21
XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI. GT10 - Relações de gênero e entre as gerações Quem deve prover, trabalhar e cuidar? Idosos, famílias e relações entre gerações. Caroline da Silva Lino Larissa Marcina Paulo de Paula Rita de Cássia Alves Pereira Uilma F. Pereira Sant'anna. Universidade Católica do Salvador [email protected] [email protected] [email protected] [email protected]

XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e

PRÉ-ALAS BRASIL.

04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.

GT10 - Relações de gênero e entre as gerações

Quem deve prover, trabalhar e cuidar? Idosos, famílias e relações entre gerações.

Caroline da Silva Lino

Larissa Marcina Paulo de Paula

Rita de Cássia Alves Pereira

Uilma F. Pereira Sant'anna.

Universidade Católica do Salvador

[email protected]

[email protected]

[email protected]

[email protected]

Page 2: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Quem deve prover, trabalhar e cuidar? Idosos, famílias e relações entregerações.

1. Introdução

Este texto apresenta uma análise dos dados coletados a partir da pesquisa

que tem por tema: “Quem deve prover, trabalhar e cuidar? Idosos, famílias e

relações entre gerações”. Os dados foram levantados a partir de 05

entrevistas realizadas com idosos contactados nos diversos espaços formais

e informais de sociabilidade de idosos na cidade de Salvador. Após a

realização da entrevista, iniciamos o processo de tratamento do material

coletado. Na primeira fase, todas as entrevistas foram transcritas literalmente

para, na seqüência, executarmos a categorização. Nesta segunda fase,

utilizamos 05 categorias: Família; Infância; Trabalho; Aposentadoria/Velhice e

Relações Intergeracionais, no intuito de relacionar os dados dos depoentes

sob a perspectiva das questões mencionadas para contextualização. O

presente trabalho corresponde a uma primeira aproximação em relação a

esse material e tem como objetivo apresentar algumas análises em torno do

mesmo as quais deverão, contudo, ser ampliadas posteriormente.

2. Apresentando os narradores

Entrevistamos cinco pessoas dentre as quais dois homens, Sr. Augusto (77),

Sr. Luiz da Guia (83) e três mulheres, D. Camélia (83), D. Edite (81), D. Waldelice

(91).

Todos os idosos vivem inseridos em redes de parentesco. Apenas o senhor

Augusto vive com a esposa e também com os filhos. Os demais não vivem com os

cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um

filho. Esta vive, então, com a nora e os netos. Dona Carmélia vive com sua neta, o

senhor Luiz mora com um filho e um neto e dona Waldelice reside com uma filha e

netas. Como se pode observar, a maioria das pessoas são viúvas e vivem com seus

parentes.

Page 3: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Sobre a questão da provisão da casa, o senhor Augusto afirma que ele e a

esposa são os provedores, pois os filhos não têm emprego fixo, bem como dona

Carmélia, que também sustenta a neta. No caso do Senhor Luiz, dona Edite e

Waldelice, a despesa é compartilhada.

Com relação ao trabalho que estes idosos exerceram: o senhor Augusto

começou trabalhando na roça, até os 18 anos; depois foi operário da indústria de

tecidos por 17 anos, em seguida trabalhou na fábrica de gases, na fábrica de saco

de fibra (tecido), 12 anos na Fábrica da Boa Viagem, 4 anos como ajudante da

construção civil e 12 anos na hotelaria, como operador de máquina de lavanderia.

Ele relata que trabalhou também no armazém de fumo por aproximadamente 6

anos. Aposentou-se em 87. O senhor Luiz trabalhou com o pai em uma barraca de

verduras, aprendeu o ofício de marceneiro no Liceu, trabalhou na estrada de ferro,

primeiro na metalurgia, depois no almoxarifado e depois de aposentado, trabalhou

como corretor de imóveis por pouco tempo. Dona Edite foi empregada doméstica

durante muitos anos e depois, por intermédio da patroa, foi servente da prefeitura.

Dona Waldelice começou a trabalhar com 15 anos, em indústria de tecido, sendo

auxiliar de escritório e tendo trabalhado por 30 anos. Depois de aposentada,

trabalhou um ano na mesma fábrica, como funcionária do almoxarifado, a pedido do

patrão e uma semana no Hotel São Bento, como caixa, mas não se adaptou. Dona

Carmélia começou ajudando a mãe nas vendas como ambulante. Em seguida,

começou a trabalhar sozinha na mesma atividade e mais tarde como vendedora de

acarajé.

Em relação à aposentadoria, o senhor Augusto aposentou em 87 e desde

então abriu um pequeno comércio em frente a sua casa, onde passa a maior parte

do seu dia. O senhor Luiz se aposentou com aproximadamente 51 anos e depois

trabalhou como corretor de imóveis. Dona Carmélia se aposentou como Ialorixá pela

Federação Culto Afro-Brasileiro, há aproximadamente dez anos, e depois não mais

trabalhou como vendedora, mas continua atuante em suas funções religiosas. Dona

Edite se aposentou com 60 anos, por tempo de serviço e não mais retornou ao

mercado de trabalho. Dona Waldelice, se aposentou em 1972 e trabalhou em um

hotel depois de aposentada.

Page 4: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

O senhor Augusto e D. Carmélia declararam ter estudado por pouco tempo, já

D. Waldelice e o Senhor Luiz concluíram o segundo grau, D. Edite é a única sem

escolaridade.

Todos os idosos tiveram mais de cinco filhos, com exceção de D. Edite que

teve um filho, já falecido. Sobre a faixa etária e a profissão dos filhos, o senhor

Augusto teve cinco filhos, sendo que a mais velha tem 47 anos, é casada e tem

duas filhas, não menciona a atividade profissional da mesma que mora com as filhas

e o marido, na Roça da Sabina. Tem um filho de 45 anos, que trabalha como mestre

de obras e mora na entrada da Lapa. Os filhos que convivem com o Sr. Augusto são:

uma mulher de 27 anos que está desempregada no momento e um homem de 41

anos que trabalha como pintor de automóvel e pedreiro, informalmente.

Senhor Luiz teve 09 filhos, sendo cinco homens e quatro mulheres. Em

relação à profissão, ela relata que um é oficial da polícia, está na reserva, trabalha

em Vitória da Conquista e reside em Paripe. Um de seus filhos já é falecido e foi

guarda na penitenciária Lemos de Brito. As filhas são auxiliares de enfermagem e

uma delas irá se aposentar em três anos.

Dona Carmélia teve 09 filhos, sendo que três já são falecidos. Seus filhos

vivos tem idades entre 39 e 63 anos. Em relação à profissão dos filhos, ela relata

que um já está aposentado, os outros trabalham como pintor residencial, mecânico

de automóvel, pescador e a filha trabalha como auxiliar de dentista sendo que

atualmente está desempregada.

Dona Edite teve 01 filho que é já falecido e foi mecânico de automóvel.

Dona Waldelice teve 07 filhos, sendo que 04 já são falecidos. Dos filhos vivos,

ela nos relata que a caçula mora com ela e chegou a fazer faculdade de

biblioteconomia, porém não concluiu. A outra filha também fez faculdade e hoje é

funcionária pública aposentada. O filho serviu ao Exército e hoje é sargento. Dona

Waldelice ressalta que todos os três filhos concluíram o segundo grau e trabalharam.

É importante ressaltar a trajetória da família de origem dos idosos, quem eram

seus pais, em que trabalhavam e porque a família veio para Salvador.

Page 5: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Os pais do senhor Augusto trabalhavam na roça, mas não eram proprietários

das terras. Eles tiveram 14 filhos, sendo que seu senhor Augusto só conheceu 04

irmãos e desses, só ele e um irmão estão vivos. O pai os abandonou muito cedo. O

senhor Augusto nasceu no interior de Cachoeira, em um arraial chamado Boa Vista,

veio morar em Salvador, no bairro Bosque da Barra na casa do irmão que já morava

em Salvador. Sua mãe continuou morando no interior, vindo visitá-lo

esporadicamente.

O senhor Luiz da Guia nasceu em Salvador. Durante sua infância, morou em

alguns bairros da cidade: rua do Bângala (no Centro da Cidade), Ladeira de São

Cristóvão, (Liberdade). Após a morte de sua mãe, mudou-se para o bairro de

Periperi, juntamente com seu pai, irmão e a nova esposa do pai. Seus pais tiveram 9

filhos. Sua mãe era doméstica, e o pai era marceneiro. O senhor Luiz teve 4 irmãos,

dois homens e duas mulheres.

Com relação aos pais de dona Carmélia, o pai abandonou sua mãe cedo,

deixando-os sob a responsabilidade da mesma que os criou sozinha. A mãe era

vendedora ambulante. Casou-se novamente e continuou morando na casa com o

esposo e os filhos. A família era composta por 06 filhos.

Dona Edite relatou ter nascido em Feira de Santana, depois sua família

vendeu a casa onde residiam e foi morar em Salvador no bairro de Águas Claras e

desse local sua família veio morar no bairro de Cajazeira. Depois do falecimento do

seu filho, dona Edite continuou morando com netos e a nora.

Dona Waldelice relatou ter nascido aqui em Salvador na Avenida Luiz

Tarquínio, nas casas da Vila Operária, com os pais e a irmã. O pai era advogado e a

mãe trabalhava na indústria de tecido e mais tarde dona Waldelice também foi

trabalhar na indústria onde a sua mãe trabalhava.

3. Relações intergeracionais

A alteração nos padrões de relacionamento entre as gerações é uma

das mais significativas expressões das transformações nas relações sociais

na contemporaneidade. Quer no âmbito da vida privada ⎯ nas relações entre

pais, filhos e netos no interior da família ⎯, quer na esfera pública, essas

Page 6: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

relações trazem as marcas de uma nova configuração sócio-cultural. Isso,

pois têm se modificado muito mais rapidamente as expectativas de uma

geração em relação à outra, em termos de consumo, perspectivas de direitos

e necessidades sociais. Por outro lado, várias gerações estão convivendo e

interagindo por mais tempo na família e espaços públicos, mas sem a

mediação de uma proteção social pública efetiva e do direito ao trabalho,

também num contexto em que as fontes de autoridade social se modificaram.

Nessa sociedade, volta-se a discutir questões sobre o papel de idosos e

jovens em relação a suas obrigações e deveres mútuos (DELGADO, 2009).

Os idosos entrevistados nessa pesquisa vêm experimentando os

processos de mudanças que ocorreram na sociedade brasileira no interior

desse movimento mais amplo de transformações societárias marcado pela

globalização e a reestruturação produtiva. Vivendo hoje nesse contexto de

profundas mudanças sociais, esse velho, com seu olhar retrospectivo, indica

tendências históricas de transformações, registrando esse processo pela

angulação do velho narrador e suas questões específicas: a necessidade de

reconstrução de si e de seu lugar social no presente, a partir dos recursos de

sua cultura; a possibilidade de transmissão de sua experiência. O conjunto

das narrativas permite ver como essas questões aparecem em muitos

momentos e instâncias diferenciados da vida do idoso, sendo vivenciadas

como questões práticas, postas em seu cotidiano: descansar ou trabalhar,

prover ou consumir, cuidar ou divertir-se; expor-se ou recolher-se, e ainda

lidar com a possibilidade de conciliar essas ações. É nesse sentido que, todo

o tempo, as narrativas apontam a incidência de processos contemporâneos de

transformações no universo desse personagem, referentes, sobretudo a

algumas questões: às relações entre as gerações, ao consumo, à esfera dos

direitos, aos espaços da cidade, às novas formas de gestão da velhice e às

mudanças no curso da vida.

Nas narrativas, a expressão dessas questões se dá por meio de

constantes comparações feitas pelos entrevistados. O presente e o passado

são sempre confrontados, numa avaliação sobre vários aspectos da vida.

Nesse sentido, um dos aspectos a que os idosos mais se dedicam é à

rememoração de suas primeiras experiências socializadoras na família.

Page 7: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Nessas lembranças, são evocados os padrões de hierarquia e autoridade

presentes na relação entre pais e filhos no passado.

Minha mãe era muito boa! Mas tudo dela era ali, ó. Era ali... quando

ela falava isso, era isso mesmo. Não tinha esse negócio não. Vocês

só vai ser homem e mulher quando ela morrer enquanto ela tiver com

vida vocês não vão ser homem nem mulher. (…) Minha mãe

trabalhava na rua, mas a gente tinha de respeitar... é, os mais velhos

tomava conta dos mais novo. (...) Ela não agia toda hora, ela

guardava, o saco tá enchendo, quando ela dizia é hoje, a gente podia

fazer de um tudo na vida, ela fica bem do dela, lavando... já pensou?

O pirão na mesa... apanhar com o pirão na mesa, apanhar pra depois

comer, aí é duro, não é menina? Primeiro tomava bolo de palmatória,

depois entrava no cipó. No cipó? Cipó! Agora vá tomar banho frio, vá

agora comer. Como é que come João? (Carmélia)

É, o diretor naquela época do colégio era Dr. Edgar Barros, e eu não

me lembro o nome das professoras, mas o diretor eu me lembro bem

e o secretário que chamava Heráclito. É porque essas pessoas eram

responsáveis pra dar bolo na gente quando a gente errava né?! E

então a gente não esquece nunca né?! Então era uma disciplina

muito rígida, muito rígida mesmo, e não era proibido menino apanhar

naquele tempo, então se a gente não cumprisse esse regulamento,

então tinha que apanhar mesmo. Então como era que nós

apanhávamos, uma tirinha de couro, fazia aquelas solas pra bater na

gente e também o bolo de palmatória...é...quando não era isso tinha o

castigo que era ajoelhado”. (Luiz da Guia)

Os trechos acima trazem algumas questões interessantes. Dona Carmélia

lembra a figura forte da mãe o que é um elemento presente no conjunto das

narrativas, qual seja, a presença das mães na chefia dos domicílios e no cuidado

com os filhos. Mas o que está posto pelos dois narradores e é encontrado nas falas

dos demais é a questão da rígida educação que receberam de pais e professores,

tomada como algo natural, que fazia parte daquele contexto e que foi uma

experiência socializadora importante. Na fala de dona Carmélia, há uma pista

interessante para a compreensão do modo como era construída simbolicamente

essa hierarquia entre mais velhos e mais novos. A idosa menciona que o próprio

amadurecimento dos filhos, sua passagem para a vida adulta, sua independência

Page 8: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

estava condicionada à autoridade dos pais, ou seja, tal autoridade sobre as

gerações mais jovens só se desfazia com a morte dos mais velhos. No depoimento

abaixo, de D. Edite mostra que esse modelo recebido dos antepassados, na

verdade, é um valor, um bem que ela se orgulha de ter recebido e transmitido para

os seus próprios filhos, educando-os da mesma forma.

Agora minha vó era sapeca, que era índia, ela era índia, ela gostava

muito de ó: meter a pêa. E a senhora aprendeu com ela, não foi?(risos). Foi, aprendi, ela gostava de meter a pêa, na hora que eu fazia

uma coisa que ela dizia que não era pra eu fazer e eu fazia: pêa

comia! Era, minha vó, nisso acho, eu aprendi, meu filho mesmo

quando começava querer ficar piriguetando pelos lá.... eu: pêia, vai

pra casa! Quando queria fugir da escola, eu ali. Ôxe. (Edite)

Uma questão fundamental quando se abordam as relações entre as gerações

é justamente essa das transmissões intergeracionais. Nesse sentido, as entrevistas

mostram a relação entre duas instâncias centrais que polarizam a vida concreta do

trabalhador, os arranjos familiares e os processos de trabalho, bem como

evidenciam uma questão importante sobre elas: essas instâncias promovem

modalidades de acumulação, conservação e transmissão de bens materiais e

simbólicos, elementos que nos remetem aos processos sociais envolvidos na

formação do habitus dos sujeitos (BOURDIEU, 1996). Ou seja, especificam a

experiência dos indivíduos e grupos quanto à questão da transmissão.

Aprender uma profissão, trabalhar pra se manter né? Porque aí, aí

agora, depois veio essa lei, menino não pode trabalhar, tem hora que

eu escuto aí, tem hora que ah! Menino não pode trabalhar, menino

não pode trabalhar? Quem pode trabalhar é o velho, é? Se o menino

não trabalha é o velho que vai trabalhar? Que já trabalhou tanto? Os

menino é que tem bem que trabalhar pra poder não tá fazendo essas

coisa que tá fazendo aí hoje.

E o que ela fazia, a sua mãe? A minha mãe? Minha mãe vendeu

fato, vendeu, vendeu sarapatel primeiro, depois foi trabalhar no

Retiro, tirava mercadoria, fato, fígado, vendia talhava, acabou de criar

a gente assim. Depois meus irmãos tava já crescido, ia com ela

também trabalhar, todo mundo trabalhou ali. Ah, os irmãos também,

Page 9: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

começaram a trabalhar? Tinha de ir para ajudar, não é agora que

ninguém quer fazer nada não. Estudava mas tinha de ir. Trabalhartambém. É, tinha de ajudar ela. (…) Todo mundo ia trabalhar, quem ia

estudar ia estudar, todo mundo trabalhava, até hoje, todos trabalha,

aqui na minha casa todo mundo trabalha, até meus netos, meus

filhos,meus filho, meus sobrinho. Eu vendi acarajé durante trinta ano,

todo mundo trabalhava,aqui comigo, meus filho, meus sobrinhos, todo

mundo trabalhava, aqui é a casa do bom homem, quem não trabalha

não come. Até hoje. Esse nogócio de não que ir ali comprar um pão

pra comer. Se meu neto chegar aqui, eu dizer: Iago, vá ali comprar

um pão, ele vai. Ele tem quatro anos. Tem que saber criar não é

minha filha? Minha mãe trabalhava na rua, mas, agente não saia do

nível, ela ficava na dela. Sabia impor respeito? É. Isso éimportante dona Carmelita? É bom assim. Eu não tenho

arrependimento da minha infância. (Carmélia)

Observa-se como a socialização para o trabalho começa na infância e no

interior da família, de forma naturalizada. O trabalho aparece como o caminho

natural para o jovem pobre, aquele que evita sua entrada em meios “desviantes”,

permitindo fazer a distinção entre os trabalhadores e os vagabundos e malandros

(ZALUAR, 1985). A necessidade de escapar da marginalidade, não só em seus efeitos

práticos, mas simbólicos, passam a conferir à atividade manual um sentido positivo,

sendo esta uma adesão moral que constitui a ética do provedor de família. O

trabalho é diretamente ligado ao “colocar comida na mesa”, elemento definidor do

próprio pertencimento ao grupo familiar. Trata-se aqui, da construção de um

pertencimento de classe.

O senhor Luiz, mesmo sendo aquele que tem maior escolaridade, aponta

algo fundamental para essa discussão. O pertencimento ao universo da classe

trabalhadora é marcado através da distinção não só pela consciência da

necessidade do trabalho, mas pela impossibilidade de acesso a um importante “título

de propriedade simbólica” da sociedade moderna ocidental que é o título escolar

(BOURDIEU, 1996).

A criação era aquele regime, tinha que aprender a ler e uma

profissão, que a formação universitária naquele tempo era difícil pro

pobre, era muito difícil, então a principal meta era o indivíduo ter uma

profissão, e evitar negócio de rua, noite, a noite era pra estudar,

Page 10: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

assistir a novela que não tinha, era um rádio de pilha pra quem tinha

dinheiro, quem não tinha... não tinha nada, e então a vida era um

pouco difícil né?! Era trabalhar, trabalhar e trabalhar mesmo (Luiz).

É verdade. Nas droga, agora ali vai morre, vamo matar um ou outro,

olhe tem dia que eu fico aqui, oi eu fico assim, chega eu choro,

sozinha e Deus aqui. De ver, né. Meu Deus tende misericórdia,

dessas criatura, peço a Deus. E como era lá em Feira, esse tempo

que a senhora tava, a senhora e seu filho? Como era as pessoas em

volta, as amizades? Não tinha, não tava assim, esses negoço, não,

tinha muita, o bocado de coisa, mas não tinha essas coisa não, esses

negoço não, dessas droga, não, acabando com tudo assim, que tá, tá

triste. (Edite)

4. Mulheres, trabalho e família

A chefia feminina de grupos domésticos compostos de famílias extensas é

uma realidade demográfica que vem sendo apontada como tendência no Brasil.

Contudo, isso não é um elemento novo como mostram as histórias de algumas

entrevistadas nessa pesquisa, bem como de suas mães, também chefes de família.

A viuvez e o abandono do lar pelo esposo são duas constantes nesse quadro, como

expresso em alguns depoimentos.

No universo de cinco entrevistados, três foram do sexo feminino, sendo que

duas não vivenciaram um relacionamento estável com seus respectivos

companheiros:

Dona Carmélia, e o casamento da senhora, a relação com omarido? Ah, comigo não prestou, caí fora. Me casei, não deu certo,caí fora. Não deu certo ou deu? Eu não fiquei muito tempo não, eugosto é de viver minha vida, eu sempre trabalhei... vou ficar... ficouum pro lado outro pro outro, eu fiquei com meus filhos e pronto. Jámorreu, morreu com trinta e seis ano. Quem não quer o que Deusquer, há de ser o que Deus quiser. Moderno, tinha uma boaaparência, não podia ver mulher, gostava de fumar, gostava de beber.Quando morreu já estava separado. Ah, já estava separado, asenhora ficou pouco tempo casada. Eu tinha minha mãe, graças aDeus, muito boa. Sempre gostei de trabalhar, tinha minhas irmãs quesempre olhava meus filhos, pra uma pessoa mais. E não quis casarde novo? Não, casar pra que menina? Casar é casaca. Não vale apena casar de novo não? Que casar de novo, casar o que, rapaz?Agora eu quero é paz e sossego e prosperidade.

Page 11: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Identificamos no relato de dona Carmélia a exaltação da independência em

relação ao marido e ao casamento o qual associa à falta de paz, sossego e

prosperidade o que pode denotar frustração com a anterior perspectiva de ser “feliz

para sempre”. Ao mesmo tempo, essa independência é sustentada numa outra

relação que a entrevistada sugere, qual seja, a relação com a mãe e as irmãs,

apresentada como fonte de apoio.

Cabe também pontuarmos a ênfase no “gostar” de trabalhar. Para os pobres,

isso representa uma virtude. Nesse caso, o trabalho denota também a possibilidade

de não precisar se sujeitar às condições de conflito no casamento.

Dona Carmélia mostra também que a solidariedade familiar não se deu só no

passado, mas também já em sua velhice.

Meus filhos, meus sobrinho eu perdi uma cunhada, eu cabei de criar dois esou feliz. A senhora acabou de criar dois sobrinhos? É, dois sobrinho.Eu sou feliz, todos os meus sobrinho me respeita, todos me considera,todos os meus sobrinho me considera, todos me tomam a bênção. O que asenhora acha que é mais certo: as pessoas mais novas cuidarem dosmais velhos ou os mais velhos cuidarem dos mais novos? Pra mimtanto faz, depende da natureza da pessoa, tem muito idosos que gosta quedê a mão e em muitos que não gosta. A senhora teme um dia precisar deajuda? Eu sempre acho. Acha o que? Graças a Deus eu sempre acho.Ajuda? Eu já tive doente aqui, tive um acidente comigo, eu tive umasobrinha aqui comigo, achei quem me desse banho, tenho minhas filhas,tem minhas irmãs, tem minhas amigas, se eu precisar eu acho. Quem graçafaz, graça merece, se eu precisar, eu acho. Então a senhora precisou? Já.O que aconteceu com a senhora? Sofri acidente de carro. Fiquei com oolho deformado, ficou assim da cor da sandália dessa menina, botavasangue pela boca e pelo nariz, mas... Ficou mal então? Não fiquei decama, fiquei de cama só por causa da tontice que dava. Precisou de ajuda,então? Precisei, eu precisava tomar um banho, as meninas com medo deeu cair, aí ia comigo, mas graças a Deus sempre teve todo mundo perto demim, meus filhos, meus sobrinhos, meus netos, minhas amigas, tudo rentecomigo. E a senhora já ajudou? Ora, se ajudei! Já ajudei tanta gente...Peço a Deus do que eu já ajudei chegue pra mim de saúde e anos de vida efelicidade. Que nunca me falte em minha mão pra mim, nem pra quemchegue na minha porta e nem também pra quem sempre me ajuda. .

Assim como pode contar com o auxílio da família com a separação conjugal,

os sobrinhos, com o falecimento da cunhada, puderam contar com os cuidados de

dona Carmélia. Identifica-se a relação entre as gerações baseada no apoio mútuo e

na reciprocidade em família. Deste modo, vemos a reciprocidade nas relações

familiares e a reprodução dos valores apreendidos com a família, na medida em que

recebeu o apoio dos familiares quando necessitou, coube a ela reproduzir este ato.

Page 12: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

E, ao mesmo tempo, ela interpreta a ajuda que recebeu das filhas, na velhice, como

uma recompensa por já ter ajudado.

O ethos familiar, implicando hierarquia e reciprocidade, configura umareferência fundamental do universo simbólico dos pobres urbanos. Pensame vivem o mundo a partir de regras de reciprocidade. Dentro destapercepção, as regras de obediência definem-se como direitos e deveresrecíprocos, encadeando relações das quais sempre se espera umacontrapartida. (SARTI, 1995, p.140)

Nesta concepção de reciprocidade, um dado central na família de dona

Carmélia é o compartilhamento do trabalho, de uma mesma atividade familiar que

serve para o sustento de todos. Sem dúvida, esse é um elemento que explica as

redes de trocas formadas por esse grupo. Nota-se que um termo central usado no

discurso é “ajuda” para definir, não só a adesão ao trabalho, mas, por meio disso, a

adesão a um grupo familiar. Para dona Carmélia, lembrar isso é uma forma de

perceber-se como parte desse “todo mundo que trabalha”, perceber-se ajudada.

Aqui todo mundo trabalhava, meus filho todo trabalhava, meus filho, meussobrinho, todo mundo me ajudava. E a senhora vendendo acarajé asenhora vestia de baiana? Vestia. Ai, ia meu filho, meu neto meu sobrinho,cada dia da semana ia dois, três comigo para ajudar, todo mundo trabalhavadentro de casa. Tinha assim uma freguesia constante? Gente que asenhora conheceu lá? Minha freguesia era muito boa lá. Era? Eu molhavaum saco de feijão, saco e meio de feijão, quarenta cordas de caranguejo,quarenta, cinqüenta, levava tudo em quantidade. É nessa época que asenhora dizia que carregava peso? Era. E quando não achavacarregador, botava cá fora, a vida é essa, e todo mundo trabalhando aquicomigo, todo mundo. Hoje esse acarajé não é feito assim é? Não, não.Hoje já está vendendo feijão na feira, passado já, e antigamente quempassava era meu filho, moía mesmo, não tinha eletricidade não, passava namão. Isso também é uma diferença grande? Era uma diferença grande,eu tinha um ai que trabalhava a motor, eu peguei e dei pra meu neto, amulher dele vende acarajé em Mata Escura e eu peguei e dei a ele.

Não obstante, dona Carmélia sabe que, hoje, seu papel é fundamental na

manutenção do grupo e compreende que esse papel é um desafio, o desafio da

sobrevivência, expresso na expressão “dar comida.”

É, tanta gente pra dar comida, dez vara de pão de manhã, dez vara detarde, a casa cheia de gente, de neto, é brincadeira? É Deus por mim e meuanjo da guarda, eu que sou a cumeeira da casa.

Page 13: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

A entrevistada declara-se como a chefe da família, tanto no aspecto do

sustento, como da moral e da respeitabilidade da família. Assume a função

masculina e feminina da família na perspectiva dos padrões patriarcais. Muitas

mulheres ao assumirem a provisão da casa buscam na rede mais ampla da família

um substituto para a função de chefe da família, no sentido de manter a

respeitabilidade do lar na sua imagem relacionada ao ambiente externo, mesmo

convivendo ainda com o cônjuge. Segundo o modelo tradicional, quando o homem

transgride as regras familiares, não cumprindo com seu papel de provedor, tem sua

moral abalada perante os outros integrantes. Assim, necessita ser substituído por

outro membro.

O fundamento desse lugar masculino está numa representação social degênero, que identifica o homem como a autoridade moral da família peranteo mundo externo.(...) Diante das freqüentes rupturas dos vínculos conjugaise da instabilidade do trabalho que assegura o lugar do provedor, a famíliabusca atualizar os papéis que a estruturam, através da rede familiar maisampla.(SARTI, 2009, p.70)

A família para os pobres caracteriza-se por uma simbologia que está além da

perspectiva apenas material, no que tange o aspecto espiritual a unidade familiar

representa um valor essencial para os seus membros. Esta afirmação pode ser

conferida na fala de dona Carmélia: “Gozar da velhice né, ter meus filhos, meus

netos, meus amigos, meus sobrinhos, minhas amiga, meu povo que gosta de mim, o

resto, eu levo minha vida assim.” A entrevistada, ao pontuar a questão do “gozar da

velhice” faz referência a sua família, ou seja, usufruir desta fase da vida significa ter

a família por perto e saber que existe afetividade dos membros para com ela.

Cabe mencionar Sardenberg (1997), a qual aborda a respeito das mudanças

que vem ocorrendo nas atitudes e comportamentos familiares, no entanto, afirma

que: “há fortes indícios de que a família enquanto valor não perdeu a sua força.

Sarti(1995) ressalta que a família não é apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, o

núcleo de sua sobrevivência material e espiritual, mas constitui um valor

fundamental,(...). Este elo é percebido não somente quando existem laços

consangüíneos, mas pelo afeto e cuidados, transcendendo as mudanças e novos

arranjos familiares.

Ela (referindo à mãe dela) casou pela segunda vez. Ela casou? Casoutinha e bom marido, que ajudou a criar agente, quando ele casou com ela

Page 14: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

eu tava com treze ano, meu irmão tava com doze, nos não achamos umpadrasto, achamos um pai. É. Então vocês tiveram a presença de umpai? Não podia ver a gente sentir uma dor de dente, não foi um padrasto foium pai, muito bom mesmo. Que bom! Os netos chamava ele de pai. Vocêsviviam todos juntos? Ele ajudou eu ter a primeira filha, minha mãe aparoue ele me segurou. Era um pai mesmo? Todo mundo chamava ele de pai,os netos chamava ele de pai. Eu sou feliz. (Carmélia)

As novas uniões conjugais podem possibilitar, ao invés de se vivenciar uma

situação de conflito devido à presença de uma nova figura na família, relativizar a

noção de pai e mãe. Aquele que cria, cuida e acolhe se torna sua referência de

família, neste caso, a figura paterna.

A prática de adoções informais e temporárias acaba relativizando as noçõesde pai e mãe, o que implica uma elasticidade no uso dessas categorias. Ascrianças chamam de pai e mãe aqueles que cuidam deles. A pessoa quecuida sente-se no direito legítimo de ser assim chamada e reivindica estanomeação. O avô, quando mora com os filhos de suas filhas solteiras, éinvariavelmente o pai, assim como o marido da mãe pode também assimser chamado, sobretudo quando o genitor (pai biológico) não tem maiscontato sistemático com os filhos.(SARTI, 2009, p.79)

5. Trabalho e aposentadoria

Como já sinalizado, um dos significados mais evidentes acerca do

trabalho, revelado nas narrativas é sua relação com a luta diária pela

sobrevivência e o trabalho como instrumento viabilizador da vida, como indicam

algumas expressões: trabalhar para comer, trabalhar para viver. Segundo

Sarti(1995), o trabalho tem seu valor moral vinculado ao status do trabalho

como “ganha-pão” do grupo doméstico e não à execução da atividade

propriamente dita. Assim, percebemos que o trabalho vincula-se a

necessidade de sobrevivência, não a dignidade da atividade em si, mas por

este possibilitar o provimento cotidiano.

Sobretudo para o homem, existe também no trabalho um sentido de

desafio que acaba por ser um reforço à dignidade do trabalhador masculino

(ZALUAR, 1985).

e...e a vida foi essa, nunca achei moleza na minha vida, como

eu tava dizendo, sempre acordei cedo e continuo acordando

cedo, trabalhei muito tempo de noite (Seu Augusto)

Page 15: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Por outro lado, o mesmo entrevistado explica que, se o trabalho era um

desafio constante, conseguir um emprego era muito mais fácil que hoje.

(Como é que fazia pra conseguir um emprego numa fábricadessa?) É fácil,é fácil era, antigamente emprego era fácil, trabalho e

emprego era fácil, e hoje, hoje praticamente trabalho não existe. Se

você não tiver, como é que se diz? Uma experiência como eles pede,

como eles pede, tudo, qualquer serviço que vá se fazer hoje eles

pede 6 meses de experiência. Se você nunca trabalhou, como é que

pode ter? Eu não sei qual é a mentalidade deles. Pra você ter

experiência das coisas tem que pricipiar fazer, né isso? Pra trabalhar

de servente de pedreiro, de servente de pedreiro, tem experiência na

carteira. Não tem, se eu nunca trabalhei, né? Como é que pode ter

experiência, se você vai trabalhar em fábrica de tecido, que hoje não

tem mais? Antigamente era muita fábrica, tinha fábrica da Boa

Viagem, tinha fábrica da...da Souza Cruz, que era de cigarro, tinha

fábrica da Tranquia, que era de prego, tinha fábrica de chocolate que

era Cruxi, tinha de papel que era no Rio Vermelho, hoje praticamente

não tem fábrica nenhuma aqui, não tem nenhuma... (Augusto)

Ao tratarmos das questões relativas a emprego e aposentadoria, dona

Carmélia, com seu conhecimento adquirido com as experiências de vida, tece um

depoimento contundente sobre o sentido do trabalho, contrapondo o “trabalhar para

rico” e o “trabalhar para mim”, esse último entendido com a possibilidade de “ser

dona de sua pessoa”, de não ter patrão, mesmo que isso implique um grande

esforço e, como no caso dessa aposentada, a não garantia de uma aposentadoria

no futuro.

A senhora nunca pensou em procurar emprego não? Eu nuncative patrão! Meu patrão era Deus e meu anjo da guarda. Que, rapaz!É mole? Você trabalhar pra ganhar cinco mireis, naquele tempo écinco mireis, pra você lavar, cozinhar, encerar, pra fila pra comprarleite pro rico! É mole? Trabalhar pra mim, eu sempre gostei detrabalhar pra mim. Melhor, não é? É, sou dona de minha pessoamesmo. E como é que era o dia a dia do trabalho da senhora?Lavava, botava roupa de molho, esfregava, tirava o sujo, colocava nabacia, quando dava quatro hora da manhã, deixava a roupa no varalestendida.

Cabe salientar que de acordo com o relato da entrevistada, a mesma é

beneficiária da lei que reconhece o ministro de confissão religiosa e o membro de

Page 16: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, como segurado

obrigatório da Previdência Social, como contribuinte individual. (Art.9° - Lei N°8.213

de 24/07/91)

A senhora aposentou? Tô aposentada. Quando é que foi? Tempo deserviço mesmo. Então a senhora sempre pagou? Que pagou nada! Peloafro. Como é que é isso? Pela Federação Culto Afro Brasileira. Muitointeressante, então a senhora nunca contribuiu com o INSS? Quecontribuiu, que nada! Como é essa aposentadoria, me conte porque eunão conheço? Eles mesmo que encaminha, eles sabem os anos que agente trabalhou, ele mesmo acerta, encaminha né? Ai pronto, é saláriominha filha. Mas lá onde, a senhora fala? No culto afro brasileiro.

Muitos aposentados, ao invés de aproveitarem o benefício para ter o

descanso merecido depois de tantos anos de trabalho, continuaram trabalhando,

devido ao baixo salário da aposentadoria e a outras motivações. Interessante

identificar nos relatos seguintes que muitos experienciaram esta condição. Os

trechos não deixam clara a motivação para o trabalho após a aposentadoria, mas

esclarecem algo importante nesse universo: os idosos se representam, na velhice,

como trabalhadores, como pessoas que, de alguma forma, continuaram a trabalhar,

ou “fazendo alguma coisa”.

Eu nunca deixei de trabalhar, Quando a senhora parou de trabalhar?Quando eu parei de trabalhar, eu já tava aposentada, Tem uns seis anosque eu deixei de trabalhar, não tem filha? Tem mais ou menos uns dezanos, vendia geladinho em casa, vendia na ponta do beco. Agora que eunão boto mais, que os moleques não deixa. Botava na ponta do beco, osmoleques fumando ali e botava pra vender ali, agora.(Carmélia)

Então, depois que o senhor se aposentou, se aposentou com uns... Aidade, né? Com uma base de 50 pra 51 anos . Bem novo, né? Depois,então a vida mudou? É, eu continuei sempre fazendo alguma coisa, queeu trabalhei nessa empresa, depois dessa empresa eu não trabalhei mais.Não, eu ainda fui corretor de imóveis”. ( Luiz)

E como é que foi a vida aí, depois de aposentado o senhor trabalhouainda, não? Continuo enrolando, assim. Logo o senhor abriu aqui, não?Não eu já, eu já tinha. Ah é o senhor já tinha. Aí continuei enrolando aí, etô até hoje aí. E o que o senhor vende? Eu vendo bobagem aí, queimado,é banana, eu vendo banana, frutas, balinhas. ( Augusto)

De uma maneira geral percebemos nas entrevistas, que nossos idosos têm

consciência das diferenças que existem hoje na nossa sociedade, percebem as

mudanças que ocorreram, em relação às condição de trabalho, mudanças no

contexto social, muitos sabem dos seus direitos, mas também têm consciência que

Page 17: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

esses direitos não são respeitados nem pela sociedade civil, nem pelo Estado. O Sr.

Luiz refere-se à precarização do trabalho, fala das dificuldades enfrentadas na época

para acessar ao mercado de trabalho, devido a falta de estudo e formação

profissional. Para ele, naquele tempo, o acesso à escola era mais difícil.

[...] O trabalho naquela época era um trabalho que nós trabalhávamos assimcom areia. Agora tinha o modelador que, por exemplo, uma peça dessa(nesse momento o entrevistado mostra uma peça do ambiente de tamanhomédio e forma ondulada), pra gente fazer na metalurgia, ela tem que ir praseção de modelador, que é um tipo de arte de marcenaria”... “As ferramentassão parecendo um brinquedinho, são todas pequenininhas, tá entendendo?!Agora tem coisas pesadas também que a gente coloca depois que a gentemolda isso na areia, a gente tem que fazer uma espécie de canal, que é apassagem do material depois que ele sai do forno, que sai límpido, pra podera gente introduzir nesse formato da areia e saí a forma. Então, quandodeterminado tempo endurece, a pessoa desmancha aquilo tudo e tira a peça.Aí agora, a depender do tipo da peça ela vai pra seção de torneiro, vai fazer oaperfeiçoamento, ou então o ajustador mecânico pra limar, tudo isso. Então,essa parte da fundição, a gente recebe um calor de até 900 º C, e isso agente não tinha, não tinha óculos, não tinha luva, não tinha nada, tinha nada”.(Luiz da Guia)

“Tinha muito acidente de trabalho na época? Tinha, tinha muito, tinhamuito. Queimava as mãos, queimava o pé, tinha muito”.[...] “Então, aspessoas hoje tem mais condições de arranjar um trabalho melhor e com afacilidade também da, do avanço das escolas técnicas, que naquele tempo,eu me lembro bem, que tinha aquela do Barbalho, curso técnico era aquele,mas hoje a pessoa faz um vestibular e vai opinar pra o curso que ele quer,então tem muita facilidade de ele chegar numa grande empresa e arranjar umtrabalho, embora os salários não sejam muito bom, mas o indivíduo não ficacom tanta dificuldade, como no meu tempo...” (Luiz da Guia)

O capitalismo é um sistema de produção que traz no seu cerne a exclusão

social e a produção e reprodução da pobreza, que é repassado para gerações. O

trabalhador por não possuir os meios de produção é obrigado a vender sua força de

trabalho para o capital, fato que não o isenta de está sujeito as vicissitudes, e a

vulnerabilidade social, imposta tanto ao trabalhador que trabalha no mercado formal

quanto aos que trabalham no mercado informal. Mesmo tendo consciência dessa

exploração, dos baixos salários, os trabalhadores são submetidos ao sistema para

garantir sua sobrevivência, pois é através do trabalho que ele consegue, mesmo de

maneira precária, garantir a mesma, como é o caso de seu Augusto, Sr. Luiz e dona

Edite, que mesmo, vendendo sua força de trabalho não ficou fora da pobreza e da

exclusão social. No caso de Carmélia, seus pais trabalhavam no mercado informal,

ela também trabalhou no mercado informal, como sua mãe, e todos os seus filhos

são trabalhadores autônomos.

Page 18: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Já sim, trabalhava desde criança (Na roça?). Desde a idade de 7

anos meu pai deixou minha mãe e eu tinha...não tinha mais de 7

anos, aí eu peguei comprava banana, comprava banana, vendia

banana, comprava mandioca botava de molho, fazia carimã que hoje,

hoje é...antigamente era massa puba hoje é carimã né? Massa puba,é botava a mandioca de molho né, botava a mandioca de molho

depois passava 6 dias, 7 dias ai tirava, lavava e coisa e tal e vendia

nas padaria, tinha 2 padaria que eu entregava, é aí pegava aquele

trocadozinho, aí criava galinha, criava porco né... Iai ia sobrevivendo

né até... (Agusto).

[...] Eu trabalhei trinta ano vendendo acarajé. Olha só! No Campomar, (Clube

recreativo na orla de Salvador) já ouviu falar no Campomar, eu trabalhei trinta

ano ali. Não era só eu que trabalhava, aqui todo mundo trabalhava, comprava

feijão, comprava quarenta corda de caranguejo, raspava lava de vassoura,

dava murro na cara de Meire,quando... hoje quem vai lavar é você, você lava

melhor que Silvana, você vai e é agora. Nossa! Vá logo...

[...] E a neta que mora com a senhora, como é a convivência com ela?Ela está com que idade mesmo? Quarenta e três. O que ela faz? Ela fez

curso de enfermagem, mas ela ta aqui comigo. Ela não ta trabalhando não?Ela trabalha de manicure. Trabalha de manicure? Não está trabalhandocom enfermagem não? Não.

Uma das queixas observadas por todos os idosos entrevistados é em relação

à aposentadoria, pois, todos fazem referência a perda salarial, e a necessidade de

retorno ao trabalho após aposentadoria, pois, o salário recebido não consegue suprir

as suas necessidades, como fala o texto de Clarice Peixoto ( PEIXOTO, 2004), que

um dos principais motivos do retorno dos trabalhadores ao mercado de trabalho são

os baixos rendimentos salariais que não permitem que os idosos aposentados gozem

plenamente desse privilégio. Seus estudos apontam que o alto índice de

aposentados que recebem pensão muito reduzida é consequência dos baixos níveis

educacional desta população, fato confirmado também na nossa pesquisa, pois,

todos os nossos entrevistados possuem baixo grau de escolaridade e uma, das

entrevistadas a senhora Edite é analfabeta. Vejamos o que diz um dos idosos

entrevistados, Sr. Augusto, em relação à aposentadoria.

Page 19: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Me aposentei em 87 com mais de 35 anos, mais de 35 anos por que..

eu tinha mais de 35 anos mais trabalhei no Armazém de Fumo no

interior, também trabalhei 6 anos de...de 46 até 54 trabalhei no

Armazém de fumo, na cidade de Cachoeira Em Cachoeira? Vim “pra”

aqu i me aposente i em 87, me roubaram meus tempos nè?

(Roubaram?) Roubaram meus tempos, porque eu não conseguir, hoje

eu praticamente podia esta ganhando mais que 1 salário né? Eu corrir

até pra vê se conseguia mais não conseguir nada, hoje eu ganho 1

salário mínimo mal, ganho 1 salário mínimo mal, e aqui tô vivendo,

enrolando aqui nè? Pra sobreviver. Pra sobreviver (È todos osaposentados reclamam dessa perda mesmo nè seu Augusto?). Édizem que vai sair agora mais não tenho esperança não.[...]

6. Considerações finais

Diante das análises realizadas sobre o lugar social e simbólico dos idosos nas

famílias em contexto de pobreza urbana, participantes deste estudo, foi possível

identificar alguns aspectos importantes relativos aos cuidados e deveres mútuos

entre jovens e idosos, bem como às mudanças nas relações intergeracionais na

conjuntura atual, sem uma proteção social pública efetiva. Estas diferentes gerações

estão convivendo e interagindo por mais tempo e coabitando com mais freqüência.

Neste contexto, verifica-se uma diminuição gradativa da ação do Estado nas

manifestações da questão social, expressas na desigualdade social, na

concentração de renda, no aumento do desemprego, na ausência de políticas

públicas de inclusão, especialmente, voltadas à população idosa. Em virtude deste

cenário, as famílias articulam-se em novos arranjos e alternativas de sobrevivência

na perspectiva do apoio mútuo e da solidariedade entre os membros.

Durante a pesquisa, pudemos verificar que, segundo o olhar dos idosos

entrevistados, o âmbito familiar é o lócus onde se dá a socialização de normas e

valores apreendidos desde a infância. A transmissão das experiências vivenciadas

perpetua padrões, como a disciplina e o rigor na educação dos filhos e a valorização

da hierarquia e autoridade nas relações entre as gerações. Nesta perspectiva, a

relação de comparação entre presente e passado é continuamente identificada nos

discursos dos entrevistados.

Page 20: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

Ademais, outro aspecto relevante a ser destacado, diz respeito ao trabalho, já

que se trata da realidade vivenciada por trabalhadores aposentados, na qual o

mesmo aparece numa simbologia que está muito além de apenas um meio de

garantia da provisão das necessidades humanas; é tratado com um valor moral,

como um elemento fundamental na constituição da dignidade humana e um

instrumento viabilizador da vida. Deste modo, destaca-se o papel das mulheres na

chefia das famílias de baixa renda, devido à situação de viuvez e abandono dos

cônjuges, vivenciadas pelas idosas entrevistadas, o que retrata nitidamente a

realidade da maioria das famílias de baixa renda, no que diz respeito à condição de

provedoras e mantenedoras do lar.

Com relação à questão da aposentadoria, vimos que estes idosos não gozam

de seu merecido descanso, antes, permanecem na ativa, inseridos no mercado de

trabalho informal, para ajudar a complementar a renda familiar, devido à grande

perda salarial sofrida pelos mesmos, fruto da adoção de uma precária política

previdenciária e a ausência de políticas públicas capazes de atender as

necessidades dos idosos brasileiros.

No tocante à relação com os filhos e netos, percebemos no grupo que elas se

dão de forma mútua. Apesar do papel importante dos idosos como provedores,

percebemos que a presença dos filhos e netos na casa é, para eles, fonte de ajuda,

quer em momentos críticos como nas doenças, quer nas atividades do dia-a-dia.

Contudo, isso não significa que essas trocas sejam necessariamente harmoniosas.

Na verdade, elas são permeadas por negociações de ambas as partes. Os principais

pontos dessa pauta de negociações se encontram em torno da questão do próprio

trabalho dos filhos e de sua permanência na casa paterna/materna o que, para os

idosos, é muito difícil de compreender. A dificuldade para conseguir ou se manter no

emprego, bem como as relações conjugais desfeitas são elementos problemáticos

para os idosos que, contudo, não necessariamente manifestam essa questão para

os filhos, mas na entrevista.

Esses são alguns dados que apontam para tendências importantes nesse

universo social, cujo estudo se faz cada vez mais necessário em função das

mudanças que tem sofrido.

Page 21: XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E … · cônjuges, sendo viúvos, exceto dona Edite que não se casou, embora tenha um filho. Esta vive, então, com a nora e os netos

7. Referências:

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas : sobre a teoria da ação. Campinas :

Papirus, 1996.

DELGADO, Josimara. Trabalho, memória e família; reflexões sobre mudança econtemporaneidade. Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares. Ano 11, nº

2. Rio de Janeiro: Contra Capa/UERJ, 2009.

MOTTA, Alda Britto da. Sociabilidades possíveis: idosos e tempo geracional . In:

PEIXOTO, Clarice Ehlers (org.). Família e Envelhecimento. Rio de Janeiro: Editora

FGV, 2004.

NEVES, Delma Pessanha. As idosas provedoras e o enraizamento familiar. In:

FONSECA, Cláudia e BRITES, Jurema (orgs). Etnografias da participação. Santa

Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.

PEIXOTO, Clarice Ehlers. Aposentadoria, retorno ao trabalho e solidariedadefamiliar. I n : PEIXOTO, Clarice Ehlers (org.). Família e Envelhecimento. Rio de

Janeiro: Editora FGV, 2004.

SARTI, Cynthia A. O valor da família para os pobres. In: RIBEIRO, Ivete. (Org.).

Família em Processos Contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira.

São Paulo: Loyola, 1995.

ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1985.