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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
ZWEIMAL AMPHITRYON DE GEORG KAISER: O ANFITRIÃO DA SEGUNDA
GUERRA COMO TRADUÇÃO DE AMPHITRUO DE PLAUTO
MARINA SUNDFELD PEREIRA
CURITIBA
2013
MARINA SUNDFELD PEREIRA
ZWEIMAL AMPHITRYON DE GEORG KAISER: O ANFITRIÃO DA SEGUNDA
GUERRA COMO TRADUÇÃO DE AMPHITRUO DE PLAUTO
Monografia apresentada à disciplina
Orientação Monográfica em Estudos da
Tradução II do curso de Letras da
Universidade Federal do Paraná como
requisito parcial para a obtenção do título de
Bacharel em Letras em Português e Alemão
e ênfase em Estudos da Tradução.
Orientador: Rodrigo Tadeu Gonçalves
CURITIBA
2013
Resumo
No presente trabalho, buscamos analisar a obra Zweimal Amphitryon, escrita pelo
alemão Georg Kaiser, como uma das reescritas da comédia latina Amphitruo de Plauto.
Para poder elencar as nuances que fazem da obra alemã uma tradução “espirituosa”,
conforme o termo de Frere explicado por André Lefevere (2007), observamos a obra latina
e todo o encadeamento de obras que dela decorre, para podermos perceber como a
ideologia e as diferenças culturais surgidas ao longo do espaço e do tempo interferem na
reescrita de uma mesma obra literária. Sob a luz desse comportamento, comparamos ao
final do trabalho a peça latina com a peça de Kaiser, explorando as influências do viés
político e ideológico do alemão que são refletidas em sua obra, e também ponderando em
que pontos outras influências podem partir de Plauto e das reescritas posteriores, como
as de Kleist e de Molière.
Abstract
The aim of this monograph is to analyze Georg Kaiser's Zweimal Amphitryon as
one of the various rewritings of Plauto's Amphitruo and to consider him a "spirited"
translator in the Frere's term given to us by André Lefevere (2007). To do so, we compare
the main characteristics of the Latin work and its rewritings since the Middle Ages, so we
can perceive how its ideologies and cultural differences interfere on the developing of the
myth across space and time. As a final analysis, we compare Plauto's Amphitruo with
Kaiser's Zweimal Amphitryon with the point of view of the German author's political ideas.
We also compare the German Amphitryon with some rewritings of Amphitruo such as
Kleist's and Molière's, for instance.
ÍNDICE
1. Introdução p. 05
2. Anfitrião de Plauto: o início de tudo p. 06
2.1. Plauto p. 06
2.2 Amphitruo p. 07
3. Evolução no tempo: as reescritas de Amphitruo p. 12
4. O mito na Alemanha da Segunda Guerra p. 18
4.1 Quem foi Georg Kaiser p. 18
4.2 Introduzindo Zweimal Amphitryon p. 19
4.3 Amphitruo de Plauto e a reescrita de Kaiser p. 21
4.4 Kaiser como Tradutor de Plauto p. 31
5. Conclusão p. 37
6. Referências Bibliográficas p. 38
5
1. INTRODUÇÃO
Ainda na Antiguidade, o mito do nascimento de Hércules, ou seja, da paixão de
Zeus pela mortal Alcmena, esposa de Anfitrião, foi responsável pela origem de várias
peças teatrais, mas a preferência dos escritores gregos ao dramatizar o mito era fazê-lo
no formato da tragédia. Ao contrário, o Anfitrião de Plauto (séc. III-II a.C.) é a peça sobre o
mito escrita na forma de comédia; provavelmente, seria uma paródia de alguma de suas
antecessoras gregas. E, dentre todas as peças sobre Anfitrião, a de Plauto foi a que
chegou até os nossos dias em melhor estado de conservação, embora uma parte não
possa mais ser recuperada por estar em estado muito fragmentário.
É a partir dessa comédia plautina, de caráter um tanto peculiar se comparada às
outras peças da mesma época e gênero, que surgem várias reescritas, acarretando em
um encadeamento de textos que hoje nos mostram uma transformação do mito no tempo.
Como veremos neste trabalho, “Anfitrião” transforma-se, ganha ou perde personagens e
tem sua temática adaptada às diferentes ideologias de cada época e cultura em que é
reescrito. O mito passa, por exemplo, pelo recrudescimento da situação submissa da
mulher durante a Idade Média (como em Rotrou), com a principal personagem feminina,
Alcmena, influenciando pouco no desenlace da história e demonstrando grande
submissão. Seguinte a esse recrudescimento, há seu afrouxamento, como em Molière,
cuja Alcmena é dócil, mas não se mostra tão submissa. Penetra na era cristã, podendo
simplesmente ganhar um Júpiter mais aproximado ao deus bíblico (como em Kleist ou
mesmo Kaiser) ou, no caso mais extremo, podendo ter todos seus personagens
transformados para personagens participantes da concepção e nascimento de Jesus
Cristo (como em Burmeister). De todas as transformações, é o Anfitrião da Segunda
Guerra Mundial, escrito por Georg Kaiser, que atrairá o enfoque deste trabalho.
No primeiro capítulo, serão expostos elementos da vida de Plauto, para, em
seguida, analisarmos seu Anfitrião enquanto pertencente ao gênero da Comédia Nova
Latina. O encadeamento de textos que se dá a partir dessa obra será visto no segundo
capítulo, em que estarão descritas de maneira sucinta algumas das várias reescritas. O
terceiro e último capítulo deste trabalho será uma análise mais detalhada da obra
Zweimal Amphitryon de Georg Kaiser. Analisaremos também como essa reescrita pode
comportar-se como uma tradução nos termos apresentados por André Lefevere (2007),
em que ele discute a noção de Frere de tradutor “fiel” e “espirituoso”.
6
2. AMPHITRUO DE PLAUTO: O INÍCIO DE TUDO
2.1 Plauto
O que se tem de informações sobre o poeta/comediógrafo latino, autor de
Amphitruo, são incertas. A simples questão do seu nome exato já foi debatida entre os
estudiosos. A única parte dada como certa é o nome Plautus, que os romanos usavam
para designar Plotus, que tem origem na região da Úmbria, provavelmente a região de
nascimento do autor. Até o século XIX utilizava-se o nome do meio como M. Accius, mas
então foi encontrado um manuscrito, o palimpsesto Ambrosiano, onde consta seu nome
completo: Titus (abreviado como T.) Maccius Plautus, fazendo crer que a versão do nome
usada antes era uma confusão que se fazia por causa do nome de outro escritor, L.
Accius. Nesse palimpsesto também está a informação de que a peça Pseudolus foi
representada no ano de 191 a. C, e sabia-se que Plauto escreveu essa peça quando já
estava idoso. Para os romanos, a velhice começava aos 60, daí conclui-se que ele
nasceu por volta de 251 ou 254 a. C. O ano da morte foi afirmado por Cícero como sendo
o ano 184 a. C.
Especula-se que Plauto gastou todo dinheiro que ganhou com suas obras e que foi
obrigado a trabalhar em um moinho para sobreviver, tendo assim escrito as comédias
Saturio e Addictus inspirado em sua própria condição de miserável. A utilização de forma
tão perfeita da linguagem do povo das classes mais baixas teria ocorrido por causa desse
seu contato estreito com essa camada social. Porém, nem todos os estudiosos aceitam
essa versão da vida de Plauto e, para eles, essa história não passaria de ficção.
As comédias plautinas ganharam grande fama em sua época, por isso muitas
peças eram atribuídas a ele incorretamente. Em seu nome estavam mais de 130
comédias, e tornou-se um desafio para os filólogos descobrir quais eram efetivamente de
Plauto. Um desses filólogos, Varrão Reatino, é responsável pela separação das 21 peças
ditas originais que chegaram até nós e que são ditas “varronianas” (Paratore: 1983, p.
41), que são as seguintes: Amphitruo, Asinaria, Aululária, Captivi, Curculio, Casina,
Cistellaria, Epidicus, Bacchides, Mostellaria, Menaechmi, Miles gloriosus, Mercator,
Pseudolus, Poenulus, Persa, Rudens, Stichus, Trinummus, Truculentus e Vidularia. A
ordem cronológica é incerta, mas tem-se informações sobre os anos de apenas algumas
peças, como a já citada Pseudolus e também Stichus, pois ambas contêm didascálias,
sabendo-se daí que a primeira foi representada em 191 e a segunda em 200 a. C. As
7
outras não podem ser datadas com a mesma precisão, mas a datação leva em conta
fatos históricos conhecidos que podem estar contidos nas peças e também argumentos
de ordem estilística. Ao que nos interessa, parece que Amphitruo foi composta por volta
de 188 a. C.
2.2 Amphitruo
Amphitruo começa com o prólogo falado por Mercúrio, em que ele explica quem é
e o que faz usando trajes de escravo, vestimenta inapropriada para um deus. Júpiter, seu
pai, pediu para que ele ficasse idêntico ao escravo Sósia enquanto ele ficaria igual a
Anfitrião, general tebano, para poder clandestinamente desfrutar do amor de Alcmena,
esposa do general. A tarefa de Mercúrio é guardar a casa enquanto seu pai está com a
mulher.
Nesse tempo, Anfitrião acabou de ganhar a guerra contra os teléboas e pede que
Sósia volte para casa em Tebas para narrar à Alcmena a vitória. A ação começa com o
escravo que, mesmo com medo de andar sozinho de madrugada, obedece a ordem de
Anfitrião e ao chegar em frente à casa, ainda sem ver Mercúrio, começa a ensaiar o que
contará a Alcmena e diz algo que será importante no desenrolar da história: Anfitrião
ganhou uma taça de ouro do rei Ptérelas pela sua bravura e a traria para sua esposa. Ao
tentar entrar em casa, é impedido por Mercúrio, que o convence através de provas que é
o próprio Sósia, enquanto o verdadeiro Sósia fica confuso. Na próxima cena aparecem
Júpiter disfarçado de Anfitrião e Alcmena. O deus despede-se da mortal, dizendo que não
pode permanecer longe de seu exército por muito tempo e entrega para ela a taça de
ouro do rei Ptérelas.
Em seguida, Anfitrião e Sósia estão voltando para casa e o general acusa o
escravo de estar ficando louco depois de ele ter feito seu relato de que aconteceu na
frente da casa em Tebas. Ao entrar em casa, Anfitrião decepciona-se com a recepção
pouco calorosa por parte de sua esposa, que se admira de ele “já” estar de volta.
Alcmena, por sua vez, não entende que tipo de brincadeira fez Anfitrião voltar para casa
logo após partir. Dá-se então uma discussão com uma série de mal entendidos, que
impelem a esposa a mostrar a taça de ouro que recebeu. Anfitrião procura a taça que ele
alega ter trazido consigo, mas não encontra. Ele não admite que pode estar errado e,
acusando sua mulher de adultério, volta para o navio para buscar Náucrates, pessoa que
serviria de testemunha de que ele, Anfitrião, não havia passado a noite fora do navio.
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Posteriormente, aparece Júpiter/Anfitrião ansioso por aproveitar mais um pouco os
amores de Alcmena, e a engana novamente, pedindo seu perdão e alegando estar
apenas brincando quando a chamou de adúltera. Ela logo cede aos apelos de quem ela
pensa ser seu marido. Júpiter manda Mercúrio de volta para a frente da casa a modo de
impedir que Anfitrião entre no momento de seu retorno. Enquanto isso, sem ser capaz de
encontrar Náucrates, o general retorna para sua casa e é impedido de entrar, recebendo
muitos insultos daquele que ele julga ser Sósia.
A partir desse ponto, infelizmente, chegaram a nós fragmentos da peça devido ao
mau estado de conservação do manuscrito. Após essa lacuna, acontece a cena em que
estão Anfitrião, Júpiter e Blefarão, que está com a incumbência de distinguir quem é o
verdadeiro general e marido de Alcmena entre os dois. Quando o texto volta a ser
completo, Blefarão, sem conseguir tomar uma decisão, vai embora e deixa Anfitrião
furioso, que força sua entrada na casa. Nesse momento, ouve-se um trovão e ele cai,
desacordado. Em seguida, Brômia, uma criada, sai da casa, e narra o parto indolor de
Alcmena, que deu luz a gêmeos. Encontra o general desacordado, ajudando-o e
revelando para ele os últimos acontecimentos. Ela afirma que Alcmena é uma esposa
virtuosa que, ao sentir as primeiras dores do parto e invocar ajuda aos deuses, teve seu
parto facilitado, indolor, no momento do trovão, enquanto a casa reluzia como ouro.
Revela que um dos meninos é grande e muito forte, um recém-nascido capaz de
estrangular e matar duas serpentes que lançavam-se contra o berço e que, nesse
momento, a voz estrondosa de Júpiter revelou que a criança que matou as serpentes era
o filho de sua relação clandestina com Alcmena. Anfitrião subitamente aceita esse fato
porque Júpiter é um deus, decidindo fazer rituais para apaziguar-se com ele. Eis que
ouve-se outro trovão e Júpiter aparece no alto de uma nuvem, dizendo para Anfitrião que
Alcmena é uma esposa inocente, pois nunca teve a intenção de trair o marido. Além
disso, o filho do deus cobrirá o general de glórias. Assim acaba a peça, com pedidos de
aplausos.
Além de ser baseada no mito grego do nascimento do semideus Héracles (ou
Hércules), a peça plautina pode ter sido baseada em tragédias gregas sobre o tema como
Amphitryon de Sófocles, Alcmene de Ésquilo, Alcmene de Eurípedes, entre outros,
conforme nos afirma Lindberger (1956: p. 22), mas infelizmente não restou muito dessas
obras para analisarmos em nossos dias, apenas os títulos e citações. O tema central não
é o nascimento em si, mas sim os erros causados pelo desejo de Júpiter de ter uma
aventura amorosa.
9
De maneira geral, admite-se que as comédias feitas por Plauto encaixam-se no
gênero das fabulae palliatae, ou seja, a comédia adaptada para o latim a partir da
Comédia Nova Grega (Néa), isto é, comédia com a “roupagem” grega, denominada
pallium. Esse nome surgiu pela crença de que essa vestimenta grega, o pallium, (em
oposição à toga romana) era usada no palco pelos atores, que representavam deuses ou
pessoas comuns da Grécia. Em tais peças, os nomes dos personagens eram gregos e as
ambientações das histórias eram cidades gregas (como exemplo, Tebas em Anfitrião). No
entanto, língua falada pelos atores era o latim e a audiência era a romana.
Porém, “verter” ou adaptar o texto para o latim deixava algumas marcas, como nos
aponta Costa (2010). Ela usa o termo “Plautópolis” (p. 18) para designar a Tebas criada
por Plauto em Amphitruo. Nessa cidade, o escravo Sósia fica preocupado em andar
sozinho à noite, pois pode ser capturado por um triúnviro, funcionário público romano, que
inexistia na Grécia. Outro exemplo apontado por ela é o fato da casa de Anfitrião possuir
um implúvio (v. 1108), tanque feito para reservar água da chuva, item presente apenas em
casas romanas. Além desses elementos, os nomes dos deuses eram vertidos do grego
para o romano: Zeus torna-se Júpiter enquanto que Hermes torna-se Mercúrio em
Amphitruo. Na direção oposta, alguns personagens permanecem ou são criados pelo
autor com nomes gregos, que podem ser carregados de significado. Costa (2010, p. 19)
cita, por exemplo, Blepharo (Blefarão), que significa “olho”, e que será aquele que terá a
tarefa de “olhar” e distinguir o verdadeiro Anfitrião do falso. Há também, segundo ela,
Brômia, que pode significar trovão, que antecede o acontecimento do fim da peça. Se
alguns nomes então carregavam um significado prévio para simbolizar algo dentro da
obra, outros nomes passaram a significar algo fora dela, como o caso de Anfitrião e Sósia.
O primeiro tornou-se sinônimo da pessoa que recebe uma visita e o segundo significa
uma pessoa igual ou muito parecida com alguém, como aponta Costa (2010: p. 01).
Quanto à escolha de personagens, existem certos tipos mais recorrentes na
comédia nova em oposição aos mais recorrentes na tragédia, em que comumente
apareciam representações de deuses e de personagens míticos, enquanto que na Néa ou
na palliata eram representadas as pessoas comuns, como jovens que se apaixonavam
por meretrizes, elas propriamente ditas, velhos, escravos e esposas ciumentas. Todas
essas pessoas eram representadas de forma caricata. A trama das comédias
normalmente era a paixão de alguém e as desventuras sofridas por essa pessoa e o
público já aguardava um final feliz. Segundo Conte, quase todas as peças de Plauto
podem ser resumidas da seguinte forma:
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a contest between two antagonists over the possession of a property, generally a woman
and/or a sum of money needed to secure her (the equivalence is itself suggestive!), more
rarely money and nothing else. The contest is decided, of course with one party winning and
the other losing (Conte, 1999: p. 54).
No concernente aos personagens mais típicos da palliata, Amphitruo foge um
pouco aos padrões. Há a presença do escravo, responsável por grande parte dos efeitos
cômicos, mas há a presença dos deuses, mais típicos das tragédias, e de um general
glorioso, o Anfitrião. Alcmena também não é a esposa ciumenta típica das comédias, na
verdade ela apresenta-se o tempo todo na peça como uma esposa fiel e amorosa mais
típica das tragédias. Ela pode ser comparada à “propriedade” disputada pelos dois
antagonistas, mas que nesse caso um deles é excepcionalmente um deus e nenhum
deles “ganha” a disputa, pois Alcmena continua a ser a esposa de Anfitrião, e Júpiter
conseguiu atingir seus objetivos, que eram desfrutar de seu amor e também conceber seu
filho. Amphitruo aproxima-se mais do tipo de texto que Conte (1999: p. 55) nomeia como
“comedy of recognition” em que uma identidade que era escondida, é finalmente revelada
e durante esse processo acontecem muitas confusões. “In this case it is right to speak of
a 'comedy of errors'” (p. 56). Nessa comédia dos erros, a identidade escondida de Júpiter
e de Mercúrio será revelada apenas no final, desfazendo todos os mal entendidos e
encerrando a história com um final feliz.
De caráter muito particular se comparada às outras obras de Plauto, o gênero de
Amphitruo já foi tema de debates entre os estudiosos. No prólogo falado por Mercúrio, ele
mesmo diz que a peça que o público irá presenciar é uma “tragicomédia”, brincando com
o provável estranhamento que o público sentia no momento em que lhes era revelado que
a peça não seguia exatamente os “moldes” da comédia aos quais estavam acostumados
(mencionados acima). Hoje, aceita-se que embora diferente das demais, Amphitruo é sim
uma comédia, provavelmente uma paródia das tragédias gregas.
Como último (porém não menos importante) item a ser mencionado nessa seção
sobre o Anfitrião de Plauto e sobre a Comédia Nova, temos o prólogo. Como as peças
teatrais eram apresentadas durantes os jogos (ludi) e rituais de consagração aos deuses,
era comum que os atores no palco tivessem que disputar atenção com lutas e outras
atividades que não estavam relacionadas ao teatro, mas que ocorriam ao mesmo tempo e
nas proximidades do local. Além disso, o espetáculo era aberto, a plateia poderia sentar-
11
se e sair durante todo o tempo e, em alguns pontos, era difícil escutar o que estava sendo
dito no palco. Em resumo, a plateia era muito dispersa e era tarefa dos atores prender sua
atenção. Com essa tarefa em mente, a captatio benevolentiae, é que o prólogo era dito.
No caso de Amphitruo já é o ator interpretando Mercúrio que o diz, pedindo a atenção e o
silêncio de todos para que ele (o deus) atenda os seus desejos:
do jeito que quereis o meu apoio nessas coisas,
que o vosso lucro seja permanente sempre,
de vós, durante a peça, quero só silêncio, (15)
e assim, imparciais, sereis juízes justos.
(Pl. Amph. v. 13-16. Tradução de Cardoso, 2012)
Mas o prólogo pode ir além da captatio benenvolentiae, como é o caso desse. Mercúrio
conta ao público quem é e o que faz ali, ou seja, ele diz o argumentum da peça (a partir
do verso 97), facilitando a compreensão do desenrolar da ação a partir daquele ponto.
Temos então uma comédia excepcional dentro de seu gênero e que conquistou grande
fama em sua época. Porém, sua importância e o reconhecimento de suas qualidades
ultrapassou os séculos, gerando várias traduções, reescritas e adaptações, conforme
veremos no capítulo seguinte e até chegarmos na reescrita (que tomaremos também
como uma tradução) feita pelo alemão Georg Kaiser.
12
3. EVOLUÇÃO NO TEMPO: AS REESCRITAS DE AMPHITRUO
Como pudemos perceber no capítulo anterior, Plauto escreveu a comédia
Amphitruo baseado em um mito grego já existente e, embora não haja manuscritos
de tais peças, ele provavelmente baseou-se em predecessoras para compor sua
própria. Em sua época, Plauto foi aclamado e suas peças tinham grande fama,
surgindo por isso várias outras em seu nome, embora não tenham sido escritas por
ele, pois outros autores queriam tirar proveito de sua fama.
Avançaremos um pouco no tempo, saindo da Antiguidade, e entrando na
Idade Média. Nesse período o cristianismo já tinha tomado corpo e, portanto, os
deuses antigos já não eram mais assunto que causasse o mesmo interesse de
antes, pois apresentavam um deus adúltero e cheio de luxúria, o que ia diretamente
contra a moralidade cristã. Apenas oito peças eram ainda conhecidas (dentre elas
estava Amphitruo) até o ano de 1427, quando o cardeal Nicolau Cusanus encontrou
mais doze desconhecidas, iniciando assim um período de reescritas de Plauto.
A história de Anfitrião contribuiu para a lenda do Rei Arthur a partir da Historia
Regum Britanniae de Geoffrey of Monmouth (Lindberger, 1956), em que a esposa
Igerna, virtuosa e fiel ao seu marido, o duque de Gorlois, é enganada pelo
apaixonado Uther, que recorreu ao feiticeiro Merlin para ficar idêntico ao marido e
assim entrar em seu castelo e desfrutar dos amores dela. Assim a história do
nascimento do Rei Arthur compara-se ao mito do nascimento do semideus Héracles.
Outra história aparece em Gesta Romanorum, (Lindberger, 1956) em que o
imperador Jovinianus, embriagado pelo seu orgulho, desafia deus. Um dia, ao
banhar-se em um lago, tem suas roupas roubadas e seu lugar como imperador
tomado por outro igual a ele mesmo. Ao pedir roupas e requisitar de volta seu lugar
como imperador, é tido como impostor e mesmo sua esposa acredita ser ele um
farsante. Tudo acaba quando ele admite sua falha ao ser orgulhoso e então é
revelado que deus mandou um anjo para tomar o seu lugar para que ele aprendesse
a lição. Lindberger (1956, p. 38) afirma que, embora haja a duplicação como
elemento importante para a história, ela carece da parte erótica para ser
considerada baseada na peça plautina. Para ele, essa história assemelha-se muito
mais à história judaica do Rei Salomão. O mesmo autor (1956) ainda indica que as
características do mito reescrito são as presenças dos duplos, ou seja, Anfitrião
duplicado por Júpiter e Sósia duplicado por Mercúrio, e o tema central da história
13
que é o erotismo formado no triângulo amoroso Júpiter-Alcmena-Anfitrião. Para ele,
ainda, o tema central da história de Jovinianus é a punição pelo seu orgulho, embora
haja a presença do duplo. Lindberger (1956) deixa de fora da sua lista de
características do mito o nascimento de Héracles, muito embora ele seja elemento
central do mito e faça parte da peça de Plauto e de outras reescritas.
Em 1621 o sacerdote Johannes Burmeister escreveu Sacer Mater Virgo, em
que substitui o mito do nascimento de Héracles pelo nascimento de Jesus Cristo.
Nessa obra, Alcmena é substituída por Maria, Anfitrião por José, Héracles por Jesus,
Júpiter pelo Espírito Santo e Mercúrio desdobra-se no arcanjo Gabriel (que diz o
prólogo) e o demônio Asmodeu, que tenta fazer com que Maria passe por traidora de
seu marido. Infelizmente, conforme nos afirma Fontaine (manuscrito não publicado),
apenas uma pequena parte desse texto chegou aos nossos dias, pois a versão
completa perdeu-se na Segunda Guerra Mundial. Em relação ao que pode ser
analisado, Burmeister parece tentar manter bastante a estrutura do texto latino, mas
com as devidas alterações, como por exemplo a constelação que Sósia nomeia no
céu, a Ursa Maior, é substituída pelas constelações que Burmeister considera
estarem presentes no nascimento de Cristo, a saber: Virgem, Libra e Câncer (v. 273-
274, apud Fontaine, manuscrito não publicado). Devido ao estado da obra, não
podemos saber como Burmeister resolveu possíveis problemas de ordem cultural
que pudessem surgir com o mito. Por isso, ainda está em aberto a solução do autor
para a parte carnal do amor de Júpiter e Alcmena, que provavelmente foi suprimida,
pois não está claro na Bíblia como o Espírito Santo concebeu seu filho com Maria.
No entanto, apenas teremos certeza se a obra completa for encontrada.
Outra reescrita que compensa mencionar é O Auto dos Enfatriões de Luís de
Camões, que data provavelmente dos anos 1540. Ele permeia sua versão do texto
de Plauto com elementos da literatura portuguesa, criando efeitos como o que causa
a fala de Alcmena no início da obra. Apropriando-se da temática das canções de
amigo do trovadorismo português, ela abre a peça declarando a falta que sente de
seu amado, Anfitrião, que está longe dela por estar na guerra. A partir daí, dá-se
uma conversa entra a mulher, sua criada Brômia e Feliseo. Com essa abertura da
história, o prólogo comum à obra plautina é suprimido e a solução para suplantar a
falta que as explicações iniciais feitas por Mercúrio na obra latina fazem nessa obra
portuguesa é dada através de um diálogo entre esse deus e seu pai, Júpiter. Nesse
diálogo, Júpiter confessa para seu filho que está apaixonado por uma mortal virtuosa
14
que jamais aceitaria trair seu marido. Diante disso, parte do filho a ideia de seu pai
transfigurar-se em Anfitrião para enganar a mulher e poder desfrutar
clandestinamente de seu amor e, com isso, Camões apaga a noção de que Júpiter
esteve com Alcmena motivado não só pelo seu amor, mas pelo objetivo de ter com
ela o seu filho, distanciando-se, portanto, do mito. Embora haja esse distanciamento,
o nascimento do semideus ocorre no final da peça, seguindo o padrão anterior. Uma
outra diferença peculiar em relação às peças predecessoras está no uso da
linguagem feito pelo autor. Enquanto a maioria dos personagens fala português, o
escravo Sósia e Mercúrio (apenas quando está transfigurado em Sósia) falam
espanhol, revelando uma possível hierarquia entre as duas línguas, colocando o
português em uma posição de superioridade (Lima, 2012).
Além dessa reescrita em Portugal, temos na Inglaterra a The Comedy of
Errors (Comédia dos Erros) de Shakespeare, em que, segundo a pesquisa realizada
por T. W. Baldwin (Lindberger, 1956: p. 56), a cena III:i foi inspirada em Amphitruo.
Nela Drômio de Siracusa impede que Antífolo de Éfeso entre em sua própria casa
porque Antífolo de Siracusa, duplo deste, já está lá dentro. É o mesmo o que ocorre
com Anfitrião, impedido por Mercúrio/Sósia de entrar em sua própria casa porque
Júpiter/Anfitrião já está lá.
Já na França, Jean de Rotrou escreveu Les deux Sosies (os dois Sósias) em
1636, que pode ser considerada uma reescrita com grande aproximação à obra
plautina, embora carregue também suas diferenças. Por exemplo, o prólogo de
Rotrou é feito não por Mercúrio, mas por Juno, que está com ciúmes de Alcmena.
Como um ser divino, ela consegue prever que Júpiter conseguirá concluir seu plano
de ter um filho com a mortal. Acrescentando-se a essa diferença, pode-se considerar
que Rotrou imprimiu as marcas da ideologia moral da Idade Média, que pode ser
observada, por exemplo, em uma fala de Mercúrio em que, ao pedir para que a
“Lua” prolongue a noite para Júpiter poder aproveitar por mais tempo, ele argumenta
que embora ela represente a castidade, pode abrir uma exceção para o pai Júpiter,
“o pai dos deuses”.
Na França de 1668 estreou a peça Amphitryon escrita por Molière. Inspirado
pelo texto de Plauto, o autor buscou também elementos do texto de Rotrou para
compor sua obra. Como vítima da maioria das modificações, o prólogo mais uma
vez é alterado, pois é um diálogo entre Mercúrio e a Noite. Diferentemente de Rotrou
e mais próximo, nesse sentido, de Camões, Molière dispende menos atenção no
15
mito do nascimento de Hércules enfocando mais na confusão causada pelos
desejos carnais de Júpiter. O pai dos deuses nessa peça é mais ciumento do que
seus predecessores, desejando que Alcmena o ame como um amante e não como
seu marido, pois não quer ser comparado a Anfitrião. Ele também é mais dramático
e, ao implorar o perdão de Alcmena – que está mais sensível nessa obra – ajoelha-
se a seus pés e ameaça matar-se com sua espada se ela não o perdoar. Diante
disso ela aceita o pedido do seu “marido” e ele consegue desfrutar mais um pouco
de seu amor. Molière segue o padrão de Plauto, mas acrescenta uma outra cena
caracteristicamente cômica à sua obra, dando a Sósia uma esposa chamada
Cléanthis. Ela confunde Mercúrio/Sósia com seu marido e devota seu amor a ele,
mas o deus a rejeita. Essa parte ajuda a compor uma simetria: se há o triângulo
Júpiter-Alcmena-Anfitrião, agora também há Mercúrio-Cléanthis-Sósia, embora uma
delas seja desejada e a outra rejeitada.
Podemos perceber que a obra de Plauto inspirou muitas reescritas, mas ela
não as originou todas sozinha. Há um tipo de encadeamento, em que, além da obra
plautina, são usadas as outras reescritas como inspiração para mais outras, como
foi o caso, que acabamos de ver, de Molière ter se inspirado em Plauto e Rotrou. No
entanto, Molière também serviu de inspiração para muitas outras obras posteriores,
dando uma dimensão da importância que conquistou em seu tempo. Vários
exemplos de reescritas baseadas em Molière nos são dados por Lindberger (1956).
Citando alguns: Amphitryon de John Dryden (1690), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena
de Antônio José da Silva (1736) e Amphitruon de Johann Daniel Falk (1804).
A peça Amphitryon: ein Lustspiel nach Molière de Heinrich von Kleist, escrita
em 1807, carrega esse subtítulo que já foi traduzido para o português como “uma
comédia segundo Molière”, embora carregue várias diferenças da obra do francês.
Uma explicação para o fato pode ser uma má interpretação de “nach”, que pode ser
“depois de Molière” ao invés de “a partir” dele. Outra explicação é a de que a
intenção inicial de Kleist seria realmente fazer um texto exatamente nos moldes de
Molière, mas mudou seus planos durante a execução de sua tarefa. Uma evidência
disso pode ser o fato de que o começo da peça (a partir da fala de Sósia, pois o
prólogo foi suprimido) é claramente uma tradução livre do francês. No entanto,
algumas outras cenas são pura invenção de Kleist. Júpiter é um personagem muito
semelhante ao de Molière na dimensão psicológica, isto é, também sente ciúmes de
Anfitrião e quer ser amado por Alcmena como o deus amante e não como o marido.
16
Quer ser o Anfitrião, mas quer ser lembrado como algo diferente e melhor do que
ele. Júpiter pede para que Alcmena lembre-se dele e do dia que estiveram juntos de
maneira mais especial do que quando está com Anfitrião. Ela admite a possibilidade
de acatar o pedido, mas ela pensa que seu marido o está fazendo por estar
embriagado. A diferença reside no fato de haver alguma aproximação desse Júpiter
com o deus bíblico. Lindberger (1956) aponta como evidência disso o diálogo em
que Júpiter/Anfitrião questiona Alcmena sobre a possibilidade de que ela desperte a
cólera do deus. Daí desdobram-se noções de pecado e de culpa. A despeito das
semelhanças, uma outra diferença bastante considerável é inserida por Kleist: o
presente que Anfitrião dá à Alcmena não é mais a taça de ouro do rei Ptérelas, mas
sim uma tiara onde está grafado um “A”. Depois, Alcmene confidencia com sua
criada (esposa de Sósia) que deve ter se enganado, pois aparentemente o “A”
transformou-se em um “J”. Essa possibilidade deixa Alcmena abalada, e esse evento
a deixa perto de descobrir a verdade sobre os acontecimentos recentes. Ela passa
então por um diálogo com Júpiter/Anfitrião, cuja interpretação pode tornar-se
complexa para nós, mas que ao final deixa transparecer que ela acredita que o
impostor é seu marido. O verdadeiro Anfitrião, por outro lado, acredita que sua
esposa foi vítima de uma fraude. Por fim, fica a cargo de Alcmena decidir-se quem é
o verdadeiro Anfitrião, mas acaba fazendo a escolha errada e escolhendo a favor de
Júpiter. Com isso, o próprio Anfitrião – remetendo-nos ao Sósia plautino – duvida de
sua própria identidade, pois não duvida do juízo perfeito de sua esposa. Diante do
fato, Júpiter revela a todos quem é o verdadeiro Anfitrião.
Como último adendo sobre as reescritas, analisamos a evolução da
personalidade feminina evidenciada pelas diferenças entre as várias Alcmenas no
decorrer do tempo. Segundo Lindberger (1956), o senso de moralidade medieval
não combina com o tema do mito, ou seja, a existência de um deus cheio de luxúria,
como já mencionado, não é compatível com o pensamento medieval cristão assim
como o papel da mulher “forte”, capaz de enfrentar seu marido, se modifica, e ela
torna-se mais submissa, tanto na sociedade quanto no teatro, conforme entramos na
Idade Média, e volta a ganhar mais “força” na medida em que saímos desse período.
Para um homem medieval era imprescindível que sua esposa fosse completamente
fiel para que ele tivesse sua honra imaculada. O deus cheio de luxúria do mito e uma
esposa virtuosa que traiu seu marido sem traí-lo acabava por quebrar essa
expectativa masculina. É mais difícil, nesse sentido, para o Anfitrião medieval aceitar
17
o seu destino do que era para o Anfitrião plautino. A Alcmena que daí descende é
mais submissa, como observamos pela dócil esposa construída por Camões e pela
também dócil e submissa Alcmena de Rotrou. Nesse caso em particular da obra do
francês, a submissão pode ser vista inclusive através de marca linguística: a esposa
chama seu marido (ou quem ela pensa ser seu marido) de “vous” enquanto que o
marido e seu duplo a chamam de “tu”. Avançando cerca de 30 anos no tempo,
chegamos à obra de Molière, escrita em um contexto um pouco diferente da
situação da mulher na sociedade. Embora mais sensível, essa Alcmena ocupa um
lugar de bem menor submissão. De acordo com Lindberger “there is an abyss
between Rotrou's submissive Alcmène and Molière's Alcmène, who forces Jupiter to
get on his knees” (1956: p. 80). Ao contrário das Alcmenas submissas e de pouca
atividade dentro dos dramas antecessores, a Alcmena retratada em Kleist
desempenha um papel fortemente ativo e decisivo. Sua fidelidade não é questionada
e no final, ela que está com o poder de julgar quem é o impostor e quem é o seu
marido verdadeiro. Seu juízo é tão confiável para seu marido que ele chega a
suspeitar da própria identidade, até que Júpiter faça a revelação.
Essa foi uma breve exposição de apenas algumas das reescritas dessa peça,
temas de muitos estudos realizados por diversos autores, dando uma ideia da
dimensão de sua importância para os nossos tempos. Se pararmos para refletir um
pouco sobre as obras contemporâneas, não será difícil encontrar na memória algum
filme, desenho animado, livro, em que uma pessoa (geralmente um herói) seja
duplicada por outra (geralmente um vilão) e um terceiro tenha que tomar uma atitude
rápida a fim de decidir quem é o verdadeiro e quem é o falso, tirando o “original” de
uma situação de perigo. Com esse histórico que acabou de ser exposto, pudemos
ampliar nossos horizontes para a análise mais acurada a ser feita no capítulo
seguinte sobre a reescrita/tradução realizada por Georg Kaiser em 1943. Como
veremos, o alemão fez mudanças muito significativas, inserindo questões políticas
de seu tempo, mas não deixou de beber das fontes de seus antecessores.
18
4. O MITO NA ALEMANHA DA SEGUNDA GUERRA
4.1 Quem foi Georg Kaiser
Escritor considerado expressionista, Georg Kaiser foi muito aclamado pelo público
em seu tempo. No entanto, hoje em dia, praticamente não encontramos mais muitos
estudos sobre ele na academia. Quinto filho de sua família, Kaiser nasceu em
Magdeburgo no mês de novembro de 1878. Um de seus irmãos mais velhos o descreveu
como uma criança agitada quando tinha dez anos, que se contorcia e balançava a cabeça
(Webb, 1999). Durante sua infância, gostava de jogar futebol e, ao contrário, não gostava
muito de frequentar a escola. Por esse fato, aliado à falta de recursos de seu pai, que já
estava em idade avançada, Georg Kaiser não terminou os estudos e não chegou a
frequentar uma faculdade. Apesar disso, era notavelmente uma pessoa culta e inteligente,
que gostava de ler e de ir ao teatro. Isso já se manifestava em sua juventude, pois ainda
nos tempos de escola, fundou com alguns amigos uma sociedade literária chamada
Sappho. Admirava Nietzsche, Kleist e Plauto, entre outros grandes nomes.
Kaiser tinha uma personalidade difícil. Trabalhou poucos anos na Alemanha, de
onde desejava sair. Conseguiu realizar essa vontade indo trabalhar em Buenos Aires em
agosto de 1898, mas sua estada lá durou apenas alguns anos. No fim de 1901, voltou
para a Alemanha por causa de uma doença, que ele afirmava ser malária. Não tendo sido
diagnosticado por um médico na época, o rumor que havia é de que ele nunca teria
contraído tal doença e que, na verdade, seus sintomas eram psicológicos. De fato, ele
sofria de agorafobia (Lindberger, 1956) e precisou tratar-se em uma instituição no ano de
1902. Esses distúrbios compunham seu caráter como autor, que era isolado. Não
costumava falar de seu trabalho literário com sua família, não comparecia às estreias de
suas peças e procurava manter pouco contato com o pessoal do teatro. Era egocêntrico,
comparava-se com Plauto e com Jesus. Considerava-se merecedor do prêmio Nobel,
tendo inscrito sua trilogia Die Hellenische Trilogie, da qual Zweimal Amphitryon faz parte,
para concorrer ao prêmio. Tinha tendências ao suicídio, principalmente quando acabava
por entrar nas enormes dívidas que não conseguia evitar fazer e, depois, não conseguia
pagar. Chegou a ser preso no ano de 1920 por causa de suas desventuras financeiras.
Margarethe Habenicht, com quem Kaiser se casou em 1908 e teve três filhos, sofria com
os gastos excessivos do marido, tendo sido condenada a quatro meses de prisão no ano
de 1920.
19
Com a publicação de suas primeiras obras, como Die Bürger von Calais e Von
morgens bis mitternachts, ainda no início da segunda década dos anos 1900, o escritor
conquistou grande fama. A partir de 1921, suas peças conquistaram grande popularidade
pelo mundo, mas em 1933, com o início da guerra, suas obras foram proibidas. O autor,
que costumava escrever panfletos antifascismo, achou melhor exilar-se na Suíça no ano
de 1938. Ele tentou, seguindo os exemplos de Albert Einstein e Thomas Mann, conseguir
asilo nos Estados Unidos, mas seu pedido foi negado devido às suas tendências
comunistas.
Seu exílio durou até a sua morte, em Ascona no mês de junho de 1945. Desde que
saiu da Alemanha, Kaiser nunca mais viu sua família e reclamava de sua solidão. Apesar
disso, teve bons amigos como Julius Marx e Carl von Arx, que o ajudavam em momentos
de dificuldade financeira. Teve também um relacionamento extraconjugal com Maria von
Mühlfeld, que o acompanhou no exílio e com quem teve uma filha ainda no ano de 1927.
4.2 Introduzindo Zweimal Amphitryon
A obra alemã de Kaiser é uma das reescritas do mito de Anfitrião mais recentes
que temos. Kaiser iniciou seu trabalho no final de maio ou início de junho de 1943 e
terminou em novembro do mesmo ano (Jezewski, 2010: p. 135). Ela estreou nos palcos
em 1944 na cidade de Zurique (Suíça) e foi lançada em livro postumamente, no ano de
1948, juntamente com duas outras peças dos mitos gregos Pygmalion e Bellerophon, em
uma edição denominada Griechische Dramen. (Lindberger, 1956: p. 203).
Assim como as predecessoras, a história também mostra o deus (Zeus) que visita
a esposa devotada de Anfitrião (Amphitryon), tomando a forma de seu marido e fazendo,
assim, que ela – sem perceber que ali não está o verdadeiro Amphitryon – tenha um filho
seu, o semideus Herakles.
No primeiro ato, o mensageiro que Alkmene mandou para o acampamento de seu
marido, que está diante da cidade de Farsala1, retorna a Tebas com o rolo de mensagem
que ela enviou intacto, alegando que Amphitryon não o quis receber, pois receberia
apenas o mensageiro que noticiasse a queda de Farsala, deixando claro dessa forma que
apenas a guerra importa. Nem Alexandros, o irmão de Alkmene, consegue convencê-lo de
que sua esposa é também muito importante e que ele deveria receber a mensagem. A
1 O autor provavelmente escolheu a cidade de Farsala para fazer alusão à batalha de Farsalos ocorrida no século I a.C.
20
ama de Alkmene questiona qual seria a mensagem que ela esconde. Depois de muito
insistir, a esposa do general revela que na festa de seu casamento, Amphitryon recebeu
de seus capitães (Hauptleute) uma armadura como presente, fazendo com que ele não
conseguisse pensar em mais nada além da consagração de seu novo equipamento
através de uma guerra. Sendo assim, partiu às pressas com seus capitães rumo à cidade
de Farsala, deixando Alkmene em Tebas sem consumar o casamento. A ama diz que o
casamento poderia ser anulado, mas Alkmene não quer, pois ama muito o seu marido.
Pede para ficar sozinha, pois quer rezar para Zeus e, diante do altar consagrado ao deus,
desconsolada pela humilhação que seu marido a fez sofrer, Alkmene pede para que o
deus a leve, pois quer morrer. Como seu pedido não é atendido, ela pede então para que
ele a mande de volta Amphitryon, pois ela o amaria mesmo se, ao invés de um guerreiro
de renome, Zeus o mandasse como um pastor de cabras (Ziegenhirt), tipo de pessoa já
antes referida pela criada (Dienerin) como aquelas que valem menos do que nada
(“weniger als nichts”). Então o deus aparece no altar na forma de Amphitryon como um
pastor. Alkmene fica muito feliz, pois julga ser seu marido que está ali diante dela. Os dois
conversam e Zeus indica que é um deus e que a presenteará com um filho. A mortal
aceita o discurso sobre “deus”, mas ainda acredita ser o seu marido quem está ali.
O segundo ato se passa diante de Farsala, onde os capitães ovacionam
Amphitryon como um grande guerreiro. Amphitryon declara querer ver Farsala em chamas
e leva esse plano adiante. Todos os capitães então emudecem diante de tanta destruição
e, dada a vitória, desejam voltar logo para suas casas e mulheres. Amphitryon não
permite que isso seja feito, pois ainda tem sede de mais guerras, diminuindo a dimensão
da vitória recém conquistada para uma “vitória de cabras” (“Ziegensieg”)2. Para levar seu
plano de uma nova guerra adiante, precisa primeiro espionar seu inimigo. Para isso,
disfarça-se de pastor de cabras – os apetrechos para o disfarce apareceram
misteriosamente no acampamento, mas Amphitryon não permite que seus companheiros
percam tempo questionando – e caminha em direção às montanhas para infiltrar-se na
população local, que o recebe com muita hospitalidade. Contrariados, os outros guerreiros
o aguardam no acampamento até o retorno de seu chefe.
Já em Tebas, no terceiro ato, Zeus (ainda disfarçado de Amphitryon disfarçado de
pastor de cabras) termina os festejos do casamento de Alkmene. Os anciões (Greisen)
exigem que a música pare para que possam questionar porque ele – Amphitryon – está
2 A escolha dessa palavra pode ter sido pelo autor motivada pelo fato de que “Ziege” é uma palavra alemã que designa caprinos e está relacionada a bode (Ziegenbock) e, segundo algumas etimologias, tragoidía, em grego, pode significar “canto de bode”.
21
em Tebas com roupagem de pessoas inferiores à sua estirpe e o motivo que levou os
capitães a não terem voltado de Farsala com ele. Zeus pede para um cantor (Sänger)
cantar a vitória dos Tebanos sobre Farsala, mas mente, dizendo que os capitães queriam
continuar em guerra, que subjugam suas esposas e desprezam o conselho dos anciões.
Diz que está usando aquelas roupas para fugir dos capitães. Os anciões decidem que três
deles irão até o acampamento onde estão os capitães para questioná-los sobre tais
acusações feitas por Zeus/Amphitryon.
O quarto ato se passa no acampamento, onde os capitães desmentem para os
anciões a versão contada por Zeus/Amphitryon, revelando tudo o que se passou lá. Os
anciões acreditam que Amphitryon enganou os capitães, tomando o rumo das montanhas,
mas depois desviando seu caminho para Tebas. Nisso chega o verdadeiro Amphitryon de
volta ao acampamento, que tenta adivinhar o motivo da hostilidade dos capitães e da
visita dos anciões. Ele conta sobre o plano que traçou para dar início aos ataques. Ao
terminar seu relato, ele é acusado por todos ali de ser um mentiroso e de ter estado em
Tebas.
Novamente em Tebas, no quinto e último ato da peça, inicia-se o julgamento de
Amphitryon, que afirma que todos ali estão ficando loucos, a menos que seja possível um
homem ser duplicado. Alkmene intervém no julgamento para dizer que deporia a favor de
seu marido, mas está proibida de fazê-lo por causa da criança que está em seu ventre e
que foi concebida após Amphitryon triunfar sobre Farsala. O homem então é sentenciado
à morte, que será executada no altar e consagrada a Zeus. Nesse momento, ouve-se um
trovão e o deus reaparece sob a forma de Amphitryon e deixa todos estupefatos:
“Zweimal Amphitryon!” (“duas vezes Anfitrião”) murmuram as pessoas. A verdade é então
revelada por Zeus, que esclarece que seu plano inicial era exterminar a humanidade, pois
não podia mais suportar a sede do homem de triunfar sobre outros homens. O que o fez
mudar de ideia foram as lágrimas e o amor de Alkmene. Nessa fala ele anuncia o
nascimento de seu filho com Alkmene, Héracles (Herakles), anuncia o início dos jogos
Olímpicos e sentencia Amphitryon ao exílio até a criança nascer. O general passará esses
dias como pastor de cabras para poder sobreviver. Amphitryon então, calado, deixa a
cidade, Zeus desaparece em meio à fumaça e Alkmene tenta compreender o que se
passou ali. Desmaia nos braços de sua ama.
4.3 Amphitruo de Plauto e a reescrita de Kaiser
22
Através da descrição do enredo feita na seção anterior, podemos perceber que,
embora baseadas no mesmo mito, as obras latina e alemã divergem bastante, a ponto de
Lindberger (1956: p. 203) afirmar que Zweimal Amphitryon não tem traços de Plauto ou
Molière, mas o aponta como um sucessor do drama Amphitryon: ein Lustspiel nach
Molière de Heinrich von Kleist. Não é difícil para nós enxergarmos o encadeamento que
se forma, pois Kleist fez uma reescrita da obra de Molière, por sua vez reescrita a partir
de Rotrou e de Plauto. Nessa seção abordaremos os principais pontos de aproximação e
de distanciamento entre o Amphitruo e a obra de Kaiser para analisarmos como a obra
alemã se comporta enquanto reescrita/tradução da obra plautina.
Zweimal Amphitryon é uma peça teatral divida em cinco atos: o primeiro, o terceiro
e o quinto se passam em Tebas, enquanto o segundo e o quarto se passam no
acampamento de Amphitryon diante da cidade de Farsala. Zweimal Amphitryon não está
dividida em cenas, todos os atos possuem uma cena só, ao passo que os atos e as cenas
de Plauto foram assim divididos por seus editores modernos. Seguindo essa divisão
moderna, Amphitruo de Plauto também possui cinco atos, mas no quarto ato há uma
lacuna mencionada anteriormente.
Como ocorre com a maioria das reescritas, embora tenham grandes diferenças, as
obras de Kaiser e de Plauto também têm pontos de aproximação. Um primeiro exemplo
que nos salta podemos encontrar nos seguintes versos plautinos:
{Sós} Que outro homem é mais audaz que eu ou qual mais confiante,
Que saiba dos costumes dos mais jovens e sozinho ande à noite?
O que farei agora, se os triúnviros me arremessarem na cadeia? (155)
Depois me soltam e amanhã me mandam da despensa pro açoite.
nem vou poder saber porquê, nem ter do meu senhor nenhum socorro,
nem vai haver ninguém que vá pensar que eu não mereça pau.
Do mesmo jeito que oito fortões –
coitado de mim! – martelam na bigorna, (160)
assim que eu chegar do estrangeiro, pobre de mim,
vão me receber com toda a hospitalidade em praça pública.
Os abusos do meu amo,
me arrastam descontente agora à noite pra fora do porto.
Por acaso não podia me mandar aqui com luz? (165)
(Pl. Amph. v. 153-165. Tradução de Cardoso, 2012)
que retratam o medo de Sósia de andar sozinho durante à noite, pensando em todos os
23
perigos que ele poderia enfrentar em seu caminho. Em várias reescritas que vimos, o
medo de Sósia é retratado da mesma forma. Procurando manter o paralelismo nessa
descrição dos perigos, Kaiser escreve os seguintes versos:
DER BOTE:
Des Weges Hinundher – das überwand
ich zweimal ungehemmt. Es schwoll kein Bach
aus triefenden Gewölk zum Strom mit Gischt
und Strudel – tosend jedem Durchlaß wehrend.
[…] Ich kam nicht vom Weg ab und
geriet auf Halden voller Blöcke, wo
nur Schlangen nisten – schon dem Durst voraus mit
giftigem Biß. Es stach mich keine Natter. - -
Es sprangen keine Wölfe mir entgegen
in Wäldern – unbekannt und undurchdringlich,
ich mied sie, da mich nichts zum Eintritt zwang.
(Kaiser, 1948: p. 147)
[O vai e vem do caminho – isso superei/ eu sem entraves. Nenhum riacho entumeceu/ de
nuvens gotejantes para correnteza com espuma/ e turbilhão – retumbante em cada
passagem em que se afasta/ […] Eu não me perdi do caminho e/ não caí em ladeiras
cheias de cepos, onde/ apenas cobras se aninham – protegem-se da sede para fora com/
mordida venenosa. Nenhuma serpente me mordeu. - - / Nenhum lobo pulou em minha
direção/ nas florestas desconhecidas e impenetráveis,/ eu as evitei, porque nada me forçou
a entrar.]
mas que, embora os retratem, não demonstram o medo que o mensageiro sente, mas sim
são a sua resposta à suspeita de Alkmene de que algo de ruim pudesse ter acontecido, o
que justificaria sua demora em retornar a Tebas com a mensagem de resposta de seu
marido.
Assim como fez Kleist, Kaiser eliminou o prólogo de sua obra. Essa característica
inerente da comédia latina, usada como elemento metateatral para explicar ao público o
que ele estaria prestes a assistir, é substituída por falas dos personagens, pois as
informações que nele estavam contidas eram necessárias. Embora o tempo da história
seja linear, seu ponto inicial é posterior a um acontecimento crucial para o desenrolar da
trama: a rejeição de Amphitryon à esposa na noite da festa do casamento e sua partida
abrupta para a guerra, deixando a esposa triste, solitária e humilhada. Para que o público
24
compreenda esse acontecimento, Alkmene explica para a ama com uma fala, que tem
esse objetivo esclarecedor para o público. No entanto, esse assunto, que aparece logo
nas primeiras 20 páginas do primeiro ato, é abordado novamente por Amphitryon no ato
seguinte, em que explica essa mesma história para os capitães a partir de seu ponto de
vista, colocando a culpa do (não) ocorrido neles (Kaiser, 1948: p. 182). Mesmo os versos
já mencionados, que o mensageiro pronuncia logo no início, são uma repetição da fala
que Alkmene acabou de dizer. Além desses exemplos, ainda podemos citar o último ato,
durante o qual Amphitryon reconta sua história para se defender das acusações que
recebe. Na opinião de Lindberger (1956, p. 210), essa característica é que torna a peça
de Kaiser um tanto tediosa para seu público, sendo assim justificável que ela tenha sido
feita para ser lida ao invés de encenada. A despeito dessa opinião, Zweimal Amphitryon
não contém apenas esse tipo de repetição, pois em vários outros trechos os personagens
repetem também o verso que seu interlocutor acabou de pronunciar, como exemplo:
DER BOTE:
Staubig bin ich
DIE JUNGE DIENERIN:
Staubig bist du
DER BOTE:
Kotig mein Schuh
DIE JUNGE DIENERIN:
Kotig dein Schuh
DER BOTE:
Mein Schopf von Schweiß verklebt.
DIE JUNGE DIENERIN:
Der Schopf von Schweiß verklebt.
DER BOTE:
Ich muss am Trog im Hof mich säubern und den Rock ausstäuben.
DIE JUNGE DIENERIN:
Das sollst du nich tun. [...]
(Kaiser, 1948: p. 143)
[{Mensageiro}: poeirento estou eu/ {Jovem criada}: poeirento está você/ {Mensageiro}:
imundo o meu sapato/ {Jovem criada}: imundo o seu sapato/ {Mensageiro}: meu topete
colado de suor/ {Jovem criada}: o topete colado de suor/ {Mensageiro}: Eu preciso ir à tina
no pátio para me limpar e desempoeirar a roupa/ {Jovem criada}: isso você não pode fazer.]
25
Nesse caso específico, a interrupção das repetições cria uma quebra de expectativa do
público que pode ocasionar em tom cômico. Essa característica da repetição, presente
em outros trechos durante todo o texto, pode ser considerada mais como o tom da
poética, seu ritmo, como algo semelhante a um mote, ao invés de ser necessariamente
um elemento inserido que chateia o público.
Não só a estrutura e enredo contém diferenças, mas as peças latina e alemã
também possuem diferentes personagens e, dentre os personagens que se repetem,
existem diferentes características. Por exemplo, juntamente com o prólogo sumiu o
personagem de Mercúrio, fazendo com que Zeus aja sozinho e em nenhum momento da
obra de Kaiser outro deus além desse seja mencionado, passando a impressão de que a
peça está essencialmente dentro de um contexto monoteísta. Além disso, não existem
escravos, estando de fora também, desse modo, os personagens de Brômia e de Sósia,
cujas faltas são de certa forma suprimidas pelas presenças do mensageiro (Bote), da
criada (Dienerin) e da ama (Amme). Blefarão, que aparece na obra de Plauto para a
decisão sobre a inocência de Alkmene e depois se revela incapaz de descobrir quem é o
verdadeiro Anfitrião, também não aparece na obra alemã, sendo substituído pelos anciões
(Greisen), que irão julgar a inocência de Amphitryon e acabam condenando-o à morte.
Kaiser inclui os capitães (Hauptleute) que acompanham o general tebano em sua guerra,
elemento que não está presente em Plauto, mas que cumpre papel importante na obra de
Kaiser, pois é por causa dos presentes que eles dão a Amphitryon que o enredo se
desenrola, além do fato do depoimento deles ser importante para o desfecho, para que
Amphitryon seja acusado de traidor e sofra um julgamento.
Desse modo, sobram para compararmos os personagens que compõem o triângulo
amoroso: Alkmene/Alcmena, Amphitryon/Anfitrião e Zeus/Júpiter. As duas “Alcmenas” são
muito parecidas em essência: ambas são esposas muito devotadas e fieis a seus
“Anfitriões”. Alcmena (de Plauto) é acusada de trair seu marido, e Blefarão, que surge
para tentar resolver a questão, não consegue descobrir quem é o verdadeiro Anfitrião, até
que Júpiter revela toda a verdade. Nessa história, os cônjuges se desentendem de
maneira muito séria e a briga ganha caráter cômico com as intervenções de Sósia. O
salvador da humanidade será a criança que está por vir e que é filha do deus. Será
Hércules. Alcmena é devotada a seu marido, mas essa característica não é retratada da
mesma forma que é em Kaiser, cuja Alkmene, mesmo humilhada por Amphitryon e sendo
alertada por sua ama de que, pelo fato de ser virgem, poderá anular seu casamento,
continua dedicando grande amor e devoção ao seu marido. Para Webb (1999: p. 100),
26
Alkmene de Kaiser é imatura em comparação com as predecessoras, pois seu amor pelo
marido afoga seu amor próprio, como exemplificado no momento em que ela revela para
a ama que o conteúdo da mensagem que ela enviou para Amphitryon era um pedido de
permissão para poder ficar em sua tenda escondida para fazer de lá um lugar mais
confortável para ele. Além disso, ela deveria saber que um acampamento de guerra era
um local em que a presença de mulheres não era permitida. A ama também faz alusão
através de metáforas à juventude de Alkmene:
AMME:
[…] Entsinnst du dich
des Sprießens jenes Frühlings, der die Knospe
zur Blühte trieb - die aufgetanen Kelches
mit Lust sich sättigte, um Frucht zu reifen?
(Kaiser, 1948: p. 153)
[{Ama}:[...] Recorda-se/ do brotar de cada primavera, em que os brotos/ se fazem brotar –
os cálices abertos/ com alegria se enchem, por se tornarem brotos?]
Segundo Lindberger (1956), esse amor incondicional de Alkmene pelo seu marido, que o
aceita como estiver, mesmo sob a pele de um pastor de cabras, remete à Alkmene da
peça de Kleist, que declara que “o diadema por que tanto lutaste/ Por um ramo de
violetas trocava,/ Colhidas junto a uma pobre choupana” (Kleist, v. 425-427. Tradução
Graça e Mendes, 1992). A Alkmene de Kaiser, no entanto, não passa pelo mesmo
problema que enfrentaram suas predecessoras, pois dessa vez será Amphitryon que se
verá em uma situação difícil, um julgamento no sentido jurídico, em que será sentenciado
à morte. A fidelidade de Alkmene de Kaiser nunca foi questionada, muito embora em
algumas passagens aparentemente Alkmene tenha a noção, mesmo em seu
subconsciente, de que está com um deus, ao contrário do que se passa com Alcmena,
que em nenhum momento trata Júpiter como se pudesse ser alguém que não fosse seu
marido Anfitrião3. Em uma passagem muito obscura do texto de Kaiser, pode estar a
indicação de que Alkmene tem noção de sua condição de mortal e da condição divina do
Amphitryon que a acompanha no momento. Sobre essa passagem, Lindberger (1956)
questiona o motivo de Alkmene dizer que “está cansada de Alkmene” (“{Alkmene}: Bist du
3 Fato curioso é o de que apenas mais uma reescrita tem o julgamento com quase condenação à morte de Anfitrião, Sósia e Alcmena: é Anfitrião, ou Júpiter e Alcmena, também conhecida como O Judeu, escrita pelo português Antônio José da Silva no século XVIII.
27
nicht Alkmenes müde? […] Oder ich Alkmenes?”) [“{Alkmene}: você não está casando de
Alkmene? […] Ou eu de Alkmene?”] (Kaiser, 1948 apud Lindberger, 1956: p. 208) e pedir
para Zeus deixá-la (“{Alkmene}: Wenn du mich wahrhaftig liebst, musst du mich auch
verlassen.”) [“{Alkmene}: se você me ama verdadeiramente, também deve me deixar.”]
(ibidem):
Why is Alkmene tired of Alkmene and why does she ask Zeus to leave her?
The most probable explanation is that, at the same time as she assumes
Zeus to be Amphitryon, she subconsciously realizes the divine character of
his love. Receiving it is 'vom Menschen Göttliches verlangen'; therefore she
must either cease to be the mortal Alkmene or Zeus must leave her
(Lindberger, 1956: p. 209).
Isto é, Alkmene pode estar dando indícios, nessa passagem, de que está cansada de
sofrer em sua condição de mortal e tem consciência de que esse amor divino é demais
para que ela possa continuar vivenciando-o. Se no início, ao encontrar Zeus transfigurado
em Anfitrão, sentia como se estivesse sonhando, agora ela sente que é o momento de
acordar. Deve, portanto, deixar de ser ela mesma (mortal) ou Zeus deve deixá-la.
Encontramos aqui paralelismos com Alcmena de Kleist, pois ela sabe que foi visitada por
Júpiter (embora nessa peça o deus a engane duas vezes) e sente que deve deixar seu
marido. Ambas estão dispostas a abrir mão da felicidade que sentem por não se sentirem
merecedoras, mas uma (a de Kleist) por pensar que traiu seu marido e não merece mais
seu amor, e a outra (a de Kaiser) por desconfiar que aquele amor é demais para ela, pelo
menos na condição em que ela se encontra.
Alkmene, no fim, não será apenas aquela que carrega o filho de um deus – que
seria o salvador da humanidade – em seu ventre, mas ela própria é a salvadora, pois foi
por seu amor que Zeus desistiu de seu plano de destruir a humanidade. Isso reduz a
importância do mito do nascimento de Hércules e a obra de Kaiser acaba por se
assemelhar, nesse aspecto, às reescritas de Camões e de Molière.
Zeus também é retratado de forma bem diferente da maioria de seus
predecessores na obra de Kaiser. Júpiter de Plauto atua como o deus típico da tradição
greco-romana, cujas características aproximavam-se muito das humanas, inclusive os
defeitos. É bem conhecido o grande apetite sexual do pai de todos os deuses, que na
peça latina aproxima-se de Alcmena disfarçado de Anfitrião para poder satisfazer seus
28
desejos carnais. Alcmena não foi a única vítima do deus, que tomou outras formas para
seduzir outras mulheres, como por exemplo, transformou-se em um touro para seduzir
Europa, em cisne para seduzir Leda, em chuva de ouro para seduzir Dânae. Interessante
ressaltar aqui o mito de Calisto, que por causa do ciúmes que Juno (Hera) sentia de seu
marido Júpiter, foi transformada em um urso. Ao reencontrar seu filho, tentou abraçá-lo,
mas como ele não a reconheceu, empunhou a lança e investiu contra ela. Nesse
momento, Júpiter intervém e para evitar que o filho matasse sua própria mãe, coloca os
dois no céu. Calisto transforma-se assim na constelação da Ursa Maior. Curiosamente, é
justamente a constelação mencionada por Sósia no início da obra de Plauto.
Zeus não tem exatamente a mesma motivação do Júpiter plautino para descer à
Terra na forma de Amphitryon. Decidido a destruir a humanidade, desiste de seus planos
ao ouvir os lamentos de Alkmene, que pede seu marido de volta mesmo como o mais
inferior dentre os mortais (lembrando, pastor de cabra, “Ziegenhirt”), e decide testar se o
amor da moça era sincero. Para isso, transveste-se de Amphitryon como um pastor para
encontrar a mulher, que fica muito contente em vê-lo. Se Mercúrio, em Plauto, menciona a
fama de seu pai como um amante, a mesma menção não existe em Zweimal Amphitryon
e a plateia não tem motivos para desconfiar da real intenção de Zeus testar Alkmene.
Esse Zeus criado por Kaiser assemelha-se mais ao deu bíblico do que ao deus da
mitologia greco-romana por causa desse desejo de punir as falhas humanas. Esse
aspecto também é mais um ponto de aproximação com a obra de Kleist, conforme
mostrado no capítulo anterior.
Amphitryon de Georg Kaiser terá grandes diferenças em relação ao general
apresentado em Plauto, que serão importantes para o desenrolar da história. Kaiser parte
do general da obra latina, que era um homem que foi à guerra e trazia de volta para casa
grandes glórias, com alegria de poder voltar para sua esposa, para um “Amphitryon” que
deixa sua esposa intocada, no dia do casamento, para buscar os louros da vitória em
outras terras, sendo retratado como um homem muito cruel, que se deleita ao sentir a
destruição do outro, para quem aniquilação é mais importante do que a vitória em si sobre
o inimigo dizendo, por exemplo, “Ich will Pharsala brennen sehen” (p.170) [“eu quero ver
Farsala queimar”], uma pessoa para quem o cheiro de carne humana queimando é tão
prazeroso quanto o cheiro doce de amêndoas torrando: “Laßt diesen Dunst mir noch
einsaugen./ Mir strömt er süßer als der Mandel Hauch (…)” (p. 173) [“Deixem-me aspirar
mais essa neblina/ Ela me flui mais doce do que sopro de amêndoas”]. É um tirano e nem
mesmo seus generais conseguem concordar absolutamente com todas suas insanidades,
29
e ficam mudos (stumm) diante da queima completa da cidade inimiga. Jezewski (2010: p.
142) descreve Amphitryon como um ser monstruoso (“être monstrueux”) e ainda afirma
que ele pode ser comparável a Nero, na história antiga, e a Hitler, na história
contemporânea. Ao primeiro pelo prazer de incendiar uma cidade e vê-la queimar, sentir o
cheiro da fumaça, e ao segundo pela crise de histeria e pelo uso de seu talento oratório
para impor sua visão cínica, subjugar seus oficiais e, ainda, convencê-los a entrar em
uma nova guerra (Jezewski, 2010: p. 143). Amphitryon é, conforme Jezewski, um tirano,
cínico e perverso, isso é, ele reúne todas as características que Zeus condena nos
homens e o motivam a aniquilar a humanidade.
Nenhum dos autores que analisam Kaiser e foram consultados para este trabalho
mencionam o cômico em Zweimal Amphitryon. A peça de Plauto era uma comédia e o
cômico era dado, em certa parte, pelos trejeitos e pelos trocadilhos de Sósia que davam
leveza nos momentos de tensão, por exemplo, na briga entre Anfitrião e Alcmena. Com a
supressão desse personagem, esses trocadilhos também sumiram da obra alemã. Os
momentos de tensão dessa obra, principalmente o julgamento de Amphitryon, carece
dessas “falas”, tornando esses momentos um tanto carregados. Assim sendo, é muito
mais próxima da tragédia a obra de Kaiser, mas que conta com um pouco de comicidade
em atos anteriores, como a já mencionada quebra de expectativa no diálogo da criada
com o mensageiro (que seriam os personagens subalternos, mais próximos a serem
análogos a escravos) e na parte do quarto ato em que Amphitryon tenta adivinhar, falando
sozinho em meio ao silêncio dos capitães e dos anciões, o motivo de eles estarem
presentes no acampamento:
AMPHITRYON
(Zu den Greisen vortretend.)
War es eure Weisheit, die
den Vogelflug – der Frösche Tümpellied
erklärte? Dem Unwissenden ist nötig,
daß ihn das Alter lehrt, was Frosch und Kranich
im Götterauftrag rufen. Diesmal scholl es:
Amphitryon – quarr – quarr – Amphitryon!
(Kaiser, 1948: 229)
[{Amphitryon} (dirigindo-se aos anciões): foi vossa sabedoria, que/ o vôo dos pássaros – a
canção dos sapos no lago/ interpretou? Ao ignorante é necessário,/ que a idade o ensine o
que sapos e grous/ a serviço de Deus gritam. Dessa vez soou: Amphitryon – quarr – quarr –
30
Amphitryon!].
O uso da onomatopeia “quarr” acompanhada de possíveis gestos do ator que interpretava
Amphitryon poderia dar um ridículo cômico na cena, mas que logo se agravaria com o tom
sério das acusações de Amphitryon ser um mentiroso e levado a Tebas para julgamento.
Se no final da peça de Plauto, o general tebano aceita que sua esposa terá o filho do
deus e desiste da separação, ainda ficando contente com tudo o que ocorreu, dando o
final feliz característico das comédias, o mesmo não podemos dizer na obra de Kaiser,
uma vez que, após Zeus aparecer e revelar a verdade diante de todos, Amphitryon não
fala mais nada e dirige-se ao seu exílio. Se não é um final trágico porque não há mortes,
também não se pode afirmar que o final foi feliz como costumeiramente é um final de
comédia.
Interessante aqui seria mencionar também a inserção que Kaiser faz no segundo
ato de um cantor (Sänger), que vem ao palco a pedido de Zeus somente para cantar a
vitória dos tebanos. Essa inserção do cantor pode ser comparada ao padrão do coro
grego (Lindberger, 1956: p. 209), mas também pode fazer lembrar das canções
introduzidas no teatro épico brechtiano. Kaiser era um grande admirador de Brecht,
especialmente depois de “Der gute Mensch von Sezuan” (Webb, 1999: p. 10), tendo
escrito o seguinte sobre ele em uma carta para seu amigo Julius Marx:
Ich las es hier und bin bezaubert. Das ist eine Dichtung, die mit Vertrauen erfüllt. Wenn man
das könnte. […] Ein grosser Dichter lebt in dieser Nachzeit – und das ist Bert Brecht. Amen.
(Kaiser, 1943 apud Webb: p. 10).
[Eu li isso aqui e estou encantado. Isso é uma poesia que enche de confiança. Se uma
pessoa o pudesse. […] Um grande poeta vive em nossos tempos – e esse é Bert Brecht.
Amém.]
A já mencionada peça de Brecht pode ter inspirado Kaiser em sua obra, já que estreou
em 04 de fevereiro de 1943 nos palcos de Zurique (Jeske, 2003: p. 159), tendo Kaiser
começado a escrever Zweimal Amphitryon no fim do mês de maio do mesmo ano.
Lindberger (1956: p. 212) afirma que: “in spite of its Greek costume, Kaiser's Zweimal
Amphitryon is in spirit an un-Greek play. It's much more similar to a medieval morality
play”. Contudo, a partir dessa comparação com Brecht, podemos dizer que ao invés de
nos remeter a peças de moralidade medievais, podemos compará-la com as chamadas
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“Lehrstücke” (peças didáticas) brechtianas, que eram as obras que tinham a intenção de
fazer o seu público pensar sobre determinado assunto. Existem mais pontos de
aproximação entre as duas peças: em ambas, os deuses julgam a humanidade e, no caso
da obra de Brecht, os três deuses procuram descobrir se existe pelo menos um homem
bom para não aniquilar a humanidade, enquanto que em Kaiser, Zeus já está decidido a
fazer a aniquilação quando encontra um ser humano bom (que no caso é Alkmene);
ambas contêm pelo menos um personagem com um papel duplo, Zeus travestido de
Amphitryon em Kaiser, e Shan Te travestida de seu primo imaginário Shui Ta em Brecht;
em ambas peças também há o julgamento final em que as verdades são reveladas (para
o público ou para os personagens), sendo em Brecht o final aberto no sentido em que a
protagonista não tem seu problema resolvido e em Kaiser o final é também de certa forma
aberto, pois não sabemos o que aconteceu com Alkmene e Amphitryon após o
nascimento de Herakles. Os deuses das duas peças desaparecem, nas nuvens ou na
fumaça, mas deixam os mortais sozinhos para continuarem suas vidas. Ainda diante de
todas evidências, não podemos afirmar categoricamente que Kaiser pretendia fazer um
teatro épico como o de Brecht, pois uma das características propostas pelo escritor seria
a de que o teatro não deveria conter atos, apenas cenas. Vimos aqui que o teatro de
Kaiser continha apenas atos, sem cenas.
4.4 Kaiser como tradutor de Plauto
Vimos que Georg Kaiser modifica bastante a obra plautina, bebe de outras fontes,
como por exemplo, a reescrita do mito feita por Kleist e o teatro de Brecht, mas ainda
assim trata-se de uma reescrita de Amphitruo. Para André Lefevere (2007: p. 82) “o termo
reescritura nos libera da necessidade de estabelecer fronteiras entre várias formas de
reescritura, como “tradução”, “adaptação”, “emulação”, ou seja, toda tradução está
incluída dentro da definição de reescritura e, utilizando o termo dessa forma aqui nessa
seção, não somos impelidos a definir em que ponto Kaiser fez uma adaptação ou
emulação da obra de Plauto, mas podemos compreender em quais aspectos a reescrita
feita por ele aproxima-se de ser uma tradução.
Continuando a citar pontos desse capítulo em que Lefevere discorre sobre a
tradução da Lisístrata de Aristófanes, é interessante ressaltar a noção de “tradutor fiel” e
de “tradutor espirituoso” definido por John Hookham Frere (1820), em que o primeiro
arquétipo de tradutor seria aquele que:
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traduz para o inglês todas as frases das conversações de acordo com suas formas
gramatical e lógica, sem qualquer referência ao uso corrente que tinham fixado nelas um
sentido arbitrário e as apropriado a um propósito particular e bem definido. Ele retém de
forma escrupulosa todas as peculiaridades locais e pessoais, em alusões rápidas e
passageiras e pensa ser sua obrigação captar a atenção do leitor em uma nota explicativa
e tediosa (Frere apud Lefevere, 2007: p. 85)
o que é muito próximo da noção de tradutor feita a partir do senso comum, e que nos
daria respaldo para criticar o trabalho de Kaiser, enquanto tradução, como um texto
“infiel”, que “perde” “o Plauto” em meio a tantas alterações, e ainda por cima não tem as
notas explicativas tão necessárias quando alterações muito grandes são feitas. Não é
objetivo deste trabalho avaliar Zweimal Amphitryon a partir desse ponto de vista,
comparando ponto a ponto todas as “falhas” que obra poderia conter (e, diga-se de
passagem, sob essa luz seriam muitas). Para a análise feita nesta seção, se torna mais
útil a noção de “tradutor espirituoso”, que:
ao contrário, emprega frases modernas correspondentes; mas ele está capacitado para
imaginar que uma vitalidade e uma vivacidade peculiares poderão ser atribuídas à sua
performance através da aplicação de frases particularmente ligadas à maneira moderna; e
se em qualquer momento ele se sente mais angustiado do que de costume para evitar a
aparência de pedantismo, ele pensa que não pode escapar dele de forma mais eficiente do
que adotando a linguagem e o jargão do dia. Ele tenta representar as peculiaridades de
tempos passados substituindo-as pelas peculiaridades de seu próprio tempo e nação (Frere
apud Lefevere, 2007: p. 86)
Não convém aqui tentarmos explicitar se o motivo de Georg Kaiser ter utilizado tal
linguagem e de tal forma se deu para “evitar aparência de pedantismo”, mas é fato que
ele, embora não tenha necessariamente substituído todas as peculiaridades do tempo do
original, certamente acrescentou as “peculiaridades de seu tempo e nação”. Lefevere
(2007: p. 87) ainda afirma que as escolhas que o tradutor faz dependem de sua ideologia,
ou seja, a tradução dita “fiel” é uma escolha que o tradutor faz e não a única forma de
tradução possível. Ainda afirma também que “enquanto o tradutor “fiel” trabalha no nível
da palavra ou da frase, o tradutor “espirituoso” trabalha no nível da cultura como um todo,
e do funcionamento do texto naquela cultura” (ibidem).
Vimos que Zweimal Amphitryon está longe de ser próxima de Amphitruo em nível
33
frasal, por isso para encaixarmos Kaiser dentro da noção de tradutor “espirituoso” temos
que examinar como ele insere propriedades de sua própria cultura dentro de seu texto,
não nos esquecendo de que essa obra faz parte de uma cadeia de outras obras, que
desdobram-se a partir do Anfitrião de Plauto e que nos constroem a imagem do
“palimpsesto” de Gérard Genette (Ferry, 2011: p. 32). Nessa cadeia imensa, cuja
dimensão foi dada em parte do capítulo anterior, Anfitrião de Plauto funciona como
hipotexto de tantas obras que são, ao mesmo tempo, hipertexto e hipotexto das obras
posteriores. Aqui, o encadeamento evidente ocorre na seguinte ordem: Plauto, Rotrou,
Molière, Kleist e Kaiser.
Para compreendermos as diferenças que Kaiser insere em seu texto, é importante
então analisarmos o período histórico em que o autor vivia e ressaltarmos sua visão sobre
os acontecimentos do mundo. Em 1943, data em que Kaiser escreveu Zweimal
Amphitryon, o mundo já tinha vivido quatro anos de Segunda Guerra. Em 1938, Georg
Kaiser, cujas obras tinham grande popularidade até fora da Alemanha e do continente
europeu, em cidades como Nova Iorque, Tóquio e Sydney, foi mandado para o exílio,
chegando por definitivo em Zurique no mês de junho. Segundo Valk:
“er gilt als Kulturbolschewist und wird als Jude bezeichnet. Seine Bücher werden verbrannt,
die Aufführung seiner Stücke verboten. Die Preußische Akademie der Künste stößt ihn im
Mai 1933 aus” (Valk apud Webb, 1999: p. 5)
[“ele é considerado um bolchevista cultural e é designado como judeu. Seus livros são
queimados e a apresentação de suas peças proibidas. A Academia Prussiana de Artes o
expulsa em maio de 1933”].
Durante esse período ele esteve envolvido em movimentos antifascismo e, mais para o
final de sua vida, tendeu para o comunismo. Para Webb, através das cartas que Kaiser
enviava durante o exílio, pode-se afirmar que ele criticava tanto os nazistas quantos os
aliados, posicionando-se sobretudo contra a guerra. Ele chegou a escrever sobre os
aliados “wer zehn Jahre Mord und Folter ermöglicht, ist schlimmer als Mörder und
Folterknechte. Deshalb sind die englischen und amerikanischen Politikern die größeren
Verbrecher” (p.7) [“quem permite dez anos de assassinato e tortura é pior do que
assassinos e torturadores. Por isso os políticos ingleses e americanos são os maiores
criminosos”]. Já mencionamos anteriormente que umas das grandes diferenças entre as
obras latina e alemã está no caráter de Amphitryon, que se torna muito mais cruel e
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sanguinário, um pretenso tirano. Dada a atitude de Kaiser e suas consequências durante
a guerra, não fica difícil imaginar que – concordando assim com Jezewski (2010),
Lindberger (1956) e Webb (1999) – Kaiser estaria fazendo um paralelo entre o general
tebano e Hitler. Podemos ter uma pista dessa questão no seguinte excerto:
Erster Greis:
[...]
Absetzen sollten wir die zuverlässigen
Hauptleute – führerlos das Heer verwirren.
Doch war der Führer nicht sehr weit. Er schlich
uns nach – wie alles wird erschliechen, was
sich bläht in Macht! - - Dir ist es nicht gelungen.
Jetzt und in Zukunft scheitert der Versuch
tyrannisch dich in Theben einzusetzen -
statt Recht, die Überwältigung zu üben.
[...]
[grifos meus]
(KAISER, 1948: p. 256)
[{Primeiro Ancião}: […] Tivemos que dispensar os confiáveis/ capitães – sem líder o exército
desorientado./ Mas o “Líder” não foi muito longe. Ele seguiu-/ nos – como tudo se torna
furtivo que/ se infla no poder! - - Você não se saiu bem./ Agora e no futuro fracassa a
tentativa/ de se estabelecer tirano em Tebas –/ ao invés do direito, praticar a dominação.
[...]]
A questão aqui é a mudança do modo como os personagens se referem ao
Amphitryon, passando de “Feldherr” (general) no começo para “Führer” (líder) – elemento
também notado por Jezewski – que pode revelar o nível “espirituoso” de Kaiser como
tradutor, dando chance para a plateia perceber tal sutileza. “Führer”, que ainda é usada
pelos falantes de alemão para designar o “líder”, a partir do advento da Segunda Grande
Guerra também se especializou como uma referência direta à pessoa de Adolf Hitler.
Cabe aqui acrescentar o fato interessante de que, apesar de nós brasileiros não sermos
falantes de alemão, conhecemos a palavra “Führer” como uma denominação do líder
nazista. Isso acrescenta um ponto em que uma tradução pretensamente “fiel” (em
oposição a “espirituoso”) da obra de Kaiser para o português (ainda inexistente) precisaria
usar de alguma estratégia na hora da escolha de que palavra colocar em lugar de
“Führer”. Simplesmente “líder” faria perder o duplo sentido – pois não contém a mesma
35
conotação nazista – e a plateia lusófona não faria a mesma associação que
provavelmente fez a plateia de Zurique.
Outro exemplo parecido dessa questão pode ser encontrado no uso da palavra
“Panzer” na fala de Amphitryon, conforme afirma Jezewski:
L'auteur met à dessein le terme de Panzer dans la bouche d'Amphitryon, créant ainsi un
effet de réel: que peut un peuple de paysans, de bergers et d'artisans contre des chars
d'assaut? On songe ici, par exemple, à l'invasion de la Pologne em septembre 1939
(JEZEWSKI, 2010: p. 145).
[O autor propositadamente coloca o termo “Panzer” na boca Amphitryon, criando um efeito
de realidade: o que pode uma nação de camponeses, pastores e artesãos contra os
tanques? Pensa-se aqui, por exemplo, a invasão da Polônia em setembro de 1939].
Além de traduzir espirituosamente a história do Amphitryon, trazendo o general
tebano para a contemporaneidade, Kaiser pode ter feito, como veremos, paralelos com a
Bíblia. Como afirmado anteriormente, a peça tem um caráter monoteísta, uma vez que
apenas Zeus é a divindade presente, pois Mercúrio desapareceu, não se mencionando
outros deuses (nem mesmo sua existência) em nenhum trecho. Se em Plauto temos a
expressão “por Hércules / Pólux!” dita pelos personagens, em Kaiser não temos esse
elemento. Além disso, outra característica marcante é o fato de Zeus se assemelhar mais
ao deus do antigo testamento, tendo como motivação principal seu desgosto pela
humanidade, que é cruel e materialista, remetendo-nos ao episódio de Sodoma e
Gomorra, conforme nos aponta Jezewski (2010: p. 149). Outro paralelo evidente pode ser
a virgindade de Alkmene que, assim como Maria era virgem quando sonha com o anjo
que avisa sobre a chegada de Jesus, era virgem quando encontra Zeus pela primeira vez.
Segundo Webb (1999: p. 179), a diferença está no fato de que Maria ainda era virgem
quando concebeu, enquanto Alkmene perdeu sua virgindade com Zeus. Isso no entanto
pode explicar o motivo de Zeus ter mandado Amphitryon para o exílio até o nascimento de
Herakles, garantindo que a mulher permanecesse intocada por outro homem até o
nascimento do filho. Kaiser não era um homem religioso, como podemos perceber em
trechos de cartas como “da ich nicht gottglaubig bin, sondern alles dem Menschenwürde4
zuschiebe [...]” [“porque eu não sou crente em Deus, mas atribuo tudo à dignidade
4 Na citação feita pela autora, ao invés de “Menschenwürde”, está escrito “Menschenwurm”, que significaria “verme humano” ou “minhoca humana”. A substituição foi feita por acharmos que a frase fica sem sentido e, provavelmente, deve se tratar de um erro de digitação.
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humana”.] e “grundsätzlich: ein anständiger Mensch braucht keine Religion - und bei den
anderen ist sie unwirksam” (Kaiser apud Webb, 1999: p. 183) [“em princípio: um homem
decente não precisa de religião – e para os outros ela é ineficaz”], mas isso não invalida o
evidente paralelo encontrado entre a Bíblia e a peça teatral.
Como pudemos perceber, não é pequena a introdução de elementos de sua época
e cultura que Kaiser faz em Anfitrião. No entanto, o mito e as personagens principais que
compõem o triângulo amoroso continuam presentes e, assim, percebemos, por trás do
texto de 1943, as assinaturas dos predecessores, como na metáfora do palimpsesto de
Genette, e que deixa transparecer o caráter tradutório de Zweimal Amphitryon.
37
5. CONCLUSÃO
Georg Kaiser foi um autor que conquistou grande fama em seu tempo, mas
atualmente sua obra praticamente caiu no esquecimento entre os acadêmicos. Essa
afirmativa surge da dificuldade de se encontrar material crítico sobre o autor,
principalmente nas bibliotecas brasileiras. Nesse sentido, a internet prestou grande auxílio
para a realização dessa pesquisa, mas infelizmente algumas teses de doutoramento que
tratam sobre o assunto e parecem ter grande importância ainda não estão digitalizadas,
pelo menos até a data da última consulta em junho de 2013. Até mesmo a trilogia
Griechischen Dramen, parte da qual compõe Zweimal Amphitryon, objeto de estudo deste
trabalho, é difícil de ser encontrada em sua língua original por não ter sido reeditada,
existindo apenas alguns exemplares de 1948 à disposição para venda. Diante disso, fica
fácil imaginar (e depois, comprovar o fato) que uma tradução para o português ainda é
inexistente. Por isso, esse debate sobre as reescritas e traduções da obra plautina e do
mito de Anfitrião pode reacender os estudos sobre esse autor tão importante, cujas
ideologias, tanto política panfletária antifascismo, quanto antiguerra, enriquecem o caráter
de sua obra, a partir do ponto de vista literário e do ponto de vista histórico.
Embora não tenha atuado especificamente como tradutor, a reescrita feita por
Kaiser pode ser considerada uma tradução do mito baseada na obra de Plauto, ou
melhor, a tradução espirituosa dada por Frere, da qual nos lembrou Lefevere (2007). Ela
viaja no tempo, saindo da Antiguidade, transformando-se durante a Idade Média e, com
isso, ganhando um caráter por vezes mais sério, por vezes bíblico para, em Kaiser,
traduzir a questão vivenciada pela geração que sofreu as terríveis consequências da
guerra. Se Plauto satiriza, com sua comédia, o comportamento dos escravos, dos
guerreiros e dos deuses, Kaiser constrói em Anfitrião a sátira de um ditador que é
desmoralizado e exilado, o fim que provavelmente os oponentes a Hitler desejavam ao
ditador.
Assim, partimos dos vários Anfitriões e construímos uma visão sobre Zweimal
Amphitryon, que será parte integrante de um trabalho maior sobre as reescritas do mito,
sob coordenação do professor Rodrigo Tadeu Gonçalves. Ainda como questão em aberto,
está a tradução da obra Zweimal Amphitryon para o português, ou “espirituosa” ou “fiel”
nos termos de Frere, procurando incentivar os estudos sobre os vários Anfitriões e
procurando trazer novamente à tona um autor de tamanha importância e injustamente
esquecido na contemporaneidade.
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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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39
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