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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e
PRÉ-ALAS BRASIL.
04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.
GT10 - Relações de gênero e entre as gerações
Quem deve prover, trabalhar e cuidar? Idosos, famílias e relações entre gerações.
Caroline da Silva Lino
Larissa Marcina Paulo de Paula
Rita de Cássia Alves Pereira
Uilma F. Pereira Sant'anna.
Universidade Católica do Salvador
Quem deve prover, trabalhar e cuidar? Idosos, famílias e relações entregerações.
1. Introdução
Este texto apresenta uma análise dos dados coletados a partir da pesquisa
que tem por tema: “Quem deve prover, trabalhar e cuidar? Idosos, famílias e
relações entre gerações”. Os dados foram levantados a partir de 05
entrevistas realizadas com idosos contactados nos diversos espaços formais
e informais de sociabilidade de idosos na cidade de Salvador. Após a
realização da entrevista, iniciamos o processo de tratamento do material
coletado. Na primeira fase, todas as entrevistas foram transcritas literalmente
para, na seqüência, executarmos a categorização. Nesta segunda fase,
utilizamos 05 categorias: Família; Infância; Trabalho; Aposentadoria/Velhice e
Relações Intergeracionais, no intuito de relacionar os dados dos depoentes
sob a perspectiva das questões mencionadas para contextualização. O
presente trabalho corresponde a uma primeira aproximação em relação a
esse material e tem como objetivo apresentar algumas análises em torno do
mesmo as quais deverão, contudo, ser ampliadas posteriormente.
2. Apresentando os narradores
Entrevistamos cinco pessoas dentre as quais dois homens, Sr. Augusto (77),
Sr. Luiz da Guia (83) e três mulheres, D. Camélia (83), D. Edite (81), D. Waldelice
(91).
Todos os idosos vivem inseridos em redes de parentesco. Apenas o senhor
Augusto vive com a esposa e também com os filhos. Os demais não vivem com os
cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um
filho. Esta vive, então, com a nora e os netos. Dona Carmélia vive com sua neta, o
senhor Luiz mora com um filho e um neto e dona Waldelice reside com uma filha e
netas. Como se pode observar, a maioria das pessoas são viúvas e vivem com seus
parentes.
Sobre a questão da provisão da casa, o senhor Augusto afirma que ele e a
esposa são os provedores, pois os filhos não têm emprego fixo, bem como dona
Carmélia, que também sustenta a neta. No caso do Senhor Luiz, dona Edite e
Waldelice, a despesa é compartilhada.
Com relação ao trabalho que estes idosos exerceram: o senhor Augusto
começou trabalhando na roça, até os 18 anos; depois foi operário da indústria de
tecidos por 17 anos, em seguida trabalhou na fábrica de gases, na fábrica de saco
de fibra (tecido), 12 anos na Fábrica da Boa Viagem, 4 anos como ajudante da
construção civil e 12 anos na hotelaria, como operador de máquina de lavanderia.
Ele relata que trabalhou também no armazém de fumo por aproximadamente 6
anos. Aposentou-se em 87. O senhor Luiz trabalhou com o pai em uma barraca de
verduras, aprendeu o ofício de marceneiro no Liceu, trabalhou na estrada de ferro,
primeiro na metalurgia, depois no almoxarifado e depois de aposentado, trabalhou
como corretor de imóveis por pouco tempo. Dona Edite foi empregada doméstica
durante muitos anos e depois, por intermédio da patroa, foi servente da prefeitura.
Dona Waldelice começou a trabalhar com 15 anos, em indústria de tecido, sendo
auxiliar de escritório e tendo trabalhado por 30 anos. Depois de aposentada,
trabalhou um ano na mesma fábrica, como funcionária do almoxarifado, a pedido do
patrão e uma semana no Hotel São Bento, como caixa, mas não se adaptou. Dona
Carmélia começou ajudando a mãe nas vendas como ambulante. Em seguida,
começou a trabalhar sozinha na mesma atividade e mais tarde como vendedora de
acarajé.
Em relação à aposentadoria, o senhor Augusto aposentou em 87 e desde
então abriu um pequeno comércio em frente a sua casa, onde passa a maior parte
do seu dia. O senhor Luiz se aposentou com aproximadamente 51 anos e depois
trabalhou como corretor de imóveis. Dona Carmélia se aposentou como Ialorixá pela
Federação Culto Afro-Brasileiro, há aproximadamente dez anos, e depois não mais
trabalhou como vendedora, mas continua atuante em suas funções religiosas. Dona
Edite se aposentou com 60 anos, por tempo de serviço e não mais retornou ao
mercado de trabalho. Dona Waldelice, se aposentou em 1972 e trabalhou em um
hotel depois de aposentada.
O senhor Augusto e D. Carmélia declararam ter estudado por pouco tempo, já
D. Waldelice e o Senhor Luiz concluíram o segundo grau, D. Edite é a única sem
escolaridade.
Todos os idosos tiveram mais de cinco filhos, com exceção de D. Edite que
teve um filho, já falecido. Sobre a faixa etária e a profissão dos filhos, o senhor
Augusto teve cinco filhos, sendo que a mais velha tem 47 anos, é casada e tem
duas filhas, não menciona a atividade profissional da mesma que mora com as filhas
e o marido, na Roça da Sabina. Tem um filho de 45 anos, que trabalha como mestre
de obras e mora na entrada da Lapa. Os filhos que convivem com o Sr. Augusto são:
uma mulher de 27 anos que está desempregada no momento e um homem de 41
anos que trabalha como pintor de automóvel e pedreiro, informalmente.
Senhor Luiz teve 09 filhos, sendo cinco homens e quatro mulheres. Em
relação à profissão, ela relata que um é oficial da polícia, está na reserva, trabalha
em Vitória da Conquista e reside em Paripe. Um de seus filhos já é falecido e foi
guarda na penitenciária Lemos de Brito. As filhas são auxiliares de enfermagem e
uma delas irá se aposentar em três anos.
Dona Carmélia teve 09 filhos, sendo que três já são falecidos. Seus filhos
vivos tem idades entre 39 e 63 anos. Em relação à profissão dos filhos, ela relata
que um já está aposentado, os outros trabalham como pintor residencial, mecânico
de automóvel, pescador e a filha trabalha como auxiliar de dentista sendo que
atualmente está desempregada.
Dona Edite teve 01 filho que é já falecido e foi mecânico de automóvel.
Dona Waldelice teve 07 filhos, sendo que 04 já são falecidos. Dos filhos vivos,
ela nos relata que a caçula mora com ela e chegou a fazer faculdade de
biblioteconomia, porém não concluiu. A outra filha também fez faculdade e hoje é
funcionária pública aposentada. O filho serviu ao Exército e hoje é sargento. Dona
Waldelice ressalta que todos os três filhos concluíram o segundo grau e trabalharam.
É importante ressaltar a trajetória da família de origem dos idosos, quem eram
seus pais, em que trabalhavam e porque a família veio para Salvador.
Os pais do senhor Augusto trabalhavam na roça, mas não eram proprietários
das terras. Eles tiveram 14 filhos, sendo que seu senhor Augusto só conheceu 04
irmãos e desses, só ele e um irmão estão vivos. O pai os abandonou muito cedo. O
senhor Augusto nasceu no interior de Cachoeira, em um arraial chamado Boa Vista,
veio morar em Salvador, no bairro Bosque da Barra na casa do irmão que já morava
em Salvador. Sua mãe continuou morando no interior, vindo visitá-lo
esporadicamente.
O senhor Luiz da Guia nasceu em Salvador. Durante sua infância, morou em
alguns bairros da cidade: rua do Bângala (no Centro da Cidade), Ladeira de São
Cristóvão, (Liberdade). Após a morte de sua mãe, mudou-se para o bairro de
Periperi, juntamente com seu pai, irmão e a nova esposa do pai. Seus pais tiveram 9
filhos. Sua mãe era doméstica, e o pai era marceneiro. O senhor Luiz teve 4 irmãos,
dois homens e duas mulheres.
Com relação aos pais de dona Carmélia, o pai abandonou sua mãe cedo,
deixando-os sob a responsabilidade da mesma que os criou sozinha. A mãe era
vendedora ambulante. Casou-se novamente e continuou morando na casa com o
esposo e os filhos. A família era composta por 06 filhos.
Dona Edite relatou ter nascido em Feira de Santana, depois sua família
vendeu a casa onde residiam e foi morar em Salvador no bairro de Águas Claras e
desse local sua família veio morar no bairro de Cajazeira. Depois do falecimento do
seu filho, dona Edite continuou morando com netos e a nora.
Dona Waldelice relatou ter nascido aqui em Salvador na Avenida Luiz
Tarquínio, nas casas da Vila Operária, com os pais e a irmã. O pai era advogado e a
mãe trabalhava na indústria de tecido e mais tarde dona Waldelice também foi
trabalhar na indústria onde a sua mãe trabalhava.
3. Relações intergeracionais
A alteração nos padrões de relacionamento entre as gerações é uma
das mais significativas expressões das transformações nas relações sociais
na contemporaneidade. Quer no âmbito da vida privada ⎯ nas relações entre
pais, filhos e netos no interior da família ⎯, quer na esfera pública, essas
relações trazem as marcas de uma nova configuração sócio-cultural. Isso,
pois têm se modificado muito mais rapidamente as expectativas de uma
geração em relação à outra, em termos de consumo, perspectivas de direitos
e necessidades sociais. Por outro lado, várias gerações estão convivendo e
interagindo por mais tempo na família e espaços públicos, mas sem a
mediação de uma proteção social pública efetiva e do direito ao trabalho,
também num contexto em que as fontes de autoridade social se modificaram.
Nessa sociedade, volta-se a discutir questões sobre o papel de idosos e
jovens em relação a suas obrigações e deveres mútuos (DELGADO, 2009).
Os idosos entrevistados nessa pesquisa vêm experimentando os
processos de mudanças que ocorreram na sociedade brasileira no interior
desse movimento mais amplo de transformações societárias marcado pela
globalização e a reestruturação produtiva. Vivendo hoje nesse contexto de
profundas mudanças sociais, esse velho, com seu olhar retrospectivo, indica
tendências históricas de transformações, registrando esse processo pela
angulação do velho narrador e suas questões específicas: a necessidade de
reconstrução de si e de seu lugar social no presente, a partir dos recursos de
sua cultura; a possibilidade de transmissão de sua experiência. O conjunto
das narrativas permite ver como essas questões aparecem em muitos
momentos e instâncias diferenciados da vida do idoso, sendo vivenciadas
como questões práticas, postas em seu cotidiano: descansar ou trabalhar,
prover ou consumir, cuidar ou divertir-se; expor-se ou recolher-se, e ainda
lidar com a possibilidade de conciliar essas ações. É nesse sentido que, todo
o tempo, as narrativas apontam a incidência de processos contemporâneos de
transformações no universo desse personagem, referentes, sobretudo a
algumas questões: às relações entre as gerações, ao consumo, à esfera dos
direitos, aos espaços da cidade, às novas formas de gestão da velhice e às
mudanças no curso da vida.
Nas narrativas, a expressão dessas questões se dá por meio de
constantes comparações feitas pelos entrevistados. O presente e o passado
são sempre confrontados, numa avaliação sobre vários aspectos da vida.
Nesse sentido, um dos aspectos a que os idosos mais se dedicam é à
rememoração de suas primeiras experiências socializadoras na família.
Nessas lembranças, são evocados os padrões de hierarquia e autoridade
presentes na relação entre pais e filhos no passado.
Minha mãe era muito boa! Mas tudo dela era ali, ó. Era ali... quando
ela falava isso, era isso mesmo. Não tinha esse negócio não. Vocês
só vai ser homem e mulher quando ela morrer enquanto ela tiver com
vida vocês não vão ser homem nem mulher. (…) Minha mãe
trabalhava na rua, mas a gente tinha de respeitar... é, os mais velhos
tomava conta dos mais novo. (...) Ela não agia toda hora, ela
guardava, o saco tá enchendo, quando ela dizia é hoje, a gente podia
fazer de um tudo na vida, ela fica bem do dela, lavando... já pensou?
O pirão na mesa... apanhar com o pirão na mesa, apanhar pra depois
comer, aí é duro, não é menina? Primeiro tomava bolo de palmatória,
depois entrava no cipó. No cipó? Cipó! Agora vá tomar banho frio, vá
agora comer. Como é que come João? (Carmélia)
É, o diretor naquela época do colégio era Dr. Edgar Barros, e eu não
me lembro o nome das professoras, mas o diretor eu me lembro bem
e o secretário que chamava Heráclito. É porque essas pessoas eram
responsáveis pra dar bolo na gente quando a gente errava né?! E
então a gente não esquece nunca né?! Então era uma disciplina
muito rígida, muito rígida mesmo, e não era proibido menino apanhar
naquele tempo, então se a gente não cumprisse esse regulamento,
então tinha que apanhar mesmo. Então como era que nós
apanhávamos, uma tirinha de couro, fazia aquelas solas pra bater na
gente e também o bolo de palmatória...é...quando não era isso tinha o
castigo que era ajoelhado”. (Luiz da Guia)
Os trechos acima trazem algumas questões interessantes. Dona Carmélia
lembra a figura forte da mãe o que é um elemento presente no conjunto das
narrativas, qual seja, a presença das mães na chefia dos domicílios e no cuidado
com os filhos. Mas o que está posto pelos dois narradores e é encontrado nas falas
dos demais é a questão da rígida educação que receberam de pais e professores,
tomada como algo natural, que fazia parte daquele contexto e que foi uma
experiência socializadora importante. Na fala de dona Carmélia, há uma pista
interessante para a compreensão do modo como era construída simbolicamente
essa hierarquia entre mais velhos e mais novos. A idosa menciona que o próprio
amadurecimento dos filhos, sua passagem para a vida adulta, sua independência
estava condicionada à autoridade dos pais, ou seja, tal autoridade sobre as
gerações mais jovens só se desfazia com a morte dos mais velhos. No depoimento
abaixo, de D. Edite mostra que esse modelo recebido dos antepassados, na
verdade, é um valor, um bem que ela se orgulha de ter recebido e transmitido para
os seus próprios filhos, educando-os da mesma forma.
Agora minha vó era sapeca, que era índia, ela era índia, ela gostava
muito de ó: meter a pêa. E a senhora aprendeu com ela, não foi?(risos). Foi, aprendi, ela gostava de meter a pêa, na hora que eu fazia
uma coisa que ela dizia que não era pra eu fazer e eu fazia: pêa
comia! Era, minha vó, nisso acho, eu aprendi, meu filho mesmo
quando começava querer ficar piriguetando pelos lá.... eu: pêia, vai
pra casa! Quando queria fugir da escola, eu ali. Ôxe. (Edite)
Uma questão fundamental quando se abordam as relações entre as gerações
é justamente essa das transmissões intergeracionais. Nesse sentido, as entrevistas
mostram a relação entre duas instâncias centrais que polarizam a vida concreta do
trabalhador, os arranjos familiares e os processos de trabalho, bem como
evidenciam uma questão importante sobre elas: essas instâncias promovem
modalidades de acumulação, conservação e transmissão de bens materiais e
simbólicos, elementos que nos remetem aos processos sociais envolvidos na
formação do habitus dos sujeitos (BOURDIEU, 1996). Ou seja, especificam a
experiência dos indivíduos e grupos quanto à questão da transmissão.
Aprender uma profissão, trabalhar pra se manter né? Porque aí, aí
agora, depois veio essa lei, menino não pode trabalhar, tem hora que
eu escuto aí, tem hora que ah! Menino não pode trabalhar, menino
não pode trabalhar? Quem pode trabalhar é o velho, é? Se o menino
não trabalha é o velho que vai trabalhar? Que já trabalhou tanto? Os
menino é que tem bem que trabalhar pra poder não tá fazendo essas
coisa que tá fazendo aí hoje.
E o que ela fazia, a sua mãe? A minha mãe? Minha mãe vendeu
fato, vendeu, vendeu sarapatel primeiro, depois foi trabalhar no
Retiro, tirava mercadoria, fato, fígado, vendia talhava, acabou de criar
a gente assim. Depois meus irmãos tava já crescido, ia com ela
também trabalhar, todo mundo trabalhou ali. Ah, os irmãos também,
começaram a trabalhar? Tinha de ir para ajudar, não é agora que
ninguém quer fazer nada não. Estudava mas tinha de ir. Trabalhartambém. É, tinha de ajudar ela. (…) Todo mundo ia trabalhar, quem ia
estudar ia estudar, todo mundo trabalhava, até hoje, todos trabalha,
aqui na minha casa todo mundo trabalha, até meus netos, meus
filhos,meus filho, meus sobrinho. Eu vendi acarajé durante trinta ano,
todo mundo trabalhava,aqui comigo, meus filho, meus sobrinhos, todo
mundo trabalhava, aqui é a casa do bom homem, quem não trabalha
não come. Até hoje. Esse nogócio de não que ir ali comprar um pão
pra comer. Se meu neto chegar aqui, eu dizer: Iago, vá ali comprar
um pão, ele vai. Ele tem quatro anos. Tem que saber criar não é
minha filha? Minha mãe trabalhava na rua, mas, agente não saia do
nível, ela ficava na dela. Sabia impor respeito? É. Isso éimportante dona Carmelita? É bom assim. Eu não tenho
arrependimento da minha infância. (Carmélia)
Observa-se como a socialização para o trabalho começa na infância e no
interior da família, de forma naturalizada. O trabalho aparece como o caminho
natural para o jovem pobre, aquele que evita sua entrada em meios “desviantes”,
permitindo fazer a distinção entre os trabalhadores e os vagabundos e malandros
(ZALUAR, 1985). A necessidade de escapar da marginalidade, não só em seus efeitos
práticos, mas simbólicos, passam a conferir à atividade manual um sentido positivo,
sendo esta uma adesão moral que constitui a ética do provedor de família. O
trabalho é diretamente ligado ao “colocar comida na mesa”, elemento definidor do
próprio pertencimento ao grupo familiar. Trata-se aqui, da construção de um
pertencimento de classe.
O senhor Luiz, mesmo sendo aquele que tem maior escolaridade, aponta
algo fundamental para essa discussão. O pertencimento ao universo da classe
trabalhadora é marcado através da distinção não só pela consciência da
necessidade do trabalho, mas pela impossibilidade de acesso a um importante “título
de propriedade simbólica” da sociedade moderna ocidental que é o título escolar
(BOURDIEU, 1996).
A criação era aquele regime, tinha que aprender a ler e uma
profissão, que a formação universitária naquele tempo era difícil pro
pobre, era muito difícil, então a principal meta era o indivíduo ter uma
profissão, e evitar negócio de rua, noite, a noite era pra estudar,
assistir a novela que não tinha, era um rádio de pilha pra quem tinha
dinheiro, quem não tinha... não tinha nada, e então a vida era um
pouco difícil né?! Era trabalhar, trabalhar e trabalhar mesmo (Luiz).
É verdade. Nas droga, agora ali vai morre, vamo matar um ou outro,
olhe tem dia que eu fico aqui, oi eu fico assim, chega eu choro,
sozinha e Deus aqui. De ver, né. Meu Deus tende misericórdia,
dessas criatura, peço a Deus. E como era lá em Feira, esse tempo
que a senhora tava, a senhora e seu filho? Como era as pessoas em
volta, as amizades? Não tinha, não tava assim, esses negoço, não,
tinha muita, o bocado de coisa, mas não tinha essas coisa não, esses
negoço não, dessas droga, não, acabando com tudo assim, que tá, tá
triste. (Edite)
4. Mulheres, trabalho e família
A chefia feminina de grupos domésticos compostos de famílias extensas é
uma realidade demográfica que vem sendo apontada como tendência no Brasil.
Contudo, isso não é um elemento novo como mostram as histórias de algumas
entrevistadas nessa pesquisa, bem como de suas mães, também chefes de família.
A viuvez e o abandono do lar pelo esposo são duas constantes nesse quadro, como
expresso em alguns depoimentos.
No universo de cinco entrevistados, três foram do sexo feminino, sendo que
duas não vivenciaram um relacionamento estável com seus respectivos
companheiros:
Dona Carmélia, e o casamento da senhora, a relação com omarido? Ah, comigo não prestou, caí fora. Me casei, não deu certo,caí fora. Não deu certo ou deu? Eu não fiquei muito tempo não, eugosto é de viver minha vida, eu sempre trabalhei... vou ficar... ficouum pro lado outro pro outro, eu fiquei com meus filhos e pronto. Jámorreu, morreu com trinta e seis ano. Quem não quer o que Deusquer, há de ser o que Deus quiser. Moderno, tinha uma boaaparência, não podia ver mulher, gostava de fumar, gostava de beber.Quando morreu já estava separado. Ah, já estava separado, asenhora ficou pouco tempo casada. Eu tinha minha mãe, graças aDeus, muito boa. Sempre gostei de trabalhar, tinha minhas irmãs quesempre olhava meus filhos, pra uma pessoa mais. E não quis casarde novo? Não, casar pra que menina? Casar é casaca. Não vale apena casar de novo não? Que casar de novo, casar o que, rapaz?Agora eu quero é paz e sossego e prosperidade.
Identificamos no relato de dona Carmélia a exaltação da independência em
relação ao marido e ao casamento o qual associa à falta de paz, sossego e
prosperidade o que pode denotar frustração com a anterior perspectiva de ser “feliz
para sempre”. Ao mesmo tempo, essa independência é sustentada numa outra
relação que a entrevistada sugere, qual seja, a relação com a mãe e as irmãs,
apresentada como fonte de apoio.
Cabe também pontuarmos a ênfase no “gostar” de trabalhar. Para os pobres,
isso representa uma virtude. Nesse caso, o trabalho denota também a possibilidade
de não precisar se sujeitar às condições de conflito no casamento.
Dona Carmélia mostra também que a solidariedade familiar não se deu só no
passado, mas também já em sua velhice.
Meus filhos, meus sobrinho eu perdi uma cunhada, eu cabei de criar dois esou feliz. A senhora acabou de criar dois sobrinhos? É, dois sobrinho.Eu sou feliz, todos os meus sobrinho me respeita, todos me considera,todos os meus sobrinho me considera, todos me tomam a bênção. O que asenhora acha que é mais certo: as pessoas mais novas cuidarem dosmais velhos ou os mais velhos cuidarem dos mais novos? Pra mimtanto faz, depende da natureza da pessoa, tem muito idosos que gosta quedê a mão e em muitos que não gosta. A senhora teme um dia precisar deajuda? Eu sempre acho. Acha o que? Graças a Deus eu sempre acho.Ajuda? Eu já tive doente aqui, tive um acidente comigo, eu tive umasobrinha aqui comigo, achei quem me desse banho, tenho minhas filhas,tem minhas irmãs, tem minhas amigas, se eu precisar eu acho. Quem graçafaz, graça merece, se eu precisar, eu acho. Então a senhora precisou? Já.O que aconteceu com a senhora? Sofri acidente de carro. Fiquei com oolho deformado, ficou assim da cor da sandália dessa menina, botavasangue pela boca e pelo nariz, mas... Ficou mal então? Não fiquei decama, fiquei de cama só por causa da tontice que dava. Precisou de ajuda,então? Precisei, eu precisava tomar um banho, as meninas com medo deeu cair, aí ia comigo, mas graças a Deus sempre teve todo mundo perto demim, meus filhos, meus sobrinhos, meus netos, minhas amigas, tudo rentecomigo. E a senhora já ajudou? Ora, se ajudei! Já ajudei tanta gente...Peço a Deus do que eu já ajudei chegue pra mim de saúde e anos de vida efelicidade. Que nunca me falte em minha mão pra mim, nem pra quemchegue na minha porta e nem também pra quem sempre me ajuda. .
Assim como pode contar com o auxílio da família com a separação conjugal,
os sobrinhos, com o falecimento da cunhada, puderam contar com os cuidados de
dona Carmélia. Identifica-se a relação entre as gerações baseada no apoio mútuo e
na reciprocidade em família. Deste modo, vemos a reciprocidade nas relações
familiares e a reprodução dos valores apreendidos com a família, na medida em que
recebeu o apoio dos familiares quando necessitou, coube a ela reproduzir este ato.
E, ao mesmo tempo, ela interpreta a ajuda que recebeu das filhas, na velhice, como
uma recompensa por já ter ajudado.
O ethos familiar, implicando hierarquia e reciprocidade, configura umareferência fundamental do universo simbólico dos pobres urbanos. Pensame vivem o mundo a partir de regras de reciprocidade. Dentro destapercepção, as regras de obediência definem-se como direitos e deveresrecíprocos, encadeando relações das quais sempre se espera umacontrapartida. (SARTI, 1995, p.140)
Nesta concepção de reciprocidade, um dado central na família de dona
Carmélia é o compartilhamento do trabalho, de uma mesma atividade familiar que
serve para o sustento de todos. Sem dúvida, esse é um elemento que explica as
redes de trocas formadas por esse grupo. Nota-se que um termo central usado no
discurso é “ajuda” para definir, não só a adesão ao trabalho, mas, por meio disso, a
adesão a um grupo familiar. Para dona Carmélia, lembrar isso é uma forma de
perceber-se como parte desse “todo mundo que trabalha”, perceber-se ajudada.
Aqui todo mundo trabalhava, meus filho todo trabalhava, meus filho, meussobrinho, todo mundo me ajudava. E a senhora vendendo acarajé asenhora vestia de baiana? Vestia. Ai, ia meu filho, meu neto meu sobrinho,cada dia da semana ia dois, três comigo para ajudar, todo mundo trabalhavadentro de casa. Tinha assim uma freguesia constante? Gente que asenhora conheceu lá? Minha freguesia era muito boa lá. Era? Eu molhavaum saco de feijão, saco e meio de feijão, quarenta cordas de caranguejo,quarenta, cinqüenta, levava tudo em quantidade. É nessa época que asenhora dizia que carregava peso? Era. E quando não achavacarregador, botava cá fora, a vida é essa, e todo mundo trabalhando aquicomigo, todo mundo. Hoje esse acarajé não é feito assim é? Não, não.Hoje já está vendendo feijão na feira, passado já, e antigamente quempassava era meu filho, moía mesmo, não tinha eletricidade não, passava namão. Isso também é uma diferença grande? Era uma diferença grande,eu tinha um ai que trabalhava a motor, eu peguei e dei pra meu neto, amulher dele vende acarajé em Mata Escura e eu peguei e dei a ele.
Não obstante, dona Carmélia sabe que, hoje, seu papel é fundamental na
manutenção do grupo e compreende que esse papel é um desafio, o desafio da
sobrevivência, expresso na expressão “dar comida.”
É, tanta gente pra dar comida, dez vara de pão de manhã, dez vara detarde, a casa cheia de gente, de neto, é brincadeira? É Deus por mim e meuanjo da guarda, eu que sou a cumeeira da casa.
A entrevistada declara-se como a chefe da família, tanto no aspecto do
sustento, como da moral e da respeitabilidade da família. Assume a função
masculina e feminina da família na perspectiva dos padrões patriarcais. Muitas
mulheres ao assumirem a provisão da casa buscam na rede mais ampla da família
um substituto para a função de chefe da família, no sentido de manter a
respeitabilidade do lar na sua imagem relacionada ao ambiente externo, mesmo
convivendo ainda com o cônjuge. Segundo o modelo tradicional, quando o homem
transgride as regras familiares, não cumprindo com seu papel de provedor, tem sua
moral abalada perante os outros integrantes. Assim, necessita ser substituído por
outro membro.
O fundamento desse lugar masculino está numa representação social degênero, que identifica o homem como a autoridade moral da família peranteo mundo externo.(...) Diante das freqüentes rupturas dos vínculos conjugaise da instabilidade do trabalho que assegura o lugar do provedor, a famíliabusca atualizar os papéis que a estruturam, através da rede familiar maisampla.(SARTI, 2009, p.70)
A família para os pobres caracteriza-se por uma simbologia que está além da
perspectiva apenas material, no que tange o aspecto espiritual a unidade familiar
representa um valor essencial para os seus membros. Esta afirmação pode ser
conferida na fala de dona Carmélia: “Gozar da velhice né, ter meus filhos, meus
netos, meus amigos, meus sobrinhos, minhas amiga, meu povo que gosta de mim, o
resto, eu levo minha vida assim.” A entrevistada, ao pontuar a questão do “gozar da
velhice” faz referência a sua família, ou seja, usufruir desta fase da vida significa ter
a família por perto e saber que existe afetividade dos membros para com ela.
Cabe mencionar Sardenberg (1997), a qual aborda a respeito das mudanças
que vem ocorrendo nas atitudes e comportamentos familiares, no entanto, afirma
que: “há fortes indícios de que a família enquanto valor não perdeu a sua força.
Sarti(1995) ressalta que a família não é apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, o
núcleo de sua sobrevivência material e espiritual, mas constitui um valor
fundamental,(...). Este elo é percebido não somente quando existem laços
consangüíneos, mas pelo afeto e cuidados, transcendendo as mudanças e novos
arranjos familiares.
Ela (referindo à mãe dela) casou pela segunda vez. Ela casou? Casoutinha e bom marido, que ajudou a criar agente, quando ele casou com ela
eu tava com treze ano, meu irmão tava com doze, nos não achamos umpadrasto, achamos um pai. É. Então vocês tiveram a presença de umpai? Não podia ver a gente sentir uma dor de dente, não foi um padrasto foium pai, muito bom mesmo. Que bom! Os netos chamava ele de pai. Vocêsviviam todos juntos? Ele ajudou eu ter a primeira filha, minha mãe aparoue ele me segurou. Era um pai mesmo? Todo mundo chamava ele de pai,os netos chamava ele de pai. Eu sou feliz. (Carmélia)
As novas uniões conjugais podem possibilitar, ao invés de se vivenciar uma
situação de conflito devido à presença de uma nova figura na família, relativizar a
noção de pai e mãe. Aquele que cria, cuida e acolhe se torna sua referência de
família, neste caso, a figura paterna.
A prática de adoções informais e temporárias acaba relativizando as noçõesde pai e mãe, o que implica uma elasticidade no uso dessas categorias. Ascrianças chamam de pai e mãe aqueles que cuidam deles. A pessoa quecuida sente-se no direito legítimo de ser assim chamada e reivindica estanomeação. O avô, quando mora com os filhos de suas filhas solteiras, éinvariavelmente o pai, assim como o marido da mãe pode também assimser chamado, sobretudo quando o genitor (pai biológico) não tem maiscontato sistemático com os filhos.(SARTI, 2009, p.79)
5. Trabalho e aposentadoria
Como já sinalizado, um dos significados mais evidentes acerca do
trabalho, revelado nas narrativas é sua relação com a luta diária pela
sobrevivência e o trabalho como instrumento viabilizador da vida, como indicam
algumas expressões: trabalhar para comer, trabalhar para viver. Segundo
Sarti(1995), o trabalho tem seu valor moral vinculado ao status do trabalho
como “ganha-pão” do grupo doméstico e não à execução da atividade
propriamente dita. Assim, percebemos que o trabalho vincula-se a
necessidade de sobrevivência, não a dignidade da atividade em si, mas por
este possibilitar o provimento cotidiano.
Sobretudo para o homem, existe também no trabalho um sentido de
desafio que acaba por ser um reforço à dignidade do trabalhador masculino
(ZALUAR, 1985).
e...e a vida foi essa, nunca achei moleza na minha vida, como
eu tava dizendo, sempre acordei cedo e continuo acordando
cedo, trabalhei muito tempo de noite (Seu Augusto)
Por outro lado, o mesmo entrevistado explica que, se o trabalho era um
desafio constante, conseguir um emprego era muito mais fácil que hoje.
(Como é que fazia pra conseguir um emprego numa fábricadessa?) É fácil,é fácil era, antigamente emprego era fácil, trabalho e
emprego era fácil, e hoje, hoje praticamente trabalho não existe. Se
você não tiver, como é que se diz? Uma experiência como eles pede,
como eles pede, tudo, qualquer serviço que vá se fazer hoje eles
pede 6 meses de experiência. Se você nunca trabalhou, como é que
pode ter? Eu não sei qual é a mentalidade deles. Pra você ter
experiência das coisas tem que pricipiar fazer, né isso? Pra trabalhar
de servente de pedreiro, de servente de pedreiro, tem experiência na
carteira. Não tem, se eu nunca trabalhei, né? Como é que pode ter
experiência, se você vai trabalhar em fábrica de tecido, que hoje não
tem mais? Antigamente era muita fábrica, tinha fábrica da Boa
Viagem, tinha fábrica da...da Souza Cruz, que era de cigarro, tinha
fábrica da Tranquia, que era de prego, tinha fábrica de chocolate que
era Cruxi, tinha de papel que era no Rio Vermelho, hoje praticamente
não tem fábrica nenhuma aqui, não tem nenhuma... (Augusto)
Ao tratarmos das questões relativas a emprego e aposentadoria, dona
Carmélia, com seu conhecimento adquirido com as experiências de vida, tece um
depoimento contundente sobre o sentido do trabalho, contrapondo o “trabalhar para
rico” e o “trabalhar para mim”, esse último entendido com a possibilidade de “ser
dona de sua pessoa”, de não ter patrão, mesmo que isso implique um grande
esforço e, como no caso dessa aposentada, a não garantia de uma aposentadoria
no futuro.
A senhora nunca pensou em procurar emprego não? Eu nuncative patrão! Meu patrão era Deus e meu anjo da guarda. Que, rapaz!É mole? Você trabalhar pra ganhar cinco mireis, naquele tempo écinco mireis, pra você lavar, cozinhar, encerar, pra fila pra comprarleite pro rico! É mole? Trabalhar pra mim, eu sempre gostei detrabalhar pra mim. Melhor, não é? É, sou dona de minha pessoamesmo. E como é que era o dia a dia do trabalho da senhora?Lavava, botava roupa de molho, esfregava, tirava o sujo, colocava nabacia, quando dava quatro hora da manhã, deixava a roupa no varalestendida.
Cabe salientar que de acordo com o relato da entrevistada, a mesma é
beneficiária da lei que reconhece o ministro de confissão religiosa e o membro de
instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, como segurado
obrigatório da Previdência Social, como contribuinte individual. (Art.9° - Lei N°8.213
de 24/07/91)
A senhora aposentou? Tô aposentada. Quando é que foi? Tempo deserviço mesmo. Então a senhora sempre pagou? Que pagou nada! Peloafro. Como é que é isso? Pela Federação Culto Afro Brasileira. Muitointeressante, então a senhora nunca contribuiu com o INSS? Quecontribuiu, que nada! Como é essa aposentadoria, me conte porque eunão conheço? Eles mesmo que encaminha, eles sabem os anos que agente trabalhou, ele mesmo acerta, encaminha né? Ai pronto, é saláriominha filha. Mas lá onde, a senhora fala? No culto afro brasileiro.
Muitos aposentados, ao invés de aproveitarem o benefício para ter o
descanso merecido depois de tantos anos de trabalho, continuaram trabalhando,
devido ao baixo salário da aposentadoria e a outras motivações. Interessante
identificar nos relatos seguintes que muitos experienciaram esta condição. Os
trechos não deixam clara a motivação para o trabalho após a aposentadoria, mas
esclarecem algo importante nesse universo: os idosos se representam, na velhice,
como trabalhadores, como pessoas que, de alguma forma, continuaram a trabalhar,
ou “fazendo alguma coisa”.
Eu nunca deixei de trabalhar, Quando a senhora parou de trabalhar?Quando eu parei de trabalhar, eu já tava aposentada, Tem uns seis anosque eu deixei de trabalhar, não tem filha? Tem mais ou menos uns dezanos, vendia geladinho em casa, vendia na ponta do beco. Agora que eunão boto mais, que os moleques não deixa. Botava na ponta do beco, osmoleques fumando ali e botava pra vender ali, agora.(Carmélia)
Então, depois que o senhor se aposentou, se aposentou com uns... Aidade, né? Com uma base de 50 pra 51 anos . Bem novo, né? Depois,então a vida mudou? É, eu continuei sempre fazendo alguma coisa, queeu trabalhei nessa empresa, depois dessa empresa eu não trabalhei mais.Não, eu ainda fui corretor de imóveis”. ( Luiz)
E como é que foi a vida aí, depois de aposentado o senhor trabalhouainda, não? Continuo enrolando, assim. Logo o senhor abriu aqui, não?Não eu já, eu já tinha. Ah é o senhor já tinha. Aí continuei enrolando aí, etô até hoje aí. E o que o senhor vende? Eu vendo bobagem aí, queimado,é banana, eu vendo banana, frutas, balinhas. ( Augusto)
De uma maneira geral percebemos nas entrevistas, que nossos idosos têm
consciência das diferenças que existem hoje na nossa sociedade, percebem as
mudanças que ocorreram, em relação às condição de trabalho, mudanças no
contexto social, muitos sabem dos seus direitos, mas também têm consciência que
esses direitos não são respeitados nem pela sociedade civil, nem pelo Estado. O Sr.
Luiz refere-se à precarização do trabalho, fala das dificuldades enfrentadas na época
para acessar ao mercado de trabalho, devido a falta de estudo e formação
profissional. Para ele, naquele tempo, o acesso à escola era mais difícil.
[...] O trabalho naquela época era um trabalho que nós trabalhávamos assimcom areia. Agora tinha o modelador que, por exemplo, uma peça dessa(nesse momento o entrevistado mostra uma peça do ambiente de tamanhomédio e forma ondulada), pra gente fazer na metalurgia, ela tem que ir praseção de modelador, que é um tipo de arte de marcenaria”... “As ferramentassão parecendo um brinquedinho, são todas pequenininhas, tá entendendo?!Agora tem coisas pesadas também que a gente coloca depois que a gentemolda isso na areia, a gente tem que fazer uma espécie de canal, que é apassagem do material depois que ele sai do forno, que sai límpido, pra podera gente introduzir nesse formato da areia e saí a forma. Então, quandodeterminado tempo endurece, a pessoa desmancha aquilo tudo e tira a peça.Aí agora, a depender do tipo da peça ela vai pra seção de torneiro, vai fazer oaperfeiçoamento, ou então o ajustador mecânico pra limar, tudo isso. Então,essa parte da fundição, a gente recebe um calor de até 900 º C, e isso agente não tinha, não tinha óculos, não tinha luva, não tinha nada, tinha nada”.(Luiz da Guia)
“Tinha muito acidente de trabalho na época? Tinha, tinha muito, tinhamuito. Queimava as mãos, queimava o pé, tinha muito”.[...] “Então, aspessoas hoje tem mais condições de arranjar um trabalho melhor e com afacilidade também da, do avanço das escolas técnicas, que naquele tempo,eu me lembro bem, que tinha aquela do Barbalho, curso técnico era aquele,mas hoje a pessoa faz um vestibular e vai opinar pra o curso que ele quer,então tem muita facilidade de ele chegar numa grande empresa e arranjar umtrabalho, embora os salários não sejam muito bom, mas o indivíduo não ficacom tanta dificuldade, como no meu tempo...” (Luiz da Guia)
O capitalismo é um sistema de produção que traz no seu cerne a exclusão
social e a produção e reprodução da pobreza, que é repassado para gerações. O
trabalhador por não possuir os meios de produção é obrigado a vender sua força de
trabalho para o capital, fato que não o isenta de está sujeito as vicissitudes, e a
vulnerabilidade social, imposta tanto ao trabalhador que trabalha no mercado formal
quanto aos que trabalham no mercado informal. Mesmo tendo consciência dessa
exploração, dos baixos salários, os trabalhadores são submetidos ao sistema para
garantir sua sobrevivência, pois é através do trabalho que ele consegue, mesmo de
maneira precária, garantir a mesma, como é o caso de seu Augusto, Sr. Luiz e dona
Edite, que mesmo, vendendo sua força de trabalho não ficou fora da pobreza e da
exclusão social. No caso de Carmélia, seus pais trabalhavam no mercado informal,
ela também trabalhou no mercado informal, como sua mãe, e todos os seus filhos
são trabalhadores autônomos.
Já sim, trabalhava desde criança (Na roça?). Desde a idade de 7
anos meu pai deixou minha mãe e eu tinha...não tinha mais de 7
anos, aí eu peguei comprava banana, comprava banana, vendia
banana, comprava mandioca botava de molho, fazia carimã que hoje,
hoje é...antigamente era massa puba hoje é carimã né? Massa puba,é botava a mandioca de molho né, botava a mandioca de molho
depois passava 6 dias, 7 dias ai tirava, lavava e coisa e tal e vendia
nas padaria, tinha 2 padaria que eu entregava, é aí pegava aquele
trocadozinho, aí criava galinha, criava porco né... Iai ia sobrevivendo
né até... (Agusto).
[...] Eu trabalhei trinta ano vendendo acarajé. Olha só! No Campomar, (Clube
recreativo na orla de Salvador) já ouviu falar no Campomar, eu trabalhei trinta
ano ali. Não era só eu que trabalhava, aqui todo mundo trabalhava, comprava
feijão, comprava quarenta corda de caranguejo, raspava lava de vassoura,
dava murro na cara de Meire,quando... hoje quem vai lavar é você, você lava
melhor que Silvana, você vai e é agora. Nossa! Vá logo...
[...] E a neta que mora com a senhora, como é a convivência com ela?Ela está com que idade mesmo? Quarenta e três. O que ela faz? Ela fez
curso de enfermagem, mas ela ta aqui comigo. Ela não ta trabalhando não?Ela trabalha de manicure. Trabalha de manicure? Não está trabalhandocom enfermagem não? Não.
Uma das queixas observadas por todos os idosos entrevistados é em relação
à aposentadoria, pois, todos fazem referência a perda salarial, e a necessidade de
retorno ao trabalho após aposentadoria, pois, o salário recebido não consegue suprir
as suas necessidades, como fala o texto de Clarice Peixoto ( PEIXOTO, 2004), que
um dos principais motivos do retorno dos trabalhadores ao mercado de trabalho são
os baixos rendimentos salariais que não permitem que os idosos aposentados gozem
plenamente desse privilégio. Seus estudos apontam que o alto índice de
aposentados que recebem pensão muito reduzida é consequência dos baixos níveis
educacional desta população, fato confirmado também na nossa pesquisa, pois,
todos os nossos entrevistados possuem baixo grau de escolaridade e uma, das
entrevistadas a senhora Edite é analfabeta. Vejamos o que diz um dos idosos
entrevistados, Sr. Augusto, em relação à aposentadoria.
Me aposentei em 87 com mais de 35 anos, mais de 35 anos por que..
eu tinha mais de 35 anos mais trabalhei no Armazém de Fumo no
interior, também trabalhei 6 anos de...de 46 até 54 trabalhei no
Armazém de fumo, na cidade de Cachoeira Em Cachoeira? Vim “pra”
aqu i me aposente i em 87, me roubaram meus tempos nè?
(Roubaram?) Roubaram meus tempos, porque eu não conseguir, hoje
eu praticamente podia esta ganhando mais que 1 salário né? Eu corrir
até pra vê se conseguia mais não conseguir nada, hoje eu ganho 1
salário mínimo mal, ganho 1 salário mínimo mal, e aqui tô vivendo,
enrolando aqui nè? Pra sobreviver. Pra sobreviver (È todos osaposentados reclamam dessa perda mesmo nè seu Augusto?). Édizem que vai sair agora mais não tenho esperança não.[...]
6. Considerações finais
Diante das análises realizadas sobre o lugar social e simbólico dos idosos nas
famílias em contexto de pobreza urbana, participantes deste estudo, foi possível
identificar alguns aspectos importantes relativos aos cuidados e deveres mútuos
entre jovens e idosos, bem como às mudanças nas relações intergeracionais na
conjuntura atual, sem uma proteção social pública efetiva. Estas diferentes gerações
estão convivendo e interagindo por mais tempo e coabitando com mais freqüência.
Neste contexto, verifica-se uma diminuição gradativa da ação do Estado nas
manifestações da questão social, expressas na desigualdade social, na
concentração de renda, no aumento do desemprego, na ausência de políticas
públicas de inclusão, especialmente, voltadas à população idosa. Em virtude deste
cenário, as famílias articulam-se em novos arranjos e alternativas de sobrevivência
na perspectiva do apoio mútuo e da solidariedade entre os membros.
Durante a pesquisa, pudemos verificar que, segundo o olhar dos idosos
entrevistados, o âmbito familiar é o lócus onde se dá a socialização de normas e
valores apreendidos desde a infância. A transmissão das experiências vivenciadas
perpetua padrões, como a disciplina e o rigor na educação dos filhos e a valorização
da hierarquia e autoridade nas relações entre as gerações. Nesta perspectiva, a
relação de comparação entre presente e passado é continuamente identificada nos
discursos dos entrevistados.
Ademais, outro aspecto relevante a ser destacado, diz respeito ao trabalho, já
que se trata da realidade vivenciada por trabalhadores aposentados, na qual o
mesmo aparece numa simbologia que está muito além de apenas um meio de
garantia da provisão das necessidades humanas; é tratado com um valor moral,
como um elemento fundamental na constituição da dignidade humana e um
instrumento viabilizador da vida. Deste modo, destaca-se o papel das mulheres na
chefia das famílias de baixa renda, devido à situação de viuvez e abandono dos
cônjuges, vivenciadas pelas idosas entrevistadas, o que retrata nitidamente a
realidade da maioria das famílias de baixa renda, no que diz respeito à condição de
provedoras e mantenedoras do lar.
Com relação à questão da aposentadoria, vimos que estes idosos não gozam
de seu merecido descanso, antes, permanecem na ativa, inseridos no mercado de
trabalho informal, para ajudar a complementar a renda familiar, devido à grande
perda salarial sofrida pelos mesmos, fruto da adoção de uma precária política
previdenciária e a ausência de políticas públicas capazes de atender as
necessidades dos idosos brasileiros.
No tocante à relação com os filhos e netos, percebemos no grupo que elas se
dão de forma mútua. Apesar do papel importante dos idosos como provedores,
percebemos que a presença dos filhos e netos na casa é, para eles, fonte de ajuda,
quer em momentos críticos como nas doenças, quer nas atividades do dia-a-dia.
Contudo, isso não significa que essas trocas sejam necessariamente harmoniosas.
Na verdade, elas são permeadas por negociações de ambas as partes. Os principais
pontos dessa pauta de negociações se encontram em torno da questão do próprio
trabalho dos filhos e de sua permanência na casa paterna/materna o que, para os
idosos, é muito difícil de compreender. A dificuldade para conseguir ou se manter no
emprego, bem como as relações conjugais desfeitas são elementos problemáticos
para os idosos que, contudo, não necessariamente manifestam essa questão para
os filhos, mas na entrevista.
Esses são alguns dados que apontam para tendências importantes nesse
universo social, cujo estudo se faz cada vez mais necessário em função das
mudanças que tem sofrido.
7. Referências:
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PEIXOTO, Clarice Ehlers. Aposentadoria, retorno ao trabalho e solidariedadefamiliar. I n : PEIXOTO, Clarice Ehlers (org.). Família e Envelhecimento. Rio de
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SARTI, Cynthia A. O valor da família para os pobres. In: RIBEIRO, Ivete. (Org.).
Família em Processos Contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira.
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ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1985.