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XVI CONGRESSO INTERNACIONAL FOMERCO INTEGRAÇÃO REGIONAL EM TEMPOS DE CRISE: DESAFIOS POLÍTICOS E DILEMAS TEÓRICOS 27 a 29 de setembro de 2017 Geoestratégia e Cooperação: a trajetória da Integração Nuclear na América Latina. Ana Emília Ataíde* Resumo Este artigo pretende abarcar a trajetória da integração nuclear na América Latina, enfatizando as estratégias realizadas pela diplomacia militar do Brasil e da Argentina, com a finalidade de estabelecer uma política de cooperação em detrimento da política de rivalidade que antevia suas relações; desenvolver o setor nuclear de ambos estados; e, sobretudo, garantir a segurança na região, através da criação de uma agência binacional de salvaguardas. Não obstante, quer retratar as relações entre os governos brasileiros e os argentinos desde a segunda metade do século XX até os dias atuais, destacando três momentos históricos: a transição da política externa competitiva para uma política de cooperação de não-proliferação nuclear; a formação da ABACC (Agência Binacional de Controle de Materiais Nucleares), representando o resultado da cooperação bilateral e, da geoestratégica das diplomacias militares de estados latino-americanos; e, por fim, a consolidação do Acordo Quatripartite, com a entrada da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), enquanto novo ator internacional, responsável por fiscalizar e aplicar as salvaguardas no sistema internacional. A integração nuclear na América Latina, desse modo, se deu a partir de um longo processo histórico de construção de alianças, através de uma relação pautada na confiança e no interesse mútuo, todavia, por meio da geoestratégica da diplomacia militar e das trocas de informações entre os cientistas, estabelecendo relações de cooperação para o desenvolvimento nuclear e integração regional. Nesse sentido, este artigo busca aclarar a trajetória da integração nuclear na América Latina sob a luz da Geoestratégia, e mesmo se ancorando nas teorias da Geopolítica, para refletir as concepções que corroboraram na parceria estratégica Brasil- Argentina. Conforme a definição adotada pelo Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), de Portugal, enquanto a Geopolítica se ocupa da dinâmica do poder, ao projetar o conhecimento geográfico para tomada de decisão política, a Geoestratégia objetiva entender a construção de modelos estratégicos e avaliar as formas de coação, projetando o conhecimento geográfico na atividade estratégica. A transição das relações entre Brasil e Argentina, de estados antagônicos para parceiros, conduzindo a cooperação entre os maiores estados latino-americanos, em termos territoriais e populacionais, revela a concepção geoestratégica aplicada pela diplomacia militar da região. Para tanto, serão analisados os documentos, artigos, periódicos, jornais e outras fontes científicas / oficiais que sirvam para elucidar o tema proposto e retratar historicamente a trajetória da integração nuclear na América Latina, bem como, refletir o processo de transição da concepção política de rivalidade para a de cooperação, com base no arcabouço teórico da Geoestratégia em interface com a Geopolítica. Palavras-chave: Geoestratégia; Segurança; Integração regional. *Formada em Sociologia pela FFCH/UFBA; mestranda em Relações Internacionais IHAC/PPGRI/UFBA.

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XVI CONGRESSO INTERNACIONAL FOMERCO INTEGRAÇÃO REGIONAL EM TEMPOS DE CRISE: DESAFIOS POLÍTICOS E DILEMAS TEÓRICOS

27 a 29 de setembro de 2017

Geoestratégia e Cooperação: a trajetória da Integração Nuclear na América Latina.

Ana Emília Ataíde*

Resumo

Este artigo pretende abarcar a trajetória da integração nuclear na América Latina, enfatizando as estratégias realizadas pela diplomacia militar do Brasil e da Argentina, com a finalidade de estabelecer uma política de cooperação em detrimento da política de rivalidade que antevia suas relações; desenvolver o setor nuclear de ambos estados; e, sobretudo, garantir a segurança na região, através da criação de uma agência binacional de salvaguardas. Não obstante, quer retratar as relações entre os governos brasileiros e os argentinos desde a segunda metade do século XX até os dias atuais, destacando três momentos históricos: a transição da política externa competitiva para uma política de cooperação de não-proliferação nuclear; a formação da ABACC (Agência Binacional de Controle de Materiais Nucleares), representando o resultado da cooperação bilateral e, da geoestratégica das diplomacias militares de estados latino-americanos; e, por fim, a consolidação do Acordo Quatripartite, com a entrada da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), enquanto novo ator internacional, responsável por fiscalizar e aplicar as salvaguardas no sistema internacional. A integração nuclear na América Latina, desse modo, se deu a partir de um longo processo histórico de construção de alianças, através de uma relação pautada na confiança e no interesse mútuo, todavia, por meio da geoestratégica da diplomacia militar e das trocas de informações entre os cientistas, estabelecendo relações de cooperação para o desenvolvimento nuclear e integração regional. Nesse sentido, este artigo busca aclarar a trajetória da integração nuclear na América Latina sob a luz da Geoestratégia, e mesmo se ancorando nas teorias da Geopolítica, para refletir as concepções que corroboraram na parceria estratégica Brasil-Argentina. Conforme a definição adotada pelo Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), de Portugal, enquanto a Geopolítica se ocupa da “dinâmica do poder”, ao projetar o conhecimento geográfico para tomada de decisão política, a Geoestratégia objetiva entender a construção de modelos estratégicos e avaliar as “formas de coação”, projetando o conhecimento geográfico na atividade estratégica. A transição das relações entre Brasil e Argentina, de estados antagônicos para parceiros, conduzindo a cooperação entre os maiores estados latino-americanos, em termos territoriais e populacionais, revela a concepção geoestratégica aplicada pela diplomacia militar da região. Para tanto, serão analisados os documentos, artigos, periódicos, jornais e outras fontes científicas / oficiais que sirvam para elucidar o tema proposto e retratar historicamente a trajetória da integração nuclear na América Latina, bem como, refletir o processo de transição da concepção política de rivalidade para a de cooperação, com base no arcabouço teórico da Geoestratégia em interface com a Geopolítica. Palavras-chave: Geoestratégia; Segurança; Integração regional. *Formada em Sociologia pela FFCH/UFBA; mestranda em Relações Internacionais IHAC/PPGRI/UFBA.

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Geoestratégia e Cooperação: a trajetória da Integração Nuclear

na América Latina.

Introdução O Brasil tem fascinado o mundo em suas estratégias para inovação nacional da tecnologia

nuclear, bem como, em sua geoestratégia, através da integração regional para criação de

uma agência binacional de salvaguardas (a ABACC), contribuindo assim para alavancar o

setor nuclear na América Latina. Todavia, a política de cooperação nem sempre foi

norteadora na arquitetura da política externa entre os estados latino-americanos. A política

de rivalidade, embora fosse predominante em um contexto que antecedia a Era Nuclear,

com o advento da bomba atômica, e a corrida armamentista entre as potências mundiais,

criou-se um ambiente propicio e relevante para a construção de uma política externa sob o

pilar da cooperação. Portanto, a construção de uma aliança entre os maiores estados latino-

americanos, cujo status quo situava-os como sendo periféricos dentro de uma Ordem

Nuclear Global, ameaçados pela supremacia do poder bélico, levou a diplomacia militar e

científica, da Argentina e Brasil, para a consolidação de uma parceria estratégica, na qual a

proposta no primeiro momento se ateve ao desenvolvimento do setor nuclear na região, sob

as salvaguardas da ABACC (Saraiva, 2012).

Segundo Togzhan Kassenova (2014), o Brasil é o único país no mundo sem armas

nucleares que vem trabalhando em um poderoso Submarino Nuclear. Desse modo, para a

autora, o Brasil tem demonstrado grande capacidade para engajar todos os estágios do ciclo

de combustível nuclear, além de se encontrar como membro de um seleto clube de países,

exclusivos com vantagem industrial nuclear: o Grupo de Fornecedores Nucleares (NSG-

Nuclear Suppliers Group)1. Na América Latina, o Brasil, dentre os três, incluindo Argentina e

México, representam os únicos países a instalarem usinas para geração da energia nuclear.

A autora explica que do ponto de vista do cenário internacional, vários fatores tornam o

Brasil um importante jogador na ordem global nuclear. Juntamente com seus vizinhos

Latino-americanos e Caribe, estabeleceram uma zona livre de armas nucleares sob as

disposições do Tratado de Tlatelolco.

1 Grupo de Fornecedores Nucleares (GFN; sigla em inglês: Nuclear Suppliers Group - NSG) é um organismo

multinacional, fundado em 1974, com o objetivo de reduzir a proliferação nuclear no mundo, controlando a exportação e a transferência de materiais e tecnologias que podem ser aplicadas no desenvolvimento de armas nucleares e melhorando a proteção dos armamentos existentes. Desde 2009, o Brasil, a Argentina e o México passaram a compor este seleto grupo, que se encontra, desde então, com 47 membros.

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Como explica Mônica Herz e Vitor Lage (2013), a estratégia brasileira para o

desenvolvimento nuclear concatenou a politica doméstica com a política externa. Segundo

Herz e Lage (2013), esse eixo norteador da política brasileira, desde 1930, foi sendo tratado

pela diplomacia nacional, e a partir dos anos 60, ganhou notoriedade devido à intensificação

das pesquisas revelando uma ligação entre a nuclearização e o desenvolvimento

tecnológico. Todavia, embora tenha sido afirmado, no ano de 1998, o TNP – Tratado de Não

Proliferação de Armas Nucleares, a questão do desarmamento vem sendo considerado pela

diplomacia brasileira como algo ainda em debate, e “salientam o direito universal ao acesso

à energia e à tecnologia nuclear, e a necessidade futura de completa desnuclearização

mundial” (Herz & Lage, 2013, p. 2).

Junto com a Argentina, o Brasil desenvolveu um mecanismo de salvaguardas bilateral

implementado pela Agencia Brasileira-Argentina para Contabilidade e Controle dos Materiais

Nucleares (ABACC). Kassenova (2014) enfatiza que apesar da parceria estratégica, o Brasil

ainda se opunha a assinatura do Protocolo Adicional da AIEA, para melhorar a salvaguarda

nuclear, no qual criou tensões na relação do Brasil com o regime global de não-proliferação.

No domínio da diplomacia multilateral, o país promoveu ativamente a política para o

desarmamento global nuclear. Para a autora, o Brasil pretendia com isso influir sob a ordem

nuclear global, e com esta postura, tem se tornado um importante ator no cenário

internacional. Como resultado da sua inserção internacional, temos a trilateral Declaração de

Teerã, envolvendo Brasil, Turquia e Iran, assinada em 2010, junto com Ankara, Brasília e

Teerã, que teve por objetivo romper com o acordo nuclear entre Iran e o Ocidente.

A INTEGRAÇÃO NUCLEAR EM UM CONTEXTO LATINO-AMERICANO

O Brasil, desde o princípio, havia elaborado uma política nuclear com o objetivo de utilizar a

energia atômica de forma pacífica, visando somente o desenvolvimento científico, com fins a

atender os setores medicinal, industrial e militar (Patti, 2013). No momento de sua inserção

no comércio internacional, enquanto fornecedor de matéria prima para os Estados Unidos,

na Segunda Guerra Mundial (de 1943 a 1950), o Brasil estabelecera um acordo bilateral sob

o principio das “compensações específicas”, no qual se formou uma comissão responsável

pela transferência de equipamentos e materiais, sob a contrapartida de os EUA transferirem

a tecnologia útil para o desenvolvimento da energia nuclear no Brasil, desde que se fosse de

forma pacífica, controlando a produção e transferência do material nuclear especial.

Com isto, os EUA contribuíram para elaboração do primeiro projeto nuclear nacional, cuja

proposta inicialmente seria a de controlar todo o processo de produção da energia nuclear,

desde a exploração do urânio in loco até a produção final do combustível nuclear. Com esta

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finalidade, após a iniciativa do Conselho de Segurança Nacional, foi fundado o CNPq –

Conselho Nacional de Pesquisa, aprovado por sua vez pela Comissão de Energia Atômica

da ONU, em Nova Iorque, no ano de 1947. De certo modo, dava-se um passo rumo à

produção cientifica nuclear no Brasil, que daria suporte aos novos projetos de

desenvolvimento nacional e regional.

Durante a década de 80, o Brasil veio construindo com a Argentina um modelo regional de

não-proliferação que culminou na criação da ABACC, no ano de 1991. Segundo Herz e Lage

(2012), essa relação bilateral serviu e ainda serve mundialmente como exemplo para a

política de não proliferação de armar nucleares, dando seguimento somente ao processo de

desenvolvimento tecnológico e uso da energia nuclear com fins pacíficos. Na primeira

década do século XXI, essa relação se intensificou entre os governos de Lula e Cristina

Kirchner, na qual reverberou na formação da Comissão Binacional de Energia Nuclear no

ano de 2008. Posteriormente, no governo Dilma, se endossou o compromisso com o acordo,

firmado em 2011, que pretendia aprofundar a política de cooperação Brasil-Argentina,

propondo que cada país construísse seu próprio reator multipropósito de enriquecimento de

urânio, por meio de projetos comuns. Para Herz e Lage (2012), a ABACC será vista como

uma alternativa ao Protocolo Adicional do TNP, bem como, para Grupo de Supridores

Nucleares, e criará um ambiente propício para o avanço do projeto de construção do

submarino de propulsão nuclear, pela marinha brasileira.

O reator que será construído no país, no Centro Experimental de Aramar, na cidade de

Iperó-SP, sob a responsabilidade da CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear, será

fundamental para construção do submarino de propulsão nuclear (PROSUB) que tem

previsão para ser concluído em 2023. O Projeto vem sendo discutido desde a década de 70

pela política nacional, e somente foi retomado no governo Lula e Dilma, sobretudo, após a

criação da Amazônia Azul, no qual a Marinha prescinde de tecnologias para assegurar a

defesa marítima e implementar o Programa Nuclear Brasileiro (Herz e Lage, 2012). No

entanto, como enfatiza Herz e Lage (2013), é preciso nacionalizar o desenvolvimento da

construção em escala industrial do combustível nuclear e da tecnologia da construção de

reatores, além de viabilizar o uso de produtos e equipamentos pela medicina. Os autores

destacam ainda a intenção de nacionalizar as etapas de desenvolvimento em escala

industrial do ciclo de combustível nuclear (gaseificação e enriquecimento de urânio) e da

tecnologia de construção de reatores; bem como, a aceleração das pesquisas de lavras e

jazidas; a construção de termelétricas nucleares de domínio nacional, sujeitas a controle

rigoroso para segurança e proteção ambiental, em substituição gradual das alternativas não-

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renováveis por renováveis; e, a ampliação do uso crescente de energia nuclear em outras

atividades.

Como explica Kassenova (2014), a ordem nuclear global representa, para o Brasil, um

microcosmo da ordem global mais ampla. Nesse sentido, a interação do Brasil com a ordem

nuclear segue o mesmo padrão como suas interações com outras estruturas de governança

global no sistema internacional. Conforme a tese de Eduardo Munhoz Svartman (2014),

devido a pouca capacidade do Brasil, em suas capacidades militares para coordenar sua

integração sub-regional, novas mudanças são verificadas no panorama estratégico regional.

De toda maneira, não diferente dos outros estados periféricos, o Brasil almeja sua aceitação

no clube exclusivo como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações

Unidas (UN), alegando que este regime internacional coloca sobre os países que não

possuem armas nucleares, uma pressão indevida, se tratando, portanto, esta uma questão

de justiça nuclear.

Segundo Herz e Lage (2013), o governo brasileiro no século XXI vem seguindo com o

mesmo compromisso de usar de forma pacífica a energia nuclear, contudo, vem buscando

também avançar nas pesquisas para beneficio da tecnologia nuclear, de modo a tornar

versátil sua matriz energética, transcendendo a divisão entre a agenda de Desenvolvimento

e a de Defesa. Dentre outras iniciativas, está bem expresso na Estratégia de Defesa

Nacional (2008: 12), do Ministério da Defesa (2012), o aprimoramento do projeto do

Submarino de Propulsão Nuclear, no qual visa tornar o país independente em matéria de

tecnologia nuclear. O Brasil tem articulado como mediador para que os Estados cumpram o

TNP, sobretudo, para alavancar seu protagonismo internacional e não chocar interesses

com a AIEA que vem pressionando o governo para aderir ao Protocolo Adicional, que

restringe a defesa nacional sobre direitos intelectuais de tecnologias nucleares.

Conforme o Programa de Estratégias de Defesa Nacional (de 2008 a 2012), as exigências

impostas pelo Protocolo prejudica o interesse nacional sobre a proteção comercial de

tecnologias nucleares, o que acaba por intervir em sua soberania, autonomia e

desenvolvimento. A diplomacia brasileira junto a outros sete países (Egito, Irlanda, México,

Nova Zelândia, África do Sul, Suécia e Eslovênia) se uniram para formação da Coalizão da

Nova Agenda, cuja preocupação maior girou em torno de países com capacidade nuclear

estarem fora do TNP (Israel, Índia e Paquistão). O chanceler Celso Amorim foi o principal

articulador dessa coalizão, e esse esforço reuniu treze eixos norteadores para o

desarmamento nuclear, visando reforçar o compromisso dos Estados com o tratado. Ainda,

para além dessa iniciativa, outras atuações por parte da política externa demonstrou no

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caráter da diplomacia brasileira, a base construída em torno de três pilares: da não-

proliferação, do desarmamento e de direito ao uso pacífico da tecnologia nuclear.

Na Declaração de Teerã, o Brasil se posicionou a favor da Turquia e do Irã, através do

acordo tripartite, assinado em 2010, que apesar de ser aclamado pela AIEA, obteve certa

rechaça dos EUA, que continuaram pressionando o Conselho de Segurança da ONU para

aplicar sanções contra o Irã. Segundo Herz e Lage (2013), o chanceler Antônio Patriota, do

governo Dilma, em 2011, diferentemente do posicionamento do chanceler Celso Amorim,

governo Lula, votou a favor do monitoramento da situação do Irã, pelo Conselho de Direitos

Humanos da ONU, e apelou no ano seguinte, em 2012, por uma não intervenção militar nas

instalações do Irã.

Em suma, a parceria estratégica firmada pela diplomacia brasileira e argentina reforçou a

nuclearização na região, e apesar das pressões internacionais para haver a adesão ao

Protocolo Adicional, a ABACC demonstrou ser o resultado de uma política externa pautada

na confiança e na cooperação, quando os estados detentores dos maiores territórios na

região assinaram o Acordo de Guadalajara, e estabeleceram o uso exclusivamente pacífico

da energia nuclear entre Brasil e Argentina. Porque para estes estados se pressupõe que

nenhum outro estado possa intervir nas questões domésticas do outro, porém, as

Organizações Internacionais pretendem ser supranacionais e os Estados mais fracos

acabam cedendo parte de sua soberania nacional (e do DPI – Direito de Propriedade

Intelectual) em prol da manutenção da “paz” e de uma zona pacífica. Portanto, o Brasil vem

demonstrando através da sua ‘concepção geoestratégica’, que acredita ser desnecessário o

uso “da força militar para garantir o respeito às normas internacionais” (Herz e Lage, 2013) e

a manter a região pacífica.

De qual concepção Geoestratégica estamos falando? O conceito de geoestratégia vem sendo refletido, ao longo do século XX, por muitos

estudiosos da geopolítica. Confundido e cunhado com termos análogos, tais como,

“estratégia total”, “parceria estratégica” e a “grande estratégia”, todos carregam em si o

mesmo significado: da ciência que enfatiza o estudo da estratégia, para além dos domínios

da tática e da lógica. Para tanto, compreender as diferenças e as similitudes entre os

conceitos acima citados, nos permite afirmar que houve por parte da política externa

brasileira e argentina, a concepção geoestratégica como base para alavancar o

desenvolvimento do setor nuclear na região e a elaboração de um plano estratégico de

defesa para a América Latina.

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Em seu livro “Introdução à Estratégia”, André Beaufre (1998), vai considerar a filosofia e a

estratégia como sendo de grande importância para analisar os problemas de defesa, sem as

quais, a compreensão das manobras tornaria incoerente a análise quando se procura por

soluções mais eficazes. Nesta concepção que trata da estratégia no espaço, torna a

geografia um instrumento importante dentro de um plano estratégico. Segundo Beaufre

(1998:20), a “estratégia” é um “método do pensamento” que possibilita “escolher

procedimentos mais eficazes” a partir de uma “classificação sistemática e hierárquica dos

acontecimentos”, derivada de um “conjunto de conhecimentos acumulados com base nos

domínios da política, da economia, da diplomacia e dos militares”. Partindo dessa ótica, o

conhecimento acumulado com bases nesses domínios, tornou propícia a formulação da

“estratégia total”, ou seja, da compreensão da estratégia para além de um domínio empírico,

de “caráter esotérico e especializado”, até então, restrito apenas aos militares de alta

patente. Assim, como Raymond Aron cunhou no termo “Praxeologia”, Beaufre (1998) dá

ênfase à estratégia enquanto elemento imprescindível da “ciência da razão”, na qual nos

permite uma tomada de decisão mais consciente (racionalizada), calculada para alcançar

uma política bem definida (conduta para a ação lógica).

Embora a estratégia estivesse condenada em 1915, e relegada a “ciência e arte do

comandante-chefe”, o uso empírico dos estrategistas para se fazer guerra, geraria consigo

resultados ineficazes, trazendo uma série de estados fracassados e a não resolução dos

conflitos de paz e de guerra. Beaufre (1998:26), então, denota nas estratégias adotadas

pelos estados, no período das grandes guerras, a “supremacia do material sobre o

ideacional”, principalmente sob a influência dos EUA, que com o advento da bomba atômica

trouxe uma demonstração da “falta de compreensão dos estrategistas sobre os fenômenos

relativos à guerra”. Com a supremacia material, a existência de uma Ordem Nuclear Global

impondo de forma coercitiva aqueles países autorizados para produzir armas nucleares,

inibe qualquer tentativa de construção de um sistema internacional pautado na política de

cooperação e manutenção da paz. Nesse sentido, as teorias da estratégia precisam deixar

para trás a simbiose entre estratégia e forças militares, associada ao “conjunto da arte

militar” (arte da tática, da logística e da estratégia), para englobar sua ação no campo da

política, ou seja, refletindo o “jogo abstrato resultante das vontades”.

A estratégia total de Beaufre (1998, p.27), dessa forma, representa “a arte da dialética das

forças” ou “a arte da dialética das vontades, empregando a força para resolver seu conflito”.

Beaufre (1998) explica que diante desta “dialética de vontades”, a finalidade da estratégia é

apreender o caráter psicológico do adversário, de modo a desintegrá-lo moralmente, e com

isto, retardar as operações de guerra até o momento do golpe decisivo que garante sua

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supremacia na guerra. Todavia, o estrategista precisa combinar sua ação juntamente com

seus meios materiais e morais, ou através de acordos e tratados, como foi o caso da

parceria estratégica Brasil-Argentina, no Acordo de Guadalajara, ou através do uso de

potentes armas bélicas (nuclear, e mais recente, a arma química e de hidrogênio), tem de

obter “o resultado psicológico suficiente para produzir o efeito da moral decisiva” (Beaufre,

1998, p. 30), ou seja, o alcance da paz.

Atingir o “efeito moral decisivo”, portanto, representa a meta do estrategista e, nesse caso,

analisar as vulnerabilidades do inimigo, e identificar suas próprias potencialidades é

necessário para encontrar saídas, independente da dimensão do conflito e do tipo de jogo

em questão. Dentre as estratégias formuladas, desde a clausewitziana que pregava a

aniquilação das forças armadas adversas, até a estratégia que propunha a dominação da

capital do Estado ou a sua destruição, são todos estes meios adotados com a finalidade de

definir um conflito visando a “liberdade de ação”.

Como explica Beaufre (1998:31), o plano da ação estratégica permeia a dialética entre

estados, prevendo as reações adversas desde “as internacionais ou nacionais, morais,

políticas, econômicas ou militares”, sempre “visando à liberdade de ação” para conservar o

poder, agindo de forma “contra-aleatória”. Ou seja, as “manobras estratégicas” precisam ter

em vista a sequência das ações necessárias para garantir a liberdade, seja através da

simples aliança entre estados, ou em outrora em alianças atreladas ao poder atômico. Esse

plano estratégico pode ser elaborado a partir de diversos modelos, sendo que, o objetivo de

todos consiste em ordenar os meios relativos do adversário para alcançar a liberdade de

ação. Os modelos apresentados pelo autor podem adotar a estratégia por “ameaça direta”,

por “pressão indireta”, por “aproximação indireta”, por “luta total prolongada de fraca

intensidade militar”, ou por “conflito violento visando à vitória militar”. Todavia, todos estes

modelos representam uma “classificação exaustiva de tipos de estratégia”, para “apreender

o caráter e a originalidade do raciocínio estratégico” (Beaufre, 1998, p. 35 e 36) e nenhum

deles consegue trazer a dimensão de análise ao qual foi introduzida pela concepção

geoestratégica.

Segundo o General Pedro de Pezarat Correia (2012), o termo geoestratégia vai ressurgir na

década de 40, pós-guerra, sobretudo, porque seu neologismo aparece na mesma década do

século XIX. O militar italiano Ferruccio Botti (1995)2, na década de 30, do século XIX, publica

a revista Stratégique, atribuindo ao general Giacomo Durando, a citação do seu livro

2 Botti, Ferruccio (1995). “Le Concept de Géostratégie et son Application à la Nation Italienne dans les Théories

du Géneral Durando (1846)”, Stratégique n.º 58. Paris: Institut de Stratégie Comparée.

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publicado, em 1846, no qual descrevia que “a situação ou posição geográfica determina de

forma inalterável o caráter geoestratégico de um país” (apud Correia, 2012, p.238). Todavia,

conforme o autor houve um eclipse no uso da geoestratégia, que somente no século XX,

passou a ser retomado dentro dos debates sobre geopolítica, sem perder suas

características fundamentais, em sua associação aos fatores geográficos (território), e de

estar vinculado a uma “finalidade estratégica” (elaboração de um plano de ação).

A geoestratégica, nesse sentido, vai ganhando novas interpretações no século XX, e a sua

definição oficial é apresentada pelo Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), de Portugual,

formulando o conceito com base numa derivação semântica muito estreita com a

geopolítica. Sendo assim:

[...] A Geopolítica seria o estudo das constantes e das variáveis do espaço

que, ao objetivar-se na construção de modelos de dinâmica do poder, projeta

o conhecimento geográfico no desenvolvimento e na atividade política.

Enquanto,

[...] A Geoestratégia seria o estudo das constantes e das variáveis do espaço

que, ao objetivar-se na construção de modelos de avaliação e emprego de

formas de coação, projeta o conhecimento geográfico na atividade estratégica

(IAEM apud Correia, 2012, 238).

Correia (2012) explica que apesar da aproximação na definição dos conceitos, e com isso

introduz neste debate a proposta da criação de uma nova geopolítica, percebe que os

modelos da “dinâmica de poder” e o modelo das “formas de coação”, são elementos que por

si próprio delineiam a fronteira entre os domínios da “atividade política” e o da “atividade

estratégica”. O almirante Pierre Célérier (1969)3 e Franck Debié, Raphaèlle Ulrich, Henry

Verdier (1991)4, Antônio Horta Fernandes, Antônio Paulo Duarte (1998)5, todos pretendem

aclarar essa distinção, ao considerarem que:

[...] a geografia aplicada aos domínios da política e da estratégia nós

chamamos geopolítica e geoestratégica [...] que a geopolítica procura realizar

um programa político, enquanto que a geoestratégia procura facilitar a

decisão estratégica, e, que [...] a geopolítica e a geoestratégia são,

respectivamente, a política e a estratégia referidas a partir da geografia num

senso amplo (apud Correia, 2012, p.238/239).

3 Célérier, Pierre (1969). Géopolitique et Géostratégie, Paris: Presses Universitaires de France. 4 Debié, Franck, Raphaèlle Ulrich e Henri Verdier (1991). “A Quoi sert la Geostratégie?”, Stratégique n.º 50.

Paris: Institut de Stratégie Comparée. 5 Fernandes, António Horta e Duarte, António Paulo (1998). Portugal e o Equilíbrio Peninsular. Mem Martins:

Publicações Europa-América.

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Portanto, apesar da analise da geopolítica clássica, cujo espaço (geografia) era concebido

enquanto instrumento a serviço do poder (política), a nova geopolítica, que se define fora do

campo da geoestratégia, rompe com o paradigma anterior e propõe-se utilizar o poder

enquanto instrumento a serviço do espaço. Nesse viés, as teorias geopolíticas não podem

“fundamentar-se na analise dos fatores geográficos com vista a alcançar objetivos políticos

através da gestão de meios de coação violentos”, porque assim, recaem nos domínios da

geoestratégia, na qual a estratégia é concebida enquanto instrumento a serviço do espaço

(Correia, 2012, p.245). No contexto latino-americano, a geoestratégia permite aclarar a

retomada da política de cooperação entre Brasil e Argentina, sobretudo, porque

historicamente a rivalidade que se travou foi deixada para trás com a consolidação da

parceria estratégica, estabelecida por estes estados, que somente aliados, podem garantir a

paz em quase todo o território da região latino-americana e costa oeste do oceano no

Atlântico Sul.

A concepção geoestratégica no contexto da integração nuclear latino-americana A corrida armamentista do Brasil e dos outros países latino-americanos, antes engajados em

programas nucleares secretos, desprendem de um processo de integração regional que

buscou incrementar a política nuclear na região e fortalecer os projetos nacionais de

desenvolvimento nuclear e de defesa. Segundo Patti (2013), esse processo de integração

regional foi sendo construído com base na confiança mutua entre Brasil e Argentina, desde a

década de 70 e, noutro momento, com a visita do presidente argentino na planta de

enriquecimento em Ípero, no ano de 1988. A consolidação dessa relação bilateral foi

intensificada com a criação, em 1991, da ABACC, com o intuito de garantir a formação de

mecanismos de inspeção e controle de pesquisa, plantas e usinas nucleares na região.

Segundo Wrobel e Kutchesfahani (1998; 2010 apud PATTI, 2013, p. 54) “relevante é a

relação que se criou entre cientistas brasileiros e argentinos no momento de especialização

deles em centros de pesquisa na Alemanha e em outros países”. Para Patti (2013), essa

relação bilateral e epistêmica entre os cientistas e a política-diplomática pode explicar o

fortalecimento do setor tecnológico-industrial e o crescimento econômico desses dois países

latino-americanos. Devido à pressões internacionais para a adesão ao Protocolo Adicional,

foi assinado o acordo quadripartite entre Brasil, Argentina, Abacc e AIEA, no qual se deu

uma maior credibilidade ao tratado bilateral.

Como mostra Herz e Lage (2013), entre 2006 e 2007, o Brasil teve forte atuação no Grupo

de Supridores Nucleares, o que forçou a formar, em 2011, o Acordo Quadripartite. Esta

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cooperação visou garantir o uso pacifico através da transferência de tecnologias de

enriquecimento e reprocessamento do combustível nuclear, se constituindo num dos pontos

fundamentais do Programa Nuclear Brasileiro. Saraiva (2012:148) explica que devido “ao

lugar da Argentina nas percepções brasileiras, dada à importância da parceria estratégica,

consolidou-se como uma política de estado”.

Todavia, na década de 90, como explica Patti (2013:54), o programa nuclear brasileiro vinha

passando por uma fase de decadência, do ponto de vista tecnológico, principalmente devido

ao “fechamento da planta de conversão de hexafluoreto de urânio e a suspensão da

construção das plantas nucleares de Angra 2 e 3”. Quanto aos acordos diplomáticos, houve

uma maior adesão internacional ao Tratado de Tlatelolco. Segundo o autor, o projeto de

construção da ultracentrifugadora para separação isotópica de urânio foi substituído pelo

PROSUB, para construção do primeiro submarino de propulsão nuclear, enquanto estratégia

de defesa nacional. Outra ação do governo brasileiro foi racionalizar a gestão das usinas

nucleares de Angra e de outras que viriam no futuro, subsidiando a fundação da empresa

estatal Eletronuclear, através da fusão do setor nuclear de Furnas e Nuclen.

Segundo Herz e Lage (2013), no governo Lula, de 2002 a 2010, a política externa brasileira

se posicionou de forma protagonista nas negociações para alcançar um assento permanente

no Conselho de Segurança da ONU. Em sua geoestratégia, aderia a novos acordos

bilaterais com a Argentina para desenvolvimento do setor nucelar e construção de uma

usina binacional. Manteve, com isto, a posição de defensor universal do uso da energia

nuclear com fins pacíficos, pressionando inclusive na arena internacional a favor do

“desarmamento nuclear por potencias nucleares e pela erradicação da discriminação

inerente aos mecanismos de governança internacional nessa área” (HERZ e LAGE, 2013,

p.6).

No começo do século XXI, segundo Saraiva (2012:147), a parceria estratégica firmada

desde o Acordo de Guadalajara, estava sofrendo forte pressão dos Estados Unidos, o que

contribuiu para o “fortalecimento do lugar do Brasil na política externa argentina”. No

contexto latino-americano, a concepção geoestratégica adotada pelos estados latino-

americanos, atribuída a parceria estratégica para a criação da Abacc, se tornou eficaz,

sobretudo, porque levou em consideração a dimensão territorial, Brasil-Argentina. Deste

modo, a geoestratégia busca enxergar o espaço enquanto instrumento para criação de

formas de coação, sendo assim, diante da ameaça da Ordem Global Nuclear, e perante a

pressão internacional, não existe outra saída senão a do fortalecimento da política externa

de cooperação entre o Brasil e a Argentina. Saraiva (2012) enfatiza que embora a Argentina

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viesse passando por crises econômicas no período de 2008, a interdependência com o

Brasil se revelou mais forte do que nunca, conduzindo a política externa para a realização da

parceria estratégica no setor nuclear.

Os resultados se mostraram promissores, tanto para o Brasil quanto para a Argentina,

porém, nas questões ambientais existe uma lacuna que precisa ser melhor entendida. No

Brasil, foi finalmente inaugurada, em 2004, a usina de Angra II, e a criação da INB - Industria

Nuclear Brasileira, para substituir a Nuclebrás (criada em 1988), dando inicio também a

construção da planta de enriquecimento de urânio em Iperó-SP. Com o lançamento do Plano

Energético Brasil 2030, novos projetos foram sendo propostos, desde a construção de

outras centrais nucleares e a conclusão da usina Angra 3, inclusive trazendo como proposta

do plano energético, a inauguração do primeiro submarino de propulsão nuclear que estava

previsto para 2025 (Patti, 2013).

Antes mesmo, ainda no governo FHC, com a modernização da Fábrica de Combustível

Nuclear de Resende-RJ, e aproximação do Brasil com a China e a Venezuela, no governo

posterior, gerou um questionamento quanto a finalidade do Programa Nuclear Brasileiro,

principalmente após os entreveros da AIEA, e a pressão da opinião pública quanto aos

problemas ambientais gerados com a produção nuclear na região. Ainda, com a negação do

governo Lula para inspeções da AIEA nas instalações nucleares da INB, em Resende, com

a alegação de que era em defesa da propriedade comercial e do Direito a Propriedade

Intelectual (DPI), no ano de 2004, levou o Itamaraty a assinar um novo acordo com a AIEA,

de modo a amenizar a pressão sofrida em âmbito internacional e então surge o Acordo

Quatripartite.

Todavia, como pondera Saraiva (2012), a parceria estratégica com a Argentina, apresentou

ganhos notórios, sobretudo, com a criação da ABACC e do Mercosul:

[...] desde 1974, mesmo que traços da antiga rivalidade pudessem ser percebidos ainda durante o governo Lula em algumas dimensões dessa parceria e em alguns setores mais específicos da sociedade brasileira, a importância de manter laços fortes de cooperação com a Argentina foi praticamente um consenso nos formuladores brasileiros de política externa e políticas macroeconômicas (Saraiva, 2012, p.148).

Apesar da geoestratégia da diplomacia militar do Brasil e Argentina contribuir para o

desenvolvimento do setor nuclear na região, sob salvaguardas e programas com fins

pacíficos, as questões ambientais também se tornaram um agravante para a política

doméstica de ambos estados. A constituição Argentina, desde a reforma de 1994, tutela as

províncias da competência em responder sobre a exploração no território local. Nesse

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sentido, na Argentina, esta concessão dada às províncias “corresponde ao domínio

originário dos recursos naturais existentes em seus territórios” (López, 2014, p.54). Com isto,

impede que o governo federal defina as políticas sobre recursos naturais, ou administre as

jazidas de minérios e de fontes de energia como a de urânio para produção da energia

nuclear. Diana López (2014) revela que devido à exploração de petróleo e gás em

determinada região (Alto Valle do Rio Negro), movimentos sociais insurgiram, em 2012, com

a proposta de defender a água, o território e os bens comuns, assim como, lutar para

garantir o direito ao uso da terra, contra a “ordenança dos frackings”, que em 2013,

proibiram o uso da técnica pela população.

Gabriela Scotto (2014) enfatiza que na década de 90, devido as reformas na Constituição

Argentina, o poder das empresas transnacionais sobre as concessões da exploração dos

recursos naturais aumentou consideravelmente, de setes empresas para 55, em 2007.

Conforme a autora, a presença de atores transnacionais no território argentino criou um

cenário tenso com a sociedade civil, provocando conflitos e protestos contra “a mineração a

céu aberto” e contaminação do ambiente, sobretudo, por substâncias altamente nocivas,

como o mercúrio e o urânio. Deste processo, alguns dispositivos de restrições foram criados,

em 2010, para assegurar a preservação de áreas naturais, próximas da Cordilheira dos

Andes, que contribuem para a circulação de corrente de ventos no globo (ambiente

periglacial6).

Deste modo, a presença das empresas transnacionais, sem a devida fiscalização das

províncias argentinas, contribuem para que as praticas de mineração a céu aberto encontre

forte resistência da população local, que exigia direitos a emprego, participação nos lucros e

preservação do ambiente. Estes movimentos ganham as ruas, em 2004, e “até o momento

procuram obter, junto à justiça, a permissão para haver a paralisação das atividades, bem

como, a aprovação de uma legislação que proíba tanto a mineração de metálicos como a de

urânio7” (Scotto, 2014, p.41).

Dessa forma, a “questão mineira” se tornou relevante e contribuiu para novas leis provinciais

serem sancionadas na Argentina, de 2000 a 2013, proibindo a atividade de mineração a céu

aberto ou a “mega-mineração”. Na cidade de Córdoba, a principal conquista foi a aprovação

da Lei nº 9.526, de 2008, que “proíbe em todo o território da província de Córdoba a mega-

mineração contaminante a céu aberto com uso de substâncias tóxicas, e mineração de

urânio em todas as suas formas” (Scotto, 2014, p.48). A autora explica que o triunfo se deu

6 Glaciares de Argentina, disponível em: <http://www.glaciares.org.ar/periglacial>, acesso em 20 de junho de 2014. 7 Disponível em: http://www.noalamina.org. Por sua vez La enciclopedia de ciencias y tecnologias en Argentina também é uma detalhada

e rigorosa fonte de informações; o caso se encontra disponível em http://cyt-ar.com.ar/cyt-ar/index.php/Bajo_de_la_Alumbrera.

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com o movimento “No a la Mina”, em 2013, que acarretou na formação da “Asamblea de Las

Heras por el Agua8”, contribuindo para a aprovação de leis provinciais que proíbem e limitam

a ação da mega-mineração na Argentina.

Todavia, o cerne do debate e a pauta de reinvindicação dos movimentos sociais que

buscava garantir o direito à água, enquanto direito fundamental, mesmo se deve a três

fatores: a) a mobilização capaz de articular diversos setores da população; b) a socialização

e ampla divulgação da informação; e c) a construção de redes territoriais (Svampa, 2009,

P.123ss; Svampa, Sola Alvarez & Bottaro, 2009, p.123ss apud Scotto, 2014, p. 50). No

entanto, a Argentina estabelece a mineração como uma política de estado e, em 2012, criou

a Organización Federal de Estados Mineros (OFEMI) com o objetivo de realizar parcerias

publico-privada, com empresas transnacionais já instaladas no país.

No Brasil, o relatório produzido pela Fiocruz (2014), intitulado “Justiça Ambiental e

Mineração de Urânio em Caetité/Bahia: avaliação Crítica da Gestão Ambiental e dos

Impactos à Saúde da População” tem alertado para a poluição atmosférica, do solo e hídrica

que tem acometido a região devido às práticas de exploração de urânio a céu aberto e

criação de tanques para reserva do rejeito radioativo. Entretanto, conforme o Plano Nacional

de Energia 2030, publicado pelo Ministério de Minas e Energia (2012), a política brasileira

aponta para no futuro um maior investimento na geração de termonucleares enquanto

alternativa para a matriz hidrelétrica, com a proposta de desenvolver o setor através da

construção de um reator multipropósito, na autossuficiência da produção de radioisótopos e

uso de fontes radioativas pela medicina nuclear, indústria, agricultura, meio ambiente e

segurança energética nacional. Segundo Herz e Lage (2013), o governo Dilma segue com a

politica externa do governo anterior, principalmente no que diz respeito aos acordos de

cooperação firmados com a Argentina, para a construção de reatores, e com a França em

2009, para o treinamento de técnicos para dar continuidade ao projeto de construção do

submarino nuclear.

O PROSUB – Programa de Desenvolvimento de Submarinos, encabeçado pela Marinha do

Brasil, portanto, vem a ser o mais proeminente projeto de defesa da soberania e proteção da

“Amazônia Azul”, visando à autonomia política do Estado e o desenvolvimento em área

nacional. Nesse caso, foram contratados para construção do submarino a empresa francesa

especialista em tecnologia naval, a DCNS e em parceria com a empresa brasileira,

Odebrecht, e juntas criaram a ICN – Itaguaí Construçõs Navais S.A., empresa de propósito

específico para construção de cinco (5) submarinos, sendo hum de propulsão nuclear e

8 Disponível em:<http://asambleadelasherasporelagua.weebly.com/leyes-provinciales.html>.

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quatro de propulsão convencional (eletrodiesel). Para tanto, serão necessários à construção

de uma base naval para o aporte e a manutenção dos submarinos.

Conforme Herz e Lage (2013:8), a questão nuclear deve ser entendida de duas formas, uma

sob a perspectiva técnica e outra sob a perspectiva da política interna e externa. No viés

técnico, deve se levar em consideração a finalidade da tecnologia nuclear, que pode ser

“tanto para fins pacíficos quanto para fins militares”, porém, no TNP as partes podem

somente desenvolver com fins pacíficos e através de cooperação tecnológica voltada para a

defesa da soberania. Em seguida, o uso da tecnologia nuclear com fins para defesa e

segurança energética impacta tanto na dimensão interna da politica nacional, bem como,

repercute nos mecanismos de governança global da energia nuclear, em âmbito

internacional, sendo assim, impõe limites e restrições para seu próprio desenvolvimento

tecnológico. No Brasil, o uso da energia nuclear apesar de estar voltado para a segurança e

busca de autonomia tecnológica, é considerada ambígua segundo os autores, se

caracterizando por um lado como ”ator responsável”, no que diz respeito à cooperação

bilateral tecnológica, e por outro, como “ator desafiador” no desenvolvimento interno da sua

produção tecnológica nuclear.

Considerações Finais A geoestratégia adotada pelos países latino-americanos tem contribuído muito para

estabelecer na região, por um lado, uma zona livre de armas nucleares, e por outro, permitiu

alavancar o setor nuclear tanto no Brasil como na Argentina. Contudo, apesar dos avanços

alcançados com a criação da agencia binacional de salvaguardas garantindo a paz na

região, e o desenvolvimento nuclear, com as estratégias de defesa da soberania nacional e

construção do Prosub, as questões latentes em torno da contaminação no ambiente local,

permanecem abertas e, portanto, insere outra rodada relevante da discussão sobre a

integração regional e produção nuclear na América Latina.

Destarte, do ponto de vista geoestratégico, a integração latino-americana na composição da

cooperação para a integração nuclear representa uma experiência exitosa, mantendo-se

com o Acordo Quatripartite, um importante instrumento para assegurar a paz na região. Do

ponto de vista tecnológico, existe algumas lacunas que necessitam ser melhor discutidas,

sobretudo, no que diz respeito às questões ambientais e à contaminação do ambiente local

tanto na Argentina quanto no Brasil, havendo enorme carência na produção de tecnologias

mais sustentáveis para atender a demanda do setor nuclear, no que diz respeito ao despejo

dos rejeitos radioativos.

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Nesse sentido, o aspecto da dimensão colossal, dos territórios Brasil-Argentina, corroborou

imensamente para a formação da parceria geoestratégica entre as diplomacias militares e

cientificas, que finalmente deixaram para trás uma rivalidade que vinha sendo alimentada

por gerações inteiras. Portanto, a cooperação entre o Brasil e a Argentina representa um

plano geoestratégico dos formuladores de política externa, que tem demonstrado ser cada

vez mais exitoso, sobretudo, por ser construído com base em uma visão de

interdependência, pautada na relação de confiança mútua e na razão de estado.

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