, esta rodovia foi construída com

mão-de-obra migrante, especialmente do Nordeste, em completo isolamento, na

floresta, sem comunicação com o mundo externo, durante meses, tratados como

escravos. Após o término da construção da rodovia, parte desses trabalhadores foi

trabalhar em fazendas agropastoris (PRELAZIA DO XINGU, 2012).

Para Dom Pedro, os pobres ‘peões’ ficavam enforcados2, sempre estavam

devendo. A única saída era a fuga. E a fuga era controlada por pistoleiros e

capangas, que tinham ordem de matar os fugitivos, fato este constatado na “fazenda

Coleapé, que tinha algumas covas com uma só cruz, mas com três corpos dentro”

(REVISTA CAROS AMIGOS, 2001, p.43)3. Corroborando essa realidade nas

2 Ou seja, presos à dívida, pelo sistema de “barracão” bastante utilizado em fazendas, sobretudo, do

Norte do país. Por este sistema, as fazendas realizam a comercialização de suprimentos, por preços aviltados, a trabalhadore/as que assim contraem dívidas com o patrão, a serem pagas com o ganho ao final da safra, da quinzena, do mês. A compra é anotada pelo controlador do “barracão” – local de venda – e nunca pode ser saldada pelo/as trabalhadore/as que sempre encontram-se em débito com o patrão. 3 O sistema de barracão se insere no fenômeno da escravidão por dívida, processo pelo qual as despesas decorrentes da viagem dos trabalhadores -- via de regra, aliciados em locais distantes – são anotadas por aliciadores em um caderno de dívidas. Este “permanece em posse do ‘gato’ ou do gerente da fazenda, sem que os trabalhadores tenham controle ou conhecimento do que está sendo registrado” (AUDI, 2006, p.79). Ali, dívidas da viagem, vestuário, equipamentos para o trabalho (botinas, luvas) e “despesas com os improvisados alojamentos e a precária alimentação fornecida também serão anotados no conhecido ‘caderninho’, a preços muito superiores aos praticados no comércio”; ou seja, já no início do trabalho os cidadãos estão em dívida com o proprietário do negócio (AUDI, 2006, p.79).

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relações de trabalho na região amazônica, Dom Tomás Balduíno, falando sobre sua

experiência pastoral naquela região, enquanto presidente nacional da Comissão

Pastoral da Terra – CPT diz: “ali já comecei a ver a pressão do capital entrando no

campo, na Amazônia os próprios sindicalistas engajados da terra, tem oxigenado

muito os sindicatos de trabalhadores rurais” (REVISTA CAROS AMIGOS, 2005,

p.32).

Esta denúncia, na prática, não provocou medidas coibitivas por parte dos

governos que se seguiram. Em setembro de 1989, os trabalhadores José Pereira

Ferreira, conhecido como Zé Pereira, então com 17 anos, e seu companheiro de

trabalho, apelidado “Paraná”, tentaram fugir da fazenda localizada no município de

Sapucaia, sul do Pará, onde exerciam trabalho forçado vigiados por pistoleiros

armados que impediam a saída de trabalhadores do local. Foram impedidos em

emboscada desses pistoleiros, que mataram “Paraná” com tiros de fuzil, e acertaram

a mão e o rosto de Zé Pereira, que escapou, fingindo-se de morto. Como tal, foi

enrolado em uma lona e abandonado na Rodovia PA-150, juntamente com seu

companheiro de trabalho assassinado. De lá, ele fugiu para pedir ajuda (OIT, 2010).

Tal caso, já sob o advento da Constituição de 1988, teve repercussão

internacional, com denúncias feitas pela CPT, juntamente com o Center for Justice

and International Law – CEJIL e a Human Rights Watch - HRW junto à Comissão

Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, da Organização dos Estados

Americanos – OEA, em 22/02/94: “pela omissão do Estado Brasileiro em cumprir

com suas obrigações de proteção dos direitos humanos, de proteção judicial e de

segurança no trabalho” (OIT, 2010, p.29).

Destacava-se, ali, o direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade

pessoal, à proteção contra detenção arbitrária, além de violação à Convenção

Americana sobre Direitos Humanos, cujos artigos 6, 8 e 25 referem-se à proibição da

escravidão e da servidão.

Essas denúncias, após anos de tramitação junto à sobredita Comissão

restaram nas seguintes sanções ao Estado brasileiro: 1) reconhecimento público da

responsabilidade acerca da violação dos direitos constatada no caso de José

Pereira; 2) medidas financeiras de reparação dos danos sofridos pela vítima; 3)

compromisso de julgamento e punição dos responsáveis individuais; 4) medidas de

prevenção que abarcam modificações legislativas, medidas de fiscalização e

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repressão do trabalho escravo no Brasil, além de medidas de sensibilização e

informação da sociedade acerca do problema.

Em decorrência dessas sanções, em 18/setembro/2003, o governo brasileiro

reconheceu sua responsabilidade para com José Pereira, adotando as seguintes

providências: 1) assinatura de um Acordo de Solução Amistosa com a CIDH, CPT e

CEJIL, esta representando também a HRW; 2) compromisso de continuar os

esforços para o cumprimento dos mandados judiciais de prisão contra os acusados

pelos crimes cometidos contra José Pereira; 3) como medida de reparação, mais de

14 anos após a fuga de José Pereira, foi encaminhado ao Congresso Nacional um

Projeto de Lei que foi aprovado em caráter de urgência, em votação simbólica,

determinando o pagamento de R$ 52 mil à vítima, quantia esta paga em novembro

de 2003; 4) criação da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo –

CONATRAE.

Pode-se afirmar que o caso José Pereira, que culminou em sanção

internacional ao Estado Brasileiro, tornou-se um divisor de águas no combate ao

trabalho escravo no país, cuja visibilidade mostrou a necessidade de articulação

entre as diversas instituições dos poderes e da sociedade na implementação de

ações de alcance nacional.

Tais providências urgiam, porquanto, décadas após a carta-denúncia de Dom

Pedro Casaldáliga, práticas idênticas foram constatadas em vários outros estados, a

partir de denúncias locais, todas com as mesmas feições: a) trabalhadores aliciados

com promessas enganosas feitas pelo intermediários do empregador, os chamados

“gatos; b) endividamento contínuo dos trabalhadores nas fazendas na aquisição de

equipamentos de proteção, moradia, alimentação; c) retenção de salários; d)

privação de liberdade, em total desrespeito ao direito de ir e vir; e) condições

desumanas de alojamento e alimentação; f) jornadas de trabalho abusivas; g)

isolamento geográfico; h) retenção de documentos para evitar fugas e para o não

pagamento de direitos trabalhistas; i) não fornecimento de qualquer meio de

transporte para o deslocamento de trabalhadores; j) violência física e psicológica

(ameaças, torturas, maus tratos e assassinatos (ESCRAVO NEM PENSAR, 2007).

Entretanto, as poucas ações de governo, além de fragmentadas, mostravam-se

aquém da enormidade do problema que o Estado precisava enfrentar.

Consoante a OIT (2007), encontram-se vários relatos semelhantes à situação

acima descrita, tais como: “em fazenda em Paragominas-PA, a policia encontrou os

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materiais utilizados para tortura, como ferros, açoites e correntes de aço, que

também serviam para amarrar os peões à noite para não fugirem” (p.42); “os

trabalhadores eram torturados quando desobedeciam as ordens do patrão e

mortos quando tentavam fugir por pistoleiros auxiliados por cães treinados” (p. 46);

“[...] numa fazenda do Bradesco, o ‘castigo do tronco’ consiste num tronco de

Angelim dentro do qual se colocam restos de comida, atraindo formigas [...] o cara

passa três dias lá amarrado” (p. 47). Ainda:

[...] o trabalhador era espancado, muitas vezes com uma corda encharcada d´água, depois faziam-no equilibrar-se em cima de tábuas na traseira de uma Pick-up, sem ter onde se agarrar, a não ser nos lados da camionete... as vezes duas ou três pessoas eram colocadas assim na traseira da camioneta e o administrador da fazenda dirigia a camioneta, descendo o morro a toda velocidade (OIT, 2007, p.46).

A cena descrita, acima, remete ao ano de 1757, ao personagem Damiens, de

Foucault (1987) que, além de condenado a pedir perdão na porta da igreja de Paris,

depois teve seu corpo supliciado por vários castigos, dentre os quais ser puxado e

desmembrado por cavalos atrelados a carroças em velocidade, ainda vivo, e após,

ser consumido pelo fogo. O espancamento a trabalhadores em propriedade privada

que os mantinha a seu serviço, tornando-se responsável pela integridade física dos

mesmos, retrata uma situação na qual a empresa se autodelega o direito de

submeter trabalhadores à expiação pública, como exemplo, para que outros não

tentassem fugir. O suplicio infligido aos corpos desses trabalhadores está em

paralelo com condenações medievais que, segundo o autor, tinham como objeto de

condenação penal o corpo do condenado.

Na ausência de tomada de consciência da dimensão do problema em solo

brasileiro, eis que o Estado ajustava sua conduta, no caso Zé Pereira, embora a

aceitação da realidade em um caso pontual ocorresse na ausência de legislação

penal definidora desses crimes que apresentavam nova feição para um problema

antigo. Assim, qualquer processo de erradicar o trabalho escravo pela via da

criminalização das condutas caía no vazio. A lei penal vigente fazia a análise dos

casos por comparação, em situação de analogia ao trabalho escravo, daqueles que

“não possuíam um dos bens mais sagrados dos seres humanos, que é a liberdade”

(NUCCI, 2005, p.588).

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O ordenamento jurídico do país inseriu a Lei Áurea, que aboliu a escravidão e

não foi revogada, como referência temporal e extintora dessa modalidade de

trabalho. Para tanto, avocou o entendimento de que o escravo contemporâneo devia

ser compreendido em comparação àquele do Brasil Colônia, no processo de

reconhecimento da existência desse fenômeno social no interior das relações entre

capital e trabalho no meio rural, e suas punições, ficando a Carta Maior do país a

lembrar da urgente necessidade de revisão do Código Penal Brasileiro – CPB no

trato da matéria, em seu Artigo 5º., Inciso XXXIX, que preconiza “não há crime sem

lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (MORAES, 2007,

p.267).

Todavia, a sedimentação das realidades desta prática foi para além da

indignação, e ganhou corpo no seio da sociedade, no maturar próprio dos processos

históricos, pela exigência de mudança na legislação penal, o que veio a ocorrer em

dezembro de 2003, através da Lei 1.803, que alterou o Art..149 do Código Penal,

após quase uma década de impunidade. Essa alteração utiliza a expressão “redução

à condição análoga à de escravo”, acrescentando a taxatividade, não restringindo a

interpretação apenas à mera analogia ao escravismo colonial (NUCCI, 2005, p.589).

A Lei Áurea, que proporcionou noções de igualdade e civilidade às gentes do novel

Brasil do Século XIX, continua a vigir como referência a casos que tiverem analogia

com práticas dispensadas ao labor colonial, lembrando ao moderno capital que o

pacto firmado há mais de um século entre Estado e sociedade civil – não sem

ônus financeiro para o primeiro (FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2003) – trata os donos

da força de trabalho como sujeitos de direito, e que os valores sociais do trabalho

são considerados pétreos para o Brasil do século XXI.

Vale lembrar que, se no plano jurídico, a terminologia adotada “trabalho

análogo ao de escravo”, ecoava na definição legal das realidades das relações entre

capital e trabalho aqui referidas, a mobilização política de diversos atores, no

processo de movimentação de várias instâncias da sociedade civil organizada e de

setores do próprio Estado, assumiam claramente a definição da situação como

“trabalho escravo”. A luta para pautar o reconhecimento da existência de trabalho

escravo na agricultura – e o seu combate – na agenda política brasileira, fez com

que o tema passasse a ser objeto de pesquisas acadêmicas e de reflexões teóricas.

Afinal, vários intelectuais atuavam como militantes ou assessores de organizações

de trabalhadore/as, entidades, instituições. Como pensar o trabalho escravo no

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capitalismo contemporâneo? Como arcaísmo, sobrevivências anacrônicas de um

sistema datado ou como uma faceta do próprio processo de acumulação?

Sem dúvida, a concepção atual distingue-se da forma de conceber o trabalho

escravo praticado na antiguidade ou Brasil-colônia. De fato, escravidão traduzindo

idéia de propriedade, direito de domínio de um ser humano sobre outro não faz parte

do ideário das sociedades modernas. Daí, ser comum em documentos internacionais

sobre o tema a denominação “trabalho forçado, formas contemporâneas análogas à

escravidão” (CASTILHO, 1999, p.83). Assim, o tema se insere no debate político

internacional, sendo discutido em inúmeras conferências e reuniões internacionais,

como: Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em Nova York, e a IV Cúpula

das Américas, em Mar Del Plata, ambas, em 2005. Os Estados participantes

atribuíram ao direito do trabalho um lugar central, reconhecendo o papel essencial

da criação de trabalho decente (OIT, 2006)4.

Por outro lado, existem posicionamentos doutrinariamente opostos à

denominação “trabalho escravo”, por entender que o que existe na

contemporaneidade caracteriza-se como desrespeito a normas trabalhistas como

condições inadequadas de alojamento, e de alimentação, sobretudo quando os

padrões de condições do meio ambiente de trabalho, exigidos pelas normas

trabalhistas, são elevados e irrealistas (REZENDE, 2009).

Mas como lembra Martins (1999), a abolição da escravatura não teve como

decorrência a criação, pelo Estado, de formas legais de regulação das relações de

trabalho no campo. Assim, em que pese a extinção da escravidão legalmente

instituída, não foram contempladas as “formas extralegais de cativeiro” (MARTINS,

1999, p.151), instituídas pelo trato5. Para Forman (1979) tal situação é típica das

relações de patronagem-dependência em cujo âmbito, a sujeição, pela morada,

perdurou por longo tempo. Como referido por Sigaud (1979), ser morador/a significa

estar à disposição do/a proprietário/a de terras, para prestar-lhe serviços. A base

4 Definição de trabalho decente da OIT: “trabalho produtivo e adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, sem quaisquer formas de discriminação, e capaz de garantir uma vida digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho” (OIT, 2006). Em 2011, o governo brasileiro iniciou processo de preparação em todos os estados da federação, para a I Conferência Nacional de Emprego e Trabalho Decente, a ser realizada em 2012. No Piauí foram realizadas conferências micro-regionais e a estadual. 5 Acordo verbal comum, sobretudo no Nordeste e no Norte do Brasil, entre camponese/as e proprietários de terra. Em que pesem os avanços na legislação trabalhista, há presença de relações de trabalho no campo, no Brasil, regidas pelos parâmetros do trato (MARTINS, 2001, 2002). Esta realidade contribui para a presença do trabalho escravo.

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moral deste acordo pode ser compreendida pelo que Menezes (2007) denomina

“reciprocidade vertical”, elemento cultural importante para a compreensão da

permanência da sociedade do trato e da escravidão por dívida a qual, para Martins

(1997) tanto é um engenhoso sucedâneo da escravidão legal, quanto, “no limite,

uma variação extrema do trabalho assalariado” (MARTINS, 1997, p.100).

Assim, teoricamente, pode-se pensar trabalho escravo contemporâneo como

um elemento a mais no processo de acumulação capitalista. No maturar das

discussões e conhecimento da realidade sobre a existência de trabalho escravo no

Brasil, percebeu-se a dimensão dessas práticas consideradas abolidas nas relações

capital/trabalho. Esta percepção redundou em medidas, dentre as quais: 1) no

âmbito do Poder Executivo: a) criação dos Grupos Móveis de Combate ao Trabalho

Escravo, composto por agentes públicos de várias instituições; b) Plano Nacional

para a Erradicação do trabalho Escravo, elaborado sob a coordenação da

CONATRAE, com a participação de várias instituições da sociedade; c) Seguro-

Desemprego para trabalhadores resgatados pelos Grupos Móveis, das propriedades

fiscalizadas; d)Programa Marco Zero de Intermediação Rural de trabalhadores

rurais, pela via do Sistema Nacional de Emprego – SINE; 2) no âmbito do Poder

Legislativo: a)Lei n. 10.803, de 11.12.03, que altera o artigo 149 do Código Penal

Brasileiro; b) Proposta de Emenda Constitucional no 438/201, que trata de

destinação das terras onde for flagrado trabalho escravo; 3) no âmbito do Poder

Judiciário: a) definição da Justiça Federal como competente para processar e julgar

os crimes de trabalho escravo – Julgado no Recurso Extraordinário 398041, em

novembro de 2006.

A partir das situações constatadas, e da referida mobilização social, emerge

o conceito jurídico contemporâneo dessa forma de trabalho, no bojo da Lei n.

10.803/03 (Alteração do Código Penal Brasileiro), a saber:

Art. 149 – Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º. Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

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II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Tal mudança teve por objetivo proteger os trabalhadores que são:

[...] levados a viver em condições semelhantes a dos escravos, de triste memória na nossa história [...], [fato este] comum em fazendas e zonas afastadas dos centros urbanos, onde são submetidos a condições degradantes de sobrevivência e de atividade laborativa (NUCCI, 2005, p.589).

Nesse cenário de adequação, a legislação penal conceitua trabalho análogo

ao escravo como aquele que submete alguém a trabalho forçado ou a jornada

exaustiva, focalizando a sujeição a condições degradantes de trabalho, a restrição,

por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em decorrência de dívidas

advindas da relação de emprego, seja com o empregador ou mesmo o preposto,

acrescentando nesta conceituação o cerceamento do uso de qualquer meio de

transporte, e a existência de vigilância armada no local de trabalho, ou mesmo o

impedimento do trabalhador de dispor livremente de seus documentos pessoais,

bem como a definição de competência constitucional do juízo para processar e

julgar os crimes de trabalho escravo, proporcionou avanços e garantias jurídicas

para as decisões do Poder Judiciário – Justiça Federal, conforme exemplo

(resumido), a saber:

Processo - Recurso em Sentido Estrito n. 0017239-04.2010.4.01.4300/TO – Tribunal Regional Federal da Primeira Região PENAL. CRIME CONTRA A LIBERDADE. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO (ART. 149, CAPUT, DO CP). PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO (ART. 12 DA LEI 10.826/03. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. PARCIAL PROVIMENTO DO RECURSO. (...) 3. Trabalhadores, inclusive adolescentes, submetidos a condições de trabalho degradantes, num cenário humilhante, indigno de um humano livre, havendo não apenas desrespeito a normas de proteção do trabalho, mas desprezo a condições mínimas de saúde, segurança, higiene, respeito e alimentação, além de laborarem sem equipamentos de proteção individual, comprovam a autoria do crime previsto no art. 149, caput, do CP pelo acusado. 4. Materialidade e autoria do crime do art. 149, caput, do CP comprovadas pelos documentos acostados e provas testemunhais produzidas.

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5. Recurso parcialmente provido, para declarar a incompetência da Justiça Federal para o processo e julgamento do crime do art. 12 da lei 10.826/03 e para diminuir a pena do crime do art. 149, caput, do CP. (ACR 2007.39.01.000658-1/PA, Rel. Juiz Tourinho Neto, Conv. Juíza Federal Maria Lúcia Gomes de Sousa (conv.), Terceira Turma, e-DJF1, p.98 de 29/01/2010) Diante dos fatos narrados na denúncia, existem indícios da prática do delito de redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do CP), razão pela qual a rejeição da denúncia, de plano, mostra-se prematura. Com efeito, considerando que a denúncia se apresenta de acordo com os requisitos legais, previstos no art. 41 do CPP,expondo os fatos criminosos com todas as suas circunstâncias, deve ser recebida. Ante o exposto, dou provimento ao recurso em sentido estrito do Ministério Público Federal, para receber a denúncia contra Maria Castro de Sousa Araujo e Santevam Borges dos Santos, determinando-se a remessa dos autos ao juízo de origem para dar prosseguimento ao feito. É como voto.

Na esteira dessas medidas estatais impulsionadas pela sociedade civil,

encontra-se a Proposta de Emenda Constitucional n. 438/2001, que trata da

expropriação de terras onde for flagrado trabalho escravo, que serão posteriormente

destinadas a reforma agrária, cuja aprovação na Câmara dos Deputados, em

segundo turno, ocorreu em 22/05/2012 devendo retornar ao Senado Federal, tendo

em vista que foram feitas alterações no texto original para incluir o trabalho escravo

na zona urbana, posto que vários casos já foram constatados envolvendo

principalmente a presença de migrantes estrangeiros, em situação ilegal no país

(MTE, 2012).

3 Presença do trabalho escravo no agronegócio no Piauí: prolegômenos de uma pesquisa em processo

As primeiras constatações de trabalho escravo no agronegócio, no Piauí,

datam dos anos de 1990. Eram fazendas de cana-de-açúcar6, no município de

União7, em projetos agrícolas financiados com recursos do Pró-Álcool e do Fundo de

Investimentos do Nordeste – FINOR, então administrados pelo Instituto do Açúcar e

do Álcool e pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE

(NOVAES; ALVES, 2003). Tem-se memória das graves violações à legislação

trabalhista e de saúde e segurança no trabalho, conforme relato de Delegado de

Polícia que investigou acidente ocorrido em fazenda no Município de União, em

6 Processo TRT/22ª. No. AP-00249-1994-002-22-00-7. 7 Município situado na Microrregião de Teresina e na Mesorregião Centro-Norte Piauiense.

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julho/1991, envolvendo dois caminhões “gaiolões”8 usados no transporte de cana e,

também, no transporte de trabalhadores. No momento do acidente, transportavam

cerca de 100 bóias-frias, do sexo masculino, sendo que 8 morreram e 43 ficaram

gravemente feridos, inclusive, com perdas de membros inferiores. O processo

judicial diz:

[...] a existência de um cárcere privado, em local com as ‘FEZES DO ALAMBIQUE, APÓS A DESTILAÇÃO’, e diante de tais afirmações fica comprovado de que os trabalhos dos boias-frias são realizados, na verdade, em regime de ‘ESCRAVIDÃO’. Convém salientar que, de acordo com as pessoas ouvidas neste inquérito policial, nenhum dos trabalhadores rurais bóias-frias tinham Carteira de Trabalho assinada, e trabalham pressionados por determinado fiscal daquela empresa que não quer vê-los parados um só momento. Mesmo assim, os salários deles boias-frias não são condizentes, e variam de semana para semana. As jornadas de trabalho são bastante rígidas e são interrompidas apenas no horário do almoço, que é por alguns minutos. Existem muitos menores de quatorze anos efetuando o trabalho de bóias-frias, e obedecem as mesmas jornadas de trabalho dos maiores de idade (Processo 626/1991).

Situação semelhante foi constatada em 2002, pela Fiscalização da SRTE/PI.

Conforme Relatório Fiscal,

[...] foram encontrados 160 trabalhadores de Alagoas, que vieram trabalhar na fazenda, mas que vinte e nove já haviam fugido da empresa, com muito medo devido ao clima de terror que se instalou na fazendo, pois haviam ameaças, inclusive de morte, e que no memento havia vigilância armada, para coibir a fuga dos demais. Quanto a alimentação, além de ser insuficiente, era consumida fria, deteriorada e o preço cobrado pelo fornecedor indicado pela empresa era muito alto, que o fornecimento da água não atendia às necessidades dos trabalhadores, nem em quantidade, nem em qualidade, além do que era fornecida em frascos reaproveitados de refrigerantes, que devido ao forte calor da região, esquentava rapidamente. Que os trabalhadores eram obrigados a trabalhar doentes, sob pena de terem os dias descontados, caso viessem a faltar, e que os salários recebidos não eram condizentes com o prometido.

O grave acidente ocorrido em 1991 ensejou várias ações judiciais, dentre as

quais a Ação Civil Pública – ACP/JCJ.249/94, junto à Justiça do Trabalho/TRT/22ª.,

proposta pelo Ministério Público do Trabalho, que resultou na condenação da

empresa, Ação de Indenização proposta por familiares das vítimas – Processo

626/1991-Poder Judiciário / Tribunal de Justiça/Piauí, como reparação a essa

8 Veículo destinado ao transporte da cana-de-açúcar, dotado de grades altas com largo espaçamento entre uma estrutura e outra, sendo proibido o uso para o transporte de trabalhadores.

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violação de direitos a que eram submetidos os trabalhadores da cana-de-açúcar.

Entretanto, na esfera penal, ainda não havia definições de qual instância da justiça

tinha competência para processar e julgar processos dessa natureza. Este episódio

relacionado ao trabalho escravo local juntou-se a demais casos existentes no país,

compondo um mosaico de violações do trabalho rural à espera das necessárias

ações estatais.

O agronegócio da cana-de-açúcar, no Piauí, embora adotando práticas

trabalhistas abominadas, tornou-se importante para a economia do Estado e

atualmente está inserida na chamada “nova fronteira agrícola”, no estado, e “servirá

como sustentação da produção de combustível renovável, com base na mudança

mundial de preferência pelo biocombustível” (PIAUÍ: A CONSTRUÇÃO DA

PROSPERIDADE, 2003, p.13).

Nas décadas seguintes, a presença de formas aviltantes de trabalho foi

constatada na região piauiense incorporada pelo agronegócio no complexo carnes-

grãos, a região dos cerrados do sudoeste piauienses, produtora de soja e de carvão

vegetal oriundo do desmatamento das áreas para cultivo de grãos. Nas ações fiscais

já foram resgatados pelo M.T.E., via Superintendência Regional do Trabalho e

Emprego – SRTE/PI, no período de 2004/2012, um total de 619 trabalhadores de

propriedades agropecuárias lá estabelecidas (M.T.E, 2012), todos, laborando em

condições análogas ao trabalho escravo, como referido, em empresas inseridas na

“Lista Suja do Trabalho Escravo”.

Mas, além do resgate, faz-se necessário que outras ações sejam levadas a

cabo, de forma articulada entre os vários entes públicos, para que produzam efeitos

de erradicação desta prática degradante que coisifica os sujeitos primeiros do labor

cuja força de trabalho encontra-se a serviço da livre riqueza do capital, no

agronegócio. Seus efeitos negativos revelam-se intrínsecos e extrínsecos, recaindo

sobre trabalhadores e suas famílias, sobre o desenvolvimento do estado e do país,

além de ofender a vida princípios da vida democrática, na contramão da dignidade

e da liberdade, pilares fundamentais dos valores republicanos brasileiros.

A pujança do agronegócio, no Piauí, contempla, atualmente, cerca de 240

empresa instaladas em 18 municípios da região dos cerrados que “a partir de

meados de [19]80, passariam a ser vistos como a nova fronteira para o complexo

carnes/grãos” (MORAES, 2000, p.210). Segundo esta autora, a expansão da

fronteira assentou-se no fato de que “os fatores atraentes de capitais privados foram

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o valor extremamente baixo desembolsado para aquisição de terras” (p. 208). Assim,

soma-se grande quantidade de terras potencialmente produtivas a preços

insignificantes, à presença de mão-de-obra de baixo custo, como atrativo para

empresas agrícolas e investidores individuais locais e, sobretudo, de outros estados,

Esses dois atributos – terras férteis e mão-de-obra barata – transformaram-se em

palavras de ordem no discurso do governo estadual, como vantagens locacionais

para atrair investimento e, ao mesmo tempo, alardear as possibilidades de

crescimento de empregos diretos e indiretos (MORAES, 2000).

Nesta direção, o risco da atividade econômica para pioneiros do agronegócio

foi minimizado por garantias do ente governamental, que apresentou a

vulnerabilidade social dos seus trabalhadores como atrativo para atrair investimentos

privados. Essa empregabilidade, contudo, não aconteceu como esperado,

porquanto, na lógica própria de acumulação, o capital aqui chegou “projetado numa

mão-de-obra qualificada externa à região, cuja contraface era a negação da

potencialidade de um saber local para engendrar esta nova fase do projeto

desenvolvimentista do Estado” (MORAES, 2000, p.211).

Ademais, a empregabilidade no setor é de apenas 3,6 empregados por

estabelecimento (CARTA CEPRO, 2001) e atualmente as empresas continuam

contratando mão-de-obra externa, cabendo as vagas de trabalho local para aquelas

funções ligadas às categorias alcançadas pela Convenção Coletiva de Trabalho

firmada entre os sindicatos patronais, funções estas, inerentes a praticadas por

força-de-trabalho local9.

Como referido, há empresas rurais ligadas ao agronegócio da soja

estabelecidas na região dos cerrados piauienses que estão inseridas no perfil

pesquisado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2011)10. Segundo

essa pesquisa, os empresários definem seus negócios como “uma relação

empresarial. Nós temos a fazenda como um negócio. Ela gera emprego, ela gera

lucro” (OIT, 2011, p.133). Dessas empresas, como já mencionado, onze estão

9 Sobre o uso de mão-de-obra local, nos inícios da incorporação agrícola das chapadas, nos cerrados piauiense, ver Moraes (1999; 2000). 10

Pesquisa realizada nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste do país, que identificou propriedades rurais que desenvolvem atividades de produção agrícola nos complexos cana/álcool e carnes/grãos (soja, algodão e milho), e são identificadas tanto pela gestão tradicional orientada pela informalidade (proprietários individuais), quanto pela gestão moderna com administração empresarial e racional (empresas) (OIT, 2011).

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presentes no Cadastro de Empregadores que adotam práticas escravagistas, a

saber:

CADASTRO DE EMPREGADORES PORTARIA MINISTERIAL Nº 02 DE 12 DE MAIO DE 2011

ATUALIZAÇÃO SEMESTRAL – ÚLTIMA ATUALIZAÇÃO EM 28.06.2012 – PIAUÍ

EMPREGADOR CNPJ/CPF/CEI ESTABELECIMENTO TRAB.RESG.

MÊS/ANO INCLUS.

Airton Rost de Borba 336.451.750-91 Fazenda Borba, zona rural, Monte Alegre

17 Dez/10

Antonio Odalto S R de Castro 142.195493-15 Perímetro Irrigado do Gurguéia / Alv. do Gurguéia

83 Dez/04

Construtora Almeida Souza Ltda 05.325.963/0001-89

Const. Almeida Souza Ltda – Teresina – PI

24 Jul/10

Construtora Lima e Cerávolo Ltda 02.683.698/0001-12

AHE Salto do Rio Verdinho, BR135, zona rural / Corrente

95 Dez/10

Edson Rosa de Oliveira 158.863.938-03 Fazenda Boi Gordo, zona rural, Morro Cabeça no

Tempo – PI

44 Dez/10

Espedito de Bertoldo Galiza 066.925.083-04 Fazenda Rio do Peixe, Povoado Centro do Peixeiro,

zona rural, Alto Alegre do Pindaré – MA

08 Dez/10

Esperança Agropecuária e Indústria Ltda

06.385.934/0008-41

Fazenda Serra Negra, Aroazes

8 Jul/10

Indústria, Comércio e Representação Família Betel Ltda

12.317.202/0001-40

Fazenda Nova Fé, Cajapió, zona rural, Parnaguá

10 Dez/10

Pedro Ilgenfritz 007.355.541-02 Fazenda Alegria, Zona rural, Antônio Almeida

9 Dez/10

Vicente de Paula Costa 265.386.286-72 Fazenda Boqueirão da Tocaia, zona rural / Corrente

5 Jul/11

Wilson Luiz de Melo 711.254.188-34 Fazenda Califórnia, zona rural, Antônio Almeida

8 Jul/11

Fonte: http://portal.mte.gov.br.

4. Considerações finais: desafio às políticas públicas de erradicação do trabalho escravo

Segundo OIT (2005), a erradicação do trabalho escravo no Brasil exige a

adoção de políticas de prevenção nos locais de origem dos trabalhadores libertados,

posto que são “oriundos de municípios muito pobres do Norte e Nordeste, com baixo

índice de Desenvolvimento Humano” (p. 108). Para a OIT, a reforma agrária é

considerada como um dos mais importantes instrumentos de prevenção ao trabalho

escravo, pois é um importante mecanismo de reinserção dos trabalhadores

resgatados à sociedade.

Entretanto, outras medidas já estão implantadas na esfera de penalização aos

empregadores que mantém empregados em condição análoga ao trabalho escravo:

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1) multas administrativas decorrentes dos autos de infração lavrados pela

fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego; 2) inclusão na chamada Lista Suja

do Trabalho Escravo; 3) assinatura de Termos de Ajustes de Condutas perante o

Ministério Público do Trabalho; 4) Ações Judiciais por Dano Moral Coletivo,

propostas pelo Ministério Público do Trabalho, no âmbito da Justiça do Trabalho; 5)

Ações Penais propostas pelo Ministério Público Federal, no âmbito da Justiça

Federal; 6) não concessão de empréstimos bancários, conforme acordado no Pacto

Nacional contra o Trabalho Escravo, do qual a Federação Brasileira de Bancos -

FEBRABAN é signatária

No que diz respeito aos trabalhadores libertados, estes fazem jus ao Seguro-

Desemprego, e podem ser recrutados para contratação pelo Sistema Público de

Emprego, através do Projeto SINE Rural de Intermediação, já implantado nos

Estados do Piauí, Maranhão, Mato Grosso, Pará e Minas Gerais (M.T.E, 2012).

Essas políticas, contudo, ainda não tem sido suficientes para erradicar o

trabalho escravo do agronegócio no Piauí, e do Brasil, cabendo ao Estado e aos

atores sociais envolvidos no processo, permanecerem em constantes buscas de

meios e mecanismos que se revelem eficazes e garantidores da incolumidade da

dignidade de trabalhadores que colocam sua força de trabalho a serviço do capital,

que “é totalmente desprovido de medida e de um quadro de orientação

humanamente significativos, enquanto seu impulso interior pela autoexpansão é a

priori incompatível com os conceitos de controle e limite” (MÉSZÁROS, 1989 apud

ANTUNES, 2010, p.163).

Assim, torna-se imperativo que o trabalho e seus sujeitos sejam respeitados,

que haja “a valorização da atividade sindical e da negociação coletiva e a

responsabilidade empresarial na comunidade e na divulgação de boas práticas no

âmbito das relações de trabalho” (COMPROMISSO NACIONAL PARA

APERFEIÇOAR AS CONDIÇÕES DE TRABALHO NA CANA-DE-AÇÚCAR, 2009,

p.05), cujas responsabilidades incluem zelar pelo cumprimento do principio da

função socioambiental da propriedade rural, “observando as relações de trabalho e

favorecendo o bem-estar próprio, dos trabalhadores e da coletividade, [...] sob pena

de desapropriação por interesse social, nos termos da legislação vigente”

(MORAES, 2011, p.63).

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