5 de Outubro de 1910 - 25 de Abril de 1974: duas
revoluções distintas por causas comuns.1 Augusto José Monteiro Valente
Introdução
Analisando a história contemporânea de Portugal, facilmente se
reconhece o protagonismo dos militares nas grandes transformações
operadas na sociedade. Desde 1820 todas as mudanças de regime ou foram
protagonizadas por militares, ou tiveram uma participação militar mais ou
menos relevante. Assim aconteceu, nomeadamente, em 24 de Agosto de
1820, em 5 de Outubro de 1910, em 28 de Maio de 1926 e em 25 de Abril
de 1974.
Nesses momentos históricos, a intervenção militar quase nunca, ou
nunca mesmo, assumiu um carácter institucional ou generalizado, e os
militares desempenharam sobretudo um papel de precursores da acção
política ou, simplesmente, de seus principais apoiantes, porventura na
ausência de consciencialização cívica da maioria dos portugueses, de
legitimação social do novo regime, ou como garantes transitórios da nova
ordem. Quando agiram politicamente os militares foram também
determinados por motivações próprias da sua condição, mas o peso relativo
destas, a dimensão do seu envolvimento e as lógicas organizacionais foram 1 Comunicação apresentada no dia 25 de Abril de 2011, em iniciativa promovida pela Câmara Municipal
de Miranda do Corvo. Publicado em “República e Democracia”, Edição Câmara Municipal de Miranda do Corvo e Edições Minerva Coimbra, 2011.
2
significativamente diferentes, muito embora pareça poder conclui-se haver
uma relativa analogia de factores políticos estruturais e de motivações
concretas, obviamente salvaguardando o distanciamento temporal e,
consequentemente, a natureza distinta das conjunturas. Na realidade, se a
água não passa duas vezes por debaixo da mesma ponte, por vezes
verificam-se semelhanças entre acontecimentos históricos que fazem
pensar o contrário.
Analisemos então comparativamente as revoluções de 5 de Outubro de
1910 e de 25 de Abril de 1974, colocando a enfâse nos aspectos militares.
1 º O problema colonial e a crise dos regimes
A revolução republicana de 5 de Outubro de 1910 e a revolução
democrática de 25 de Abril de 1974 aconteceram em momentos de fim de
regime, e, em ambos as situações, a acção revolucionária teve sobretudo
um papel de acelerador do colapso final.
A crise da Monarquia Constitucional. 2
Após o Ultimato inglês de Janeiro de 1890 a Monarquia Constitucional
entrou em crise, isolada internacionalmente e contestada por sectores
sociais cada vez mais amplos. A política colonial de várias nações
europeias e a competição internacional pelo domínio do continente
africano, criaram a Portugal problemas graves, e, curiosamente, o maior
deles aconteceu precisamente com o seu principal aliado – a Inglaterra.
2 Cf.v.g. Maria de Fátima Bonifácio, “A Monarquia Constitucional 1807-1910”, Texto Editores, Lda.,
Alfragide, 2010.
3
Com o Ultimato ficou esgotado o projecto colonial da Monarquia, e, a
partir dele, acentuou-se irreversivelmente a decadência desta.
Nos anos anteriores o País havia-se transformado em quase todos os
sentidos, de tal modo que se tornara evidente a necessidade de dar um rumo
diferente à vida política nacional. Apesar de um pequeno progresso no
último terço do século, o regime monárquico não evoluíra para um sistema
constitucional estável, progressivo e firme. A manipulação das eleições e o
caciquismo faziam da artificialidade do sistema a sua falha mais séria,
criando um fosso entre povo e o pequeno círculo de dirigentes. Os
primeiros clamores de dissentimento despontaram sobretudo nas cidades,
onde se concentrava uma população mais evoluída.
O Ultimato deu ao republicanismo o pretexto para se transformar num
amplo movimento de renovação nacional, com particular incidência junto
da juventude estudantil e dos sectores intelectuais. A escalada de
indignação e exaltação precipitou um primeiro movimento revolucionário
na cidade do Porto, em 31 de Janeiro de 1891. Apoiado nos conselhos dos
«Vencidos da Vida», que defendiam o fortalecimento e engrandecimento
do poder real, D. Carlos rompeu a partir de então com a prática anterior do
seu pai, esquecendo a Carta Constitucional, começando a intervir na vida
política e dando cobertura a sucessivos governos em ditadura.
Procurando contrabalançar o fracasso do projecto do «mapa cor-de-
rosa», os governos monárquicos envolveram-se nas chamadas «Campanhas
de Pacificação Africanas», com vista afirmação do domínio português
sobre os territórios coloniais, fundamentais para a economia nacional. Mas
o País vivia em constante situação de crise financeira. Em 1898, a
Inglaterra e a Alemanha assinaram uma convenção secreta de partilha das
colónias portuguesas de Angola, Moçambique e S. Tomé, no caso de
incumprimento por parte de Portugal da sua dívida externa, confirmando
que o País nada contava na cena internacional. Os problemas financeiros
4
davam aos republicanos argumentos fáceis para atacar os sucessivos
governos. Mas se a crise financeira era séria, a crise moral era ainda pior.
A agravar a situação, o rotativismo monárquico entrou em crise no
alvorecer do século XX, com cisões nos principais partidos, prenunciando a
falência do regime. Sucederam-se algumas tentativas falhadas de rebeliões
militares. Em Abril de 1906 amotinaram-se os marinheiros dos cruzadores
D. Carlos I e Vasco da Gama, as primeiras revoltas em toda a história da
Marinha, confirmando que a Marinha, na sua maioria, já não era
monárquica. A situação agravou-se nos meses de Fevereiro e Março do ano
seguinte, com a eclosão de protestos e greves académicas. O
republicanismo tinha obtido muitos adeptos entre os estudantes
universitários e dos liceus, no seio dos quais a Maçonaria e a Carbonária
também recrutava crescentes apoios. A resposta de João Franco foi o
amento da repressão, mas, em lugar de restabelecer a ordem, fez explodir
os ânimos, conduzindo à segunda tentativa de revolta republicana, a 28 de
Janeiro de 1908, e ao Regicídio três dias depois. O apoio à ditadura fora
fatal para D. Carlos. A Monarquia agonizava.
Apesar das tentativas de «acalmação», a Monarquia nunca mais
recuperaria. Seguiram-se dois anos de instabilidade política e social, com
vários governos que se sucederam de modo pouco pacífico, num quotidiano
aparentemente tranquilo mas na realidade desconfiado da «acalmação» que
lhe fora prometida. Imberbe, reservado, mal preparado, vacilante, com a
sua vontade aprisionada e tutelado por sua mãe, D. Manuel II contrastava
em tudo com a fortaleza de convicções de seu pai. Instalaram-se os
dissídios, mesmo nos próprios arraiais monárquicos, corroídos por
recriminações e suspeições. Teixeira de Sousa, último presidente do
ministério, desagradou sobremaneira à maioria dos monárquicos, devido às
medidas que procurou implementar, algumas inspiradas no programa
republicano. O sector mais conservador do regime, civil e militar, retirou-
5
lhe definitivamente a confiança, bem como ao Rei, começando a advogar a
intervenção do Exército para sanear o regime e varrer os republicanos, e
procurando aliciar para a intentona o capitão Paiva Couceiro, mentor do
grupo dos «Africanistas», vistos por esta ala como os genuínos
representantes da Nação.
Era contudo já demasiado tarde para todos os grupos conspiradores, e
também para o liberal Teixeira de Sousa. Os planos de contra-revolução e
de reforma haviam perdido a oportunidade. Os resultados das eleições
gerais de Agosto de 1910 atiraram definitivamente os dirigentes
republicanos para a via revolucionária, convictos de que o sistema
monárquico do caciquismo inviabilizava qualquer esperança evolutiva pela
via eleitoral. Animado pelo apoio popular maioritário em Lisboa, que
aquelas eleições haviam confirmado, o Partido Republicano dotou-se de
um novo Directório apostado na acção directa, e, tendo garantido a
fidelidade maçónica e a operacionalidade dos carbonários, decidiu pôr em
marcha a revolução. E a 5 de Outubro a República triunfou finalmente na
Rotunda, culminando uma luta de trinta e quatro anos.
O colapso do Estado Novo.3
A questão colonial foi igualmente a causa remota do fim do Estado
Novo.
A contestação internacional à política colonial de Salazar, a eclosão, no
início dos anos sessenta, da guerra colonial e o isolamento de Portugal
perante a comunidade internacional marcaram o início irreversível do
declínio do regime. Logo em Abril de 196 foi dado o primeiro sinal, com
3 Cf.v.g. Boaventura de Sousa Santos, “O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988), Edições
Afrontamento, Porto, 1990.
6
tentativa de golpe de Estado dirigida pelo general Botelho Moniz. Seguiu-
se, na viragem do ano, a tentativa insurreccional a partir de Beja.
Apesar de não haver conduzido de imediato a uma situação de crise do
regime, tendo até provocado um surto de desenvolvimento económico nos
primeiros anos, a guerra colonial motivou grandes transformações na
sociedade portuguesa, e o colonialismo transformou-se na verdadeira base
material de sustentação do regime. Mas, ao mesmo tempo, o colonialismo e
a guerra foram gerando contradições políticas, económicas e sociais,
fazendo aumentar as tensões e conflitos a níveis sem precedentes na
história do regime, com expressões mais significativas primeiramente no
sector operário e no meio académico. Também o surto de desenvolvimento
económico acabou por ser bloqueado pela lei do condicionamento
industrial, pelo isolamento internacional, pelos crescentes encargos
financeiros com a guerra, e pela falta de mão-de-obra em consequência da
vaga de emigração clandestina e das crescentes mobilizações de jovens
para as frentes de combate.
Coincidindo com a morte de Salazar e a ascensão de Marcelo Caetano,
o ano de 1969 marcou o início a crise final do Estado Novo. Agravou-se a
conflitualidade entre as várias facções do bloco no poder, pondo em causa a
forma organizativa do Estado Novo. E intensificou-se a contestação social
nos sectores laborais e, sobretudo, nos meios académicos, com
manifestações e greves de dimensões nunca antes conhecidas.
As eleições de 1969 e de 1973 desfizeram todos os equívocos. Incapaz
de ultrapassar as divergências políticas, Marcelo Caetano recuou nas
tímidas medidas de abertura que ensaiara, ficando prisioneiro dos sectores
mais radicais. Temendo a destruição dos interesses instalados e, sobretudo,
a alteração da política oficial em relação às colónias, os ultras exigiram-lhe
o regresso à matriz central e original do Salazarismo, originando uma crise
de hegemonia que acentuou a crise de legitimação do regime.
7
A percepção do colapso criou as condições para o aumento das
exigências por parte dos sectores da oposição democrática, centradas
sobretudo na reivindicação das liberdades cívicas e políticas, na
institucionalização da democracia, no regresso de Portugal ao seio da
comunidade internacional e de uma relação política diferente com as
colónias.
A contestação ao regime acabou por contagiar as próprias Forças
Armadas, que eram o mais forte sustentáculo do regime e da guerra
colonial. E foram estas que, vencida a facção militar mais conservadora,
fizeram precipitar o fim do Estado Novo, em 25 de Abril de 1974.
Em resumo. A questão colonial foi a causa próxima comum dos
colapsos da Monarquia Constitucional e do Estado Novo. Os percursos
finais dos dois regimes foram em quase tudo muito idênticos,
salvaguardando a excepção da guerra colonial, que não teve paralelo com
as «Campanhas de Pacificação Africanas». O início do declínio foi, em
ambos, acompanhado do aumento da contestação social, de revoltas
militares, do reforço do autoritarismo e da repressão e de tentativas
militaristas ultra-reaccionárias. As tímidas experiências de moderação e
abertura ensaiadas, em lugar de atenuarem a conflitualidade interna e de
conduzirem à almejada liberalização, acabaram por surtir efeitos contrários,
aprofundando as contradições e os dissídios no poder político, alargando o
campo da luta política por parte das oposições e precipitando as revoluções
que lhes puseram termo. Nestas, foi fundamental para o seu êxito o papel
desempenhado pelos militares, embora este tenha sido mais decisivo em 25
de Abril de 1974 do que em 5 de Outubro de 1910. E em ambas, foi o povo
que transformou os acontecimentos em autêntica revolução.
2 º A problemática militar e as motivações profissionais
8
É relativamente consensual a afirmação de que a Revolução de 25 de
Abril de 1974 começou por um golpe militar conduzido pelo Movimento
das Forças Armadas, a que se seguiu uma revolução popular. Na realidade,
a componente militar foi dominante na primeira fase dos acontecimentos,
se não mesmo exclusiva. O Exército foi o ramo mais comprometido nos
acontecimentos, e os capitães a componente maioritária - daí o nome de
«Movimento dos Capitães» por que ficou conhecido.
Em contrapartida, a participação militar na Revolução de 5 de Outubro
de 1910 foi reduzida, a Marinha foi o ramo decisivo e os subalternos e
sargentos foram os principais elementos envolvidos. Factores de ordem
profissional contribuíram para esta diferença de comportamentos dos
militares nas duas revoluções.
Os militares e a crise da Monarquia4
No final do século XIX, o Exército encontrava-se em acentuada
decadência, envelhecido, pouco instruído, desleixado, tecnicamente
atrasado, mal remunerado e socialmente desprestigiado. A sua principal
função era o policiamento da província, a vigilância de feiras, romarias e
procissões. A preparação propriamente militar era muito reduzida, as
promoções eram demoradas, e os oficiais em regra idosos eximiam-se a
qualquer iniciativa ou responsabilidade. Ao posto de capitão só se chegava
à volta dos quarenta e cinco anos de idade, e ao generalato quase aos
setenta anos.
No Exército, a maioria dos oficiais permanecia alheada da política,
aceitando passivamente a ordem estabelecida. Os altos escalões 4 Cf. v.g. Maria Carilho, “Forças Armadas e Mudança Política em Portugal no Séc. XX – Para uma
explicação sociológica do papel dos militares”, Imprensa Nacional -Casa da Moeda, Lisboa, 1985.
9
hierárquicos, comprometidos com o rotativismo, nem por absurdo
concebiam a hipótese de uma alteração do regime, e alguns sectores
conservadores mais radicais advogavam mesmo o reforço militarista da
Monarquia, apoiados, primeiro, em Mouzinho de Albuquerque e, mais
tarde, em Paiva Couceiro. Mas nos postos inferiores um número
significativo de oficiais mostrava abertura às ideias republicanas, e, com
maior extensão e activismo, o mesmo acontecia entre os sargentos. Por seu
turno, os cabos e soldados, na sua generalidade, eram pouco sensíveis a um
discurso essencialmente urbano, mas na Revolução de 5 de Outubro de
1910 alguns deles, ganhos sobretudo pela Carbonária, desempenhariam um
papel importante na tomada das unidades e na resistência na Rotunda. Na
Marinha, em contrapartida, com melhor espírito de corpo, mais contactos
com o exterior, quase total concentração em Lisboa e maior proximidade
com o activismo revolucionário, a propaganda republicana e o
recrutamento maçónico e, sobretudo, carbonário recolhiam apoios mais
fortes em todas as classes.
A influência revolucionária fazia-se sentir sobretudo na capital, onde se
localizavam os altos comandos, os serviços de administração, os
estabelecimentos de ensino, os arsenais militares, e em cujo porto se
encontravam os principais navios de guerra, o que facilitava as acções de
propaganda do Partido Republicano, da Maçonaria e da Carbonária. A
iniciação dos militares ao republicanismo acontecia também durante a
frequência dos cursos preparatórios nas escolas superiores, condição
obrigatória para o ingresso na Escola do Exército, locais onde era grande o
fervor revolucionário nos últimos anos da Monarquia, e onde aquelas
associações secretas recrutavam crescentes simpatizantes.
Na viragem do século, havia uma forte corrente favorável a uma
remodelação absoluta e completa das instituições militares, por forma a que
se tornassem mais proveitosas para o País, quer assegurando a paz no
10
interior, quer mostrando-se capazes de reagir eficazmente contra qualquer
agressão estrangeira.5 As principais reivindicações centravam-se na
implementação do recrutamento obrigatório, geral e pessoal, na
reestruturação dos exércitos metropolitano e colonial, na alteração do
sistema de promoções, na modernização tecnológica e na transformação da
organização militar numa instituição autónoma e prestigiada, subordinada
ao poder civil e ao serviço na Nação. Mas, até ao final da Monarquia,
perante o imobilismo rotativista e as pressões da hierarquia conservadora,
fracassaram todas as tentativas de reformas de fundo. As consequências
foram o alastramento da frustração e do descontentamento, sobretudo entre
os graduados dos escalões inferiores, intelectualmente e tecnicamente
melhor preparados. E a convicção de que as mudanças ansiadas jamais
lograriam êxito na vigência do regime monárquico fez evoluir vários destes
quadros para o campo republicano.
Após o Regicídio, a política de «acalmação» não conseguiu travar nem
o descontentamento, nem o crescimento do movimento republicano. A
situação começou a semear a dúvida quanto à eficácia das medidas de
transigência adoptadas pelo regime. Reunidos no «Bloco de Defesa
Monárquico», os sectores civis e militares mais conservadores começaram
a conspirar abertamente. Alguns procuraram aliciar primeiramente o
general Vasconcelos Porto, antigo ministro da Guerra de João Franco.
Perante a sua recusa, voltaram-se então para Paiva Couceiro. Mas o seu
grupo de apoiantes militares não representava na realidade mais do que
uma pequena minoria de oficiais, e este foi o seu grande equívoco. 6
Conhecedores desta situação, os republicanos reforçaram a
organização, uniram esforços com a Maçonaria e a Carbonária, criaram
5 Cf. Morais Sarmento, tenente-coronel, “Pela ordem!”, Revista Militar N º 16, 31 de Agosto de 1891. 6 Cf. Vasco Pulido, “Um Herói Português – Henrique Paiva Couceiro”, Alêtheia Editores, Lisboa, 2006,
pp. 53-69.
11
uma Junta Revolucionária e uma Comissão Militar. E, na madrugada do dia
4 de Outubro, militares, marinheiros e civis armados iniciaram a revolta e
com o povo proclamaram a República na manhã seguinte.
A participação dos militares na Revolução continua a suscitar
controvérsia entre os investigadores, defendendo uns que ela foi
essencialmente militar e enfatizando outros o papel dos civis organizados
em torno da Carbonária. Em que ficar?
O movimento revolucionário apoiou-se inicialmente num plano militar
que previa o envolvimento activo de dezenas de oficiais e sargentos, de sete
das dez unidades do Exército aquarteladas em Lisboa, dos principais navios
de guerra e de cerca de um milhar de marinheiros. Mas apenas alguns
oficiais isolados, cerca de duas dezenas de sargentos e poucos mais cadetes,
cabos e soldados reagiram activamente à hora fixada; e somente o
Regimento de Infantaria N º 16 e o Regimento de Artilharia N º 1 foram
lançados na Revolução, ficando as restantes unidades comprometidas
neutras ou apoiantes da Monarquia durante quase todo o tempo de luta. O
núcleo revolucionário inicial de militares e civis entrincheirado na Rotunda
não contava com mais de 400 ou 500 homens. Por seu turno, na Marinha, o
Quartel dos Marinheiros sublevou-se à hora prevista, mas a força que dele
partiu não logrou alcançar o seu objectivo; e os cruzadores S. Rafael,
Adamastor e D. Carlos somente pela madrugada e tarde do dia 4 foram
controlados pelos revoltosos. Que acontecera?
O inesperado assassinato de Miguel Bombarda levara o Governo a
determinar a prevenção geral das unidades de Lisboa, e vários graduados
comprometidos com a revolução ficaram sem condições, ou coragem, para
levarem a cabo as acções que lhes haviam sido atribuídas. Fracassou
também o apoio da Carbonária às operações militares em diversos locais;
falhou igualmente a acção de coordenação dos líderes políticos,
convencidos do fracasso do plano; e fraquejou inicialmente a mobilização
12
popular. As primeiras horas foram de incerteza, confusão, angústia e
desânimo, levando muitos a abortar as instruções que haviam recebido.
Mas, apesar da inferioridade numérica, o potencial de fogo dos
revolucionários era maior que o das forças monárquicas, mercê sobretudo
da superioridade em artilharia, sustando as tentativas de assalto à Rotunda.
Durante a manhã e tarde do dia 4, com a entrada em acção dos cruzadores
da Marinha, a situação começou a inverteu-se, obrigando D. Manuel a
abandonar precipitadamente o Palácio das Necessidades. Por fim, a ameaça
do desembarque de centenas de marinheiros em diversos pontos da capital
acabou por fazer passar à defensiva as forças monárquicas, apesar de
contarem com mais de 3.500 homens. Os populares armados e o povo de
Lisboa tomaram então conta das ruas, e a Revolução saiu vencedora na
madrugada do dia 5 de Outubro.
Em suma, os planos militares saldaram-se num fracasso bilateral, tanto
da parte dos revolucionários, como das forças que os combateram, e foi a
acção decisiva do povo que fez triunfar a Revolução. Mas a intervenção
dos militares republicanos foi fundamental para iniciar Revolução, para
defender a Rotunda nos momentos cruciais e para neutralizar as tentativas
de assalto ensaiadas pelas forças monárquicas. São pois parciais e redutoras
ambas as hipóteses acima referidas.
Os militares e o colapso do Estado Novo.7
A eclosão da guerra colonial provocou efeitos de variada ordem no seio
das Forças Armadas, que se revelariam decisivos para a queda do regime.
7 Cf.v.g. Manuela Cruzeiro, “Vasco Lourenço – do Interior da Revolução”, âncora Editora, Lisboa, 2009,
e Augusto Monteiro Valente, “Movimento dos Capitães”, in “Guerra Colonial”, Diário de Notícias, pp. 548-553.
13
Logo em Abril de 1961 ocorreu a tentativa de golpe de Estado liderada pelo
ministro da Defesa Nacional, general Botelho Moniz.
No plano estritamente militar, a intensificação da guerrilha em Angola
e o seu alargamento à Guiné e a Moçambique provocaram uma crescente
mobilização de efectivos militares e de quadros, sobretudo no Exército, que
no ano de 1974 atingiram uma totalidade de quase 150.000 homens, só
conseguidos pela crescente milicianização e africanização das forças
armadas. 8
As maiores necessidades de graduados verificavam-se nos postos de
furriel/2° sargento, alferes e capitão, uma vez que as operações de
contraguerrilha eram conduzidas principalmente por pequenas unidades. Os
primeiros eram na sua quase totalidade milicianos. Nos quadros
permanentes, o principal problema residia na demorada formação e
progressão na carreira, incompatíveis com as exigências da guerra. Os
critérios para ingresso na Academia Militar tornaram-se por isso mais
permissivos, e a duração dos cursos e dos períodos de permanência em
subalterno foram encurtados. Mas as expectativas goraram-se a partir de
1963, com a inversão da tendência de crescimento do recrutamento de
candidatos.9
O Governo procurou ultrapassar o problema através de medidas
casuísticas com vista ao aliciamento de oficiais milicianos para a carreira
militar. As consequências foram, entre outras, a perda do controlo político
e ideológico sobre os escalões inferiores da oficialidade, a desvalorização
da carreira militar e o agravamento das tensões corporativas entre os
oficiais com formação normal na Academia Militar e os restantes.
8 Evolução dos efectivos totais em Angola, Guiné e Moçambique (referidos a 31 de Dezembro): 1961 –
49422; 1963 – 71296; 1965 – 97181; 1967 – 113791; 1969 – 121251; 1971 – 135775; 1973 – 149090. 9 Evolução das admissões à Academia Militar: 1961 – 257; 1962 – 267; 1963 – 187; 1964 – 139; 1965 –
129; 1966 – 90; 1967 – 96; 1968 – 114; 1969 – 36; 1970 – 70; 1971 – 103; 1972 – 81; 1973 – 88.
14
A guerra colonial produziu ao mesmo tempo efeitos significativos na
motivação geral dos militares, e dos quadros permanentes em particular. O
contacto com uma realidade muito diferente daquela que era divulgada pela
propaganda do regime, o desgaste provocado por sucessivas comissões, o
acumular de dúvidas quanto à legitimidade da guerra e à sua solução
militar, favoreceram uma progressiva e progressista tomada de consciência
política. Citando Eduardo Lourenço, os “herdeiros de Mouzinho”
“descobrem por sua conta os limites ou a mentira congenital da versão
colonialista que deviam ajudar a salvaguardar” 10 .
Entretanto, nos três teatros de operações a situação agravava-se
continuamente, com a abertura de novas frentes e a utilização de melhor
armamento pela guerrilha. Entre os militares do quadro permanente foi-se
fortalecendo a convicção de que o regime mais facilmente aceitaria uma
derrota militar que a abertura de negociações com movimentos de
libertação. Instalou-se então, sobretudo entre os oficiais, o receio de as
Forças Armadas serem de novo transformados no bode expiatório do
insucesso político do Governo, como acontecera em 1961 com a Índia.
Estavam criadas as condições para os militares passarem à acção
política. A primeira tomada de posição contra a política colonial ocorreu
em Abril de 1973, quando cerca de 400 oficiais contestaram a iniciativa do
regime de organização do I Congresso dos Combatentes do Ultramar. Mas
o factor aglutinador do «Movimento dos Capitães» seria, contudo, de
natureza profissional, provocado pela publicação de legislação que inverteu
as normas vigentes sobre a antiguidade relativa e os critérios de promoção
entre oficias de diferentes origens.
As novas disposições foram consideradas inaceitáveis pelos oficiais
oriundos de cadetes da Academia Militar. Seguiu-se uma onda de protestos
10 Eduardo Lourenço, “O Labirinto da Saudade”, Publicações Dom Quixote, 2 ª edição, Lisboa, 1982, p.
47.
15
com uma dimensão nunca antes vista. Alarmado, o Governo corrigiu
precipitadamente o decreto, mas apenas parcialmente, salvaguardando os
interesses dos oficiais superiores mas deixando de lado os capitães e
subalternos. E em 9 de Setembro de 1973, cerca de uma centena e meia de
oficiais dos quadros permanentes reuniram-se numa herdade alentejana
perto de Évora, para discutir uma tomada de posição conjunta. Nascia o
«Movimento dos Capitães».
O Governo recuou. Mas era já tarde. Tomando consciência de que a
resolução dos problemas da carreira militar era indissociável da
recuperação do prestígio da instituição, e que tal só seria possível com uma
clara demarcação das Forças Armadas relativamente à política colonial e ao
próprio regime, a contestação evoluiu rapidamente para a conspiração
política. E só tardiamente o Governo, e os sectores a ele ligados, se
aperceberam desta alteração qualitativa.
Desavindos com Marcelo Caetano, os integracionistas do regime,
encabeçados pelo general Kaúlza de Arriaga, tentaram ainda um golpe de
Estado para afastar aquele do poder e liquidar a contestação militar. Mas
acabaram por fracassar. A organização do movimento militar decidiu então
acelerar os preparativos. Alargou-se aos três ramos das Forças Armadas,
dotou-se de um programa político e aproximou-se dos generais que lhe
mereciam maior confiança – Costa Gomes e Spínola. Mas o segundo
jogava num projecto próprio e autónomo, só coincidente com o do
Movimento no objectivo de derrubar o Governo, e iria tentar pô-lo em
prática. A publicação do seu livro “Portugal e o Futuro” foi o primeiro
passo nesse sentido.
Pressionado pelo Presidente da República, Marcelo Caetano tentou
reagir, encenando uma manifestação de apoio à política colonial por parte
das mais elevadas chefias militares, exonerando depois aqueles dois
generais. E, em desespero de causa, enveredou pela repressão dos
16
principais oficiais da direcção do Movimento. Deixou de ser possível
recuar ou adiar por muito mais tempo a acção militar. Spínola tentou ainda
reverter a seu favor a situação, com o falhado «Golpe das Caldas da
Rainha». Mas, em lugar de o conseguir, acabou por favorecer os planos do
Movimento ao pôr em evidência as fragilidades das defesas do regime.
A comissão militar do Movimento das Forças Armadas, chefiada pelo
major Otelo Saraiva de Carvalho, ultimou entretanto o plano operacional,
distribuiu-o às unidades e realizou as últimas coordenações. E na
madrugada do dia 25 de Abril de 1974 desencadeou uma ampla e bem
conduzida operação militar que em poucas horas neutralizou as poucas,
fracas e desconexas resistências. Surpreendido pela dimensão e força do
movimento militar e com o amplo apoio popular, Marcelo Caetano
capitulou em poucas horas.
Em síntese. Tanto na Revolução de 5 de Outubro de 1910, como na
Revolução de 25 de Abril de 1974 as motivações mobilizadoras da
generalidade dos militares nelas comprometidos começaram por ser
sobretudo de natureza profissional, ainda que em alguns deles, poucos, se
fizessem sentir já outro tipo de fundamentos. A progressiva tomada de
consciência política fê-los evoluir progressivamente para o campo
republicano e democrático, respectivamente.
Em 5 de Outubro de 1910 foi bastante reduzido o número de oficiais,
sargentos, cabos e soldados do Exército activamente intervenientes nos
acontecimentos e maior e mais decisivo o papel dos marinheiros, embora o
número dos militares comprometidos com o movimento republicano fosse
muito superior. Em contrapartida, em 25 de Abril de 1974 os militares
assumiram total protagonismo na primeira fase da acção libertadora, numa
ampla movimentação que envolveu cerca de 700 oficiais, sendo 367
capitães, 201 majores e os restantes distribuídos pelos outros postos, de
17
alferes a general, um quantitativo que elimina à partida qualquer propósito
de comparação com o 5 de Outubro de 1910. A diferença de
comportamentos nas duas revoluções teve a ver, principalmente, com a
longa Guerra Colonial e com os seus efeitos nas Forças Armadas,
sobretudo, no Exército, arrastando-as para uma situação de deslegitimação
perante a opinião pública e de quase colapso militar, que não teve paralelo
com a crise que se viveu nos últimos anos da Monarquia.
Outro aspecto que, no plano militar, diferencia e, simultaneamente,
aproxima as duas revoluções, diz respeito à graduação dos protagonistas
mais implicados na génese dos movimentos e na execução das operações -
tenentes e sargentos no 5 de Outubro, capitães e majores no 25 de Abril -,
se bem que em ambos os acontecimentos se tivesse verificado também o
envolvimento de outros quadros de mais elevada graduação, mas em
número limitado, e não contando com os numerosos cabos e soldados. Ou
seja, em ambas as revoluções a força militar proveio dos quadros mais
novos, daqueles que estavam mais directamente em contacto com as
realidades, dos que mais sofriam as suas consequências e dos que mais
descomprometidos se encontravam relativamente aos regimes políticos que
lhes incumbia defender.
Um último ponto importante a registar, e que distingue muito
claramente as duas revoluções, tem a ver com lógica organizacional dos
militares. Em 5 de Outubro de 1910 a lógica organizacional foi exterior às
Forças Armadas, assumida sobretudo pelo Partido Republicano, pela
Maçonaria e pela Carbonária. Os principais oficiais do Exército que
integraram a Comissão Militar - capitão Sá Cardoso, capitão Afonso Pala e
tenente Hélder Ribeiro - eram membros activos da Maçonaria. Da Marinha
eram igualmente maçons o chefe militar da Revolução, almirante Cândido
dos Reis, também elemento importante da Carbonária, e os tenentes
Mendes Cabeçadas e Carlos da Maia que tomaram o comando do
18
cruzadores Adamastor e D. Carlos. Em contrapartida, no 25 de Abril de
1910, a lógica organizacional foi exclusivamente militar - “Tudo se passou
em «família», entre militares sobretudo”11 , conclui Eduardo Lourenço.
3 º Causas comuns nas duas revoluções.
O 5 de Outubro de 1910
Como atrás se referiu, o republicanismo assumiu progressivamente um
carácter de movimento de renovação nacional, sobretudo entre os sectores
intelectuais e urbanos. Por impulso, sobretudo, do movimento da «Geração
de 70» e da agitação intelectual das «Conferências do Casino», as novas
ideias haviam inundado o País. Portugal, a sua história e o seu destino
foram então vivamente discutidos e problematizados, despertando uma
nova atitude sobre a realidade nacional. O Partido Republicano, fundado
em 1876, bebeu muita da sua inspiração ideológica original nesse
movimento cultural, muito embora a aspiração republicana fosse sobretudo
herdeira da corrente esquerdista do vintismo, do autêntico espírito
constitucional, da ideologia setembrista e das motivações das rebeliões da
Maria da Fonte e da Patuleia, tendo começado a concretizar-se mediante a
oposição à feição conservadora do liberalismo.
O ideário republicano caracterizava-se por um leque aberto de
tendências que se inseriam num mesmo horizonte iluminista, e que se foi
conformando e consolidando ao longo dos anos. Doutrinar, educar e fazer
evoluir a maior parte da população foram as suas principais linhas
programáticas, que imprimiram ao republicanismo nos primeiros tempos
uma atitude sobretudo pedagógica e doutrinadora de novos valores sociais,
sob o impulso de insignes figuras como Elias Garcia e José Falcão. 11 Eduardo Lourenço, Ibidem.
19
Reportando-se ao sistema político vigente, os republicanos
contrapunham: à Carta Constitucional de 1826 adoptada pela Monarquia, o
modelo da Constituição de 1822, assente na supremacia do poder
legislativo; ao poder divino, vitalício e hereditário do rei, a soberania
nacional e o carácter electivo e temporário dos cargos políticos; à
dependência e às afrontas externas, nomeadamente da Inglaterra, o
patriotismo; ao regime de privilégios individuais, de sangue e de classe, a
prevalência do interesse público sobre o particular e a igualdade de todos
os cidadãos perante a lei; à ideia liberal individualista, a superioridade da
comunidade, a cidadania participativa e os direitos sociais; ao voto
censitário, o sufrágio universal; ao clericalismo, a laicidade, traduzida na
separação das Igrejas do Estado, no registo civil, nas leis da família e na
educação pública obrigatória. Ou seja, o ideário republicano, muito para
além do objectivo político de operar uma mudança de regime,
consubstanciava ainda, fundamentalmente, um vasto conjunto de novos
valores que pretendiam dar corpo ao sonho de um Portugal moderno e a
uma autêntica ética republicana de bem público, utilidade comum, interesse
público e vontade geral, colocando a tónica na finalidade com que o poder
era exercido.
A dimensão comunitária foi uma das principais marcas do
republicanismo português. O indivíduo era identificado como cidadão que
só existia enquanto membro da comunidade, donde resultaram os traços
fundamentais da ética republicana: a superioridade do interesse público
sobre os privilégios individuais; a devoção ao serviço à comunidade; a
exigência de honradez e austeridade no exercício dos cargos; o zelo pelo
bom uso dos recursos nacionais; a moral da solidariedade e da fraternidade;
a igualdade no direito à educação e ao ensino, como condição para o
exercício pleno da cidadania, entre outros.
20
Infelizmente a República nasceu num período de grande complexidade
interna e externa, e a sua vida seria de uns curtos dezasseis anos. Herdou
um país com um persistente défice financeiro, atravessado por conflitos
políticos, sociais e religiosos, num contexto de crise europeia que
prenunciava a guerra mundial que explodiria quatro anos depois. A
República, por sua vez, gerou novos conflitos e agravou alguns dos
anteriores.
Têm existido distorções interpretativas sobre a I República, porventura
por resquícios da propaganda do Estado Novo. Mas a verdade é que, apesar
das dificuldades e do curto tempo de vigência, a I República levou a efeito
reformas importantes para fazer entrar Portugal na modernidade,
designadamente nos domínios do direitos civis, da laicização do Estado (a
reforma institucional mais importante), das leis da família, do registo civil,
da educação e do ensino, da assistência, do serviço militar, lançando
também as bases para a retoma do desenvolvimento económico do país. A
sua grande falha terá estado na transformação das mentalidades, que nunca
se chegou a fazer.
Depois, com a ditadura e o Salazarismo foi o atabafar das reformas e do
espírito da I República, sobrevivendo desta apenas uma memória
progressivamente mais ténue e a semântica republicana no texto
constitucional.
O 25 de Abril de 1974
A Revolução de 25 de Abril de 1974 refundou a República, restaurou e
aprofundou a liberdade e a democracia, pôs termo à guerra colonial, lançou
as bases para uma nova relação com as antigas colónias e mudou o rumo de
Portugal do Atlântico para a Europa.
21
Aprendendo com os erros e omissões da primeira, a II República
realizou finalmente as promessas do 5 de Outubro de 1910:
institucionalizou o sufrágio directo universal, tanto masculino como
feminino; integrou os direitos económicos, sociais e culturais no alargado
conjunto dos direitos fundamentais dos cidadãos; consagrou a participação
cívica como um dos pilares Estado de direito democrático ao mesmo nível
da representação; promoveu um melhor equilíbrio dos poderes dos órgãos
de soberania; e instaurou o poder local e as regiões autónomas.
Em abono da verdade, terá de reconhecer-se que os avanços
conseguidos com a Revolução de 25 de Abril de 1974 foram enormes, quer
em termos dos direitos dos cidadãos, quer em termos da justiça social e do
desenvolvimento, designadamente nos domínios da democratização do
ensino, da saúde, socorro e assistência, da habitação e da segurança social,
do nível geral de vida da população, das infra-estruturas básicas e de
comunicação, e sobretudo, na emancipação dos cidadãos e na autêntica
revolução das mentalidades.
4 º Conclusão
Procurou evidenciar-se as analogias entre as transições da Monarquia
para a I República e do Estado Novo para o II República, bem como as
causas comuns que foram bandeiras dos novos regimes.
Tanto no caso da Monarquia Constitucional como do Estado Novo
ambos os regimes estavam mergulhados num processo de decadência
irreversível, fechados num círculo vicioso, desacreditados perante a opinião
pública, criticados pelos seus próprios partidários e contestados por
sectores cada vez mais amplos da sociedade, incluindo os militares.
Em 5 de Outubro de 1910, citando Douglas Wheeler, “a maioria dos
comandantes das unidades não era suficientemente pró-monárquica ou anti-
22
republicana para se opor ao que parecia ser a vontade das classes médias e
baixas das cidades” 12. Em 25 de Abril de 1974, apoiando-nos agora em
Boaventura de Sousa Santos, “as forças armadas portuguesas foram
obrigadas a deslegitimar a guerra que não tinham podido ou sabido vencer
(...). Mas deslegitimar a guerra equivalia a recusar continuar a guerra,
equivalia, enfim, a recusar servir o regime. Privado do seu aparelho militar,
o regime colapsou” 13.
O 5 de Outubro de 1910 foi muito menos militar do que civil e popular,
foi um autêntico movimento revolucionário civil-militar. Em contrapartida,
o 25 de Abril de 1974 foi um pronunciamento militar que a espontânea
adesão do povo transformou em revolução. Em ambas os casos foi
fundamental a acção dos militares, mas foi o povo que teve o papel
decisivo.
Foram duas revoluções distintas mas semelhantes nas grandes causas
que as motivaram. Em boa verdade, o 25 de Abril de 1974 complementou o
5 de Outubro de 1910, retomando os grandes ideais do republicanismo, e
refundando e aprofundando a República: corrigiu os desequilíbrios dos
órgãos do poder político, estabelecendo a eleição directa do Presidente da
República e dupla dependência do Governo; superou as limitações do
sistema representativo, consagrando a cidadania participativa com igual
dignidade; alargou os direitos fundamentais dos cidadãos, instituindo o
Estado social e a descentralização política e administrativa.
Voltando a Eduardo Lourenço, “a democracia instaurada pela
Revolução de Abril, em 1974, nasceu acompanhada da vontade de inventar
um outro destino para Portugal. Um destino inédito, excepcional no
12 Douglas L. Wheeler, “ História Política de Portugal de 1910 a 1926”, Publicações Europa-América,
Lda, Mem Martins, p. 72. 13 Boaventura de Sousa Santos, “O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988)”, Edições
Afrontamento, 1990, p. 27.
23
contexto ocidental da Europa, nada menos que o de uma democracia
popular ”14 . Mas não seria esse o modelo que os constituintes escolheriam.
Trinta e sete anos depois da revolução libertadora de 25 de Abril de
1974, Portugal está de novo a braços com uma crise interna e externa grave
– política, económica, financeira e ética. E, como na I República, os
sectores mais atingidos são os ligados ao mundo do trabalho e aos direitos
económicos e sociais dos cidadãos.
Confrontados com uma crise semelhante, os republicanos, em lugar de
promoverem uma maior legitimação da República, enredaram-se em
disputas internas e em práticas corruptoras de captação de votos, movidos
sobretudo por projectos pessoais e partidários de conquista do poder,
acabando por transformar a crise de legitimação numa crise de legitimidade
do próprio regime. E a II República, a actual, parece estar a seguir-lhe o
exemplo.
É fundamental compreender que a superação da crise em que Portugal
está hoje, uma vez mais, mergulhado passa fundamentalmente por mais
democratização da vida nacional. A chave para a sua resolução está nas
mãos dos cidadãos. Só com maior envolvimento destes nos problemas
nacionais, com maior exigência na transparência e moralização da vida
política, com mais participação activa na procura das soluções, enfim, com
mais cidadania e mais democracia será ultrapassada a crise. Afinal, ao cabo
de trinta e sete anos, o que continua por realizar é a autêntica
republicanização da República, ou, por outras palavras, a efectiva
democratização da Democracia. Porque, como ensinou Raul Proença: “Há
só uma maneira de aprender a liberdade: é exercê-la. Só ela é capaz de
fazer homens livres”15 .
14 Eduardo Lourenço, “Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade”, Gradiva, Lisboa, 1999,
p. 69. 15 Raul Proença, in “Obra política de Raul Proença”, volume IV, Seara Nova, 1975, p- 96.