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dezembro de 2001 • CIÊNCIA HOJE O Plantas exóticas invasoras: a ameaça da contaminação biológica A introdução de espécies de plantas –agrícolas, florestais ou ornamentais– vindas de outras regiões em qualquer ecossistema pode ter impactos desastrosos sobre o ambiente e afetar atividades econômicas ali realizadas. O problema já é uma das maiores ameaças à biodiversidade, mas ainda não foi dimensionado nem está sendo tratado adequadamente em muitos países, entre eles o Brasil. OPINIˆO 77 processo de invasªo de um ecossistema por uma planta exótica a contaminaçªo biológi- ca se dÆ quando qualquer espØ- cie nªo natural de um ecossiste- ma Ø introduzida nele e se natu- raliza, passando a se dispersar e a alterar esse ecossistema. A inva- sªo por plantas exóticas afeta o funcionamento natural do ecossis- tema e tira espaço das plantas na- tivas. O potencial de espØcies exóti- cas de alterar sistemas naturais Ø tamanho que as plantas invaso- ras sªo hoje a segunda maior amea- ça mundial à biodiversidade só perdem para a destruiçªo de hÆ- bitats pela exploraçªo humana di- reta. A maior parte dos problemas ambientais Ø absorvida e seus im- pactos sªo amenizados com o tem- po, mas isso nªo ocorre com os pro- cessos de invasªo. Ao contrÆrio, eles agravam-se à medida que as plan- tas exóticas ocupam o espaço das nativas. As conseqüŒncias princi- pais sªo a perda da biodiversidade e a modificaçªo dos ciclos e carac- terísticas naturais dos ecossistemas atingidos, alØm da alteraçªo fisio- nômica da paisagem natural, com vultosos prejuízos econômicos. Essa ameaça levou a Organi- zaçªo das Naçıes Unidas (ONU) atravØs do ComitŒ Científi- co para Problemas Ambientais (SCOPE) e do Programa de Meio Ambiente (UNEP) e outros ór- gªos internacionais a criarem, em 1997, o Programa Global de Es- pØcies Invasoras (GISP). Os qua- tro primeiros anos foram dedica- dos à elaboraçªo de diagnósticos e diretrizes. Com a colaboraçªo dos países formadores da ONU (inclusive o Brasil), o programa jÆ apontou algumas linhas de açªo: a definiçªo de estratØgias (nacio- nais e regionais) nesse campo, bastante novo na maioria dos paí- ses; a capacitaçªo tØcnica e hu- mana para controle e erradicaçªo de plantas invasoras; a implemen- taçªo em campo a partir de pes- quisa; a construçªo de sistemas de informaçªo de acesso geral; e a conscientizaçªo atravØs de work- shops feitos em todo o mundo. Em outubro, o MinistØrio do Meio Ambiente e a Empresa Bra- sileira de Pesquisa AgropecuÆria promoveram, em Brasília, uma reuniªo com representantes dos ministØrios da Agricultura e do Meio Ambiente de toda a AmØri- ca Latina, com o apoio de espe- cialistas na Ærea e recursos da em- baixada dos Estados Unidos. Sílvia Renate Ziller Sílvia Renate Ziller Sílvia Renate Ziller Sílvia Renate Ziller Sílvia Renate Ziller Instituto para o Desenvolvimento de Energias Alternativas e da Auto-sustentabilidade (Ideaas)PR 4

Ziller, 2001 (Rev. Ciência Hoje)

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Plantas exóticasinvasoras: a ameaça dacontaminação biológica

A introdução de espécies de plantas –agrícolas, florestais ou ornamentais– vindas

de outras regiões em qualquer ecossistema pode ter impactos desastrosos sobre o

ambiente e afetar atividades econômicas ali realizadas. O problema já é uma das

maiores ameaças à biodiversidade, mas ainda não foi dimensionado nem está sendo

tratado adequadamente em muitos países, entre eles o Brasil.

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processo de invasão de umecossistema por uma planta

exótica � a contaminação biológi-ca � se dá quando qualquer espé-cie não natural de um ecossiste-ma é introduzida nele e se natu-raliza, passando a se dispersar e aalterar esse ecossistema. A inva-são por plantas exóticas afeta ofuncionamento natural do ecossis-tema e tira espaço das plantas na-tivas.

O potencial de espécies exóti-cas de alterar sistemas naturais étamanho que as plantas invaso-ras são hoje a segunda maior amea-ça mundial à biodiversidade � sóperdem para a destruição de há-bitats pela exploração humana di-reta. A maior parte dos problemasambientais é absorvida e seus im-pactos são amenizados com o tem-po, mas isso não ocorre com os pro-

cessos de invasão. Ao contrário, elesagravam-se à medida que as plan-tas exóticas ocupam o espaço dasnativas. As conseqüências princi-pais são a perda da biodiversidadee a modificação dos ciclos e carac-terísticas naturais dos ecossistemasatingidos, além da alteração fisio-nômica da paisagem natural, comvultosos prejuízos econômicos.

Essa ameaça levou a Organi-zação das Nações Unidas (ONU)� através do Comitê Científi-co para Problemas Ambientais(SCOPE) e do Programa de MeioAmbiente (UNEP) � e outros ór-gãos internacionais a criarem, em1997, o Programa Global de Es-pécies Invasoras (GISP). Os qua-tro primeiros anos foram dedica-dos à elaboração de diagnósticose diretrizes. Com a colaboraçãodos países formadores da ONU

(inclusive o Brasil), o programa jáapontou algumas linhas de ação:a definição de estratégias (nacio-nais e regionais) nesse campo,bastante novo na maioria dos paí-ses; a capacitação técnica e hu-mana para controle e erradicaçãode plantas invasoras; a implemen-tação em campo a partir de pes-quisa; a construção de sistemasde informação de acesso geral; e aconscientização através de work-shops feitos em todo o mundo.

Em outubro, o Ministério doMeio Ambiente e a Empresa Bra-sileira de Pesquisa Agropecuáriapromoveram, em Brasília, umareunião com representantes dosministérios da Agricultura e doMeio Ambiente de toda a Améri-ca Latina, com o apoio de espe-cialistas na área e recursos da em-baixada dos Estados Unidos.

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Instituto para o Desenvolvimento de Energias Alternativase da Auto-sustentabilidade (Ideaas)PR

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A contaminação biológica foi otema principal da conferência daONU sobre biodiversidade, realiza-da em Montreal (Canadá) em marçoúltimo. O encontro deu seqüência àelaboração e implementação do pro-grama global, além de consolidar 15princípios a serem seguidos para otratamento do problema (que cons-tam do site da União Internacionalpara a Conservação da Natureza:www.iucn.org/themes/ssc/pubs/policy/invasivesSp.htm).

As primeiras transferências deespécies vegetais de uma regiãodo planeta para outra tiveram afinalidade de suprir necessidadesagrícolas, florestais e outras de usodireto. Em épocas mais recentes,a introdução de espécies está asso-ciada de modo significativo ao co-mércio de plantas ornamentais. Dototal de espécies ornamentaisintroduzidas em outros ambientes,em todo o mundo, quase a metadetornou-se invasora com o tempo.

O naturalista inglês CharlesDarwin (1809-1882) foi um dosprimeiros a manifestar preocupa-ção com o problema. Ele registrou,em meados do século 19, a densaocupação dos pampas, na Argenti-na e no Chile, pelo cardo (Cynaracardunculus, arbusto espinhento,com 1,5 m de altura, originário doMarrocos), que impedia a passagemde cavalos e pessoas. Em 1865, umvisitante solicitou que o Parque Na-cional Yosemite, nos Estados Uni-dos, fosse protegido da crescenteocupação por plantas daninhas eu-ropéias. Em 1860, a África do Sultratou como �praga�, pela primeira

vez, uma espécie vegetal invasora,considerando o fato um sinal de de-terioração dos campos nativos.

Estima-se que a metade das491 espécies exóticas presenteshoje na África do Sul tenha sidointroduzida para fins ornamen-tais. As demais foram usadas, porordem de importância, em bar-reiras (quebra-ventos), no flores-tamento, em culturas agrícolas,na forragem animal (pastos) e naprodução florestal. Quando usa-das para mais de um fim, maiortende a ser sua disseminação e seupotencial de invasão.

Na Austrália, calcula-se que65% das plantas ali naturalizadasnos últimos 25 anos seriam de usoornamental. A Nova Zelândia con-tabiliza cerca de 24 mil espéciesintroduzidas, mais de 70% parafins ornamentais � dessas, em tor-no de 240 plantas tornaram-se in-vasoras e prevê-se que isso ocorre-rá, a cada ano, com outras quatro.Hoje, o número de espécies exóti-cas naquele país já supera o de na-tivas, e estima-se que cerca de 575mil hectares (ha) de áreas naturaisprotegidas sofrerão invasões bio-lógicas nos próximos 10 a 15 anos.

Nos Estados Unidos, a introdu-ção de espécies é estimada emmais de 4,6 mil nas ilhas havaia-nas, 1.045 na Califórnia e 1.180 naFlórida. Nesses estados, os maisafetados, as condições climáticasmais amenas facilitam o estabele-cimento de invasoras. Cerca de umterço dos parques nacionais do paístem parte de sua área invadida porespécies exóticas, totalizando cer-ca de 3,5 milhões de ha. Os custosde contenção do problema em to-dos esses países chegam a milhõesde dólares por ano.

Certos ambientes parecem maissuscetíveis à invasão que outros.Algumas hipóteses procuram ex-plicar essas tendências: 1. quantomenores a diversidade e a riquezanaturais de um ecossistema, maissuscetível à invasão ele seria, porapresentar funções ecológicas ain-

da não supridas (o que será feitopelas espécies exóticas); 2. as espé-cies invasoras, livres dos competi-dores, predadores e parasitas desuas áreas de origem, teriam van-tagens competitivas em relação àsnativas; 3. quanto maior o grau deperturbação do ecossistema, maisfácil seria a dispersão e o estabe-lecimento de exóticas, em espe-cial quando há redução da diver-sidade natural pela extinção de es-pécies ou exploração excessiva.

A última hipótese, embora in-timamente associada às outras, éessencial para a compreender osprocessos de invasão biológica.Práticas erradas de manejo, comoretirada de florestas, queimadaspara preparo da terra, erosão epastoreio excessivo contribuempara a perda de diversidade natu-ral e fragilidade do meio a inva-sões. Qualquer processo de inva-são precisa ser avaliado de formaabrangente, levando em conta to-das as variáveis que tenham al-gum tipo de influência ambiental.

Ambientes abertos, como cam-pos e cerrados, tendem a ser maisfacilmente invadidos por espé-cies arbóreas que áreas florestais.Certas espécies, chamadas de�pioneiras�, invadem rapidamen-te áreas abertas, mas outras, deporte arbóreo, arbustivo ou her-báceo, preferem se estabelecerem florestas já existentes.

Além de ambientes mais sus-cetíveis, existem espécies cujascaracterísticas facilitam o estabe-lecimento em outras áreas. Mui-tas pesquisas vêm tentando iden-tificar características comuns aespécies invasoras, para anteciparos problemas e definir medidas decontrole e restrição. Mas são pou-cos os resultados concretos, devi-do ao grande número de variáveis,e o melhor indicador talvez seja ofato de a espécie já ser invasoraem algum lugar do planeta. Daí aimportância de criar centros deinformação em nível mundial.

Entre as características queampliam o potencial de invasão

As plantas invasoras são hoje

a segunda maior ameaça

mundial à biodiversidade

– só perdem para a destruição

de hábitats

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de uma planta estão a produçãode sementes pequenas e em gran-de quantidade, com dispersão efi-ciente (em especial pelo vento) ealta longevidade no solo. Outrosfatores favoráveis são crescimen-to rápido, maturação precoce, re-produção também por brotação,floração e frutificação mais lon-gas, pioneirismo, adaptação a áre-as degradadas, eficiência repro-dutiva e liberação de toxinas ca-pazes de impedir o crescimentode outras plantas nas imediações(alelopatia).

Espécies invasoras tendem a seadaptar com maior facilidade aambientes similares à sua regiãode origem. Isso explica a rápidaadaptação de seus ciclos de ger-minação e ocupação em ambien-tes que sofrem perturbações na-turais ou induzidas.

A situação em várias áreas inva-didas e a falta de políticas de pre-venção fazem com que a contami-nação biológica seja um dos im-portantes agentes de mudança glo-bal decorrente de ações humanas,junto com o efeito estufa e a con-versão de áreas naturais para ati-vidades produtivas. Além disso, asmesmas espécies invadem diver-sos países e sua dominância tendea homogeneizar a flora mundial.

Em ilhas isoladas, as espéciesinvasoras constituem a maiorcausa atual de degradação am-biental, provocando perda de di-versidade em áreas onde é gran-de o número de plantas endêmi-cas (que só ocorrem no local). Oproblema, de âmbito mundial,não pode ser tratado isoladamen-te, sem uma estratégia comum,proposta a partir das conferên-cias da ONU sobre biodiversidade.

As invasões por plantas exóti-cas tendem a alterar proprieda-des ecológicas essenciais, comociclo de nutrientes, produtivida-de, cadeias tróficas, estrutura dacomunidade vegetal (distribui-ção, densidade, dominância, fun-ções de espécies), distribuição de

biomassa, acúmulo de serrapi-lheira (o que pode aumentar o ris-co de incêndios), taxas de decom-posição, processos evolutivos e re-lações entre plantas e polini-zadores. Podem modificar o ciclohidrológico e o regime de incên-dios, levando à seleção das espé-cies e, em geral, ao empobreci-mento do ecossistema. Há riscode gerar híbridos com as espéci-es nativas, talvez com potencialinvasor maior. Essas mudançasameaça atividades econômicas li-gadas ao uso de recursos naturaisem ambientes estabilizados, pelaalteração da matriz de produçãopretendida, o que em geral temimpactos negativos.

Plantas invasoras de maior por-te que as nativas causam maio-res impactos, como na invasão deformações herbáceo-arbustivaspor espécies arbóreas. Nesses ca-sos, além das relações de domi-nância, é alterada a fisionomia davegetação, levando à aceleradaperda da diversidade.

Entre as espécies de árvores con-sagradas como invasoras no Bra-sil estão alguns pinheiros (Pinuselliottii, P. taeda), a casuarina(Casuarina equisetifolia), o cina-momo (Melia azedarach), a uva-do-japão (Hovenia dulcis), o ama-relinho (Tecoma stans), a goiabei-ra (Psidium guajava), a vassoura-vermelha (Dodonaea viscosa), oalfeneiro (Ligustrum japonicum).Entre as plantas menores, os gê-neros Bracchiaria, Eragrostis eMellinis, de capins africanos in-troduzidos para pastagens, são dosmais problemáticos.

No Rio Grande do Sul, o ca-pim-annoni (Eragrostis spp.) ame-aça os sistemas de produção degado estabelecidos nos camposnaturais em função da perda dacobertura vegetal nativa, compos-ta por grande número de espéci-es de gramíneas, leguminosas eoutras famílias importantes doponto de vista alimentar. A grada-tiva perda em freqüência e quali-

dade das espécies nativas é pre-judicial ao modelo de pecuáriasustentável adotado há séculos naregião e exige medidas de contro-le (lavração e uso de herbicidas).Estima-se que, dos 15 milhões deha de campos naturais, 2 milhõesestejam sob invasão, implicandogrande perdas na produção, poiso gado bovino não pasta esse ca-pim. O capim-annoni também jáinvadiu os campos naturais deSanta Catarina e do Paraná.

O capim-gordura (Mellinisminutiflora) e várias espécies dogênero Brachiaria ameaçam a di-versidade natural do cerrado noParque Nacional da Chapada dosVeadeiros, no planalto central,além de outras regiões. Entre asornamentais, estão amplamenteestabelecidas a maria-sem-vergo-nha (Impatiens walleriana) e o lí-rio-do-brejo (Hedychium corona-rium), para citar algumas.

Os países com os melhoresregistros de invasões biológicassão África do Sul, Nova Zelândia,Austrália e Estados Unidos, queprovavelmente são também osmaiores detentores de espéciesinvasoras. O problema tem a mes-ma magnitude e gravidade em inú-meros países que não despertarampara a questão e ainda não têmregistros confiáveis nem medidasde prevenção, controle e erradi-cação. Tais países precisam de es-tudos que retratem a situação atu-al e permitam previsões. Este é,sem dúvida, o caso do Brasil, ondeo capital verde é provavelmente oúltimo grande trunfo nacional. n

Do total de espécies

ornamentais introduzidas

em outros ambientes, em todo

o mundo, quase a metade

tornou-se invasora com o tempo