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ZIRALDO «n versos de BERTO AKABAL mx ^SõãflMinrõs 120 ANOS

Ziraldo - Os Meninos Morenos

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ZIRALDO

«n versos de BERTO AKABALmx^SõãflMinrõs

120 ANOS

Para Brcno Lerner

Ilustrações do autor<t> 2004 Ziraldo Alves Pinto

Direitos de publicação: ó 2004. 2009 Editora Melhoramentos Ltda.

ISBN: 978-85-06*04332-8ISBN: 978-85-06-05960-9 (Acordo Ortográfico)ISBN: 978-85-06-06406-1 (digital)Obra conformc o Acordo Ortográfico da I.íngua Portuguesa

Atendimento ao consumidor: [email protected]

“Eu também já fu i brasileiro, moreno como vocês. ”

Carlos Dmmmond de Andvadc

QUANDO E U ESTAVA

“Quando eu estava te esperando, sentia muita vontade

de comer tetra; arrancava pedacinhos de adobe das paredes

e comia. ”

Esta confissão de minha mãe despedaçou meu coração.

Mamei leite de barro, por isso minha pele

é cor de terra.

V ocês vão ler este livro e vão descobrir a diferença que existe entre um poeta e um contador de casos. Os dois falam da mesma coisa, de sua infância de menino cor de

terra, um na Guatemala, outro no Brasil, dois países deste enorme continente de meninos morenos.

Conheci a poesia de Humberto Ak’abal quando, em 2003, estive na Guatemala. Não sou índio, não sou negro, não sou árabe, sou apenas da mesma cor que Ak’abal e, por essa razão, creio que entendi a alma cie quem, como ele, sabe de onde vem: do ventre do jaguar, cios templos de Tikal, onde seus avós e os avós de seus avós já ouviam o canto do quetzal.

Vivi minha infância numa clareira aberta 11a floresta úmida - que virou uma cidade na mesma floresta do meu poeta, ouvindo cantar, com outros nomes, os mesmos pássaros.

Por essa razão, escrevi este livro e fiz a Ak’abal o convite para intercalar, entre as minhas histórias de menino moreno, alguns dos seus belos versos de menino cor de terra.

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E u fui um menino cor de terra. Não vou, porém, saber nunca cie onde vieram os verdadeiros avós dos avós dos meus avós. Nisso, nós, os meninos brasileiros, somos

diferentes dos meninos morenos da Guatemala, do México, da América Central ou de todo o planalto andino. Quando o homem branco chegou na minha terra, encontrou meninos com a carinha igual à de todos os meninos que viviam nas flo­restas úmidas da América ou nas altas montanhas dos Andes./Depois, eles trouxeram os negros da Africa, que não queriam vir. E vieram também os árabes e outras gentes da Ásia. E todos se misturaram, sem registro e sem cartório.

E aqui ficamos todos da cor da nossa terra e viramos, todos, os brasileiros.

V amos fazer uma experiência. Vamos pegar um livro de História Geral, virar suas páginas e tomar nota. Em cada página que a gente virar, vamos ver surgir um

novo povo. E só conferir: aqui estão os sumerianos, logo depois os egípcios, os fenícios, os gregos, os romanos, os per­sas, os celtas, os vikings, os hunos, os godos, os visigodos (entre centenas de outros).

Eis que, de repente, o historiador branco descobre povos antigos na América, e aqui estão os olmecas, os astecas, os maias, os araucanos, os guaranis.

De repente, a História parece que chegou mesmo ao fim. Há quinhentos anos não surge mais povo nos nossos livros de História Geral.

Bem, este não é um livro para você estudar História Geral. Aqui, o que estamos fazendo é conversar sobre meninos morenos. Quem sabe essa gente morena que hoje habita o Brasil inteiro não vai ser, no livro de História Geral do ano qua­tro mil, por exemplo, um povo que surgiu nas Américas? Alguém sabe como é que um povo surge?

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PUEBLO

M i pueblo égrande./

E preciso esfregar sua tara nas mãos,

sentir-se árvore entre bosques,

reverenciar seus rituais...

ziguezagueando como esquilos por seus caminhos e veredas

para sentir o sabor e a simplicidade de sua grandeza.

O s índios da terra dos meninos morenos se vestem e se enfeitam com uma quantidade de cores infinita. Como são coloridos os meninos morenos do planalto andino,

da América Central, do México!Eles transferiram as cores de seus pássaros e dc suas

flores para suas roupas e para seus enfeites. Creio que uma menina cor cie terra desses lugares jamais perguntou à sua mãe qual cor combinava com outra. Ali, todas as cores combinam.

O índio brasileiro, como nunca usou roupa - pois não conheceu o inverno - , só se enfeitou com duas cores: o verme­lho do urucum e o preto do jenipapo.

Deve ser por isso que o time mais querido pelos meni­nos do Brasil - inclusive o que está escrevendo estas histórias - tem a camisa vermelha e preta. Nascido lá no fundo da terra brasileira, esse time se chama Flamengo, um nome que não é desta terra.

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O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.M as o Tejo não é mais belo que o rio

que corre pela minha aldeia.Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Estes versos são de um poema do Fernando Pessoa, quan­do ele se assina Alberto Caeiro e vira o poeta de sua província. Em Portugal, os poetas podem se referir à

sua cidadezinha chamando-a de aldeia como os espanhóis cha­mam as suas de pueblo. No Brasil quando falamos aldeia, por hábito e por costume, o que nos vem à cabeça são as pequenas povoações dos índios.

Não temos, em português, uma boa palavra para nos referir, com saudade, à cidadezinha onde nascemos, lembrando as curvas do seu rio.

Não dá pra dizer, poeticamente, que estou com sau­dade do rio de meu arraial, do meu povoado, da minha vila, da minha pequena cidade, da minha cidadezinha, do lugar onde nasci... Não tem a força poética dos que falam espanhol. Eles não têm a palavra saudade mas têm a palavra pueblo. Eu queria tanto sentir saudades do rio de mi pueblo.

Quando nasci, as cidades de minha infância eram exatos pueblos. E tinham rios. Mais belos do que o Tejo. Era bonito, ainda que mortal, o pequeno rio da minha pri­meira aldeia, o lugar onde nasci.

Era pouco mais do que um córrego, com belos reman- sos escondidos entre bambuzais, onde os meninos nadavam escondidos e morriam de esquistossomose, pois achávamos engraçadinhos os caramujos que vinham colados em nossas canelas, quando saíamos da água.

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O rio da outra aldeia, este sim, era belo de verdade. Corria por entre a mata densa, e eram lindas as suas curvas, com as árvores debruçadas sobre seu leito. Tão

grande quanto o Tejo, chamava-se Doce e dava lagostas. Minha avó gostava de pescar com os filhos nas suas margens. H dizia que não tinha sorte com peixes, que só sabia pescar lagostas. E falava: “Querem ver?”. Aí, afundava a vara de seu anzol, reme­xia o fundo do rio, turvava a água e, em poucos segundos, saía com uma lagosta embolada na linha do anzol. “E fácil” - minha avó dizia. “Elas ficam distraídas, passeando lá no fundo.”

Quero voltar ao Lajão. Lajão era o nome da vila à beira do rio Doce quando, comandada por meu avô, minha família se mudou para lá. Quero voltar porque preciso esclarecer tantas histórias. Ali vivi dos três aos seis anos. Todas as lembranças são neblinosas e fora de ordem. A anta que,

todas as tardes, atravessava a vila, caminhando calmamente em direção ao rio é, na minha lembrança, uma mancha negra flutuando, em câmera lenta, numa nesga de luz. “A anta já passou?” - perguntavam. Sua passagem marcava as horas da tarde, seria a hora de servir o jantar? Mas o jantar estava sem­pre posto em cima do fogão, era só pegar o prato e se servir, o fogo estava sempre aceso e o feijão cozinhava sem parar.

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E ra janeiro de um ano qualquer, e é aqui que, realmente, começa a história que, a meu modo, vou contar a vocês. Chovia muito na noite escura, mas os relâmpagos que

clareavam o céu deixavam ver o homem sobre o cavalo, coman­dando a caravana. Meu avô, jovem ainda, estava começando a vida que o transformaria no patriarca de uma vasta família. Eu era seu primeiro neto e, junto com toda sua família, estávamos mudando da cidade onde nasci para um povoado, onde uma nova vida iria começar.

A chuva era muito forte, mas meu avô estava protegido por sua enorme capa gaúcha que cobria, também, o dorso do animal que ele montava: contra a luz dos raios, a silhueta que se desenhava parecia ser a de um só animal.

Acomodado sobre a cabeça do arreio, na altura dos meus três anos, eu ia encolhidinho sob a capa que cobria o avô e o cavalo. Ia ouvindo o tamborilar da chuva caindo sobre a grossa gabardine de que a capa era feita. Paciente, o avô explicava ao menino curioso: “É a chuva, meu filho, tocando sua música”. Sua voz parecia vir do céu, lá fora.

Meu avô havia conseguido um emprego para o meu pai, seu genro, e estava levando a família inteira para a vila à margem do grande rio. Até morrer ele ia comandar todos nós.

Convivi com esse homem por quase cinqüenta anos. Toda vez que ouço a chuva tamborilando no telhado, sinto uma enorme sensação de aconchego e segurança.

Sei que meu avô está velando por mim.

A Q UELA GOTA DlÁGUA

Aquela gota que se desprendia do teto

da minha infância - a única que ficava depois da chuva -

continua pingando na minha memória.

As foscas lembranças do Lajão me levam também para um quintal dividido por uma cerca e avançando para o mistério até chegar à beira do rio grande, um barranco

alto de onde eu via o rio mais largo do que o mar; a canoa do leite - trazendo os latões de leite das fazendas ribeirinhas - que vinha descendo a correnteza parecia que estava vindo da outra margem, lá longe, mas vinha dos lados da nascente, o rio fazen­do curva. Meu pai está cavando a terra além da cerca divisória, lá mais pro fundo do quintal, talvez para fazer um canteiro. De repente, o enxadão bate numa coisa sólida, fazendo um ruído cavo. Meu pai retira do buraco um vaso de barro enorme. “Meu Deus, isto aqui é um cemitério índio. Não mexo com essas coisas.” E bota o vaso no buraco de novo. Será que eu sonhei ou havia um sambaqui no quintal da nossa casa?

E ngraçado! Nós tínhamos quintal com pés de fruta e horta, como todos os meninos de minha infância. Todos os meninos de minha infância tiveram seu bicho de esti­

mação. Nós não tivemos. A gente tinha um gato, mas - como dizia minha mãe - gato não é de ninguém, gato é da casa. E isso não é uma coisa muito longe da verdade, pois me lembro de que, uma vez, mudamos de casa e o gato ficou na casa velha. Meu irmão foi lá buscar o gato, mas o gato voltou para a casa onde sempre viveu.

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O cachorro se chamava Zulu e era todo negro. Parecia enorme mas era, certamente, um vira-lata, não havia cães de raça naquele pueblo.

Eu era bem pequeno quando o vi dentro do engradado na plataforma da estação. Antes, não me lembro da convivên­cia com ele que, me parece, foi muito pouca.

Meu pai era uma pessoa doce, mas acredito que não gostava muito de bicho. Meu avô deixara o Zulu para o meu pai tomar conta, mas ele decidiu mandar o cão pra cidade onde meus avós haviam se mudado. Papai despachou o Zulu de trem.

Acidadezinha era servida por uma estrada de ferro que acompanhava as margens do grande rio, fazendo todas as suas curvas, até chegar à nova cidade dos meus avós.

Minha lembrança nítida é ver o Zulu em pé dentro do engrada­do, sem poder levantar a cabeça. Ele me olhava com olhos muito tristes, me dizendo que não queria ir. Vi o funcionário da estrada de ferro botar o Zulu dentro do vagão, e ele chora­va como uma criança. Não me lembro se eu chorei.

M eu avô havia comprado uma fazenda com uma lavra de pedras preciosas. Ficava perto da cidadezinha para onde ele havia se mudado sem levar o Zulu. Algum

tempo depois, nós fomos visitar sua fazenda. E, agora, me vem outra lembrança. Quando nós chegamos na porteira, quem primeiro nos viu foi o Zulu. Ele veio correndo, tocio feliz, abanando o rabo, nervoso, pulando sobre a gente, pulando no colo do meu pai, derrubando eu e meu irmão, fazendo a festa de quem não sabe o que é guardar rancor.

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s homens estavam lá embaixo cavando buracos nochão, em busca das pedras. Do alto do barranco,atolado no barro, eu, pequenininho, olhava a movi­

mentação dos garimpeiros na pequena fazenda que meu avô havia comprado no Lajão.

Antes dos seis anos de idade, nossa memória não consegue guardar as coisas com muita nitidez. Tudo parece se confundir com os sonhos, são como fotografias fora de foco.

Como todos os anos, no Brasil, as rádios começavam cedo a tocar as canções que o povo iria cantar no carnaval, posso saber a data exata de algumas das minhas lembranças, quando elas têm fundo musical. Isto é, quando, no fato de que me lembro, tem alguém cantando uma música de carnaval. Por causa desse artifício fico sabendo em que ano o fato aconteceu.

De repente, lá embaixo, um homem deu um berro que ecoou pela paisagem, e saiu correndo com o braço levantado, segurando uma pedra esverdeada na mão, cantando: “Meu peri- quitinho verde, tire a sorte, por favor...” - a marchinha de Nássara e Sá Roriz. Foi exatamente no ano em que fiz seis anos.

H avia horas que estavam me procurando. Eu ventíwa! Virava o mundo de pernas para o ar, eu, que tive dois rios perigosos na minha infância. Um era enorme,

um belo rio correndo entre árvores que se debruçavam sobre seu leito, de cujos galhos eu via, maravilhado, meus tios e seus amigos despencar para aquelas águas límpidas e sair nadando para longe, como nunca consegui fazer em minha vida. Foi nesse rio, na cidade para onde meus avós se mudaram, que quase matei minha avó de susto. Um dia antes do incidente me descobriram sentadinho no batedor de roupa, com uma vari­nha de bambu na mão, pescando num remanso do rio. Batedor de roupa é uma tábua lisinha, inclinada sobre o rio como um trampolim cuja ponta tivesse caído na água.

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Essa tábua era usada para a lavadeira bater a roupa ensa­boada. E fácil imaginar como a tábua lisinha era escorregadia. Pois eu estava ali, de cócoras sobre o alto do batedor, e até hoje ninguém sabe como foi que eu não escorreguei para a morte. O remanso do rio cobria o peito da minha avó, quando ela entrava ali para tomar banho.

T sso aconteceu depois da história da pedra verde que o garimpeiro descobriu na lavra do meu avô. Aliás, ele fugiu com a pedra, o moreno. Eu não tinha seis anos de idade e

meus pais tinham voltado pra casa e deixado o neto com os avós. Nos buracos da lavra e na beira de um rio gigante! E eu ventava! Logo, sumi de novo. Foi quando avisaram para a rua inteira: “Morreu um menino afogado no rio!”. E tinha morri­do mesmo. “Um menino moreno?” - perguntou a minha avó. Sim, senhora, um menino moreno. Minha avó desmaiou. Haviam descoberto o afogado depois da corredeira do rio. A jangada com uma vela em cima parara no remanso onde o corpinho de uma pequena e franzina adolescente negra, empre­gada do vizinho, havia encalhado. A água havia desbotado a cor da negrinha morta. De longe, ela parecia um pequeno menino moreno.

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L embranças mais antigas eram as de Maria Dias, que cheguei a conhecer. Ela era pequenininha, preta como as asas da graúna, de gestos calmos e voz mansa. Todos

diziam que ela era muito, muito velha. Não devia ser tanto assim, naqueles tempos as pessoas assumiam sua velhice muito cedo. Tinha sido escrava, e lamento tanto não ter podido com­preender, muito menino, o que isso significava pra poder con­versar com ela e fazer um monte de perguntas que não fiz. Nem a ela, nem aos meus avós, nem aos meus pais. A gente precisa conversar muito com os pais e com os avós, fazer per­guntas, ir atrás das respostas.

Quando Maria Dias morreu, eu ainda era muito peque­nino e nenhuma das minhas irmãs havia nascido.

Maria Dias tinha sido a parteira que pendurou a mim e meu primeiro irmão pelas perninhas e nos fez chorar quando fomos trazidos à luz por minha mãe.

O trem fazia manobras em frente de casa. Ia e vinha, dava apitos curtos, soltava fumaça como se respirasse seu cansaço. Seus ruídos cadenciados ficaram gravados na

memória como o tema musical de um filme inesquecível.O dia estava amanhecendo, a cidadezinha estava ainda

deserta, nem o trem havia acordado. Comigo e meu irmão segurando suas mãos, meu pai caminhava sobre o dormente da estrada de ferro enquanto nós dois nos equilibrávamos nos trilhos. íamos bem devagar.

“Vocês querem uma irmãzinha ou um irmãozinho?” - ele perguntou. Não lembro o que respondemos. Lembro ape­nas que o chefe da estação devia ser muito seu amigo, pois deu-lhe um abraço maior do que o habitual quando chegamos à plataforma: “Que cara de cansaço é essa? Deu formigueiro na cama para estar aqui tão cedo?”. E o papai, antes de receber outro abraço, falou: “Tem mais um herdeiro pra garantir meu futuro lá em casa”.

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O A M A N H EC ER

O amanhecer é um bichinho

que entra sem fazer ruído./

E tão pequeno que cabe debaixo da porta.

No primeiro amanhecer de que me lembro, meu segundo irmão acabara de nascer no pueblo às margens do grande rio. Dos sete filhos que somos, de cinco partos

me lembro. Nunca havia ficado acordado até tão tarde, noite alta era novidade para mim, as pessoas se movimentando ner­vosamente pela casa na noite muito escura lá fora, era uma coisa estranha: uma mocinha que veio para dormir com meu irmão e comigo parecia uma intrusa. Meu agitado avô se in­quietava e mamãe gemia, perambulando pela casa. Me lembro dela se ajoelhando para pegar um sapato debaixo da cama e de meu avô, todo delicado e cuidadoso, dizendo com doçura: “Que é isso, minha filhinha, levanta daí, meu bem. Deixa que eu te ajude”. Nunca havia visto ele falar assim, fazer carinho. Ao lado do meu irmão apagado na cama, num quarto que não era o nosso, eu dormia e acordava, dormia e acordava, o céu azulava lá fora, eu não entendia como a noite podia ser azul e, de repente, o choro; parecia que havia gatos namorando no te­lhado. Meu segundo irmão havia nascido. Meu avô havia feito o parto. Ele foi o homem mais habilidoso que jamais conheci.

M EU U M B IG O

Meu avô disse ao meu pai

que pusesse meu umbigo bem na ponta de um cipreste

para eu, quando crescer,

não virar um medroso.

F oi mesmo uma noite misteriosa, de estranha atmosfera, com cores e tempo de sonho. Foi cheia de adjetivos ina­dequados a noite que está na minha memória com todos

os seus detalhes: o cerimonial do nascimento do meu segundo irmão. Mesmo assim continuei, por muito tempo, acreditando que as crianças chegavam à vida trazidas no bico de uma cegonha. Até o dia em que, diante de alguém tentando me con­tar mais uma vez a velha história, ouvi meu estabanado avô berrar: “Que cegonha, coisa nenhuma! Conta a verdade pro menino! No país que tem passarinho de tudo quanto é jeito voando nessas matas, o povo vem inventar uma desgraça duma ave que nunca voou por aqui!”. Eu perguntei, então, que pas­sarinho era o portador dos bebês. O velho ferreiro berrou mais alto: “O passarinho é o que entrou na barriga da sua mãe, sô, um homem dest’amanho!”.

Nós éramos sete - e ainda somos. Quatro meninos e três meninas (isto não somos mais). Primeiro nascemos três meninos. Minha mãe sempre querendo uma meni­

na, fazendo promessas e simpatias. Meu pai era muito criativo e achou de inventar três nomes começados por Z para seus filhos, os últimos da chamada escolar por toda a vida. Aí, na quarta tentativa, veio a menina e depois outra menina e depois outra menina. As três Marias. E a delegação de meu pai: cada irmão será responsável pela irmãzinha correspondente. E veio o sétimo, temporão, que herdou o nome do pai. Sete irmãos, todos cor de terra, uns mais outros menos.

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u já sabia como nascem os bebês. Quer dizer, mais ou menos.Descobri quando já desconfiava e ouvi a velha par­teira contando pra minha mãe uma história de parto:

“Quando o menino saiu, vinha com a carinha toda amassa­da...” . E eu perguntei: “Saiu de onde?” . Perguntei de sabido. “De lugar nenhum!” - falou, zangada, a velha brava. “Tira esse menino daqui, ouvindo conversa de gente grande!” . Eles acha­vam melhor não explicar as coisas direito pra gente. Tirante meu avô, que não tinha papas na língua.

A gente tinha muita curiosidade a respeito do mistério do nosso nascimento. Até que meu primo mais sabido resol­veu tudo: “Pessoal, descobri! Subi no telhado, fiquei no forro que tinha um buraquinho e vi minha irmãzinha nascer. Sabe por onde^que a gente sai? Pelo umbigo!” . Foi um grande escla­recimento.

As fraldas dos meus irmãozinhos eram panos velhos de minha avó:

remendo sobre remendo.

Os pespontos eram bonitos, todos aos pares, bem feitos.

AS FRALDAS

Minha mãe os cozia a mão.

O s acordes do Hino da Marinha despertavam os filhos de Dona Zizinha em manhãs muito distantes do mar: “Qual cisne branco/que em noites de lua/vai navegando no

lago imenso...” .As vozes do coral dos bravos marinheiros era abafada

pela voz da mãe das crianças: “Acorda, acorda todo mundo! Tá na hora da ginástica” . Mamãe entrava no quarto batendo palmas, na melhor hora dos nossos sonhos.

Havia um programa de rádio, ouvido no Brasil inteiro, conclamando o povo a fazer ginástica. Seu titular, além de fazer a apologia da mente sã em corpo são, dizia ainda coisas mais construtivas. Palavras que encantavam minha mãe, cujo sonho mínimo era recuperar a humanidade para o bem.

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O dia estava amanhecendo, e o orvalho da noite, que começava a secar suas gotas nas folhas do capinzal, inundava o ar de um cheiro forte de mato fresco. Era

um odor misturado com o cheiro do que o gado deixava nos estreitos caminhos que acompanhavam as curvas dos pastos, os caminhos dos bois. Por ali, a gente caminhava atrás da mãe, três filhos e três filhas em escadinha. Havíamos sido tirados da cama para ver a manhã chegar. Dona Zizinha explicava: “Prestem atenção, respirem fundo... Sentiramr E o cheiro do dia nascendo!”.

E ela contava que, quando menina, na roça, fazendo sozinha a mesma caminhada, imaginava o dia em que iria comandar uma fileira de filhos pra sentir a mesma sensação.

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ÉRA M O S D EZ

Éramos dez, todos pequenininhos.

/

íamos tomar banho nos remansos de Payaxu.

Saíamos de casa de madrugada

e regressávamos ao meio-dia.

Mamãe ia na frente: parecíamos uns pintinhos

atrás dela.

Na casa do Lajao havia um muro branco que separava nosso quintal do quintal do vizinho, um homem de cara severa que tinha fama de bravo. Do lado de cá, eu

podia riscar o muro todo com carvão e desenhar tudo o que eu acreditava que fosse bicho. Do lado de lá, Sêo Leandro man­tinha o muro limpinho, ninguém risca o muro do Sêo Leandro. Eu podia riscar todas as paredes e ainda o calçadão alto, defronte da casa que ficava em frente à linha do trem. Conto isso para lembrar minha mãe explicando para as amigas, com o maior bom humor, o que acontecia com seus meninos morenos quando chegava o verão cheio de sol: “Meus meninos estão tão queimadinhos que dá pra riscar as paredes com eles!”. As vezes ela nem explicava se era parede, muro ou calçada. Dizia apenas: “Eles tão riscando!”.

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Nas terras que meu avô teve, onde vivi pouco tempo, o dia começava ainda sem a luz do Sol. Quatro horas da madrugada e todos já estavam de pé. Tomavam café

com rapadura e partiam para o eito. As nove horas da manha almoçavam. Vinham até a casa do avô para encher a pança. Estavam derrubando as matas pra fazer lenha, pastagem ou plantação. Começava aí o fim das matas do rio Doce.

As quatro da tarde, o expediente se encerrava e, assim que a noite caía de vez, se não havia lua, não havia mais nada: todo mundo ia dormir, para, às quatro da madrugada, reco­meçar a vida.

Já vivendo na cidade, eu estranhava quando mamãe servia o café da tarde pra seus filhos e dizia que era o café do meio-dia.

Ela tinha sido criada nas terras que meu avô teve e, ali, o café com broa de milho, cuscuz ou inhame com melado se tomava mesmo quando o Sol estava a pino. Eu estranhava muito, também, quando a minha mãe reclamava que - ao con­trário dos meninos de hoje - a gente comia demais. Ela dizia: “Esse menino come como um derrubador”. Custei a descobrir que derrubador era uma profissão. A do colono que tinha a função de botar um machado nas costas e acabar, sozinho, com um grotão de mata, com uma capoeira inteira.

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D E LO N G E E D E PER TO

De longe, a voz das montanhas

é azul.

De perto, é verde.

0 velho João Gualberto tinha uns pés enormes e, durante toda a vida, nunca usou sapatos. Descalço, ele batia os caminhos e as estradas da terra onde vivia, com a calma

e a paciência dos sábios. Um_dia^-construíram ̂ uma estrada entre sua vila^e_--a^sg3édo município, uma estrada Targa^- recoberta^de saibro. Trinta e seis quilômetros separavam as duas povoações, mas João Gualberto achava tudo muito pertinho. E dizia, diminuindo a distância: “São só seis léguas!”.

Í oão Gualberto era um homem grande, com vasto bigode branco, um nariz parecido com uma pera, cheio de fúri- nhos. E era conversador. Minha mãe adorava aquele

homem sereno que era seu tio, casado com a irmã do meu avô. Ele vinha visitar sempre a sua sobrinha favorita, pisando os ve­lhos e macios caminhos dos bois, desenhados nos pastos. Dessa vez, Tio João Gualberto veio pela estrada nova. “Gastou menos tempo, tio?” - perguntou minha mãe. “Gastei, minha filha, mas tô sofrendo muito. Tem muitas pedrinhas na estradai*

T io João Gualberto mostrou a sola do pé pra mamãe. A sola de seus pés era mais grossa do que a sola de uma bota militar. Era dura e tinha a cor pardacenta dos mor­

tos, toda cheia de rachaduras, como uma terra seca. Por ordem da minha mãe, passei um tempo enorme segurando entre os dedos a pinça com que ela depilava suas grossas sobrancelhas, retirando as pedrinhas encravadas nas rachaduras da sola do tio. Hoje me ocorre que eu cumpria uma missão de que me recor­do com orgulho. As vezes, tinha que tirar uma pedrinha tão lá do fundo que, com ela, vinha um filetezinho de sangue. Tio João Gualberto achava graça.

/lÍÁlMikí . 1

zAO MEU AVÔ

Ao meu avô os passos se acabaram;

caminhou muito.

Agora, a terra se move pouco a pouco

debaixo de seus péspara que ele possa *chegar mais perto

das margens do Sol.

O velho Manoel Martins tinha a barba branca como a de Papai Noel. Andava devagarinho, com passos medidos, os dois braços pendurados pelos pulsos

numa comprida e fina bengala de castão de prata, que ele atra­vessava nos ombros, passando por trás do pescoço. Vinha, por isso, com a cabeça meio abaixada e devia ser muito velhinho, pois suas mãos, penduradas na bengala flexível, tremiam soltas no ar. Tinha um narigão vermelho e era um homem muito cari­nhoso e delicado, minha mãe dizia. Era o meu bisavô branco,

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o Vovô Velho. Por essa razão eu chamava sua filha e seu genro, meus avós, de vozinho e vozinha, pois eles me pareciam jovens perto do Vovô Velho. Os trinta e tantos netos que vieram depois de mim também chamavam assim o velho patriarca e sua severa mulher, minha avó. Manoel Martins tinha sido feitor de escravos e foi outro de quem não pude ouvir as histórias que eu precisava que me contassem. Foi a primeira pessoa que vi morta num caixão. Para ter pavor dessa imagem pelo resto da vida.

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E u achava que, quando crescesse, ia ficar com uma cara inequívoca de descendente de negros. Se o leitor me conhecer pessoalmente, porém, vai ver que fiquei com

cara de árabe. Ou, como cada dia que passa fico mais moreno e a sombra em volta dos meus olhos aumenta mais, vai achar que sou indiano. Quando viajo pela Europa, principalmente na Inglaterra, vejo centenas de primos meus pela rua, e muitas vezes um indiano se dirige a mim, falando no seu idioma natal, provavelmente me chamando de irmão.

Meu nariz é afilado, meus cabelos são lisos, os dos meus irmãos são mais lisos ainda do que os meus, no entanto, conheci avós negros tanto do lado materno quanto do lado paterno.

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O meu irmão, porém, fez uma

descoberta curio­sa: nós temos a

nuca igual à de um número um: reta.

A descoberta é esta: os negros têm a nuca igual a de um número dois. Os árabes, igual a de um número um.

N a região em que nasci, pelo menos nos meus velhos tempos, quando alguém não sabia explicar muito a sua origem, dizia que sua avó ou seu avô tinham sido

| pegos a laço. Papai tinha sido um menino marrom. Ele era muito, muito moreno e, como eu, à medida que foi envelhe­cendo, foi ficando mais marrom ainda. Só conheci o pai de meu pai por fotografia. Ele deve ter sido um homem interes­santíssimo pela crônica de sua vida que chegou até minha gera­ção. Eletpintava, desenhava, era farmacêutico e escrivão e tinha uma letra belíssima. Tocava na banda, fazia teatro e pertencia a um clube de proustólogos da pequena vila onde viviam. E era revolucionário o bastante para preferir o escambo ao uso do dinheiro: trocava as coisas em vez de pagar ou receber com notas ou moedas. Proustólogo é uma pessoa que adora ler os livros de Proust!

P elas fotos desse meu avô proustólogo dava pra ver, niti­damente, sua origem africana. Devia ser filho de negros já libertos pela Lei do Ventre Livre. Mas seu filho, meu

pai, quando jovem, tinha o rosto delicado como o de uma menina branca.

Uma vez, mamãe pintou o rosto do meu pai pra ele se fantasiar numa festa de carnaval, um jogo entre casados e sol­teiros, todos vestidos de mulher. Quando mamãe acabou de arrumar meu pai, fazer um turbante, passar ruge e batom, ela olhou pra ele assim e disse: “Meu nego, você é a mulata mais bonita que já vi na minha vida!” . Papai não gostou do mulata!

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M eu pai foi menino de origem muito humilde, pobre, pobre, pobre, de marre, marré, marré. Ele era um menino muito bom, esforçado e estudioso - pala­

vras da minha mãe - e muito bem mandado - palavras da minha avó.

Quando conheci a mãe de meu pai, ela era uma mulher muito magra, de cabelos branco:;, de coque, toda vestida de negro, tendo como enfeite a fiti vermelha da Congregação de Jesus. Era uma beata. Meu pai e ra filho natural. Ainda segun­do minha mãe, meu pai vivia nas cerimônias públicas, tentando ser notado pelo pai, figura impo: bela letra. Sem sucesso.

A assinamra desse meu avq comarca. A linha vertical ia em linha reta até o alto

procedimento usado pelos escrivã rasuras nos termos finais do docu menino ainda, trabalhei no cartq que ele traçava à mão no livro era

tante na cidade, escrivão de

nos autos, era famosa na |la letra t, do seu sobrenome,

da última página dos autos, d s , para provar que não havia mento. Conferi isso quando, rio onde ele atuofi. A linha reta como se tivesse sido feita

com régua. Podia ser um grande artista e uma grande figura esse meu avô, mas morreu sem reconhecer seu filho. Quando mamãe me contou isso, despedaçou meu coração.

O trem saía às cinco horas da madrugada. Quase não dormi de tanta excitação, às quatro já estava de pé. Me arrumei e, na hora de sair para a estação, olha o papai

prontinho pra ir comigo. Ai, meu Deus do céu, o que é que a turma da excursão vai dizer? Falei que não precisava e coisa e tal, mas não adiantou. Papai me pegou pela mão e me levou até a estação. Que vergonha! Eu era o único menino de todo o ginásio levado à estação pela mão do pai. Pois não é que ele me botou dentro do vagão, ajeitou minha mala no porta-malas, abotoou direitinho meu dólmã, me fez mil recomendações e, o que foi pior, me deu um beijo na testa antes de partir. Na década de quarenta, no interior de Minas, isso era inteiramente inima^nável.

NA POÇA

Nu poça havia muitas estrelas;

pedi a meu pai que as tirasse dali.

Ele removeu a água gota a gota

e pôs as estrelas nas minhas mãos.

Ao amanhecer eu queria saber se era verdade

que ele as havia tirado da poça.

E era verdade, na poça só restava o céu.

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O grande barato da viagem foi a discussão que se esta­beleceu entre a turma da excursão, as meninas todas a favor do gesto do meu pai e os meninos achando

que aquilo tinha sido um horror. Alguns achavam que aquela não era a maneira de se criar um homem e temiam pelo meu futuro. As meninas ganharam a discussão quando uma delas definiu: “Vocês todos estão é com inveja” .

T enho uma pena imensa de não ter conversado mais com meu pai e com meu avô materno, que tinham tantas histórias para contar. Um dia quis conferir com meu

pai algumas informações sobre nossa origem. Olhei as datas prováveis dos nascimentos dos avós de seus avós e vim com essa conversa da Lei do Ventre Livre. Ela foi promulgada em 1875 e rezava que todo filho de escravo nascido no Brasil estava, a partir daquela data, automaticamente alforriado, isto é, livre da condição de escravo. Papai me olhou e cortou, rapi­damente, a conversa: “Que é isso, meu filho, meus avós foram pegos a laço!” . Papai preferia ser puri ou coroado. Mas não tinha cara de índio. Aquela altura da sua vida ele parecia mais um tuaregue.

U m grande amigo da família de minha avó levou meu pai para trabalhar na cidade mais importante do estado, maior mesmo do que a capital, naquela época. Papai

conseguiu estudar e voltou um belo e competente bancário. Ele se formara guarda-livros. Casou-se com minha mãe, namorada desde a infância e, mais tarde, virou uma figura mais impor­tante do que fora seu pai. Um homem cheio de cargos hono­ríficos, vereador, presidente da Câmara, secretário da Mitra, presidente da Conferência de São Vicente de Paulo.

Um dia, o funcionário do recenseamento foi entrevistar meu pai. “Nome, idade, sexo.” Papai foi respondendo. “Cor?”

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E o papai: “Moreno, uai!” . Aí, o funcionário embatucou: “Moreno não tem aqui no formulário, Sêo Geraldo” . Papai: “Uai, como é que não tem?” . E o funcionário: “Tem preto, branco e pardo” . “Pardo?,” exclamou meu pai com indignada estranheza. E completou: “Meu filho, eu sou pardo???” . O funcionário respondeu rápido, como se defendesse o papai de uma ofensa: “Não, de jeito nenhum, Sêo Geraldo!” . E o papai: “Eu sou preto?” (isto ele perguntou menos indignado). O fun­cionário foi rápido “Claro que não, Sêo Geraldo. Imagina! O Senhor não é preto!” . “Então...” , disse meu pai, “você vê aí.”

A velha disse que não queria que sua neta se casasse com o menino moreno: “Não quero que você tenha filhos escurinhos” . O mais engraçado é que a velha era muito

mais do que escurinha. E repetia: “Não quero na minha família ninguém qi^e tenha um pé na cozinha” . Todo mundo levava susto, pois a velha, além de ter sua cor muito mais próxima do marrom do que do bege, tinha um nariz muito esparramado para os lados e os lábios muito redondos. Mas ela fazia todo mundo rir quando dizia: “Com o pé na cozinha, nesta família, basta eu” . Ela sabia de onde vinha. E era a explicação brasileira da morenice dos meninos deste país que não vieram nem da Polinésia nem do Estreito de Bering, dos meninos morenos cujos avós dos avós de seus avós chegaram aqui por outros mares. Ah, vocês precisavam ver de que cor era a cara da avó desta avó e da filha da avó desta avó. Elas estavam todas vivas e posaram, sem saber, para um desenho que fiz, há mais de trinta anos, e que nunca imaginei que iria publicar em um livro. Coloquei sob o desenho a mesma legenda que li, um dia, debaixo de uma foto parecida, num jornal da minha infância: “Minha neta, dê cá sua neta” .

Ele explica um pouco como foi que fomos escrevendo a história das meninas e dos meninos morenos deste país.

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O quintal da casa era muito grande. Pelo menos para as impressões que meninos têm sobre o tamanho das coisas. A rua era ao pé do morro e ficava acima do

pequeno rio que passava lá no Rindo do quintal. Logo depois da escada da cozinha havia um pequeno pátio de terra batida e, a seguir, uma horta protegida por uma cerca feita de bambus. Os bambus eram cortados ao meio, de comprido, e faziam a cerca, juntinhos uns dos outros, amarrados por arame, um a um. Depois da horta, o mistério: o quintal descia em direção

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ao pequeno rio e era coberto pelo mato. Havia uma estreita trilha para se chegar até o rio. Ali, era o universo das galinhas e dos gambás. Quer dizer, muitas galinhas e poucos gambás, pois há mais histórias de cobras do que de gambás na minha memória. Acho que tinha mais intimidade com elas...

ão havia poleiros no universo das galinhas no quintal,além da cerca de bambus. Elas dormiam trepadas numpé de goiaba. Mistério: pé de manga era mangueira,

pé de laranja, laranjeira, pé de abacate, abacateiro, pé de pitan­ga, pitangueira, mas pé de mamão e pé de goiaba não eram, para nós, nem mamoeiro nem goiabeira. Sem explicação.

Soltas lá no fundo do quintal, as galinhas em geral bota­vam seus ovos no mato. De vez em quando, brincando por ali, os meninos descobriam uma ninhada intacta ou, às vezes, com alguns ovos comidos por cobra. Havia ocasiões em que o ninho não era de ovos de galinha. Era de ovos de cobra, mesmo! Sem exagero!

M eu Deus, como tem cobra na minha infância! Con­vivíamos com elas com a maior naturalidade: “Fica quietinho aí que tem uma cobra passando atrás de

você” . A gente sabia que era só ficar quietinho.Cobra não ataca, só se defende. Quer dizer, você não

pode se mover na frente dela que ela se assusta e, mais que se defendendo, ataca. E você não pode, também, é claro, pisar na cobra. Aí, danou-se! Acho que aprendemos muito bem essa lição, pois, tendo a infância povoada delas, não me lembro de um só caso de amiguinho meu que tivesse sido picado por cobra. Não me lembro, mesmo. Os bichinhos que mataram muitos dos meus parceiros de infância não eram visíveis a olho nu.

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uando a gente descobria um ninho de galinha no meio do mato, não tirava todos os ovos. Sempre ficava um. Esse ovo servia para deixar marcado o lugar onde a voltaria a botar. Não era um sinal para a gente, era um

sinal para a galinha. Se ela visse um ovo ali, saberia que ali era o lugar de pôr os seus ovos. Se a gente levasse os ovos todos, ela ia começar o ninho em outro lugar, perdido no mato. Indez se chamava esse ovo.

Tem pouco tempo que fiz a descoberta de que indez é o som ou a pronúncia que, lá pelas bandas onde nasci, tomou a palavra índex, que significa a marca, a referência, a indicação.

A DESAPARECIDA

Machuquei meu pé atrás de uma galinha

que estava sumida.

Só de tarde foi que eu a achei no meio de espinhos

e me enfiei ali e não pude pegá-la.

Caiu a noite, e a galinha de todos os modos, sumiu.

Mamãe chorava de tristeza.

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U m dia, uma galinha desaparecida lá pelos fundos do quintal surgiu ao pé da cozinha com uma bela ninha­da. Havia pintinhos de todos os tipos e, entre eles, um

grandao, mais forte, mais esperto.Como eu era leitor de contos de fadas, achei que aquele

pintinho ia crescer e virar um cisne. Meu irmão, porém, pro- clamou-se dono do pintinho e resolveu que ele ia ser um galo de briga. Decidiu criá-lo como quem cria um cãozinho.

Algum tempo depois, nós dois estávamos indo para a escola, eu na frente, com meus amigos que eram mais velhos que ele, quando percebi que meu irmão se atrasava. Olhei para trás para ver o que estava acontecendo e lá estava ele mandando seu franguinho voltar pra casa, bravo como quem zanga com um cão ensinado. E o franguinho, que o vinha seguindo, vol­tou, dócil. Meu irmão juntou-se a nós, explicando: “Ele queria ir para a escola com a gente” .

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✓ '“'V uando voltávamos da escola, tínhamos obrigação de . 1 entrar em casa gritando: “Estou morto de fome!” . Fazia

parte do nosso ritual de infância. Nós comíamos enso- padoae galinha quase todos os dias. Nas pequenas cidades do interior daqueles tempos, galinha - comida criada no quintal, como a couve ou o chuchu - é que era o alimento dos que não tinham renda suficiente para comprar carne de boi no açougue.

Certo dia, antes de pegar nosso prato no fogão, ouvi meu irmão dar um berro: “Galinho!!!” . Era assim que ele cha­mava o seu herói! Só que, desta vez, o chamado foi um grito doloroso. E logo seus olhos estavam cobertos de lágrimas e de pavor.

N ós estávamos de cozinheira nova, e ela não sabia que o frango mais gordo do quintal era o bicho de estima­ção do meu pobre e desesperado irmãozinho. Agora,

com muita lágrima e com o nariz escorrendo, ele, tadinho, teve que comer, aos prantos, metade do ensopado. Incluindo o sobre e a moela. Até hoje, escuto os seus soluços toda vez que vou comer frango com quiabo. Ele nem se lembra.

O GALO

Este galo já está velho, amanhã já não o deixaremos cantar.

No dia seguinte o galo amanheceu morto.

Eu creio que ele escutou o que se disse na casa

e, de noite, moireu de tristeza.

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A gente só tinha, no quintal, galinhas e um ou outro porquinho que o meu pai, às vezes, ganhava ou com­prava e que ficava ali, grunhindo e fuçando na porta

da cozinha, até que Sêo Zé da Dona Rita da Serra o viesse buscar para criá-lo à meia. Sêo Zé da Dona Rita da Serra tinha uma situação no alto da serra. Era agregado de uma fazenda, ocupava um pedacinho de terra, com seu plantio de sustento, milho, mandioca, uma couvezinha, taioba, uns pés de fruta. E tinha mais os animais que ele criava para os donos que mora­vam na rua, os que tinham dinheiro pra comprar os bichos, uns porquins, uns cabritins.

Quando o porquinho do papai crescia e virava capado, Sêo Zé da Dona Rita da Serra o matava e trazia meia banda pra nossa casa, na cidade.

Vocês não vão acreditar, a banda maior ficava com quem havia criado o porco e não com quem era dono do porco. Eis aí um caso raro na história econômica do Brasil: o trabalho valendo mais do que o capital.

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M amãe dizia que ele era puri. Na região do Brasil de onde eu vim, o vale do Rio Doce, havia dois grupos índigenas que foram dizimados pelo colonizador: os

coroados e os puris. Na minha infância mais remota, vivendo ainda às margens do grande rio, lembro-me de que descenden­tes dos puris, às vezes, apareciam na rua - como as populações rurais chamavam o povoado - vendendo artesanato, cestas, tacapes, flechas, enfeites de pena, artefatos de barro. Depois, quando voltamos para a cidade onde nasci, que era maior do que a vila à beira do grande rio, não ouvi mais falar deles, dos puris. Mas todo menino moreno, de rosto redondo, cabelos negros muito lisos, olhos apertadinhos e nariz de batatinha, a gente dizia que era descendente de puri. Ele se chamava Jarinho. Ou seria Jairinho? Não estou certo mais. Devia ter vindo mesmo do mato, pois tinha parte com bicho. O Jarinho conversava com eles.

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casa do Jarinho não era longe da nossa. Seu pai eracurandeiro e plantava ervas milagrosas no quintal efazia garrafadas e benzia as crianças da cidade pra tirar

quebranto. O pai do Jarinho não tinha cara de puri. Era tão moreno quanto ele, mas não tinha os cabelos tão negros nem tão lisos e nem olhos tão pequenos. Era um homem de fala mansa e curava seus doentes, acredito, não pela qualidade de suas plantas e dos seus remédios, mas pela certeza de que os podia curar.

O Jarinho falava com os animais. Ao lado das plantas de seu pai, no seu quintal, havia um pequeno jardim zoológico que me matava de inveja. Jarinho tinha coelhos, porquinhos- -da-índia, um quati, cabritos e até um pequeno jacaré.

Principalmente, o Jarinho tinha passarinhos nas inúmu- ras gaiolas penduradas na grande varanda dos fundos, na sala da casa, nas janelas.

Sua casa era uma sinfonia, e Jarinho imitava os cantares de todos os seus passarinhos.

A despeito de tudo isso, o Jarinho tinha tempo de brincar com a gente. E aparecia para as brincadeiras, trazendo sempre consigo seu melhor amigo: um melro que vivia pousa­do no seu ombro.

ma das recordações mais felizes da minha infância é ada sinfonia dos melros nas palmeiras. A gente chegavamuito cedo para a primeira aula do Grupo Escolar,

que ficava na praça cercada de altas palmeiras.Pois é: minha terra tinha palmeiras onde, em vez de

sabiá, cantava o melro. E, como a gente chegava muito cedo para a aula, os melros ainda estavam cantando a sua canção matinal. Era como se estivessem saudando os meninos more­nos, que também chegavam em bando para a escola.

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Jarinho chegava pra brincar com a gente e vinha com o melro no ombro. Se a brincadeira era contar história, brincar de gata-parida, berlinda, mamãe-eu-posso-ir ou

qualquer outra que não implicasse correr, o melro ficava ali, no ombro do Jarinho. Se, porém, a gente tinha que correr, se a brincadeira era de pique, de pular-carniça, soltar papagaio, jogar precipício, cobra-caninana, esconde-esconde ou mãos ao ar - que, em outras cidades se chamava bandido e mocinho o Jarinho botava o melro no galho de uma árvore ou no umbral de uma janela e dizia: “Fica aí, que eu já volto” . E o melro ficava esperando seu dono voltar da brincadeira. A professora pedia ao Jarinho pra não levar o melro para a escola. Era para não tumultuar as aulas.

O Jarinho ficava muito triste de deixar seu amigo em casa.

CHOVEM OS CANTOS

Chovem os cantos dos melros

enamorados da chuva.

E o Sol, parado no meio do céu

sem guarda-chuva.

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\

E ra agosto, mês das queimadas e das ventanias. As vezes, a caminho da escola, na manhã ainda fria, a gente não enxergava um palmo diante do nariz, vivendo como

se estivesse dentro de um fofj londrino. Era a névoa seca das queimadas. Os olhos ficavam vermelhos e voltávamos da esco­la com a poeira das cinzas assentadinha nas dobras da camisa branca do uniforme. Quando não ventava muito, a gente podia ver um raminho de samambaia cinzenta vindo voando em nossa direção, levemente, como uma pena de ave flutuando no espaço. O raminho de samambaia tocava nossa roupa e se desfazia em cinzas. Era um pedaço da floresta se desfazendo nas chamas. Eram as matas do rio Doce sendo dizimadas pelas queimadas dos derrubadores. Foi num mês de agosto, no dia seguinte de uma grande ventania, que o Jarinho não apareceu na escola.

N a semana que se seguiu àquele dia, não só o Jarinho, mas todos os meninos da rua não fizeram outra coisa senão procurar o melro do Jarinho.

Ele o havia deixado num galho de árvore para fazer uma coisa qualquer (que era melhor fazer sem seu amigo). Foi quando começou o furacão. Foi de repente, eu me lembro.

Nunca havia ventado tanto na minha cidade. As pessoas se agarravam aos postes para não serem arrastadas, telhas voa­ram pelos ares, casebres ficaram sem teto, folhas das palmeiras imperiais da praça se desprenderam, voando a grandes alturas, ameaçadoras.

Todos os meninos da rua só faltaram morrer de tristeza, o Jarinho ficou de cama e não me lembro mais de voltar a vê-lo imitar seus passarinhos. Minha mãe, que era uma sábia, tentou explicar para os meninos da rua que era bom a gente prestar bastante atenção nas coisas boas, enquanto elas duram.

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M uitos e muitos anos depois - agora, recentemente - reencontrei o Jarinho. Era um senhor gordinho com os cabelos - muito poucos - completamente brancos

e os olhos pequenos mais sumidos do que nunca. E bem mais moreno do que o Jarinho menino, quase marrom. O tempo lhe deu um ar de santo, seu sorriso era doce como o sorriso simpá­tico de seu velho pai. Perguntei-lhe se ele se lembrava, com a mesma intensidade que eu, dos velhos tempos da rua de nossa infância. E falei do melro no seu ombro e ele me disse: “Não me esqueço nunca. Ainda hoje, tantos anos depois, acordo no meio da noite e, dentro do meu quarto, escuto o meu melro cantando direitinho como se estivesse ali” . Que bom! Jarinho acredita que existe fantasma de passarinho.

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OVELHAS

O céu é uma grande planura.

Ali, pastam ovelhas lanosas e gordas,

brancas, cinzentas,

negras.

Elas caminham sobre o céu, por isso

não vemos suas patas.

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N ão só de gatos, galinhas, ovelhas ou patinhos eram fei­tas nossas amizades nos quintais. A gente tinha, tam­bém, insetos amigos. Os besouros tinham sua graça.

Era muito, muito gostoso nas noites de verão pegar o besouro debaixo do poste, fechá-lo na mão e deixá-lo ali, remexendo as patinhas, fazendo, na palma fechada da mão de menino, uma cosquinha que a gente não trocava por nada. Ou melhor, tro­cava sim: por um bicho-de-pé ou por um carrapato. O bicho- -de-pé a gente só contava pra mãe que tinha chegado a hora de tirá-lo, depois de passar uma noite inteira esfregando o dedão inchado no lençol.

O coceirinha boa!Já o carrapato a gente deixava alguns passeando pelo

corpo antes de ir dormir para, depois, ficar com o dedo passan­do o carrapato, preso ao corpo, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, até achar que era hora de arrancá-lo da pele e ficar com saudade da intimidade perdida.

D e barata a gente não gostou nunca. Mas os besouros, estes eram nossos amigos.

Primeiro era fácil brincar de boizinho com os besou­ros que a gente pegava caídos ao pé do poste, nas noites de verão. Com uma linha amarrávamos uma caixa de fósforos no seu dorso e fazíamos com que ele a puxasse como se fosse um burrinho de carga. Ou um boizinho, que era assim que nós o chamávamos. O divertido era que a gente ia botando coisas dentro da caixa de fósforos para ver o tanto que o besouro aguentava carregar: uma bola de gude, uma moeda, outra moeda, mais uma bola de gude.

Me lembro de um que puxou um goleiro do meu time de botão. Juro! O goleiro de um time de botão é uma caixa de fósforos cheia de chumbo!

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H ouve uma época em que queríamos muito ter um cachorrinho em casa. Todo mundo tinha. Acredito que mamãe não fazia muito gosto, não vejo outra

explicação para a falta de cão na minha infância. Finalmente, na véspera de um chuvoso Natal, ganhamos um filhote. Era uma cachorrinha cinzenta, magra como um retirante, de pelo curto, feiosa, parecia um rato. Foi uma festa a sua chegada lá em casa, mas a festa só durou uma tarde. Na sua primeira noite, ela não deixou ninguém dormir, chorando estridentemente pela madrugada adentro. Minha mãe andava muito nervosa e, na manhã seguinte, com os olhos fundos, decretou a definitiva rejeição da nossa nova companheira. Tentamos argumentar, mas o primeiro cocô que a cachorrinha fez no meio do chão da cozinha tinha mais vermes do que cocô. Era um montinho de lombrigas. Mamãe sumiu com a cachorrinha. Nós havíamos dado a ela o nome de Lassie.

O homem está fazendo uma horta no quintal. Com o enxadão ele remove a terra e, se afunda um pouco mais seu golpe, o cheiro de café torrado inunda o ar. A terra

toda tem um cheiro forte de café e isso pode, ainda, estar acon­tecendo hoje, enquanto você lê esta história.

Estamos em um bairro cheio de casas com quintais e bananeiras. A terra desses quintais é muito, muito fértil, parece terra adubada. E é. Ali, antes que o bairro existisse, era o vasto terreiro onde se queimavam os excedentes da produção de café do país. O governo do meu tempo de menino achava que esse procedimento mantinha alto o preço do único produto que o Brasil exportava para o mundo.

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A menina era mais marrom do que as outras. Morava num canto de rua, mas ninguém, na classe, tinha lido mais livros do que ela. E era, também, uma das melhores alunas da classe, caso raro entre as meninas mais

pobres. Tinha um rostinho redondo e olheiras enormes. Um dia ela explicou pra mim: “Fico lendo a noite inteira. Ninguém consegue dormir lá pelas bandas onde eu moro. Dormir de que jeito? Com aquele cheiro de café queimando a noite inteira!” .

CADA UM COM SUA SOMBRA

Amanhece.

O sol come a neblina e começa a pintar

caminhos, árvores,

casinhas, bichos,

gente...

N o meio da refrega, o projétil atingiu seu olho esquer­do, o menino deu um grito e caiu no chão, chorando, com as mãos nos olhos. Todo mundo achou que ele

estava exagerando, imagina se uma mamonada podia fazer tamanho estrago. Os cachos de mamona eram a nossa munição na guerra de brinquedo. Ao lado do Grupo Escolar havia um terreno baldio, e os pés de mamona nasciam por toda parte na pequena cidade descuidada. Durante o verão, de dentro da sala, a gente ouvia o pipocar das frutinhas estourando ao sol, como pequenas bombinhas de São João: poc, poc, poc. “E a nossa munição passando da hora”, dizíamos. Só nos interessava as mamonas verdes e redondinhas, cheias de espinhos macios, nascidas em cachos como as uvas. Ninguém podia imagi­nar que o impacto de uma frutinha tão macia pudesse cegar alguém. Pois cegou.

gente arrancava os cachos dos pés de mamona. Elesvinham com o seu cabinho comprido, e nós os enfiá­vamos no cinto, que virava uma espécie de cartucheira.

Um bando de lá, outro de cá, arrancávamos as frutinhas dos cachos, e tome mamonada. Nunca usávamos atiradeira na guerra, não valia. Atiradeira era só pra matar passarinho, coisa que, por total inabilidade, nunca consegui fazer. Mais tarde, achei que era uma qualidade minha, uma espécie de generosi­dade que eu possuía sem saber. Sei não...

O pobre do menininho recebeu a mamona atirada com força, nunca soubemos por quem, bem no meio do olho. Na hora ninguém imaginou que pudesse ser coisa grave. Quando decidiu-se que ele precisava de socorro, era tarde. As guerras são mais cruéis do que se pode imaginar, mesmo as de brinque­do. Além de perder uma vista, o meu amigo de infância passou pela vida com o apelido de Zé Mamona.

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A bola cai nos pés do João Permanente, ele a movimenta como se tivesse quatro mãos e a levanta do chão sem usar as mãos de cima e a faz dançar nos seus joelhos

e nenhum menino consegue tomar-lhe a bola e ele avança com ela, ora no ar, ora no chão, dribla o último menino e, com um pé, a faz subir mais uma vez, levemente, como se fosse um balão cheio de ar, e, antes que este volte ao chão, o outro pé a toca com violência, e a bola explode, ruidosa, no largo por­tão do armazém de café, que era o gol. Era uma bola de meia suja, pesada, molhada de tantos pés suados tocarem nela, mas parecia uma continuação do João Permanente, que era todo de uma cor só, desde os cabelos encaracolados - que lhe deram o apelido - até a sola dos pés: tudo cor de terra. Ele era da nossa idade e jogava futebol como um pequeno deus.

NO CHÃO

A luabusca algum buraquinho nas casas de pau a pique,

entra e se senta no chão.

João Permanente morava num barraco miserável, de pau a pique e sapé, bem em cima do barranco que tinham cor­tado no morro pra fazer o terreno de um armazém que

nunca construíram e que virou nosso campo de futebol. Um dos gols era esculpido no barranco e o outro era a alta porta de um armazém preexistente que ficava em frente ao barranco. Eram duas metas muito mais sofisticadas do que as duas pedras no chão, marcando os gols, onde não vale bola alta. A mãe do João Permanente, cheia de filhos de vários pais, vivia de esmolas. Mamãe arranjou um emprego pro João Permanente. Foi lá oferecer pra mãe dele. “Ah, Dona Zizinha, não vai dar, coitadinho. Os meninos todos gostam muito dele, toda hora vêm aqui chamar pra ele jogar futebol, até o prefeito já veio. Se ele vai trabalhar, que hora que ele vai jogar e agradar os meninos?” Mamãe compreendeu; meu pai, acho que não. João Permanente não virou um Pelé. Morreu de esquistossomose ainda menino. No caixão ele era todo amarelinho. Até os cabe­los encaracolados.

T anajura tem época. Dos buracos de formigueiro das saúvas, elas saíam multiplicadas em tamanho e quan­tidade.

O desenho da saúva, se ampliado, faz com que ela se pareça com um artefato interplanetário. A tanajura tem o

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mesmo desenho das saúvas, mas sai do formigueiro muitas vezes maior. Seu abdome tem o tamanho de um grão-de-bico e, o que é mais fantástico, elas saem do formigueiro voando em bando, como máquinas guerreiras, chegando a fazer sombras nos caminhos. E a tarde se enche do ruído das asas que elas adquiriram na mutação subterrânea.

Era hora de os meninos da rua saírem atrás delas, um bando atrás do outro, hora de enfiar um palito no seu abdome gordinho - que a gente chamava de bundinha da tanajura encostá-las no ouvido para escutar suas asas batendo, batendo, até se soltarem de seu corpo. Moça de cintura fina e quadril redondinho, a gente dizia que tinha bundinha de tanajura.

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D o jeito que apareceu em nossas vidas, sem explicação, Sêo Levindo desapareceu. Lembro-me dele, sentado na cozinha de casa, muito magro, as pernas trançadas

- um pé envolvendo a canela - debruçado, sobre um prato de ágata, comendo com a fúria de um dermbador. Ou muito con­centrado, tocando uma velha flauta de bambu.

Sêo Levindo era muito pontificante, entendia de mdo, tudo: de veneno de cobra, de garrafadas, de política, dos fatos da guerra. Pegava cobra com as mãos e dizia que elas eram criaturinhas de Deus, que fogem do homem, este sim, que não presta. Ensinou os meninos da rua a caçar preás - ratões do banhado, de carne como a da paca - na beira do rio. A seu modo, entendia de culinária: passava óleo na frigideira, botava sal e jogava ali as bundinhas de tanajura que trazíamos para ele quando era época de tanajura. Elas viravam uma espécie de pipoca saltando na frigideira e Sêo Levindo as comia como tira-gosto, enquanto bebia uma cachacinha, coisa na qual era, também, grande entendido. Fazia uma boca tão gostosa com a iguaria que, um dia, me deu para experimentar. Não me lem­bro do gosto que tem pipoca feita com bundinha de tanajura.

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XOL MUMUS

Refresco a minha alma com um trago de ar

da montanha, regado na terra, revolto na água.

Tenho o pueblito ponchero enfiado nos meus olhos.

Me sento sobre uma pedra na beirada de qualquer caminho.

Sonho “riscos”, sinto cheiros

de incenso e de resinas. Aonde quer que eu vá,

carrego nos ombros mi pueblo.

Do contrário, iria triste.

D evia ser domingo, pois os homens estavam todos rindo e conversando, e o sol era o do meio-dia. Eles falavam de futebol e mal do governo, e alguns diziam que

era melhor ter cuidado, nem se mencione que estamos numa ditadura. Juntou-se ao grupo um homem magro e seco, pele queimada, um cigarrinho de palha atrás da orelha. Em pouco tempo já estava no meio da conversa. Debaixo do braço car­regava uma caixa de sapatos e, de repente, perguntaram o que ele trazia ali. Quando um bebê morre na terra dos meninos morenos, a gente chama de anjinho. E o homem contou: “Ah, sim, é um anjinho que estou levando pro campo santo” .

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E u gostava de ouvir a conversa dos adultos e estava rode­ando os homens que conversavam em frente da minha casa, meu pai no meio. Quando ouvi o homem magro

dizendo o que tinha dentro da caixa de sapatos, não entendi bem. Não sabia o que era campo santo. Mas, de súbito, meu Deus, me ocorreu: era o cemitério.

cabava com jeito de festa, de comemoração, algumacoisa parecida com uma parada ou um bloco de carnaval.Serpenteando pelas ruas empoei radas da cidadezinha, lá

ia o enterro: duas filas de crianças mudas e muito sérias, car­regando, entre as duas filas, o caixãozinho. Cor-de-rosa, se era de menina, azul, se era de menino, muito pequeno se era de um anjinho.

Os meninos morenos daqueles dias morriam muito: por causa da água ou por falta de água. As doenças que os matavam eram provocadas pelos vermes que habitavam o rio de muito pouca água, mesmo para o modesto tamanho da cidade. Ou eram causadas pela desidratação dos recém-nascidos, por falta de informação das populações pobres dos cantos de rua. Nós morávamos num canto de rua. Mas sobrevivemos, todos, por­que meu pai tinha um emprego. E gostava de ler.

C orri pra dentro de casa: “Mamãe, eles vão enterrar um anjinho numa caixa de sapatos” . Minha mãe tinha um olhar de criança e a mesma velocidade de ação.

Com panos e flores, em pouco tempo ela transformou a caixa de sapatos num caixãozinho. Meu irmão fez uma espécie de maca com dois bambus e algumas taquaras, colocamos a caixa ali e forramos tudo com folhagens e marias-sem-vergonha, de todas as cores, do jardinzinho que havia atrás da varanda lateral da casa.

Eu saí chamando os meninos da rua. Foi o enterro mais bonito que já fui na minha vida.

QUANDO O TECOLOTE CANTA

Nasceu antes que a aldeia;assim tinha que ser.

Cada vez que canta- isto é certo - os lobos uivam,

a Lua se apaga.Até o ar sente medo.

Quando ele morre ninguém canta pra ele.

O sol do meio-dia queimava as cabeças pretinhas dos meninos e meninas formados no pátio interno do Grupo Escolar. Era o começo de março, o calor era

imenso e aquelas crianças morenas, formadas ali no pátio, pareciam uma porção de jabuticabas arrumadinhas em cima de uma bandeja branca, as camisas de seus uniformes, limpi- nhas, passadinhas, para o primeiro dia de aula. O resultado das provas feitas no começo de dezembro chegara da Secretaria de Educação, na capital do estado. As provas eram corrigidas lá e nenhuma daquelas crianças sabia se havia sido promovida. O trem atrasara, as provas chegaram em cima da hora, as crianças estavam formadas no pátio desde muito cedo, aguardando a diretora começar a leitura da relação dos aprovados. O Sol já estava perpendicular sobre cada cabecinha, quando os trabalhos começaram. Cada nome pronunciado significava aprovação. Ouvido seu nome, o menino ou a menina abandonava o pátio e subia para a varanda que o circundava. E se postava ali, olhando os náufragos que ainda restavam, boiando perigosamente no mar de tijolos crus do pátio.

O calor era imenso sob o sol pleno, cada criança que ficara em pé no pátio do Grupo Escolar se angustiava na espera de ouvir seu nome. Os aprovados sorriam

e se abraçavam na varanda e olhavam, desdenhosos, os que esperavam sua vez lá no fundo do pátio infernal, o escaldan­te inferno era ali. De repente a chamada é interrompida. A servente desce correndo para o pátio e sai carregando uma menina que recolhe desmaiada no chão. Ninguém sai das filas, todos com os olhinhos fixos na figura da diretora. A chamada continua. Debruçado no parapeito da varanda, volto meus olhos para o parceiro das minha melhores aventuras. Ele ainda está lá embaixo, de pé, duro como um oficial nazista. Muito sério, não me olha, não move o rosto; ele nunca aceitava per­

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der. O suor desce pelo seu rosto avermelhado e eu juro que são lágrimas. O seu nome não sai e ele não se move, e quem se angustia sou eu. Súbito a chamada para e a diretora informa: “Final da relação dos aprovados” . E aponta para o pátio onde resta mais de um terço dos alunos do Grupo: “Os demais per­manecem na mesma série” . O pátio se esvazia tristemente e só meu amigo permanece em seu lugar, de pé, firme. Desço pra tirá-lo dali, me aproximo e pergunto: “Você está chorando?” . Sem me olhar, ele pega a manga da camisa, passa no rosto e diz, com dureza: “E suor!” . Não sei por onde ele anda hoje, mas dizem que ficou rico. Nunca perdeu uma parada.

T odas as comidas feitas de véspera, as camas desfeitas, a casa sem varrer, nem brincar, nem falar alto, ruído ne­nhum. Qualquer barulho aumentaria a dor nas chagas

de Cristo. Era sexta-feira da Paixão e meu pai, cedinho, nos acordava e, bem baixinho, explicava pra gente como devíamos agir naquele dia e dissertava sobre o que era respeito, e a gente achava sensacional o desafio de ficar quietinho um dia inteiro.

S ão pouco menos de quatro horas da madrugada, e o despertador acorda a mim e meu irmão. De pé, ao lado da cama, já está meu pai. Faz frio e chove na noite.

Levantamos com dificuldade, estamos trôpegos, meu pai, impaciente, acaba de nos vestir, pentear nossos cabelos - ele sempre fazia isso, nos dias de festa - e dá um guarda-chuva pra cada um de nós. Saímos os três na chuva, a rua barrenta, a igre­ja era longe, a gente, preguiçosamente, escorregava na lama, e meu irmão e eu fazíamos questão de enlamear bem os sapatos pra chegar na igreja e, de vingança, sujar bem seu assoalho de ladrilhos hidráulicos. Chegávamos para render a equipe ante­rior que estava ali, cumprindo seu dever religioso da Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento. Uma hora para cada grupo. E com um relógio bem ao lado do altar fazendo tique-taque, tique-taque, tique-taque, um suplício de sessenta intermináveis segundos multiplicados por sessenta vezes. Meu irmão, baixinho pra mim: “Você adora mesmo o Santíssimo Sacramento?” .

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O fogo já havia queimado toda a lenha da fogueira, alguns meninos ainda riam muito, outros já tinham vomitado todo o quentão que haviam bebido às escon­

didas, enquanto a sanfona tocava e os foguetes espoucavam no ar, saudando São João. Soprava uma brisa forte no começo da madrugada, logo seria agosto e as ventanias já se anunciavam.

As bandeirolas coloridas se agitavam nos fios esticados no alto dos mourões, e o pau de sebo já havia sido vencido pelo rapazinho que subia sem abraçá-lo, tocando o pau com a sola dos pés, como um bicho-preguiça. Era hora de espalhar as brasas no chão para os crentes caminharem sobre elas.

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Ninguém se aventurava a atravessar o braseiro com os pés nus, embora os mais velhos dissessem que isso acontecia todos os anos, bastava ter fé. De repente, saída não se sabe de onde, uma velhinha que nunca havíamos visto, com seu coque e seus cabelinhos brancos, um xale gasto

de crochê seguro no peito pelas duas mãos, se aproximou. Sem olhar para ninguém, tirou os chinelos de liga dos pés, usando a ponta do chinelo de um pé para descalçar o calcanhar do outro, soltou uma ponta do xale para fazer o sinal da cruz e caminhou sobre as brasas - vermelhas como lâmpadas de neon - como Jesus caminhou sobre as águas. Ouvíamos o chiado das brasas sendo esmagadas, a velhinha chegou do outro lado, calçou seus chinelos e, tranqüila, seguiu seu caminho sem olhar para trás.

A chei melhor acreditar no milagre de São João do que acreditar que os pés da velhinha eram como os do tio João Gualberto, eles eram muito pequenininhos. Logo

que a velhinha desapareceu na noite sem estrelas que ventava, outros personagens seguiram, cheios de fé, seu caminho. Alguns passavam depressa demais, outros escolhiam o lugar onde a velhinha havia pisado, até que chegou a vez do Zé Biscoito. Todo mundo tem apelido na terra dos meninos marrons. Zé Biscoito era muito engraçado e decidiu passar devagarinho. Queimou terrivelmente a sola dos seus pés e saiu gritando palavrões. Tiveram que levar o Zé Biscoito carregado, abrir a farmácia, fazer curativo. Tenho a impressão de que ele ainda não se chamava Zé Biscoito até aquela noite. Ganhou o apelido ali, assando os pés no braseiro da fogueira de São João.

DEPOIS DO SEU PRIMEIRO GRITO

Depois do seu primeiro grito, recém-chegado ao mundo,

nas meninas se bota um grãozinho de sal

nos lábios para que suas palavras

sejam doces.

Nos meninos, uma gotinha de chile para que não falem palavras grosseiras.

E ra de manhã e fazia frio. Possivelmente foi assim uma vez só e misturei as três lembranças na minha memória. Sempre que, na minha cidade, corria a notícia de que

havia a possibilidade de trabalho em algum lugar, os jovens partiam.

No primeiro dos êxodos a que assisti, eu era muito pequeno e havia névoa na manhã, tenho certeza. Vi as pessoas se abraçando e os jovens subindo no caminhão. Eles tinham ouvido falar que estavam construindo uma estrada de ferro entre o Brasil e a Bolívia.

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E u vi as mães chorando, os abraços silenciosos. Acordei cedo porque, entre os jovens que partiam, estava o João Bobo. Ele devia ter o dobro de nossa idade mas gostava

de brincar com a gente. Era meio gordo, meio lerdo, há sempre um João Bobo na vida de nossas pequenas cidades. Ele não tinha medo de cobra, pegava os insetos mais estranhos com as mãos, vivia com o nariz escorrendo. Mas era muito bem mandado, fazia favores pra todo mundo, limpava os quintais, buscava animais no pasto, montava os cavalos no pelo, passava correndo pela rua, aquele gordo enorme em cima dos cavali­nhos mais desajeitados. Nós, os meninos menores, adorávamos o João e, por essa razão, fomos ao bota-fora da rapaziada. Alguns meses depois, chegaram as primeiras notícias da frente de trabalho da Brasil-Bolívia: o João tinha morrido.

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T odos sentados sobre as toras de madeira deixadas em frente a uma casa da rua, a Lua indo alta no céu, os meninos recordando o João. Ninguém sabia ao certo se

a notícia era verdadeira ou se era apenas a crônica de uma morte anunciada. A gente ficava inventando mortes possíveis. “Vai ver, ficou no meio da linha, o trem pegou ele.” “Mas ainda não tem linha, só tem barranco.” “A estrada é no meio da selva, vai ver ele se perdeu na mata, não está morto.” E teve a hipótese mais plausível, a que ficou valendo como verdadeira até que um possível desmentido - que minha memória não guardou- tenha chegado à cidade. Ficou acertado que, gordo e lerdo como o João era - exceto em cima de um cavalinho veloz -, vai ver, a turma foi andando na frente, andando na frente, ele foi ficando para trás, ficando para trás, onça pegou ele.

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A ÁRVORE NUA

Corri pra dizer à mamãe

que o pessegueiro estava chorando.

Ela riu:“Só está trocando de roupa”.

O pessegueiro deixava cair suas

folhas secas.

No norte do Paraná, os forasteiros estavam fazendo fortuna da noite para o dia, era a notícia. Na hora do almoço escuto meu pai contando que o João Barbeiro vendera a barbearia, mais o pouco que tinha, e ia embora com a família inteira. Mamãe achou que era coragem demais do João

Barbeiro. Papai disse que ele também gostaria de fazer isso: começar um negócio em outras terras. Mas não fez. Nunca fez. “Meu nêgo, você não tem jeito pra negócio, fica quieto aqui no seu emprego seguro” - mamãe disse com a sabedoria de mães que, às vezes, falha fragorosamente. Era o segundo dos três êxodos a que assisti na cidade da minha infância.

Muitos anos depois - muitos, mesmo! - fui autografar livros numa grande cidade do norte do Paraná. Na fila, um senhor muito simpático me contou: “Aqui, onde está esta livra­ria foi que meu pai abriu sua barbearia” . Era o filho do João Barbeiro. O prédio da livraria e mais um ou dois dos enormes edifícios que dominavam a bela praça eram deles.

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m dia, o Brasil decidiu seguir o conselho de MonteiroLobato: “Temos que produzir aço” . Estavam inaugu­rando a Usina Siderúrgica de Volta Redonda, e meta­

de da família de meu pai foi ser pioneira em Volta Redonda.Meus parentes por parte de mãe são uma mistura dana­

da: tem gente de olho verde, de cabelos negros, de cabelos louros, de rosto fino, de rosto largo, tem gente de pele muito morena, pouco morena, tem gente feia, tem gente bonita. Já os parentes de meu pai parecem ter sido feitos numa fôrma só: todos morenos com cara de árabes ou de tuaregues, todos bonitos. Foram fazendeiros de terras pobres, foram agriculto­res, muito poucos das primeiras gerações estudaram. Os que viviam em minha cidade foram ser operários na usina que ia fazer aço para o Brasil. Há poucos anos fui à formatura de um jovem primo. Era o último de cinco filhos de uma prima, filha dos operários pioneiros de Volta Redonda: três esbeltos rapa­zes, duas moças lindas, todos médicos.

Me aboletava lá no alto da árvore mais alta

e a baixava do céu.

Era um balão, saltava de poça em poça

de charco em charco.

Eu adormecia e ela

se quedava só.

ERA UMA BOLONA

Eu brinquei com a Lua quando era pequeno.

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M eu negócio era ficar desenhando. Não tinha muito jeito para as brincadeiras de todos os meninos, joga­va futebol muito mal, não sabia rodar pião nem sol­

tar papagaio, morria de inveja dos calos que outros meninos tinham nos dedos agéis de jogar bola de gude - que, na minha cidade, se chamava birosca mas convivi com todo tipo de menino que existe no mundo, o que sabia fazer rádio galeno, o que sabia fazer gaiola e pegar passarinho, o que sabia fazer ati- radeira ou estilingue com borracha cortada de velhas câmaras de ar e gancho feito de galho de goiaba, o que sabia fazer car­rinho de rolimã, o que sabia nadar, o que sabia cair de choupa, o que sabia pongar, o que sabia cortar bambu para fazer vara de anzol, o que sabia pescar, o que sabia fazer caminhãozinho de lata ou aviãozinho de bucha, o que sabia andar na perna de pau, o que sabia brigar e não tinha medo de nada. A minha sorte é que tive um irmão, pouco mais novo do que eu, que tinha o cabelo mais liso e mais negro e a pele mais morena e que sabia fazer tudo isso.

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O globo terrestre sobre a mesa da professora e a desco­berta: isto é a Terra. A descoberta se deu, creio, na minha primeira semana de Grupo Escolar. Professora,

isto é a Terra? A professora confirmou. A gente vive aí dentro? Vive fora, ô, sêo idiota. Era um menino mais esperto - ou mais velho - se metendo na conversa. Fora? Fora daí não é o céu? Essa coisa azul lá em cima, além das nuvens, nao é a casca da Terra? O céu nao fica lá fora?

Naquela remota manhã tive a primeira das respostas de uma das três grandes questões filosóficas: fiquei sabendo onde estava. Só ficou faltando saber quem era eu e o que fazia aqui...

iquei tão impressionado com o mapa do mundo dese­nhado sobre o globo, achei a Europa tão pertinho daAmérica que comecei a temer que Hitler, de repente,

num pulinho, pudesse invadir minha casa.Um dia, pedi à professora que me desse a explicação

final: se a gente vivia fora do globo, como é que os que esta­vam do lado de baixo não caíam? Não entendi mas aceitei a lei da gravidade. E perguntei mais: se no universo não tinha nem lado de cima nem lado de baixo, por que o mapa-múndi era desenhado daquele jeito?

Desenhei tantos globos, risquei tantos mapas impossí­veis que minha mãe me deu um adas de presente. Quando, anos depois, cheguei ao ginásio, sabia desenhar de cor - e do meu jeito - o mapa-múndi. E me perguntava porque tinham botado o Brasil lá em baixo.

Hoje resolvi desenhar o mapa de novo, do jeito que eu fazia quando era menino. Só que agora vou trocar o centro do mapa de lugar. Vou fazer um mapa-múndi com a terra dos meninos morenos no meio do mundo.

Um mapa morenocêntrico.

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v k w 1 0Fol-A^— ¥ rÁPÇfA

PÁSSARO CARPINTEIRO

O carpinteiro do monte fabrica a sua casinha

no tronco de um azinheiro.

Como não pode cantar busca os galhos ocos

e com seu bico os toca e a árvore soa

como se fosse um tambor: k’up, tummmmm k’up, tummmmm

k’up, tummmmm...

O pássaro carpinteiro é muito sabido.

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A gora, eu ia ter aulas de História Geral, Ciências, Geografia, Matemática, Canto Orfeônico, Língua Pátria, Latim, Inglês e Francês. E cada uma dessas

aulas com um professor diferente. Ia cantar no coral do ginásio e fazer parte dos “jovens do mundo!” . Emocionadíssimo, eu voltava do alfaiate aonde tinha ido experimentar o dólma com que ia freqüentar as aulas do ginásio. Eu tinha onze anos mas, de calças compridas, me sentia um homem, o dono do meu nariz. No final do primeiro semestre tinha aprendido a cantar a Marselhesa. Não fiai bom aluno de línguas nem de Matemática. Era bom de História e Geografia, o mundo era o centro da minha curiosidade total. Outro dia, porém, muito recente­mente, fui fazer uma palestra em Caiena, na Guiana Francesa. O intérprete sentou-se ao meu lado mas nós dois tivemos uma surpresa: eu sabia falar francês. Mal, mas sabia.

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F ora os puris da pequena cidade do grande rio onde vivi por algum tempo, passei minha infância sem saber o que era um índio brasileiro, sem saber seguer o nome de

qualquer das tribos brasileiras remanescentes. As vezes olhava para mim ou para o meu irmão, depois de fazer uma selvage- ria qualquer, subir no telhado, cair de uma árvore, fazer uma pequena grosseria com alguém, e me perguntava por que razão a mamãe chamava a gente de bugre, Não acredito que seja pre­conceito da minha mãe, ela amava a humanidade. De índios, porém, na minha infância, só me lembro dos avisos feitos com pios de ave ou sinais de fumaça dos apaches, dos comanches, dos cheyennes, dos cherokees, dos navajos e dos sioux. A gente brincava: “Fala seis nomes de tribos de índios” . Só conseguía­mos falar cinco, sempre nos esquecíamos de uma.

A gente não estudava. Não tinha tempo. A gente brincava. Quando chegava, porém, a época das provas, tome angústia. A noite inteira acordado, o abajur aceso sobre

o livro de Ciências, a lista dos pontos, os pés dentro de uma bacia de água para não dormir (como fazia Machado de Assis, coisa que a gente aprendeu lendo e não estudando). No dia seguinte, como eu era o último da chamada, sentava-me perto da mesa do professor e ia aprendendo o que faltava para res­ponder as perguntas da prova oral.

N o final do ano, o começo do verão faz as árvores dos pomares ficarem cobertas de frutas. O povo da roça desce para a rua vendendo seus abacaxis e mais ingá

ou romã, manga-ubá ou carambola. E a mãe compra tudo medido em litros, como se frutas fossem líquido. A medida era uma velha lata estampada e, onde cabia um litro de óleo, cabe agora um litro de carambola ou um litro de quiabo.

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As mangueiras deixam o chão à sua volta coberto de flores e os galhos já começam a pesar, carregados de frutas. Logo, logo vão começar as férias de fim de ano!

A s andorinhas voam juntas. E se movimentam no céu como se fossem um tapete voador sem um só ponto fora do lugar. No final das tardes de verão elas apare­

ciam de repente no céu da cidade. Eu tinha certeza de que haviam passado todo o tempo de sua ausência dormindo den­tro da pequena catedral. De repente, despertavam e saíam: todas ao mesmo tempo e a um só comando. Aprendi que o ruído que faziam se chamava chilreio e era pura música para meus ouvidos. Por isso entendi todos os poemas que Ak’abal fez sobre seus pássaros e me lembrei de pedir de presente ao Borjalo este seu desenho famoso, para ilustrar muito mais os versos de Ak’abal do que as minhas sensações.

GUARDABARRANCAGuardabarranca: teu canto é como

um rolar de pedrinhas caindo na água do rio.

BICO FECHADOO tecolote cantava.

A Lua não podia dormir.

O vento fechou seu bico e a noite

comeu o pássaro.

i c u r u p u p

K ’urupup,k’urupup,

k}urupup.../

E o passarinho cantador da noite

tem penas cinzas e negras.

Quando o Sol se põe k’urupup começa a cantar.

K yurupup, k’urupup,

k’urupup...

Tão logo a Lua aparece o passarinho se cala.

KITANATANAKitanatana, kitanatana, kita-

natana nuyuj, nuyuj, nuyuj;

dorme, filhinho, dorme.

Kitanatana, kitanatana, kita­natana;

dorme, dorme.Se choras

os passarinhos vão acordar

e eles não cantam de noite.

Kitanatana, kitanatana, kita­natana;

nuyuj, nuyuj, nuyuj...

CH’IKDe plumagem cor de café

e alaranjado

Ch’ik ch’ik ch’ik

Está chamando a água.

Ch}ik é seu canto ch’ik é seu nome.

Salta contente entre as espigas de milho.

/

E o passarinho pedidor de chuva.

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(

O menino queria voar como o Capitão Marvel, os dois braços estendidos para a frente, as pernas bem junti- nhas, na posição exata que sempre lhe pareceu que

seria a do homem, se ele voasse como um pássaro. Queria voar como os homens voadores das fitas em série que ele acompa­nhava no cineminha de sua pequena cidade. Ele não queria voar como o Super Homem que voava com os mesmos gestos de quem corria. Voar teria que ser uma coisa sem pressa, sere­na, só para contemplar o mundo, saber como eram as nuvens vistas do lado de cima, descobrir se eram rios ou caminhos os claros fios que, lá embaixo, serpenteavam entre as montanhas de sua terra.

ÀS VEZES, RIOS

Se tem água são rios.

Se não, são caminhos.

O menino queria voar, principalmente, para saber como eram as montanhas que estavam atrás das montanhas, para ver do alto as curvas do rio e para acompanhar

as gigantescas serpentes feitas de bambuzais que, como as Muralhas da China, subiam morro, desciam morro, dividindo as terras que pertenciam aos donos das terras. As fazendas eram, ali, separadas por cercas feitas de bambuzais. Ainda hoje se podem ver aqueles longos caminhos verde-escuros quadri- culando a paisagem. Muitas vezes, até mesmo nas margens dos pequenos rios que dividiam as propriedades, seus donos plantavam fileiras de bambu, para demarcar suas terras. E era ali, nos remansos dos rios, sombreados pelas verdes curvas das frondosas touceiras de bambu, que os meninos viravam peixes, viravam golfinhos - sem sequer saber de sua existência viravam caboclinhos-d’água.

O s gigantescos bambueiros, ou pés de bambu, enormes touceiras feitas de varas independentes, umas nascidas ao lado das outras, dão a impressão de que são uma

explosão verde, vinda do centro da terra. Suas folhas são ásperas e afiadas, cortam como navalha, conforme o jeito que tocam a pele. Cortar suas varas implica grande sacrifício de quem o faz, é preciso ter cuidado para não se ferir. Imagina o tamanho da dificuldade que pode ser subir por dentro de um bambueiro, praticamente nu, sem se lanhar todo. Meninos marrons conseguiam fazer isso. Abandonar o rio, subir ainda molhado por dentro das touceiras de bambu, alcançar a ponta mais alta de uma vara, agarrar-se a ela e vir descendo, com um grito de Tarzan, até o rio. Só consegui fazer isso uma vez e me cortei todo! Desajeitado para as grandes aventuras,/também não consegui fazer, agarrado à ponta do bambu, um trajeto maior: atravessar o mesmo rio e cair na outra margem, além da cerca do quintal, para roubar fruta. O Chapelão, que me matava de inveja, conseguia.

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O Chapello fazia todas as coisas impossíveis para os ou tros meninos. Vivia dentro do rio, assava ele mesmo a carne do preá que caçava no capinzal por onde o rio

corria, cortava a barriga do sapo pra brincar de cirurgião, fazia o sapo fumar, comia bundinha de tanajura, que nem o Sêo Levindo. Nunca botou um sapato no pé e nunca cortou seu cabelo. E não me lembro de tê-lo visto com uma camisa. Só me recordo de notar quando sua barriga começou a crescer, a crescer, e ele começou a ficar bege, bege, quase amarelo, longe da cor marrom de todo o seu corpo, inclusive a dos olhos, tam­bém. A gente se despediu do Chapelão da mesma maneira com que nos despedimos de uma porção de meninos que, se um dia eu fizesse um filme, iriam ser protagonistas do meu Amar cor d.

Queria fazer um filme com os meus meninos morenos! Em vez de neve, meu filme teria o nevoeiro das manhãs de inverno do vale onde nasceu minha cidade; em vez de febre do feno, a revoada das folhinhas de samambaia

da época das queimadas, que se desfaziam em cinzas quando tocadas; em vez de um louco na motocicleta, atravessando a cidade como um bólido, meu filme teria os cavalinhos do João Bobo, com ele montado em pelo e gritando sai da frente, sai da frente, e sumindo no fim da rua. E teria a doida que respondia com pedradas quando os meninos a chamavam de Bodoque de Banda, porque ela andava meio torta; ela no lugar do louco gritando, no alto da árvore, que queria una donna. E botaria no filme, também, um ditador que amava as crianças e as saudava em belos cartazes e que tinha inventado um outro feriado, dois dias antes do Grande Feriado Nacional. Nesse dia todos os meninos morenos marchavam ao sol do meio-dia e desmaia­vam na hora dos discursos cívicos. De desnutrição. No Dia da Raça. Finalmente, o cenário seria um quadro que descobri de Portinari (que, ao longo da vida, pintou seu Amarcord).

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B ani, barrigudinho demais para um herói de grandes aventuras, agarra o cipó e atravessa o ar, gritando seu nome: Baruuuuuuuü! Pousa sobre o galho de uma alta

árvore e mira o horizonte.Filmaram essa cena uma vez só mas ela serviu sempre

para anunciar a chegada do herói menino, em qualquer si­tuação, fosse ou não fosse perigosa.

As fitas em série passavam todas as terças-feiras no cine- minha da cidade e se chamavam O Falcão do Deserto, A Ilha do Tesouro, Os Três Mosqueteiros do Oeste, Tarzan, O Rei da Selva, Os Perigos de Nyoka, O Império Submarino e, principalmente, a inesquecível A Deusa de Joba. Baru era o herói desta série. Até hoje me lembro da canção que anunciava a chegada do Baru. Nota por nota, vou solfejá-la para vocês.

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A gora, era Elizabeth, a rainha mãe, com suas duas filhas vestidas de branco, lindas como duas estatuetas de bis- cuit que pudessem se mover. Ou era a rainha e o rei

George abrindo a temporada de Ascot, as damas inglesas com

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seus longos vestidos transparentes tocados pelo vento e seus belos chapéus elegantemente segurados pelas mãos para não voar. Antes do filme da semana, e do capítulo da fita em série, assistíamos emocionados os jornais da BBC, da Fox Movietone (cuja música me lembro também) e das Atualités Françaises. O prefixo do jornal da Fox misturava uma quantidade infinita de cenas, todos os assuntos possíveis, rodando freneticamente na tela. Minha mãe dizia que a cabeça do seu filho parecia com aquela cena. “Esse menino tem cabeça de Fox\”

E la estava vestida de jogadora de tênis. Muito moderna. E estava linda. Tinha voltado do Rio de Janeiro para o seu primeiro passeio na cidade natal. Minha tia Inês era

loura e tinha os olhos verdes, meu avô e minha avó fizeram filhos completamente diferentes uns dos outros.

Os rapazes da cidade ficaram alvoroçados, a tia estava fazendo o maior sucesso. Além disso, estava mostrando que a ida da família inteira para a capital da república, num ato de coragem do patriarca, tinha dado certo, a despeito de todos os prognósticos contrários.

Havia um jovem português bonitão na cidade que joga­va tênis, tinha carro e roupas modernas e que resolveu fazer a corte à minha tia linda. O que resultou num piquenique com a família toda e mais uma amiga de infância da tia. Fomos todos no Ford do Bernardino. Todos os táxis da minha cida­de eram Fordinho 28/29, carros novos ainda no princípio da década de 1940. O português lindo, com seu carro do ano e sua máquina de tirar retratos - que era como se chamavam as câmeras fotográficas - , foi com a tia, a amiga loura e sua filha branquinha. Ninguém pode ser mais feliz do que pobre em piquenique. Foi o que a Kodak caixote do português provou nessa foto que é a reprodução mais fiel do que era a ideia de felicidade no Brasil dos anos da minha infância.

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morenos ao mesmo tempo. Como foi o Borjalo, quando se chamava Mauro e era um menino de olhos negros e longos cílios de herói do deserto.Os personagens de um tempo reencontrado - de que fala Mareei Proust, também citado neste livro (página 33) - que estão na foto das páginas 88/89 são, da esquerda para a direita: o dono do carro de praça, Bernardino, amigo de infância do meu pai, e seu Ford de bigode/28, Marieta Cimini, amiga de infância da minha tia Inês, sua filha Sônia, meu primeiro irmão, Ziralzi (atrás dela), tia Inês lá no alto, eu, com a cestinha de piquenique, mamãe, dona Zizinha, meu segundo irmão, Zélio, e meu pai, Geraldo Pinto.Quero mencionar, também, mais duas colaborações muito importantes. As ilustrações tiveram a ines­timável ajuda do Charles Bertho. Seu talento c paciência me permitem participar do mundo da computação, onde ele limpa, completa e melhora os desenhos que faço. E, como só sei escrever à máquina - como no que hoje já se pode chamar de velhos tempos - , meus textos só podem chegar à grá­fica porque tenho a Yvonnc Prieto para digitá-los. Pra terminar, quero agradecer à Irene Piedra Santa, minha editora na América Central, à sua filha Yara e à embaixatriz brasileira Lívia Barreto a força que me deram pra realizar este projeto. E à Mareia, minha companheira na descoberta da Guatemala. Não será preciso falar do meu entusiasmo e da minha admiração pela poesia desta grande figura humana que é Humberto Ak’abal. Mais do que tudo, este livro é uma homenagem a ele.

A o retornar de uma viagem à Guatemala, Ziraldo che­gou entusiasmado com a poesia de Humberto Ak’abal, guatemalteco de origem maia, um dos grandes poetas de

seu país. De sua vasta obra, as lembranças infantis foram as que mais comoveram nosso autor. Nelas, ele encontrou muitos pontos de identidade entre o modo de sentir as coisas dos seus meninos e dos meninos de Ak’abal, habitantes de dois países que estão menos distantes do que parece, filhos da mesma floresta úmida. A origem dos meninos morenos que povoaram a infância do poeta não é, exatamente, a mesma dos meninos da infância brasileira de Ziraldo, mas a trajetória dos dois povos tem muitos pontos em comum. Do Rio Grande - que separa os Estados Unidos do México - até a ponta final da América do Sul, esta é a pátria dos meninos morenos. E é relembrando sua infância de menino cor de terra - como o poeta também se vê - , que o escritor conta seus casos, pontuados pelos doces poemas de Ak’abal: uma perfeita história americana.

Eis aqui um livro encantador, que vai fazer com que nós, crianças e adultos desta parte do mundo, nos conheçamos melhor.

ISBN 978-85-06-05960-9