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6 Porto Maravilha
Zona portuária do Rio de Janeiro, setembro de 2011.
Acontecia a primeira edição do Art Rua, festival de arte urbana
ligado à feira internacional ArtRio (também em sua primeira edição).
Seu idealizador, André Bretas, viu na ocasião a oportunidade de
reproduzir um evento nos moldes do Wynwood Arts District,
projeto no qual um bairro abandonado de Miami foi revitalizado por
meio do grafite. O primeiro festival de arte urbana do Rio de Janeiro
tinha então, como missão, estimular a cultura, a sustentabilidade e
o desenvolvimento da sociedade.
Entre os artistas participantes estavam nomes como Panmela
Castro, Léo Uzai, Acme, Eco, Zezão, Ment, SWK, Gais Ama, Toz,
Bruno BR e Bruno Big. Além da exposição de painéis, o grafiteiros
convidados realizaram pinturas na região, ocupando muros e
paredes do bairro da Gamboa.
Figura 15 – Grafiteiro pintando painel durante a primeira Art Rua, em 2011 (fonte www.institutorua.org.br).
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No ano seguinte, 2012, o festival foi substituído por
intervenções artísticas em Wynwood Walls, em Miami, durante a
Miami Art Basel. A galeria Huma Art Projects, também de
propriedade de André Bretas, participou da feira Scope e levou
consigo os artistas Gais Ama, Patrícia Thompson, Rodrigo Tizil e
Felipe Brown. Entre os grafiteiros presentes, Gais Ama foi convidado
a pintar um painel na Gallery 47.
Figura 16 – Painel do grafiteiro Gais Ama em Miami, projeto capitaneado pelo jornalista e marchand André Bretas (fonte www.institutorua.org.br).
Em 2013, o Art Rua ocupou os galpões da Vila Olímpica da
Gamboa, com a proposta de fomentar, divulgar e valorizar a cultura
urbana e promover intervenções artísticas na região portuária. Nos
dois galpões do complexo foram expostos 41 painéis,
especialmente pintados para a mostra, de 50 grafiteiros brasileiros,
dois franceses e dois australianos. Além da exposição, houve
também um ciclo de palestras, duas festas, loja de produtos feitos
pelos patrocinadores, como os móveis da marca Oppa e as
camisetas da Redley. Destacam-se também os chamados live
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paintings, de nove painéis na área externa, performances, shows,
video mapping e oficinas para crianças.
Figura 17 – Painéis de grafite em exposição durante a edição de 2013 do Art Rua (arquivo pessoal).
No que diz respeito ao processo de cooptação e alienação da
prática do grafite, três pontos merecem destaque nessa referida
edição: 1) Das 14 palestras previstas, seis (cerca de 40%) tinham
como temática o mercado de arte; 2) Apesar dos grandes painéis
da mostra não estarem à venda, a galeria Huma Art Projects
comercializava obras dos mesmos grafiteiros. Em sua grande
maioria, essas obras eram uma releitura em miniatura dos painéis e
tinham valores que variavam entre R$ 5.000,00 e R$ 35.000,00.
Para aqueles que não podiam comprar uma obra, havia reproduções
a laser, por R$ 80,00, ou camisetas estampadas, por R$ 70,00; 3)
Pela primeira vez, a mostra teve patrocínio e apoio de grandes
corporações, como a Concessionária Porto Novo, TV Globo,
Prefeitura do Rio de Janeiro, Hotéis Marina e Redley.
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O Art Rua, para mim é um evento muito importante. Participei do primeiro e de lá pra cá estou colhendo bons frutos, porque eu acabei apresentando um trabalho diferente do que eu vinha fazendo e foi a primeira vez que eu comecei a vender telas (SWK, em vídeo institucional do evento)20.
Em 2014, o festival assumiu a condição de feira de arte
urbana, diferenciando-se completamente das edições anteriores.
Desta vez, foi realizado no Centro Cultural Ação da Cidadania, sendo
que os 54 painéis pintados pelos grafiteiros participantes da mostra
anterior foram substituídos por apenas sete, de maior proporção.
Com curadoria artística do Instagrafite, um híbrido de agência de
mídia, curadoria e desenvolvimento de projetos especiais voltados
para arte urbana, os grafiteiros Ana Marieta (Porto Rico, USA),
Bicicleta sem freio (Goiânia), Ramon Martins (Belo Horizonte),
Rodrigo Branco (São Paulo), The London Police (Inglaterra e
Holanda), Seth Globe Painter (França) e Toz (Rio de Janeiro) foram
os responsáveis pelas obras em exposição. Além de uma mostra do
coletivo Acidum Project, que participou também da pintura de
muros da região, juntamente com os grafiteiros Gais Ama (Rio de
Janeiro), El Seed (Tunísia/França) e Inti (Chile).
A grande novidade da edição estava localizada no segundo
andar do galpão: em estandes de 20 galerias de arte, grafiteiros e
artistas comercializavam e divulgavam suas obras. Como na edição
anterior, a feira contou com oito palestras, exibição de dois filmes,
duas festas, shows, restaurantes e até mesmo um tour guiado pelos
grafites instalados no entorno do evento.
Estamos na terceira edição carioca e o público aumenta todo ano. Em 2014 estamos abrindo a área de galerias, pois acreditamos que
20 Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=mwaot36mK_4 > acesso em 15 de dezembro de 2015.
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o consumidor já aceitou a arte urbana. Temos uma brincadeira entre nós que diz que o Fashion Rio funciona, pois tem também o Fashion Business (André Bretas, em entrevista ao blog Farm21 , 2014, s/p).
Figura 18 – Visão geral da edição 2014 do Art Rua (arquivo pessoal).
A entrada efetiva das galerias e a redução do número de
painéis na edição marcaram de forma decisiva a mudança do
evento. Com um aspecto mais comercial que as outras versões, o
caráter de feira sobressaiu-se ao de festival. Em comparação com o
ano anterior, o ambiente festivo que prevalecia nos galpões da
Gamboa deu lugar a uma espécie de shopping center de grafite e
arte urbana, onde o consumo das chamadas obras de arte urbana
era o ponto mais importante, como afirma André Bretas:
A arte urbana é uma arte muito democrática porque ela está na rua, você não precisa ir a um museu ou a uma exposição pra você ver a arte urbana. Ela tem a cidade como pano de fundo, então é uma arte muito democrática. O nosso evento é aberto ao público e a gente faz na verdade esse trabalho de mostrar que a arte urbana pode ser consumida também como arte contemporânea (André
21 Disponível em< http://www.farmrio.com.br/adorofarm/das-ruas-pro-galpao-e-pra-nossa-casa/ > acesso em 10 de setembro de 2015.
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Bretas, em entrevista à Rádio MEC FM, em 12 de setembro de 2015).
Os grandiosos painéis do primeiro andar eram vistos com
relativa rapidez, em virtude inclusive da quantidade, eram
fotografados ou serviam de cenário para fotos e selfies. Já no
segundo andar os visitantes circulavam, quase sempre apertados,
entre os estandes das galerias, em busca de pequenas mostras,
opções de compra de quadros, gravuras e ilustrações.
Em 2015, a feira repetiu o formato do ano anterior, ocupando
novamente o Centro Cultural Ação da Cidadania, em meio às obras
de revitalização e requalificação da região para tornar-se o chamado
Porto Maravilha. Novamente, com sete painéis de grandes
proporções, desta vez pintados por grafiteiros paulistas, e algumas
instalações artísticas; 22 estandes de galerias de arte, grafiteiros e
artistas plásticos que comercializavam suas obras; três estandes de
venda de produtos, como o estande da marca de cadernos Cícero, e
os próprios produtos da feira; sete restaurantes e lanchonetes;
além de diversos shows com bandas e DJs em todos os dias do
evento.
Nos primeiros anos era mais um festival de arte urbana, onde a gente apresentou nos três primeiros anos mais de 160 artistas do Rio de Janeiro e do Brasil. Ano passado a gente transformou o Art Rua de festival, a gente criou também a área de feira, onde a gente tem 22 galerias de arte urbana do Brasil inteiro expondo o trabalho desses artistas que doam seus trabalhos para nossas ruas (...). Aqui na região do porto a gente está pintando duas laterais de prédio, grande, com um artista que vem da França, chamado Brusk, e com um artista de Portugal chamado Pantonio. Na área externa a gente também tem uma artista chamada Luna Buschinelli, uma artista que veio de São Paulo para pintar na área externa. E na área interna nós temos sete painéis de grande formato com sete artistas urbanos consagrados de São Paulo (André Bretas, em entrevista à Rádio MEC FM, em 12 de setembro de 2015).
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Figura 19 – Visitantes da edição 2015 do Art Rua, em uma das diversas galerias montadas no local (arquivo pessoal).
A edição foi marcada também por ações promocionais dos
patrocinadores. A grife de roupas Taco promoveu o Taco Rock
Walls 22 , um estande sobre o projeto de live paintings, que
aconteceria em uma semana do festival Rock in Rio: uma batalha de
grafiteiros, em parceria com o Instituto RUA, prevista para os sete
dias do evento que se aproximava. Já a Abra Casa, empresa de
móveis e decoração, sorteou duas poltronas, customizadas pelas
grafiteiras Talitha Rossi e Lynn Court, entre os visitantes que
postassem fotos com as peças na rede social Instagram.
Outro evento que acontece na cidade e tem o grafite como
uma de suas principais atrações é o Arte Core – Festival de Arte
Urbana. Com três edições realizadas (2013, 2014 e 2015) reúne,
no vão livre do Museu de Arte Moderna, painéis pintados por
22 Na ação promocional realizada no evento, oito grafiteiros escolhidos por André Bretas levaram para o Rock in Rio suas técnicas e ideias para uma “batalha” de grafiteiros. A cada dia dois artistas trabalharam em telas de 4m x 2m, com temas relacionados ao ano de estreia do evento, 1985, e ao ano corrente, 2015. O público pôde acompanhar o passo a passo ao vivo, vendo as grandes telas em branco ganharem cores e formas, para depois atingirem o melhor trabalho.
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grafiteiros de várias partes do país, pistas de skate e shows de
bandas e DJs. Produzido pela Homegrown, um misto de loja de
roupas, galeria de arte urbana e produtora de eventos, o Arte Core
conta com uma enorme estrutura e o apoio de grandes
patrocinadores, como marcas de tênis e empresas de viação urbana.
Figura 20 – Ônibus grafitado pelos grafiteiros do FleshBeck Crew para a edição 2014 do Arte Core, no Museu de Arte Moderna do Rio (arquivo pessoal).
Trata-se dos maiores e mais importantes eventos da cidade
no que diz respeito ao grafite. A grande diferença entre eles está na
participação das mais diversas galerias no Art Rua e apenas da
Homegrown, no Arte Core, que vende, além de gravuras, camisetas
e outros produtos com estampas feitas por grafiteiros como Bruno
Big, Marcelo Ment, Lelos e Mateu Velasco. Eventos que atraem cada
vez mais o público apreciador de grafite e tornam-se parte do
calendário da cidade.
Você pode ver, pela proporção do evento [Arte Core 2014], pelo tamanho da proporção que o grafite tomou. Eventos como estes são reconhecimento, cada vez mais acontece esse tipo de evento e mais pessoas se interessam. Você vê que o Art Rua do ano passado foi menor, este ano foi maior, com muito mais gente. Cada ano que
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passa a gente tem mais adeptos. (BR, em entrevista ao autor em 16 de outubro de 2014).
O grafiteiro Toz também reconhece a importância desses
eventos, porém, vê com precaução o efeito que eles podem causar
em gerações mais novas, que se sentem seduzidas pela fama e
reconhecimento.
Eu acho que é importante pra caramba ter esse tipo de evento. É lógico, eu acho importante, mas eu acho mais importante todo mundo pintar na rua. Pra mim tem uma coisa muito diferente da minha geração, tem muito moleque hoje em dia, a maioria pintam só em evento. Já nasceram com muros liberados e eventos. Então, vira uma coisa muito padronizada. Eu acho muito fácil. E acho que o prazer de você pintar na rua, desbravar os muros, você conseguir ter essa conquista é muito maneiro. Você sente o verdadeiro sentido de atuar na rua e esses eventos eu tenho só um pouco de medo disso, de incentivar muito os moleques a aparecerem, porque bem ou mal, você tem o assédio das pessoas, neguinho fica famoso... Tem tudo o que vem com a fama e com o reconhecimento (Toz, em entrevista ao autor em 15 de outubro de 2014).
A atração e a sedução que o grafite, enquanto arte ou
produto, exerce sobre as gerações mais novas são vistas com
cuidado pelo grafiteiro BR. De acordo com ele, os novos grafiteiros
não têm interesse em pintar nas ruas, mas apenas levar a estética e
a aparência da prática para galerias de arte ou para estampas em
produtos. Interessante notar que BR assume uma parcela de culpa,
juntamente com outros grafiteiros de sua geração, por
comercializar o grafite.
A gente faz grafite na rua de graça, de verdade, continua fazendo até hoje, independente de estar fazendo trabalho (...). O cenário do Rio é meio preocupante, porque pouca gente pinta na rua, muita gente está preocupada em expor em galeria e fazer trabalho comercial. Isso pode ser um pouco culpa nossa, mas a gente nunca
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deixou de pintar na rua. Hoje em dia tem pessoas que fazem três grafites, posta no Instagram e já está falando que pinta tela, que está fazendo trabalho comercial e esquece um pouco da essência do que é o grafite de verdade (...). Galera que está fazendo grafite não está tão esforçada, não está tão interessada em crescer. Está mais querendo aparecer do que querer desenvolver um bom trabalho (BR, em entrevista ao autor em 16 de outubro de 2014).
A grafiteira Panmela Castro faz coro às opiniões de BR, no
que diz respeito a uma espécie de glamourização do grafite,
admitindo também sua mea-culpa. Segundo ela, os grafiteiros já
não pintam mais como antigamente nas ruas da cidade, onde a
força do grafite residia na ousadia dos próprios grafiteiros que
enfrentavam, entre outras coisas, dificuldades logísticas para a
realização de seus trabalhos.
Hoje em dia que o grafite se profissionalizou, a gente ficou cheio de frescura. Então tem que ter o melhor material, não dá nem mais pra ir de ônibus... tem que ter todo o material, aí tem que ter a estrutura pra levar o material dentro do carro, quer o melhor muro da cidade: é tudo diferente! Não vale mais a pena sair de casa para fazer o tipo de grafite que se fazia antigamente, porque não tem mais aquela cultura de antes (...). Hoje em dia não, você faz o grafite lá na rua, alguém posta lá no Instagram, no Instagrafite ou então no Streetartrio e amanhã ninguém lembra mais, uns comentam, tem as outras pessoas... falta alguma coisa (...)! Falta o grafite pelo grafite, hoje em dia o grafiteiro tem um objetivo comercial (Panmela Castro, em entrevista ao autor em 15 de outubro de 2014).
Para o grafiteiro Toz, um aspecto negativo referente aos
eventos como o Art Rua e o Arte Core é que eles parecem
preocupar-se somente com a mídia e, consequentemente, com o
comércio gerado por eles, não se interessando em deixar um legado
para a cidade. Dentro de uma concepção mais ampla, de acordo
com o grafiteiro, o grafite poderia proporcionar, não só àqueles
diretamente envolvidos em sua prática, mas à população de modo
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geral, maiores benefícios do que simplesmente exposições
temporárias.
Falta nesses eventos, de modo geral, isso é uma crítica pessoal minha, incentivar e deixar um legado na cidade. Não adianta chegar aqui e transformar isso num circo de arte contemporânea, enquanto na cidade, a gente que pinta na rua precisa de estrutura e não tem. Tem um monte de lateral de prédio, um monte de coisa que poderia estar sendo pintada, viadutos incríveis e que neguinho está pintando com tinta anti-pichação. Então, acho que está faltando essa visão de um modo geral (Toz, em entrevista ao autor em 15 de outubro de 2014).
A crítica de Toz é indiretamente rebatida por André Bretas
em entrevista à Rádio MEC, por ocasião da quinta edição do Art Rua.
De acordo como o marchand e produtor, o Instituto RUA, do qual
ele está à frente, promove desde 2010 intervenções na região
portuária do Rio de Janeiro, com objetivos de recuperação de áreas
urbanas deterioradas.
A gente trabalha desde 2010 aqui na região portuária, a gente não desenvolve só na época do Art Rua, mas sim o ano inteiro a gente desenvolve projeto de revitalização urbana, que vão desde a entrada do caju até a praça [Mauá] que foi inaugurada na frente do Museu do Amanhã. Então, são diversos painéis aqui na região portuária. A gente criou também o distrito criativo do porto. Estamos trabalhando nesse novo bairro que vai nascer aqui após as Olimpíadas (André Bretas, em entrevista à Rádio MEC FM, em 12 de setembro de 2015).
Nomeado de Gentileza Urbana, em homenagem à lendária
figura do Profeta Gentileza, o projeto iniciado no primeiro semestre
de 2015 pretende revitalizar toda a região entre a avenida Brasil e
o terminal rodoviário Novo Rio, com painéis de grafites e pinturas de
artistas diversos. Uma área que não foi escolhida por acaso, como
afirma o próprio marchand: o interesse se deu tanto pela questão
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da revitalização como também pela aposta de que, com as obras do
Porto Maravilha, a região ganharia destaque e notoriedade23.
Figura 21 - Projeto Gentileza Urbana: pinturas para recuperar áreas ainda deterioradas na região portuária do Rio de Janeiro (fonte www.institutorua.org.br).
Conhecida como uma das primeiras áreas tomadas pela
prática do grafite e da pichação no Rio de Janeiro, ainda no final da
década de 1990 (Moren, 2012), a região portuária já havia sido
palco de um outro grande painel em 2013. Oito grafiteiros,
liderados pelo próprio Toz, pintaram a lateral da B2W, a convite e
patrocínio da própria holding, da qual fazem parte empresas como
Americanas.com, Shoptime e Submarino. Com cerca de 30 metros
de altura e 70 metros de largura, o painel totaliza mais de 2.100
metros quadrados de área pintada. Dividindo-a em diferentes
espaços, os grafiteiros fizeram registros que remetiam à alegria e à
paz de espírito. 23 Disponível em <http://oglobo.globo.com/rio/design-rio/projeto-usa-grafites-desenhos-para-recuperar-areas-deterioradas-da-zona-portuaria-15921675 > acesso em 5 de janeiro de 2016.
116
Figura 22 – Mural de grafite pintado na lateral de um prédio, na zona portuária do Rio de Janeiro (fonte www.institutorua.org.br).
As laterais de prédios, geralmente esquecidas e sem
importância na arquitetura, parecem ser hoje um dos espaços mais
cobiçados pelos grafiteiros. Talvez pelo tamanho e proporção com
que possibilitam a criação de imponentes painéis e o consequente
destaque que ganham na paisagem urbana. Como afirma Toz, o
critério para escolha dos locais de seus grafites é a possibilidade de
grande visualização que eles podem alcançar. Assim, lugares de
grande movimento e com maiores fluxos de circulação de indivíduos
têm sua preferência.
Hoje em dia o que eu quero mais é pintar legalmente nas laterais de prédios. Acho que isso é que está faltando aqui no Rio e acho que era minha ambição, eu acho que eu não precisaria sair do Rio para pintar laterais, entendeu? Pra mim, o que está faltando é isso: eu quero que o Rio de Janeiro venha a ser um lugar que tenha muitas laterais e grandes espaços pintados. Quero fazer parte desse movimento, quero estar vivo e fazendo (Toz, em entrevista ao autor em 15 de outubro de 2014).
Mais que um desejo de revitalização urbana, ao qual são
comumente ligadas tais pinturas, a fala do grafiteiro demonstra seu
interesse em painéis cada vez maiores, com mais destaque e,
consequentemente, maior público. A pintura de um painel como
117
esse é um processo oneroso, um projeto que, direta ou
indiretamente, precisa de patrocínio para sua realização, tanto pela
quantidade de tinta e latas de spray utilizadas, como pelos
equipamentos de segurança necessários à sua criação, que vão
desde andaimes e gruas a material para prática de escalada.
Por outro lado, ao fomentar ações como essas, seja a pintura
de um painel ou a lateral de um prédio, uma empresa associa seu
nome, sua marca e sobretudo sua imagem a um movimento
diretamente ligado à juventude, dinâmico, que está em voga e tem
um público cada vez maior. Além disso, desempenha um papel
cultural e social de revitalização e preservação da cidade e do afeto
para seus cidadãos. O grafite torna-se, assim, uma ferramenta no
composto de marketing das organizações, uma ação comercial com
claros objetivos cenográficos e decorativos.
Nesse contexto, o aumento do número de painéis de grafite
patrocinados na região portuária nos últimos anos, desde a
implementação do projeto Porto Maravilha em 2010, parece estar
diretamente relacionado ao processo de gentrificação (Smith,
2007) pelo qual a área vem passando. Gentrificação, termo criado
em 1964 pela socióloga Ruth Glass, diz respeito, de forma crítica,
às transformações ocorridas em determinadas áreas urbanas, onde
processos de revitalização imobiliária de regiões degradadas atraem
moradores de classe média, expulsando assim os antigos habitantes
do local. Uma série de mudanças físicas, materiais, econômicas,
sociais e culturais que requalificam centros e espaços deteriorados,
de forma a recompor o ambiente a partir de investimentos públicos
ou privados.
118
Inicialmente, em sua acepção urbanística, o escopo de uso do termo tendia a focalizar o mercado residencial e a reabilitação ou recuperação de imóveis dilapidados. Mais recentemente, sofreu nova inflexão, passando a designar uma nova forma de política urbana neoliberal (Portinari, 2015, p.6).
O projeto do Porto Maravilha visa à revitalização da região
portuária do Rio de Janeiro, numa área que abrange cinco milhões
de metros quadrados nos bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo,
além das comunidades dos morros da Conceição e Providência. As
obras iniciadas em 2012, realizadas por meio de Parceria Público-
Privada 24 , vêm transformando a região com ações como a
destruição do viaduto da Perimetral, a reestruturação das vias e
espaços públicos, a implementação de um novo sistema de
transporte público (VLT), a construção de dois museus (Museu do
Amanhã e Museu de Arte do Rio), um aquário e, sobretudo, o
incentivo à construção de mais unidades residenciais e comerciais.
Entre os benefícios citados no projeto inicial (Gaffney, 2013),
como uma nova experiência de gestão urbana, pode–se destacar
ainda: a construção de hotéis; edifícios luxuosos; sedes de
empresas telefônicas, financeiras e de petróleo; investimentos em
construções Retrofit; aumento da população residencial de 22.000,
à época, para até 100.000 em cerca de 10 anos, junto à melhoria
das condições socioeconômicas da região.
No Porto Maravilha, empresas privadas de construção irão realizar uma reconfiguração espacial de cinco milhões de metros quadrados em parcelas de terra em localização central. A área será
24 Acordo firmado entre a Administração Pública e pessoa do setor privado, com o objetivo de implantação ou gestão de serviços públicos, com eventual execução de obras ou fornecimento de bens, mediante financiamento do contratado, contraprestação pecuniária do Poder Público e compartilhamento dos riscos e ganhos entre os pactuantes (Carvalho Filho, 2009).
119
administrada pela iniciativa privada. Enquanto esses processos estão ainda em fase inicial, uma vez que o projeto do Porto Maravilha tiver sido iniciado, o acesso a serviços irá ocorrer através de mecanismos do mercado, enquanto as novas torres residenciais e distritos de consumo irão criar territórios globalizados de consumo em bairros historicamente pobres, porém com ricas tradições culturais (Gaffney, 2013, p.11).
A partir de 1960, quando a Capital Federal foi transferida do
Rio de Janeiro para Brasília, a região portuária passou a sofrer a
redução do número de moradores, bem como de investimentos
públicos entrando em ostracismo econômico (Gaffney, 2013). Uma
área com diversos prédios abandonados, anteriormente utilizados
pelo Governo Federal, e onde os índices de pobreza estão acima da
média do município, atraindo o interesse imobiliário de construtoras,
a fim de transformá-la. A exemplo de outras experiências ao redor
do mundo, como as Docas de Londres, o Porto do Sul de
Manhattan, Puerto Madero em Buenos Aires e o bairro de
Barceloneta, em Barcelona.
No entanto, os processos de gentrificação não provocam
apenas a valorização imobiliária, mas sobretudo o aumento do custo
de vida da região, seja pelos preços dos aluguéis, impostos ou
serviços. Fato que provoca a retirada de antigos moradores para
localidades financeiramente viáveis aos seus padrões e a chegada
de uma nova classe economicamente superior. Dessa maneira, a
gentrificação modifica a dinâmica e a composição das regiões
afetadas, intensificando as divisões e desigualdades socioespaciais
do espaço urbano. Um projeto que segue a tendência global de
transformar áreas tradicionalmente pertencentes a classes
trabalhadoras em espaços de consumo (Barbassa, 2002).
Seguindo a lógica capitalista, os processos de revitalização de
áreas urbanas criam novos espaços, ao mesmo tempo em que
120
destroem outros espaços preexistentes (Silva, 2012). A serviço do
capital, tais ações têm a capacidade de criar uma nova imagem,
positiva e atrativa, de uma área anteriormente degradada e
decadente. Para tanto, tais processos substituem prédios antigos e
desvalorizados por construções modernas e maiores, o que acarreta
a mudança na maneira como se utiliza o espaço urbano, visto que a
criação de novos serviços, ligados diretamente a setores dinâmicos
da economia, elimina pequenos negócios, características tradicionais
e, sobretudo, a população (Maricato, 2008, p,126). Um processo
de requalificação e renovação que vem provocando profundas
alterações na região, com o intuito de conferir novas
funcionalidades e espaços, diferentes daqueles preexistentes, além
da substituição de serviços já existentes por outros mais modernos
(Duarte, 2005).
Os processos de revitalização de zonas portuárias constituem parte de um processo mais amplo de revitalização do capital. A busca por novos lugares em condições promissoras de rentabilidade e capazes de manter a lucratividade do capital determina as ações de renovação, revitalização e modernização do espaço urbano. As revitalizações são usadas pelas frações da burguesia no poder como estratégias para adequar a cidade às necessidades do capital (Silva, 2012, p. 61).
Assim, o grafite colabora com as transformações sociais que
vêm ocorrendo na zona portuária do Rio de Janeiro. As laterais de
prédios esquecidas, os muros e paredes denegridos pelo tempo,
pela má conservação e pela pichação são substituídos por coloridos
painéis com a função de disfarçar a aparência incômoda causada
pelo abandono e vandalismo. Os painéis tornam-se, assim, murais
decorativos que se adequam aos espaços que ainda não passaram
pela revitalização, de maneira a integrá-los à nova paisagem urbana
121
da região portuária, de forma relativamente barata, se comparada
aos custos de reforma, por exemplo. Nesse contexto, painéis
pintados por grafiteiros famosos colaboram na valorização do bairro
por meio de cores, formas e personagens e, porque não, de seus
próprios nomes. Elementos que substituem os antigos espaços sem
atrativos visuais por espaços coloridos e visualmente mais
agradáveis.
Dessa forma, pode-se perguntar se o grafite torna-se, ele
mesmo, um elemento gentrificado a partir do momento em que,
cooptado pelo mercado, passa a fazer parte do sistema capitalista.
Ousa-se dizer aqui que tal processo aproxima-se daquilo que
Schulman (Apud Portinari, 2015) descreve como gentrificação do
espírito, conceito além do sentido urbanístico que o termo
representa e que diz respeito a uma espécie de pasteurização das
complexidades e das diferenças e sua gradual substituição por um
tipo de institucionalização. Uma transformação que afeta indivíduos
que não tinham direito, representação, poder ou consciência da
realidade em um processo interno de alienação artística e social. Um
processo intelectual, cultural e político, que substitui as
características transgressoras e contestadoras do grafite pelo
reconhecimento, pela fama e, sobretudo, pela remuneração.
Enquanto os grafiteiros das décadas de 1990 e início dos
anos 2000 eram considerados sujeitos transgressores e marginais,
que tomavam posse, sem autorização, dos muros e paredes da
cidade, hoje eles são considerados profissionais. Transitam
livremente, com autonomia e respeito, entre artistas e designers,
vendem quadros e objetos, criam produtos e estampas para o
mercado e são contratados para pintura de painéis tanto em
122
espaços urbanos, como em lojas e ambientes particulares de casas
e apartamentos.
Hoje encontramos no mercado uma série de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool... E a lista não tem fim: o que dizer do sexo virtual, o sexo sem sexo; da doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado, é claro), uma guerra sem guerra; da redefinição contemporânea da política como a arte da administração competente, ou seja, a política sem política; ou mesmo do multiculturalismo tolerante de nossos dias, a experiência do Outro sem sua Alteridade (…). (Zizek Apud Portinari, 2015, p.14).