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GT ANPOLL – RELAÇÕES LITERÁRIAS INTERAMERICANAS AMERICANIDADE/AMERICANIZAÇÃO Zilá Bernd UFRGS/CNPQ Mérica, Mérica, Mérica, Cosa sarà la sta Mérica? Mérica, Mérica, Mérica, L’è un bel massolino di fior. (Anônimo) Definindo os objetivos Os objetivos da presente reflexão são muito ambiciosos, talvez demasiadamente ambiciosos e por isso pode acontecer que seu percurso fique inacabado. Mas acreditamos que valha a pena tentar refazer a trajetória que o conceito de americanidade perfaz através das Américas, retraçando seus deslocamentos, suas transferências e as razões pelas quais ele é ora reivindicado ora rejeitado, pairando quase sempre sobre ele o manto diáfano da ambigüidade. Justifica-se o esforço por ser um conceito intimamente associado às questões de identidade, podendo corresponder a um anseio de afirmação identitária mais abrangente, para além das nacionalidades, dos gêneros e das etnias, por tratar-se de um desafio de identificação continental. Pensando-se na extraordinária heterogeneidade do continente americano, esta proposta parece irrisória: como identificar-se a algo com tantas facetas onde convivem a riqueza e a pobreza, onde os desníveis econômicos e sociais são imensos e onde tantas culturas se mesclaram em diferentes momentos de sua história? Outro obstáculo talvez ainda mais difícil de vencer é que a proposta de adesão a uma identidade continental obriga a romper com os tradicionais pontos de referência

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GT ANPOLL – RELAÇÕES LITERÁRIAS INTERAMERICANAS

AMERICANIDADE/AMERICANIZAÇÃO

Zilá Bernd

UFRGS/CNPQ

Mérica, Mérica, Mérica,

Cosa sarà la sta Mérica?

Mérica, Mérica, Mérica,

L’è un bel massolino di fior.

(Anônimo)

Definindo os objetivos

Os objetivos da presente reflexão são muito ambiciosos, talvez

demasiadamente ambiciosos e por isso pode acontecer que seu

percurso fique inacabado. Mas acreditamos que valha a pena tentar

refazer a trajetória que o conceito de americanidade perfaz através das

Américas, retraçando seus deslocamentos, suas transferências e as

razões pelas quais ele é ora reivindicado ora rejeitado, pairando quase

sempre sobre ele o manto diáfano da ambigüidade. Justifica-se o

esforço por ser um conceito intimamente associado às questões de

identidade, podendo corresponder a um anseio de afirmação identitária

mais abrangente, para além das nacionalidades, dos gêneros e das

etnias, por tratar-se de um desafio de identificação continental.

Pensando-se na extraordinária heterogeneidade do continente

americano, esta proposta parece irrisória: como identificar-se a algo com

tantas facetas onde convivem a riqueza e a pobreza, onde os desníveis

econômicos e sociais são imensos e onde tantas culturas se mesclaram

em diferentes momentos de sua história? Outro obstáculo talvez ainda

mais difícil de vencer é que a proposta de adesão a uma identidade

continental obriga a romper com os tradicionais pontos de referência

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étnicos, lingüísticos e nacionais que são os que, via de regra, criam entre

os indivíduos a noção de pertença a uma comunidade. A grande

vantagem é que a noção de americanidade - com suas variantes

“américanité” e “americanidad” - obriga a introduzir a dimensão da

alteridade na reflexão sobre o identitário, podendo se constituir como

uma espécie de não-lugar identitário para as populações migrantes.

Antes de entrar na questão propriamente dita da migração do

conceito de americanidade através das Américas, para questionar a

oportunidade ou não de sua utilização no despertar do século XXI, cabe

mencionar, ainda que brevemente, alguns esforços já empreendidos no

sentido de tentar apreendê-lo e projetá-lo no âmbito dos estudos

literários no Brasil. Em 1995, editou-se Literatura e americanidade

(Editora da UFRGS) onde o conceito foi usado no sentido de pertença à

América, com ênfase na possibilidade de contribuir para o esgarçamento

de determinadas fronteiras indevidamente impostas entre as literaturas

americanas, permanecendo a Europa como comparante incontornável.

Já neste livro foram lançados desafios para a prática de um

comparatismo literário interamericano. No mesmo ano de 1995,

Imprevisíveis Américas (Sagra Luzzatto/ ABECAN) teve a intenção de

discutir questões de hibridação cultural nas três Américas e de

interrogar-se sobre a possibilidade de as Américas possuírem uma

cultura que, apesar de sua prodigiosa heterogeneidade, teria em comum

o trabalho de e sobre o híbrido. Em 2000, essa obra coletiva teve uma

versão revista e aumentada, editada em inglês, em Amsterdan, sob o

título de Unforseeable Americas; questionning cultural hybridity in the

Americas, onde foi empreendido o questionamento mais aprofundado da

hibridação cultural nas Américas. A criação do GT- Relações literárias

interamericanas da ANPOLL, no ano 2000, deixou claro o interesse de

mais de 20 pesquisadores de diferentes universidades brasileiras de

exercer um comparativismo literário entre as Américas, exercício esse

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que implica a revisão de muitos conceitos teóricos entre os quais o de

americanidade.

Nossa caminhada será longa, pois temos que antes de mais

nada nos entender sobre o que significam as expressões: americano/a,

americanidade, americanização e até mesmo América. Se formos

buscar ajuda no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, ele nos

confirma que “americano” é uma noção imprecisa, relativa em geral à

América do Norte, em especial aos Estados Unidos; em uma segunda

acepção, americano figura como relativo à América ou a qualquer país

deste continente. Enquanto, “americanizado” é referente à semelhança

com os americanos dos Estados Unidos e “americanização” é o efeito de

americanizar-se, de querer tornar-se semelhante aos cidadãos que

vivem nos Estados Unidos da América por admiração ao seu modo de

vida. A ambigüidade vem do fato desses cidadãos não se nomearem

estadunidenses, mas americanos, num processo metonímico

hipervalorizante. Enquanto os habitantes dos países latino-americanos

estavam se empenhando em definir-se como argentinos, uruguaios,

colombianos, brasileiros, etc, implicados em resolver a questão da

identidade nacional, os estadunidenses se apropriaram dos termos

América e “americano”, fazendo com que hoje, quando se fala de

“cultura americana” ou “cinema americano” ou simplesmente quando

dizemos que “fulano é americano”, por exemplo, associa-se o adjetivo,

em primeiro lugar, aos Estados Unidos.

Uma das personagens de Noël Audet, ao viajar do Quebec aos

Estados Unidos, é impedida de entrar no país pelos funcionários da

alfândega que a proíbem de entrar na “América”. “Sans blague, proteste-

t-elle, j’habite déjà en Amérique!” Elle a envie de leur crier des injures, de

leur dire qu’ils ont usurpé à leur seul usage le nom d’Américains” (Audet,

1995, p.171).1 Já Maximilien Laroche, em seus ensaios vem, desde os

anos noventa, alertando para esta situação que nos impede de

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nomearmos a nós mesmos de americanos sem correr o risco da

ambigüidade. Ele chama a atenção para a necessidade de romper com o

círculo vicioso que une obrigatoriamente “uma certa palavra a uma coisa:

a palavra americanidade, por exemplo, e a realidade América do Norte e,

mais particularmente, esta palavra e a realidade dos EUA” (Laroche,

1992, p.193). O interessante no texto de Laroche é que ele não apenas

constata a apropriação do termo pelos estadunidenses, como destaca os

efeitos de ambigüidade que dela decorrem, passando para uma

argumentação vigorosa em favor da reversão desta situação e propondo

que redescubramos a América, ou que juntos – latino-americanos,

antilhanos, brasileiros, quebequenses - a reinventemos. Neste sentido,

ele cita os autores Bell Gale Chavigny e Gari Laguardia que, no livro

Reinventing the Americas, comparative studies of literature of the United

States and Spanish America (Cambridge University Press, 1986),

afirmam que “a reinvenção da América deve começar pela

demonstração (revelação) da incoerência retórica que cometemos a

cada vez que designamos os Estados Unidos pelo signo ‘América’ um

nome que pertence de direito aos hemisférios” (Chavigny e Laguardia,

1986, p.VIII, apud Laroche, 1992, p.195).

Percurso brasileiro

No século XVIII, José Basílio da Gama compõe O Uraguai

(1769), obra que está nos fundamentos da identidade nacional,

invocando o “gênio da inculta América” (canto IV) o que corresponde à

personificação da Musa invocada inicialmente no canto I. Menciona

ainda no canto V, a “Liberdade Americana” (com maiúsculas) e refere-se

aos índios vencidos das Missões jesuíticas como o “rude Americano,/

que reconhece as ordens e se humilha,/ e a imagem de seu rei prostrado

1 “Isto é brincadeira, protesta ela, eu já moro na América! “Ela tem vontade de gritar-lhes injúrias, de dizer-lhes que eles usurparam, para seu uso particilar, a denominação de americanos”. (A tradução é minha)

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adora” (GAMA, V, 137-139). Recuando ainda mais no tempo,

encontramos numerosas citações de Vieira (1608-1697) que incluem a

palavra América em referência ao continente, como o Sermão Vigésimo

Sétimo, em relação aos escravos: “e passam da mesma África à América

para viver e morrer cativos” (Vieira, 1981, p.84); ou o Sermão do Espírito

Santo : “e o pudera dizer com muita razão aos nossos da América”

(Vieira, 1981, p.142). Mas talvez seja no Sermão da Epiphania onde

apareça mais nitidamente sua concepção da América como um todo

onde o Brasil se inclui. Menciona ainda o fato de os três reis magos

representarem a Ásia, a África e a Oceania. E a América, o Novo Mundo,

como fica, indaga o padre (Vieira, 1957, p.206-209), clamando para que

esta nova terra seja mais respeitada.

Destaque-se, portanto, que, no que se refere ao Brasil, nem

sempre se cometeu a “incoerência retórica” de que falam os críticos

acima mencionados, pois a historiografia literária brasileira nos mostra

que, do século XVII ao XIX, circulava a palavra “americano” em

referência ao Brasil. José de Alencar, no prefácio ao romance Sonhos

d’ouro (1872), ao introduzir a expressão “literatura nacional”, fala em

“seiva americana”:

A literatura nacional, que outra coisa não é senão a alma da pátria,

que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da

seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço, e cada dia se enriquece ao

contato de outros povos e ao influxo da civilização.

Mais adiante, no mesmo prefácio, ao falar das três fases da

literatura brasileira, reconhece que na segunda, a histórica, “se dá o

consórcio do povo invasor com a terra americana e a lenta gestação do

povo americano” (os grifos são meus). Como se vê, fica bem claro que

no século XIX, o discurso social punha em circulação o ideologema

americano/a como equivalente de brasileiro/a. Luiz Roberto Cairo, em

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artigo intitulado “Francisco Adolfo Varnhagen e o instinto de

americanidade” (2000), investiga o que seja o instinto de americanidade

“que tão de perto parece ter acompanhado a construção do instinto de

nacionalidade na literatura brasileira”. Em seu artigo, Cairo cita Hélio

Lopes (1997) que definiu o americanismo como “uma exaltação do

continente americano, visto como um dos aspectos do nacionalismo

romântico brasileiro”(Cairo, 2000, p.86), chegando mesmo a afirmar que

o “americanismo” dos românticos brasileiros consistia em uma

usurpação do termo América: “chega-se a roubar o próprio nome da

América para restringi-lo ao Brasil” (Lopes, 1997, apud Cairo, 2000,

p.86). Esta constatação de “usurpação” da palavra América pelos

românticos, em referência ao Brasil, é prova inequívoca de que os

ideologemas viajam e que o “pecado” de usurpação cometido pelos

estadunidenses já fora cometidos por nossos poetas românticos. Não

seria difícil construir hipóteses sobre o porquê e o quando esta prática

deixa de ser costumeira. Acreditamos que “América” e “americano” foram

gradativamente substituídos por “Brasil” à medida que se consolidava o

projeto nacional e que institucionalizar as letras brasileiras tornou-se

uma urgência. Valeu enquanto significava oposição à Europa; quando

os Estados Unidos passam a exercer influência sobre a América Latina,

o interesse passa a ser o de se demarcar de um ideologema ambíguo

em favor de um que representasse nossa identidade de maneira

inequívoca como Brasil, brasilidade e brasileiro. Outra hipótese é

levantada por Donaldo Schüler, em seu mais recente livro (2001), onde

ele reflete sobre “O fazer literário no espaço americano”. Para o crítico

gaúcho,

O mapa do continente americano emerge das lutas por independência

manchado de nacionalidades, fragmentos de unidades impostas, herança de conflitos

distantes. As unidades políticas se isolam ressentidas, mutuamente hostis.

Desenvolvem-se inseguras, carentes. Nascidas de batalhas contra o autoritarismo de

cabeças coroadas, não cessa a resistência à subordinação imperialista, rapineira,

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culpada pela transferência de nossas riquezas para outros territórios. O receio de que a

influência alienígena contamine legados culturais de que nos orgulhamos dissemina

cautelas. (Schüler, 2001, p.12)

Os modernistas, a começar por Mário de Andrade, vão tentar

definir a essência da brasilidade, sempre em oposição à Europa,

interessando-lhes acima de tudo a construção da língua e da cultura

nacionais. Suas sínteses não englobavam de forma alguma a Europa;

Mário de Andrade volta os olhos para a América, ao recolher, para

compor Macunaíma, mitos e lendas de toda a América Latina, tentando

integrá-los em uma única narrativa:

- Paciência manos! Não vou na Europa não! Sou americano, o meu lugar é

na América. A civilização européia na certa esculhamba a inteireza do nosso caráter.

(Andrade, 1975, p.145)

Sem dúvida, os postulados da Antropofagia prefiguram-se como

emergência do que hoje estamos chamando de americanidade, ao

preconizar uma identificação distintiva ao continente americano. O

poema Cobra Norato, de Raul Bopp (escrito em 1928 e editado em

1931), precursor da Antropofagia, ao apelar aos mitos cosmogônicos da

Amazônia, associados à renovação, e ao aderir ao imaginário mágico-

sacral dos nativos da América (“Agora sim, me enfio nesta pele de seda

elástica (da cobra) e saio a percorrer o mundo”) está fazendo prevalecer

a visão de mundo autóctone e afro-americana, sobre o racionalismo

europeu.

Percurso quebequense

No contexto quebequense, talvez seja ainda mais complexa a

relação com a América, pois sabe-se que a dupla colonização do

Québec, primeiramente pelos franceses em 1534 e depois pelos

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ingleses em 1760, deixou uma ferida difícil de cicatrizar. Todo o

empenho em preservar a língua e a cultura francófonas no território da

província do Quebec teve que ser feito ao mesmo tempo a favor e contra

a França, num jogo de ambivalências que perdura até hoje. A favor da

França por ser imperioso para a comunidade preservar a herança do

patrimônio cultural francês e contra ela, pois o ressentimento de terem

sido laissés pour compte, quando da invasão inglesa, foi um trauma

difícil de resolver. Por isso, parece à primeira vista paradoxal que a

cultura francesa seja tão ferrenhamente defendida, enquanto os

franceses (“les Français de France”) sejam considerados como os

“maudits français” (malditos franceses). Esta situação determinou uma

busca de afirmação identitária calcada no repli sur soi (no

ensimesmamento), num retorno nostálgico ao passado e numa

demarcação territorial circunscrita aos limites da província. A célebre

expressão “nous autres québécois” (nós, os quebequenses) é reveladora

de uma identidade de raiz única, voltada para a determinação e

valorização da história, da língua, da religião, da cultura e dos valores

herdados da colonização francesa. Esta postura de preservação

caracterizou a afirmação identitária como defensiva, distante da fórmula

dos antropófagos brasileiros cuja proposta era preferencialmente

agressiva, de devoração da cultura do outro. No contexto do Quebec, o

outro que ameaça o equilíbrio instável da cultura quebequense, foi, à

época da invasão, a Inglaterra, passando depois a ser representado pela

América anglófona, ou seja pelas províncias canadenses de língua

inglesa e pelos Estados Unidos.

Só bem recentemente, a partir dos anos 70 do século passado,

começa a haver uma abertura no debate identitário, com a inclusão de

um número maior de interlocutores, representados pelos numerosos

contingentes imigratórios que chegaram ao Quebec nos dois últimos

séculos. Léon Bernier (2001) destaca a dificuldade para alguns

quebequenses em pensar a identidade como um sistema de círculos

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concêntricos (identidade quebequense, canadense, americana),

confundindo americanidade (américanité) com estadunidade. Porém,

sobretudo entre os mais jovens, verifica-se a percepção de que o

desenvolvimento de uma consciência continental, não se traduz pelo

apagamento do sentimento de pertença a uma sociedade distinta, o

Quebec.

A americanidade não se confunde com americanização (assumir

o american way of life), pois remete – ao contrário – à inserção de um

dialogismo, como oposição ao “consenso globalizante da anglofonia”.

Como, nos dias de hoje, a grande maioria dos quebequenses são

descendentes de imigrantes das mais diversas origens, emerge no

Quebec uma francofonia mestiça, caracterizada pela permeabilidade e

pela integração de distintos socioletos. Este é o ponto de vista de Van

Schendel (2001) que introduz o conceito de americanidade da francofonia como vetor de uma pluralidade de pontos de vista e

contraponto dialógico à globalização.

Gérard Bouchard, em Génèse des nations et cultures du

Nouveau Monde (2000), vale-se reiteradas vezes do conceito de

americanidade emprestando-lhe um sentido de resistência à atitude de

buscar sempre referências na Europa. Para ele, o conceito é paralelo ao

de africanidade ou antilhanidade, designando “a soma das transações

através das quais os membros de uma população nomeiam e ou

sonham com seu habitat” (Bouchard, 2000, p.23). É interessante notar

também que americanidade designa, em sua reflexão, as marcas que a

cultura e o falar populares adquirem por distanciarem-se dos padrões da

norma culta emanada da Europa. Assim, ele afirma que a literatura

erudita ficava muito tolhida pela norma da língua francesa, nutrindo uma

relação de menosprezo com a cultura popular o que afastava os

escritores “de uma americanidade viva e robusta que, aliás, forneceu

um rico material às práticas discursivas” (Bouchard, 2000, p. 126). O

emprego que faz do conceito é muito positivo, chegando mesmo a

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afirmar que só emerge uma literatura quebequense, a qual irá nomear a

nação que passará a chamar-se Quebec, quando a cultura se torna

realmente americana, isto é, deixa-se impregnar pelos neologismos,

impurezas, anglicismos e transgressões associados à redescoberta da

América. As mestiçagens seriam as figuras da americanidade, assim

como, no contexto latino-americano, o crioulo, em um primeiro tempo, e

depois o mestiço se tornam figuras autênticas da americanidade. Para

o autor, a americanidade da América Latina está inacabada porque os

processos de continuidade e ruptura (em relação aos modelos europeus)

vêm se alternando e os mecanismos de apropriação simbólica não

estão ainda inteiramente concluídos.

Jean Morisset é bem mais reticente em relação ao idelogema da

americanidade, colocando-o sob suspeição, por se tratar de um

neologismo que surge na América hispânica – americanidad 2 – e por

continuar sendo associado apenas aos Estados Unidos. É interessante

notar que não há um equivalente em inglês para esta palavra, o que nos

leva a crer que o idelogema não circula – ou ao menos não com este

rótulo – no contexto anglófono. Neste sentido, o geógrafo da cultura e

comparatista que assinou numerosos artigos de envergadura

comparatista Quebec/ Brasil, prefere falar de Américas no plural, para

eliminar toda e qualquer ambigüidade e para introduzir a perspectiva da

diversidade e da pluralidade.

Pierre Nepveu, em Intérieurs du Nouveau Monde; essais sur les

littératures du Québec et des Amériques, esclarece já no prefácio suas

restrições em relação à noção de americanité, segundo ele, “neologismo

quebequense que freqüentemente significou (e significa cada vez

menos, felizmente) uma imensa ignorância da América e sua redução a

valores estereotipados nos quais não me reconheço: primitivismo,

naturalismo, anti-intelectualismo, mitologia dos grandes espaços,

sacralização da juventude e do novo” (Nepveu, 1998, p.7). Contudo, a

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relação de abertura que o autor propõe com respeito à América, faz do

livro um ponto de referência obrigatório para quem pretende se deter

nesta questão das relações entre as identidades nacionais e uma virtual

identidade continental, que não se confunde com homogeneização nem

com melting pot, mas com dispositivo de ruptura com a idéia limitadora

de fronteiras e de limites, ampliando-se as noções de espaço. O que é

acima de tudo valorizado, na revitalizante proposta de Nepveu, é a

possibilidade que a americanidade - ou como quer que queiramos

chamar as tentativas de estabelecimento de diálogo entre as Américas -

oferece às literaturas, por mais ligadas que estejam a culturas

particulares, de se abrirem a outras influências para, depois, voltarem

mudadas, “carregadas de imagens e de idéias novas” (Nepveu, 1998,

p.9).

Outro instigante ensaio que traz à baila a questão da

americanidade é Le mythe américain dans les fictions d’Amérique, de

autoria do crítico quebequense Jean Morency (1994). Comparando

autores estadunidenses e quebequenses conclui sobre a presença, no

corpus selecionado, de um mito unificador centrado no princípio da

renovação. A esse mito de renovação ele chama de mito americano o

qual constituiria a grande narrativa das metamorfoses do homem em

contato com o Novo Mundo e sua tentativa de superação dos conflitos

iniciais.

Para encerrarmos, a tentativa de cartografar as migrações do

ideologema da americanidade, no que se refere ao Quebec, é oportuno

destacar a posição do historiador quebequense Yvan Lamonde. Em

recente artigo (Le Devoir, out. de 2001), Lamonde desabafa criticando

justamente a inflação da noção de americanidade nos últimos tempos,

sobretudo a partir da Cúpula das Américas (Sommet des Amériques),

que aconteceu em Quebec, em abril de 2001. Ele quer evitar que a

2 Americanidad: expressão de uso corrente na América Latina no século XIX, para sublinhar a existência de uma outra América, a América Latina, diferente da América do norte anglo-saxã. (cf Thériault, J.Y., 2001)

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noção de americanidade inflame as consciências e se torne um novo

messianismo. Apoiado em suas pesquisas, aponta a necessidade de

lembrar que a americanidade é apenas um dos componentes da

identidade histórica do Quebec. Faz questão de sublinhar o ordinal “um”

porque é preciso não esquecer que as experiências que ligaram o

Quebec à França, como primeiro colonizador, e à Inglaterra, como

segundo, foram tão determinantes para a formação da identidade

quebequense quanto a experiência americana. Como se vê, ele entende

por americanidade a constatação (e a aceitação) de pertencer ao

continente e de vivenciar experiências americanas. Lembra que há uma

síntese a realizar e que essa síntese deve incluir todas as heranças, logo

a americanidade e a europeidade, e que a noção de americanidade não

deve se confundir com uma aceitação incondicional da americanização

“ou de qualquer forma de imperialismo, garantindo a vigilância contra

qualquer projeto em que o econômico venha a comandar a

continentalização do imaginário e da cultura”. (Lamonde, 2001)

Percurso caribenho

Os ideologemas não apenas viajam como se

metamorfoseiam e se travestem, a exemplo dos tricksters que povoam o

imaginário americano. Assim, em 1927, quando surge no Haiti a Revue

Indigène, seus objetivos são os de chamar a atenção para o que havia

de mais recuado nas Américas antes da chegada dos conquistadores: os

índios (caraíbas e arawakes) que, no caso do Caribe, sofreram o

genocídio logo nos primeiros séculos. A palavra de ordem do manifesto

de Normil Sylvain, publicado no n. 1 da Revue Indigène, parece ser o da

renovação o que não significa fazer tábula rasa dos aportes culturais

europeus, mas “construir uma doutrina original” a partir dos modelos

existentes. Há um desejo manifesto de integração com a América Latina,

propondo que o cordão de isolamento erguido entre a América hispânica

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e a América francesa seja rompido. A noção de identidade apresentada

pelos articuladores da revista ultrapassa os limites dos essencialismos

como o que leva os latino-americanos a definirem-se como índios ou

negros. Somos antes de tudo homens, afirma Sylvain, concluindo que os

haitianos devem exorcizar a culpa de ignorar a América Latina e tomar

consciência de que “um perigo comum nos ameaça”, ou seja a alienação

cultural e o franco-tropismo que leva a cultura das elites a adquirir um

caráter imitativo e subalterno. Trata-se, como o Manifesto Antropófago

brasileiro, publicado menos de um ano mais tarde, de uma proposta

clara de voltar-se para a América, assumindo com orgulho o termo

indigène (indígena) que fora usado como insulto. Falar a partir de um

“ponto de vista indígena”, isto é, autóctone, americano é a proposta que

encerra o primeiro número da Revue Indigène, coincidindo com os

pressupostos dos modernistas brasileiros com o seu lema “Tupi or not

Tupi”. Reatar com uma tradição americanista interrompida parece ser a

tendência dos intelectuais haitianos de 1927, convergindo com as teses

da Antropofagia, que se inspiraram do ritual antropofágico dos primeiros

habitantes da América, os tupinambás, para formular sua teoria da

cultura nacional.

Seis décadas mais tarde, em 1989, um outro manifesto eclode

no região do Caribe de língua francesa, intitulado Elogio da Crioulidade (Éloge de la créolité), assinado pelos martinicanos Jean Bernabé, Patrick

Chamoiseau e Raphael Confiant. A crioulidade é um agregado

interacional (de influências recíprocas) ou transacional (acordo que tem

por base concessões recíprocas) de elementos culturais caribenhos,

europeus, africanos, asiáticos, etc. que a história reuniu em um mesmo

solo. É, portanto, fruto de um turbilhão de significados em um só

significante, constituindo uma especificidade aberta, contrariamente à

Negritude que se concentrava em torno de uma “especificidade

fechada”: a etnia e a cultura negras. Seus autores distinguem

americanidade, antilhanidade e crioulidade, conceitos que poderiam, no

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limite recobrir as mesmas realidades. Os processos de americanização

(entendidos aqui não como desejo de tornar-se estadunidense, mas

como processo contínuo de identificação com as Américas) e o

sentimento de americanidade dela decorrente serviriam para descrever

processos de adaptação progressiva das populações ao chamado Novo

Mundo. Diferente seria o processo de crioulização que designaria o

“contato brutal de populações culturalmente diferenciadas que foram

levadas a inventar novos esquemas culturais, para permitir sua

coabitação” (Bernabé, et alii, 1989, p.30). Definida desta maneira, a

crioulidade englobaria a americanidade, pois implica um duplo processo:

- a adaptação de europeus, africanos asiáticos ao Novo

Mundo;

- a confrontação cultural entre esses povos num mesmo

espaço, levando à criação de uma cultura sincrética, dita

crioula.

Edouard Glissant, que havia proposto a superação da negritude

através do conceito de antilhanidade (Discours Antillais, 1981), fornece

com suas teorizações sobre o Diverso e a Relação (Poétique de la

Relation,1990), sólidas bases para a crioulidade. Embora a princípio,

tivesse sido um crítico dos signatários do Éloge, acaba por avalizar o

conceito, preferindo, contudo, imprimir-lhe um caráter dinâmico, através

da introdução do termo: crioulização, que remete ao devir inerente ao

conceito de identidade.

Em uma publicação recente, Walter Mignolo (2000, p.239-249),

reflete sobre a crioulidade que considera um caso especial de

pensamento da margem (border thinking), onde as diferentes

populações em presença no espaço do Caribe são chamadas a

inventar novos projetos culturais que lhes permite coexistir. Seria,

portanto, resposta à busca de uma outra lógica, a lógica da diversidade,

e de um outro pensamento, o pensamento da margem (Mignolo, 2000,

p.247).

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No contexto do Caribe, vários são os autores que se referem à

americanidade de forma recorrente, como o já citado Maximilien

Laroche, René Depestre e Dany Laferrière. Nos limites do presente

artigo, não é possível dar conta de todos os usos do termo e, portanto,

vamos nos limitar a mencionar um artigo recente de Dany Laferrière,

intitulado “Je suis en Amérique” (2000). Sendo de origem haitiana e

cidadão canadense, viveu no Quebec e residindo atualmente Estados

Unidos, o escritor se situa num entre-lugar que é americano. Afirma ter

o sentimento de pertencer à América e não à Europa (embora sinta-se

ligado à França através da língua) ou à Africa (ligação com a cultura

dos antepassados). A América, para ele, seria um lugar de

cruzamentos: escrever em francês, no jardim da casa de sua mãe no

Haiti, contos que ela lhe contara em créole, faz dele um americano,

como se o continente americano fosse uma espécie de elo de ligação

entre dois mundos, um espaço de hibridação. Já que ele não é mais

apenas haitiano, nem inteiramente canadense (ou quebequense), ele

prefere nomear-se americano, como forma de reconhecer-se em uma

identidade mais ampla. Prefere, portanto, ser reconhecido não como

escritor francófono (palavra inventada pelos franceses), mas como

escritor americano que escreve em uma língua francesa crioulizada.

Percurso hispano-americano

Não poderíamos concluir esse périplo em busca das aparições,

migrações e metamorfoses do ideologema da americanidade sem

relembrar que ele surge na América Latina como americanidad. Aimé

Bolaños3 nos informa que o conceito de americanidad se desenvolve

acompanhando um longo processo de diferenciação e de identificação,

sublinhando a importância do pensamento crioulo da ilustração,

3 Informações fornecidas através de mensagem eletrônica em janeiro de 2002.

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vinculado às guerras de independência, para a consolidação deste

conceito. Ricardo Ávila (1998) aponta a gênese do conceito em Simón

Bolívar: Americanidad teria circulado primeiramente entre as elites

ilustradas do continente, vindo a tornar-se um mito fundacional, logo,

parte do imaginário coletivo dos latino-americanos. Solidifica-se como

resposta à política do presidente norte-americano Monroe, sintetizada na

frase: “A América para os americanos”, que era interpretada, na América

Latina, como “A América do Sul para os americanos do norte”. As bases

assimilacionistas dessa doutrina originaram a “resposta” latino-

americana que se expressou através da americanidad. Teriam sido,

segundo Ávila, a postura dos norte-americanos de se declararem

paladinos da democracia que deu origem a uma identidade antagonista

na América Latina, opondo as Américas do Norte e do Sul.

Não se pode deixar de mencionar José Martí, quando o tema é a

americanidade. José Martí sonhou com uma América “nossa”: no

antológico Nuestra América (1891), articula seu pensamento em torno

de uma americanidade homogênea, prefigurando uma América “com

um só peito e uma só mente”, a união dos povos e o advento de “novos

homens americanos”. Não se confunda aqui o ideal de Martí, que

corresponde a um ideal da modernidade, de vislumbrar uma América

mestiça e homogênea, com o conceito de americanidade que vimos

tentando construir no âmbito desse artigo. Na conjuntura da pós-

modernidade, reconhece-se a vasta heterogeneidade de culturas em

presença na América e sua capacidade de hibridação e de aceitação

do diverso em uma harmonia polifônica, como referem os autores do

Éloge de la créolité. Martí é ainda hoje uma referência obrigatória por

valorizar todos os elementos da América (a sua natureza, a sua cultura,

o seu povo mestiço) e por acreditar na possibilidade de constituir um

continente harmônico, reconhecendo-se direitos de índios, negros,

brancos e crioulos.

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Deve-se ao cubano José Lezama Lima (1910-1976) uma das

reflexões mais lúcidas sobre a relação do escritor à América e sobre a

necessidade de uma “expressão americana”. Essa expressão americana

se caracterizaria pela proliferação e pela voracidade, no sentido de

abertura para a recepção de influências, e pela capacidade de recuperar,

restos, vestígios, marcas de culturas desvalorizadas para reencená-las

em um novo contexto. Em suma, a América seria o lugar de

transformação de fragmentos de outros imaginários, caracterizando uma

estética barroca. Irlemar Chiampi, autora do excelente prefácio à

edição brasileira de A Expressão americana (1988), sublinha que “o

barroco figura na fábula de nosso passado como um autêntico começo e

não como uma origem, já que é uma forma que renasce para gerar o

americano” (Chiampi, 1988, p.24). Trata-se não de uma adaptação do

barroco europeu ao contexto americano, mas de constatar que o

verdadeiro barroco é realizado em sua plenitude no Novo Mundo, desde

os atos da vida cotidiana até às mais elaboradas formas artísticas. É

ainda Chiampi quem nos explica que a noção fulcral de protoplasma

incorporativo, exposta por Lezama no último capítulo de A expressão

americana, intitulada “Sumas críticas do americano”, para definir a

originalidade da formação da cultura nas Américas, “deriva

conceitualmente da tese da transculturação” (Chiampi, 1988, p.10). Isto

comprova que, da imbricação de aportes culturais os mais diversos em

presença no continente, não há apenas perdas, mas a geração de

expressões culturais inéditas.

Incontornáveis Américas Do trajeto percorrido, podemos perceber que há nuanças

significativas entre os conceitos de americanidad, américanité e

americanidade o que era, aliás nossa hipótese inicial. Americanidad

surge primeiramente como força propulsora das independ6encias e,

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mais tarde, como revide ao temor de um neocolonialismo norte-

americano, estando ligado a determinadas urgências de uma América

que precisa concluir seus processos de independência social, política e

econômica.4 Quanto à américanité quebequense, trata-se sobretudo de

destacar o seu caráter francófono, de reconhecer que a herança

européia não foi exclusiva e que há lugares de memória (lieux de

mémoire) incontornáveis relacionados à vivência americana. Gérard

Bouchard fala, em sua obra já citada, em “gênese das nações e das

culturas do Novo Mundo” e é um dos grandes defensores da

“americanidade quebequense”. A americanidade, para além das

variantes nacionais, repousaria sobre a matriz das coletividades novas

ou culturas fundadoras. Lembremos que as coletividades novas são

definidas por Bouchard como aquelas que desenvolvem modelos

culturais a partir da ruptura com as metrópoles (e não a partir da

continuidade, como é o caso das coletividades ditas transplantadas). O

autor lembra também que esses espaços novos onde se erige a nova

cultura, embora fossem na verdade já habitados pelas populações

autóctones, “criaram circunstâncias próprias (pela ruptura com os

modelos metropolitanos) a uma mitologia dos (re)começos, a uma

espécie de tempo-zero (ao menos virtual, e às vezes real) da vida social”

(Bouchard, 2000, p.15-16).

Já no contexto do Caribe, o conceito de crioulização abrange e

ultrapassa o de americanidade como um desafio de organizar a

comunhão “das diversidades humanas que não precisam renunciar ao

que elas são” (Chamoiseau, 1997, p.203). Parece que há aqui uma

clivagem em relação à idéia de “gênese” das nações e das culturas

através dos mitos de recomeço, presente na concepção de

americanidade quebequense, pois, no âmbito da crioulização, surge o

4 Há também o conceito de latino-americanismo que, segundo uma definição tradicional (ver Alberto Moreiras, 2001) é “o conjunto de representações engajadas, encarregadas de preservar, mesmo que de maneira contraditória ou tensa, uma idéia da América Latina como o repositório de uma diferença cultural que quer resisitir à assimilação pela modernidade eurocêntrica” (Moreiras, 2001, p. 60).

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conceito de “digênese” (Glissant), ou seja, uma negação da gênese, da

origem e dos recomeços. Nas Américas, “o ponto de impulso é

indiscernível, e móvel, e recapitulativo, e aberto, crescente, proliferante,

presidindo o nascimento sem começo das identidades crioulas”

(Chamoiseau, 1997, p.204).

Segundo E. Glissant, a entrada em contato, no Novo Mundo,

das culturas atávicas (que possuem seus mitos cosmogônicos) dá origem

a culturas compósitas que não geraram gêneses, pois não adotaram

esses mitos de criação vindos de fora, até porque sua origem não se

perde na noite dos tempos, mas tem uma história. No que concerne às

sociedade crioulas do Caribe, “a gênese se funde em uma obscuridade,

a do ventre do navio negreiro. É o que eu chamo de digenèse” 5(Glissant,

1997, p.36).

Esse pensamento converge com o de Lezama Lima para quem

a americanidade, ou a expressão americana, emerge com as formas

proliferantes e incorporativas do barroco que, nas Américas, graças ao

trabalho da transculturação, ao aproveitamento dos restos, dos vestígios

e das marcas deixadas por diferentes culturas gera elementos culturais

novos.

A americanidade na América Latina não se originaria, como quer

Gérard Bouchard, nem com o crioulo nem com o mestiço, pois a

mestiçagem se caracteriza pela homogeneidade (melting pot) e pela

previsibilidade. Ela só emerge verdadeiramente com a posta em marcha

dos processos de transculturação e de hibridação com seu valor

acrescido da imprevisibilidade. O processo está inacabado, como sugere

o historiador quebequense, mas sempre o estará, pois os processos de

identificação estão em contínuo devir. O que interessa não é

propriamente o acabamento, mas que as trocas, as interpenetrações e os

processos de desiherarquização continuem a se realizar e que a idéia de

5 Segundo o dicionário Houaiss (2001), digenético é o que se desenvolve em dois hospedeiros distintos, um um intermediário e outro definitivo 9diz-se de parasita), p.1039.

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uma americanidade compartilhada entre o norte e o sul continue a

possibilitar a relação.

Colocamos em epígrafe a esse artigo, versos anônimos

entoados pelos colonos italianos aqui chegados no século XIX. Sua

curiosidade em relação à América era muito grande e muitas foram as

utopias que se geraram em razão da expectativa da chegada. A América

foi pressentida por eles como um “massolino di fior”, um ramalhete de

flores, heterogêneo, múltiplo. As flores arranjadas em um ramo guardam

cada uma sua identidade, mas sua beleza adquire um esplendor maior

quando na harmonia do arranjo. Esta pode ser uma utopia oitocentista,

mas corresponde à intuição de um grupo que optou pela América como

lugar onde realizar seus sonhos e ideais. Talvez estejam na voz popular

e no imaginário mítico americano as chaves que levarão à decifração

e/ou à (re)invenção da americanidade. Talvez sejam necessários, como

quer Walter Mignolo, o surgimento de novos lugares de enunciação para

dar força e criatividade a conhecimentos que foram subalternizados

durante o processo de colonização (Mignolo,200, p.3-45). Redescobrir na

oralidade, no saber popular, na “gnoseologia marginal” novas formas de

habitar as Américas e de definir nossa pertença a elas pode ser a via de

acesso à americanidade como lugar de resistência e recuperação da

diferença colonial.

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