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27 Física na Escola, v. 12, n. 1, 2011 Um pouco de física na superfície do café Este artigo mostra conceitos básicos de física relacionados a fenômenos que ocorrem na interface do café quente com o ar. Um turbilhão de moléculas e a física térmica em ação numa simples xícara de café ilustram a aplicabilidade desta ciência, além de servir como um exemplo com enorme potencial didático para sala de aula. E ste artigo tem o intuito de mostrar conceitos de física associados a uma situação simples do cotidiano: as manchas esbranquiçadas sobre a superfí- cie do café quente. Estas manchas (ver Fig. 1), que se apresentam ligeiramente suspensas em relação à parte escura da superfície, podem ser observadas em uma xícara de café bem quente e “escondem” alguns tópicos comumente abordados no ensino de física. Sua análise revelará uma conexão com os conceitos de vaporização, condensação, convecção, reflexão difusa e a formação de nuvens. Física envolvida Sabe-se que quando o café quente tem sua superfície exposta ao ar frio, as mo- léculas de água mais energéticas no inte- rior do café sobem por convecção, atingem a superfície e podem escapar para o ar, ou seja, ocorre evaporação do café. Vale lem- brar que é a água que evapora, deixando os resíduos sólidos do café para trás. Ao mesmo tempo em que existem moléculas de água se livrando do café e escapando para o ar, há também moléculas de vapor de água, perto da superfície, entrando no café líquido, estabelecendo assim uma Danilo Claro Zanardi 1 e Mikiya Muramatsu 2 Instituto de Física, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil 1 E-mail: [email protected] 2 E-mail: [email protected] situação dinâmica de evaporação-conden- sação na superfície da bebida. As molécu- las que conseguem se livrar das ligações do líquido e escapar para o ar são as mais energéticas e, assim, quando o fazem, le- vam consigo bastante energia. O café líquido que ficou para trás tem, portanto, menos energia, ou seja, quando estas moléculas escapam para o ar, o café fica menos quente, e, deste modo, vai se res- friando gradualmente. Manchas esbranquiçadas Existe uma quantidade muito grande de moléculas escapando do café e subindo para o ar. Mas quando elas assim o fazem, ganham espaço, no ar, para se expandir, com consequente diminuição de energia térmica. Isto faz com que este grupo de moléculas de vapor de água se resfrie e, em seguida, mude para o estado líquido novamente. Deste modo, uma vez que evapora e sobe, o vapor de água perde energia, tornando-se líquido novamente. Ele se condensa a uma altura bem próxi- ma à superfície livre do café. Quando no estado líquido, as moléculas de água se aglutinam, formando como que mini-nu- vens de água logo acima da superfície do Figura 1 - Manchas esbranquiçadas sobre a superfície do café quente.

ZANARDI 2011

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Zanardi 2011, Amigos da Ciência

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27Física na Escola, v. 12, n. 1, 2011 Um pouco de física na superfície do café

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Este artigo mostra conceitos básicos de físicarelacionados a fenômenos que ocorrem nainterface do café quente com o ar. Um turbilhãode moléculas e a física térmica em ação numasimples xícara de café ilustram a aplicabilidadedesta ciência, além de servir como um exemplocom enorme potencial didático para sala deaula.

Este artigo tem o intuito de mostrarconceitos de física associados a umasituação simples do cotidiano: as

manchas esbranquiçadas sobre a superfí-cie do café quente. Estas manchas (verFig. 1), que se apresentam ligeiramentesuspensas em relação à parte escura dasuperfície, podem ser observadas em umaxícara de café bem quente e “escondem”alguns tópicos comumente abordados noensino de física. Sua análise revelará umaconexão com os conceitos de vaporização,condensação, convecção, reflexão difusae a formação de nuvens.

Física envolvida

Sabe-se que quando o café quente temsua superfície exposta ao ar frio, as mo-léculas de água mais energéticas no inte-rior do café sobem por convecção, atingema superfície e podem escapar para o ar, ouseja, ocorre evaporação do café. Vale lem-brar que é a água que evapora, deixandoos resíduos sólidos do café para trás. Aomesmo tempo em que existem moléculasde água se livrando do café e escapandopara o ar, há também moléculas de vaporde água, perto da superfície, entrando nocafé líquido, estabelecendo assim uma

Danilo Claro Zanardi1 eMikiya Muramatsu2

Instituto de Física, Universidade de SãoPaulo, São Paulo, SP, Brasil1E-mail: [email protected]: [email protected]

situação dinâmica de evaporação-conden-sação na superfície da bebida. As molécu-las que conseguem se livrar das ligaçõesdo líquido e escapar para o ar são as maisenergéticas e, assim, quando o fazem, le-vam consigo bastante energia. O cafélíquido que ficou para trás tem, portanto,menos energia, ou seja, quando estasmoléculas escapam para o ar, o café ficamenos quente, e, deste modo, vai se res-friando gradualmente.

Manchas esbranquiçadas

Existe uma quantidade muito grandede moléculas escapando do café e subindopara o ar. Mas quando elas assim o fazem,ganham espaço, no ar, para se expandir,com consequente diminuição de energiatérmica. Isto faz com que este grupo demoléculas de vapor de água se resfrie e,em seguida, mude para o estado líquidonovamente. Deste modo, uma vez queevapora e sobe, o vapor de água perdeenergia, tornando-se líquido novamente.Ele se condensa a uma altura bem próxi-ma à superfície livre do café. Quando noestado líquido, as moléculas de água seaglutinam, formando como que mini-nu-vens de água logo acima da superfície do

Figura 1 - Manchas esbranquiçadas sobre a superfície do café quente.

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café, ocasionando, desta maneira, asmanchas esbranquiçadas vistas na Fig. 1.

De que forma as manchas de águase mantêm acima da superfícielivre do café?

Enquanto o café estiver bem quente,haverá moléculas de café líquido escapan-do das ligações de líquido e subindo parao ar. Estas inúmeras moléculas, ao subir,empurram para cima as moléculas deágua da mancha (que já haviam se con-densado). Portanto, são as inúmerasoutras moléculas de água se desligando docafé e subindo, que causam uma força as-cendente que equilibra o peso da manchaesbranquiçada de água, sustentando amesma acima da superfície.

Por que as manchas não cobremtoda superfície livre do café?

A parte interna do café está maisquente que sua superfície, uma vez queesta última está em contato com o ar, per-dendo calor para ele, que, aliás, é perdidoprincipalmente por evaporação e irradia-ção. Quando um fluido apresenta regiõesde diferentes temperaturas, estabelece-seem seu interior correntes de convecção. Aregião do interior do café que está umpouco mais quente é menos densa que asregiões um pouco mais frias. O café maisquente e menos denso sobe, enquanto ocafé mais frio e mais denso, desce, estabe-lecendo-se em seu interior correntes deconvecção (Fig. 2). As manchas se for-mam justamente nas regiões da superfíciepor onde está chegando o fluxo ascendentede café quente, com moléculas mais ener-géticas.

Por que as manchas apresentamesta cor esbranquiçada?

Um corpo, quando iluminado comluz branca, é visto de cor branca quandoreflete as componentes que formam estaluz. A água reflete difusamente e de modoaproximadamente uniforme a luz branca,

não favorecendo ne-nhuma de suas fre-quências componentes,daí a razão das nuvenstambém se apresenta-rem com esta cor nocéu. Aliás, o processo deformação das nuvensreais é similar ao deformação destas man-chas sobre o café: a águade rios, lagos e maresevapora, o vapor deágua sobe por ser me-nos denso que o ar e, aosubir, se expande, se es-

fria, se condensa e forma as nuvens. Obvia-mente este fenômeno ocorre em outrasbebidas que têm como base a água, comopor exemplo o chá quente; no entanto, porser o café escuro e as manchas de água es-branquiçadas, o contraste facilita sua vi-sualização.

Mais curiosidades

Quando assopramos a superfície docafé para acelerar seu resfriamento, o quefazemos é “arrancar” estas manchas, des-locando o equilíbrio no sentido de favo-recer que mais moléculas escapem para oar, uma vez que a barreira de água foiretirada. Café evaporando mais rapida-mente é sinônimo do café perdendo suasmoléculas mais energéticas mais rapida-mente, o que acelera seu resfriamento.

Um pouco mais sobre evaporação

A velocidade de evaporação V (massaque evapora na unidade de tempo) é dadapela fórmula empírica de Dalton, que tra-duz a influência de vários fatores sobre ofenômeno

,

onde K é uma constante característica decada líquido e apresenta valor alto para lí-quidos voláteis (éter e álcool) e baixo paralíquidos fixos (óleo, mercúrio); A é a áreada superfície do líquido em contato com oambiente externo e que pode evaporar; noteque a velocidade de evaporação é direta-mente proporcional a esta área, daí esten-der-se a roupa no varal para que evaporemais rapidamente; Pext é a pressão externa,quanto maior seu valor, mais lenta a eva-poração do líquido, pois o aumento da pres-são externa dificulta o escape de moléculaspara o ambiente; F é o valor da pressãomáxima de vapor, que, por sua vez, au-menta com a temperatura; portanto, fixan-do-se outros parâmetros, quanto maior atemperatura do líquido, mais facilmente iráse evaporar, e f é a pressão parcial de vapor

junto ao líquido; note que quanto maisvapor do líquido estiver ao seu redor, maisdifícil será do líquido evaporar. Não pre-sente na fórmula, a evaporação dependetambém do vento local, ou seja, do movi-mento relativo dos gases nas proximidadesdo líquido que está evaporando. Fixando-se os outros parâmetros, quanto maior ovento, maior também será a velocidadecom que o líquido evapora.

Por fim, vale lembrar que, quando olíquido evapora, ele rouba calor da subs-tância ou superfície com a qual estava emcontato, o que está associado com o pro-cesso de termo-regulação de nosso orga-nismo: suamos e, quando o suor evapora,resfriamos. Note que em um ambientecom vento, o suor evapora mais rapida-mente e conseguimos nos refrescar maisfacilmente. Note ainda que em locais úmi-dos, a variável f da fórmula é alto, o quedificulta a evaporação de nosso suor, oque faz com que experimentemos umasensação de desconforto e de abafado.

Sugestão para sala de aula

O exemplo deste artigo talvez seja maisbem aproveitado como um experimento in-vestigativo depois que os temas relativosao assunto já tenham sido tratados peloprofessor e, deste modo, ajude o aluno aperceber a união dos conceitos físicos que,por razões didáticas, por vezes são ensi-nados em tópicos separados e desconexos.Uma possível maneira de utilização:

Lição de casa para o aluno

1) Pedir aos alunos que observem combastante atenção, com bastante ilumina-ção e sob um ângulo inclinado em relaçãoà vertical, a superfície do café no interiorde uma xícara enquanto ele ainda estiverbem quente.

2) Revise os conceitos de vaporização,evaporação e ebulição

3) Revise os conceitos de transmissãode calor por irradiação, condução e con-vecção.

4) Revise o conceito de cor.5) Pesquise qual a razão das nuvens

possuírem uma coloração esbranquiçada.6) Pesquise sobre a formação de nu-

vens.

Em sala

1) O professor deve providenciar xí-caras de café bem quente para que possamser observadas durante a aula e, se possí-vel, lentes de aumento (lupas).

Perguntas que podem serformuladas

1) O que vocês observam sobre a su-perfície?

Figura 2 - Esquema das células de convecção.

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Saiba mais

J. Ingram, Manchas de Café (Edi-ouro, Rio de Janeiro, 2003), cap. 4.

R. Feynman, Lectures on Physics(Addison-Wesley, Menlo Park, 1977),v. 1, p. 1-5.

F. Ramalho Junior, N.G. Ferraro eP.A.T. Soares, Os Fundamentos da Física(Editora Moderna, São Paulo, 2007)v. 2, 6ª ed., p. 111-113.

G.J. Biscuola, R.H. Doca e N. Vil-las-Boas, Tópicos de Física (Ed. Saraiva,São Paulo, 2009), v. 2, p. 297.

2) O que vocês acreditam ser estasmanchas?

3) Qual a diferença entre as partes cla-ras e escuras na superfície do café?

4) Tentem observar se as manchasclaras e as partes escuras estão exatamenteno mesmo nível.

5) Por que vocês acham que as man-chas possuem esta cor esbranquiçada?

6) O que vocês acreditam que man-tém as manchas um pouco acima da su-perfície?

7) Existe alguma semelhança, no quediz respeito à física, entre estas manchase as nuvens do céu?

Papel do professor

1) Fazer as perguntas.

2) Listar na lousa as respostas.3) Pedir que os próprios alunos, usan-

do aquilo que revisaram e pesquisaramem casa, tentem levantar argumentos quesejam a favor ou contra as respostas queforam dadas.

4) Coloque, ele próprio, argumentosque ajudem no fluir da discussão.

Considerações finais

Tudo indica que para se levar a cabo oprocedimento e discussão propostos acimaserá necessário o tempo de uma aula intei-ra, o que talvez inviabilize a discussão, umavez que a falta de tempo tem se mostradouma das reclamações mais frequentes dosprofessores do Ensino Médio. Por outrolado, o ganho que se pode ter, ajudando os

alunos a contemplar a física que viram emsala de aula em algo tão simples de seuscotidianos, poderá ser de muita valia.

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Professores e estudantes do quintoano da Escola Municipal TancredoNeves, de Ubatuba, litoral norte

paulista, estão construindo um satéliteartificial que deve ser lançado nos EstadosUnidos e entrar em órbita ainda neste ano.

A iniciativa, que conta com o auxíliode empresários e pesquisadores, partiu doprofessor de matemática Candido Osvaldode Moura, que em fevereiro de 2010conheceu os kits de satélites TubeSats, pormeio da revista Interorbital1.

O satélite deve permanecer em umaórbita a 300 quilômetros de altitude du-rante três meses. Durante esse tempo vaiemitir uma mensagem cujo conteúdo estásendo escolhido por meio de concurso rea-lizado entre os estudantes.

A edição de janeiro da revista SatMa-gazine , especializada em satélites, citouo trabalho realizado em Ubatuba: “OTubeSats já é parte do currículo de uni-versidades e escolas ao redor do mundo.Talvez o mais ambicioso projeto esteja no

Satélite montado por estudantes brasileiros deve entrar em órbita

Brasil em um programa coordenado porCandido Osvaldo e Emerson Yaegashi, noqual 120 estudantes criaram 22 maquetesdo TubeSats em sala de aula. Os alunosque construírem as melhores maquetesganharão a honra de montar o TubeSatorbital real”.

Sérgio Mascarenhas, coordenador deprojetos do Instituto de Estudos Avan-çados (IEA) da Universidade de São Paulo(USP) em São Carlos, tem acompanhadocom entusiasmo a construção do satélitede Ubatuba: “O apoio à iniciativa do pro-fessor é a saída para melhorarmos a

Notas1http://interorbital.com/TubeSat_1.htm.2http://www.thedevelopersconference.com.br/tdc/2010/sp/videos/aprendendo-a-fabricar-placas.

Concepção artística de um TubeSat em órbita.

Detalhe da montagem do transmissor deum TubSat típico.

educação no Brasil”, comenta. Em férias,o professor Candido Osvaldo de Mouranão foi encontrado para comentar oprojeto que ele coordena.

O vídeo “Mão na massa: aprendendoa soldar, criar placas, corroer e fabricarplacas no seu escritório”2 contém etapasdo processo de produção das placas pelosprofessores e pelas crianças – como a im-pressão, usando ferro de passar roupa.

Fontes: Portal Pion e Revista Fapesp.