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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

HELDER FARAGO

XAMANISMO E PODER ENTRE OS GRUPOS DE LÍNGUA PANO

Rio de Janeiro

2005

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Helder Farago

XAMANISMO E PODER ENTRE OS GRUPOS DE LÍNGUA PANO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação do Professor Doutor Eduardo Viveiros de Castro.

Rio de Janeiro

2005

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AGRADECIMENTOS

À CAPES.

Aos colegas etnólogos, Pedro Leite Lopes, Pedro Cesarino, Paulo Maia, Elena Welper,

Fernanda, Marina, Luciana, Renata e às minhas amigas historiadoras Karina e Beth.

Ao Profº Marcio Goldman do PPGAS/MN-UFRJ.

Ao meu orientador Eduardo Viveiros de Castro.

À minha mãe por tudo.

A meu pai in memorian.

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RESUMO

FARAGO, Helder. Xamanismo e Poder entre os Grupos de Língua Pano.

Orientador: Eduardo Viveiros de Castro. UFRJ/Museu Nacional/PPGAS.2005.Diss.

Este estudo analisa as relações entre xamanismo e poder político à luz da

“Nova Antropologia Política” de Pierre Clastres. Para tal, procedemos a um balanço

bibliográfico, elegendo num esforço de síntese, recentes etnografias representativas

dos grupos de língua Pano, onde serão levantadas questões relativas ao tema. Entre

estas, constitui-se num dos pontos centrais à dissertação, a tipologia “xamanismo

vertical/horizontal” de HUGH-JONES aplicada aos dados da etnografia Pano.

O trabalho privilegia ainda as questões relativas à identidade/alteridade dos

grupos, à construção da noção de pessoa nativa e ao perspectivismo ameríndio de

Viveiros de Castro. Noções estas que implicam na consideração de um “complexo

xamânico” inerente a uma “cosmopolítica”.

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ABSTRACT

FARAGO, Helder. Xamanismo e Poder entre os Grupos de Língua Pano.

Orientador: Eduardo Viveiros de Castro. UFRJ/Museu Nacional/PPGAS.2005.Diss.

This study analyses the relations between shamanism and political power,

influenced by the “New Political Anthropology” of Pierre Clastres. To this, we

proceed with a bibliographic study, electing in a endeavour of synthesis recently

ethnographies of Panoan language groups, wherein we make up questions about the

subject.

One of the central points is the HUGH-JONES`s typology of

“Vertical/Horizontal Shamanism” applied on Panoan ethnographic basis.

This work pay attention too on questions about identity/alterity of the

groups, the construction of the native person and the amerindian perspectivism of

Viveiros de Castro. These subjects involves a consideration by a “Shamanic Complex”

inherent a “Cosmopolitics”.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 01

Objetivo da dissertação ................................................................................................ 01

Etnologia, “Xamanismo e Poder” ................................................................................ 02

Instrumental teórico-metodológico: Perspectivismo e Tipologia .................................06

Caracterização geral dos grupos de língua Pano ................................................. 10

Os “Yaminahua” por Graham E. Townsley (1988) .............................................. 15

Os “Marubo” por Delvair Montagner Melatti (1985) ........................................... 16

Os “Kaxinawa” por Elsje Maria Lagrou (1998) .................................................... 16

Os “Sharanahua” por Janet Siskind (1975) ............................................................. 18

Os “Matis” por Philippe Erikson (1990) ................................................................ 19

Os “Yaminawa” por Oscar Calavia Saez (1994) ................................................ 20

Os “Katukina” Pano por Edilene Coffaci de Lima (2000) ........................................ 21

Os “Yawanawa” por Laura Pérez Gil (1999) ............................................................ 23

Os “Shipibo-Conibo” por Peter G. Roe (1982) ......................................................... 24

Conclusão dos resumos etnográficos ............................................................................26

CAPÍTULO I – POLÍTICA, FRAGMENTAÇÃO E

DUALISMO PANO ........................................................................... 28

Introdução .................................................................................................................... 28

1.1 Dualismo, Identidade/Alteridade: o caso Kashinawa Peruano .............................. 28

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1.2 Conceito “Nawa” ................................................................................................... 31

1.3 Guerra e Festa: política Yawanawa ........................................................................ 33

Conclusão do Capítulo ................................................................................................. 35

CAPÍTULO II – CHEFE E XAMÃ .............................................................................37

Introdução .....................................................................................................................37

2.1 Política: da Caça ao Espírito ...................................................................................38

Conclusão do Capítulo .................................................................................................41

CAPÍTULO III – “COSMO” – POLÍTICA DO CORPO ............................................ 44

Introdução .................................................................................................................... 44

3.1 Construindo “pessoas verdadeiras”: os “Huni kuin” ............................................. 47

3.2 Fábrica de Corpos/Pessoa: ritual “Nixpo Pima” .................................................... 50

3.3 A Fábrica Contínua de Corpos/Pessoas: o ritual “Kachanaua” ............................. 52

3.4 Cosmologia Pano: o conceito “Yuxin” .................................................................. 53

3.5 Usos do Corpo: os “Kene Kuin” ............................................................................ 57

Conclusão do Capítulo ................................................................................................. 59

CAPÍTULO IV – SABER/PODER: XAMÃS, REZADORES, ERVATEIROS OU

FEITICEIROS..................................................................................... 61

Introdução .................................................................................................................... 61

4.1 A Carreira Xamânica: iniciação e aprendizado.......................................................63

4.2 Rezadores/Cantadores/Ervateiros/Feiticeiros ........................................................67

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4.3 “Xamanismo sem Xamã?” Procure pelo feiticeiro ................................................ 72

Conclusão do Capítulo ................................................................................................. 74

CONCLUSÃO ............................................................................................................. 77

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 81

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INTRODUÇÃO

Objetivo da dissertação

Pretendemos na presente dissertação analisar as relações entre o xamanismo e o

poder político à luz da “nova antropologia política” de Pierre Clastres conforme definida por

Abensour et ali (Abensour, 1987). Segundo este último, sociedades “sem Estado”, depois de

Clastres, não significam mais sociedades faltosas, mas sim sociedades “contra o Estado”.

A partir desta perspectiva, as sociedades “primitivas” das terras baixas sul-

americanas não seriam sem política, mas, ao contrário, haveria nelas a recusa a uma

configuração específica do político como centralização de um poder autonomizado e

destacado do “socius”.

Dadas as condições endógenas dos mecanismos contra-Estado das sociedades

“primitivas”, cabe perguntarmos inicialmente por que o xamanismo, em muitos casos, nas

terras baixas sul-americanas, não se torna uma teocracia? Se estas sociedades tendem a afastar

para fora do “socius” a autoridade de tipo “comando-obediência” (Clastres, P., 2003), o que

dizer então sobre o xamã, figura cujo poder consiste, entre outras coisas, em lidar com a cura

ou a morte? Seria o xamã o “locus” de um poder centralizado (místico/religioso), ou seria o

complexo xamânico, ele próprio, político e conjurante do Estado?

Ao considerarmos estas questões, nos deparamos necessariamente com o

problema da distinção ocidental entre espaço religioso e espaço político, ou melhor, com o

problema da dicotomia sagrado/profano. Esta condição dicotômica se configura como um

problema, uma vez que parece não fazer sentido quando o objetivo é analisar as relações

constitutivas do poder em outras sociedades distintas das sociedades ocidentais.

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O antropólogo Jean-Pierre Chaumeil em sua etnografia (1983), abordando os

Yagua, grupo de origem caribenha disseminado na floresta amazônica do leste Peruano, se

propõe a investigar o xamanismo pelo viés verdadeiramente antropológico: considerar o

xamanismo enquanto sistema de representações articulando-o a outras facetas da vida social e

descartar as visões individualistas e psicologizantes do fenômeno.

Por este viés, Chaumeil critica os estudos baseados em estereótipos e vê no

xamanismo Yagua um conjunto de idéias e práticas sobre o mundo e sua reprodução,

funcionando, no plano sociológico, como uma verdadeira instituição, devendo ser estudado

em sua dupla dimensão: religiosa e social. O antropólogo destaca que o xamanismo não se

reduz a uma simples prática, às técnicas ou a um comportamento, mas constitui-se num

sistema de pensamento e ações que se refinam com a experiência dos envolvidos.

Constata-se entre os Yagua a dupla imagem do xamã, na qual a possibilidade de

acúmulo de poder não se coloca, pois apesar de “invencível e imortal em sua dimensão

simbólica” (Chaumeil, 1983:63), ele é precário em sua dimensão social. Esta é a marca de

toda vida xamânica que, segundo Chaumeil, impede a apropriação definitiva da esfera do

político e o controle absoluto sobre os homens pelo xamã.1

Seguindo esta vertente que reivindica para o xamanismo o estatuto de um

complexo xamânico, ressaltamos o trabalho de Langdon (1996) e colaboradores, de onde

destacamos o artigo de Dominique Gallois (1996:39-74) sobre o xamanismo Waiãpi. Sua

abordagem privilegia tanto os aspectos individuais da pessoa humana, quanto os aspectos

referentes à organização das relações entre os diferentes níveis do cosmo, através do conceito

nativo de “i-paie” (“ele-xamã”). “Aquele que tem pajé” (“i-paie”) não é apenas o xamã

(humano), mas também animais, plantas e objetos que constituem o universo Waiãpi. A noção

1 Preferencialmente entre os Yagua a carreira religiosa será destinada ao primogênito e a política ao mais jovem, separando-se as esferas de atuação, além do que Chaumeil (1983) atesta o notável risco de agressões a que o xamã está exposto por parte de parentes de uma vítima de doença ou de um rival, daí seu ambivalente estatuto.

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de controle e posse de “i-paie”, também determina a hierarquia do poder xamanístico pelos

Waiãpi, inclusive permite que um xamã poderoso receba uma boa remuneração pela sua

intervenção eficaz. Sendo assim, o xamã Waiãpi, altamente prestigiado entre os seus, é,

entretanto, controlado socialmente pela comunidade, pois a manutenção de seu prestígio

depende do sucesso de suas operações e da moderação dos honorários solicitados.

Vemos que é sobre este prestígio que os xamãs poderão sustentar o poder

propriamente político de aglutinação de parceiros em suas aldeias apoiando os líderes de seu

grupo de parentesco. Porém, dada a natureza das atividades dos pajés Waiãpi, Gallois

considera improvável que consigam acumular força xamanística e poder político, duas formas

de prestígio irredutíveis (ibid.:60). Para nós, um aspecto crucial do xamanismo e, em

particular, do xamanismo Waiãpi, são seus dispositivos relacionais que impedem a

centralização de poder por um único indivíduo ou por um único grupo destacado do socius.

Segundo os argumentos de Gallois, o poder separado do socius é, para os nativos,

algo selvagem e, portanto, considerado a-social, fora do campo político. Citando Chaumeil

em nota (ibid: 60), a autora destaca que a esfera xamânica faz a mediação com este poder

selvagem e exterior à sociedade. Teríamos aí os indícios de uma teoria nativa sobre o poder

“político”? Deixemos a questão por ora em aberto.

Descola (1988), em seu artigo anterior aos trabalhos publicados por Langdon

(op.cit.), argumenta que haveria um poder menos abstrato do que os supostos mecanismos de

negação da autoridade resultante do modelo clastreano da chefia impotente e este poder seria

creditado aos xamãs. Ressalta ainda o autor que este modelo de chefe, baseado no modelo de

R. Lowie2, existiria somente em situações e momentos específicos nas baixas terras sul-

2 Clastres (2003: 43-63), para pensar o “paradoxo do chefe sem poder”, ressalta um modelo de chefe indígena

pacificador, generoso, bom orador e geralmente poligínico. Sendo que, as últimas três características definiriam

o conjunto das prestações e contraprestações pelo qual se mantém o equilíbrio entre a estrutura social e a

instituição política.

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americanas e que, portanto, Clastres havia se precipitado em não perceber as diferenças

internas dos grupos locais. Descola (op.cit.) reitera que mesmo Lowie já havia percebido a

conjunção do poder religioso e político ocorrendo em vários casos no continente e

engendrando uma notável consolidação. Citando Chaumeil, Descola (ibid.: 825), inclina-se a

pensar que a essência mesma do poder político é religiosa e que talvez esta seja a única forma

de poder numa sociedade desprovida de um órgão político efetivo. Sendo assim, os xamãs

seriam, nas “acéfalas” sociedades sul-americanas, os únicos a exercerem sobre outros um

poder especificamente diferente das relações de autoridade definidas pelos vínculos de

parentesco.

Santos Granero (1986), em seu artigo baseado nos trabalhos de Joanna Overing e

na sua própria experiência entre os Piaroa do baixo Orinoco, tenta demonstrar que

determinadas configurações do poder político exercido por xamãs estão imersas no processo

econômico. Este fato, afirma o autor, contradiz as assertivas de Clastres de que a chefia

ameríndia é caracterizada pela ausência de poder político e ausência de controle sobre a

atividade econômica (ibid: 657).

Pelo referido artigo, os “ruwatu” piaroa seriam poderosos xamãs que usam seu

poder de cura, proteção mística e atividades cerimoniais em favor de seus seguidores (grupo

local), além de possuírem o controle territorial. Desta maneira, estes “xamãs-chefes” seriam

os partícipes diretos do processo produtivo e reprodutivo através do monopólio sobre as

técnicas rituais de “life-giving”. Os xamãs seriam os detentores exclusivos dos “meios

místicos de reprodução” (ibid.: 657). Santos Granero, corroborando a assertiva do filósofo

francês Michel Foucault de que Saber sempre pressupõe e constitui relações de Poder,

argumenta, contudo, que para um xamã ser considerado líder, seu conhecimento ritual deve

ser considerado pelos atores em questão como um elemento essencial no processo reprodutivo

tanto da sociedade quanto do cosmos (Santos Granero,1986: 659).

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Erikson (1988), em resposta ao mencionado artigo de Santos Granero, critica este

último, argumentando que sua análise da percepção nativa do poder, adequa-se bem para os

Piaroa, mas não para os grupos Pano, pelo menos, não para os Cashinahua. O ponto principal

do argumento de Erikson se refere ao fato de que, para alguns ameríndios, o conceito de

“meios místicos de reprodução” é irrelevante na medida em que o monopólio do

conhecimento ritual não leva à centralização política.

A ideologia e as instituições cashinawa funcionariam de maneira complementar, o

que impediria o monopólio do poder. Exemplificando seu argumento, Erikson lembra que o

dualismo é o grande princípio organizacional da sociedade cashinahua e em conseqüência

disto, existiria aí uma clara divisão entre os papéis do líder (xanen-ibu) e do xamã (huni

mukaya). Para estes Pano, xamãs e líderes devem pertencer a metades opostas e suas funções

não se sobrepõem (Erikson, 1988: 164).

Parece-nos também, que ao descrever o xamanismo piaroa, Santos Granero nos

informa sobre o surgimento de um Estado, religioso/sacerdotal neste caso. Porém, este

surgimento não anula os argumentos de Clastres sobre os mecanismos contra-Estado das

sociedades ameríndias, apenas atesta que, por contingências etno-históricas, eles podem

falhar.

Instrumental teórico-metodológico: Perspectivismo e Tipologia

Pela discussão anterior, percebemos a dificuldade de tratar o tema do “xamanismo

e poder”, sem discutirmos a dicotomia “esfera política” versus “esfera religiosa”. Há no

pensamento ocidental, de modo geral, um costume de reificar a noção de “Política”, e

fundamentar sua origem na Pólis ateniense, espaço dessacralizado de agência ou espaço do

“indivíduo-no-mundo”, conforme define Jean-Pierre Vernant (1987:25-44).

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Tal noção de política embutida, e muitas vezes não problematizada, nas mais

variadas etnografias, induz-nos facilmente a uma armadilha etnocêntrica. Clastres (2003)

colocou as sociedades indígenas no patamar de sociedades plenas, pois são políticas e o que é

próprio da política delas é terem mecanismos contra-Estado. Considerar isto implica um

deslocamento do significado de espaço político. Se considerarmos o pensamento nativo por

meio da noção de “perspectivismo e multinaturalismo ameríndio” (Viveiros de Castro, 2000),

veremos que a dicotomia ocidental entre espaço político e espaço sagrado, bem como a

separação entre humanos e não-huamnos (animais ou espíritos) se esvai.

Viveiros de Castro (2002a) postula que o “perspectivismo ameríndio”, noção

segundo a qual a condição de humanidade está sempre em disputa por todos os seres do

universo, procede segundo o princípio de que o ponto de vista cria o sujeito. É sujeito aquele

que se encontrar ativado ou agenciado pelo ponto de vista: espíritos, animais, objetos,

fenômenos (ibid.:373). Se os ameríndios dispõem de uma ontologia segundo a qual o espaço

social é preenchido por sujeitos humanos e não-humanos, sua sociologia será uma

cosmosociologia (Viveiros de Castro,1986). No mesmo sentido, podemos considerar a

atuação xamânica como uma “cosmopolítica”. Termo híbrido, a cosmopolítica pode ser mais

bem entendida à luz do “perspectivismo” ao se definir o xamanismo como:

“(...) a capacidade manifestada por certos humanos de cruzar as barreiras corporais e

adotar a perspectiva de subjetividades não-humanas. (...), os xamãs ocupam o papel de

interlocutores ativos no diálogo cósmico. Eles são como diplomatas que tomam a seu

cargo as relações interespécies, operando em uma arena cosmopolítica onde se defrontam

as diferentes categorias socionaturais.”(Viveiros de Castro, 2002a: 468, grifo meu).

Ainda para Viveiros de Castro, o xamanismo ameríndio é um modo de agir que

implica um modo de conhecer, já que conhecer aqui é “tomar o ponto de vista daquilo que

deve ser conhecido” (2002a: 358). Não é para menos que, seguindo esta lógica, o papel do

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chefe guerreiro não se diferencie muito do papel do xamã, pois “matadores e xamãs são

comutadores ou condutores de perspectivas” (ibid.:468). E se o xamanismo é a continuação da

guerra por outros meios, e guerra em Clastres (1982,2003) é política e antecede a aliança, a

questão passa a ser menos de violência e mais de comunicação à luz do perspectivismo.

Guerreiros são vasos comunicantes entre o “eu” e o “outro” intra-humanos e xamãs entre o

“eu” e o “outro” interespécies (Viveiros de Castro, 2002a: 468-469).

Considerando que Clastres (2003: 43-63) havia formulado uma tipologia do chefe

ameríndio (generoso, bom orador, poligínico) para estudar e explicitar o funcionamento dos

mecanismos contra-Estado, percebemos a necessidade de confrontar este tipo (formulado por

Clastres) com exemplos etnográficos e avaliarmos o alcance desta tipificação. Quando e onde

o xamã segue a tendência destas sociedades de evitar toda autoridade com base na coerção?

Uma outra tipologia do xamanismo foi proposta por Hugh-Jones (1994: 32-73),

que ao estudar o xamanismo Tukano e Arawak do noroeste amazônico, distingue o

xamanismo em dois tipos ideais: o xamanismo de tipo vertical versus o xamanismo de tipo

horizontal. O primeiro teria como componente predominante um conhecimento esotérico

transmitido dentro de uma pequena elite, enquanto o segundo faria uma distribuição do saber

mais “democrática” (ibid.: 33). Ainda, descreve que o tipo horizontal está associado às

sociedades mais igualitárias das florestas, orientadas para a guerra e caça, com o poder secular

freqüentemente separado do poder sagrado. Nestas sociedades, os xamãs teriam estatuto

ambíguo. Já o tipo vertical ocorreria em sociedades mais complexas e hierarquizadas, com

menos ênfase na guerra e caça, onde o poder secular e ritual seriam acumulados num pequeno

grupo de homens detentores de prestígio e de conhecimento fundado e elaborado num

dogmático cânone mitológico.

Hugh-Jones (1994) também lembra que em alguns casos, especialmente entre os

Bororo, os Arawak e os Tukano, o tipo horizontal pode ocorrer junto com o vertical e, por

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vezes, uma mesma pessoa combina aspectos de ambos ou pode ocorrer que o poder secular e

ritual esteja divido entre diferentes indivíduos (ibid.: 33). Em suma, adequando a tipologia de

Hugh-Jones aos termos de Clastres, teríamos o xamã horizontal “contra Estado” e o xamã

vertical “de Estado”.

Como exemplo da importância das considerações expostas anteriormente, temos o

artigo de Pedersen (2001:411-27), que imbuído das questões colocadas pelo perspectivismo

ameríndio e pela tipologia xamã vertical/horizontal da Amazônia, procura reexaminar as

teorias do animismo e totemismo com os dados do xamanismo e organização política na

região Siberiana.

Pedersen, através de sua experiência de campo no Norte da Ásia, propõe para seu

estudo local fazer uma antropologia comparada, dividindo a região Siberiana em áreas geo-

culturalmente definidas, nas quais as ontologias indígenas podem ser descritas. Nas regiões

mais setentrionais da Sibéria, segundo o autor, teríamos o animismo em seu “aspecto mais

forte” (perspectivista) concomitante ao xamanismo horizontal, enquanto que nas regiões

meridionais prevaleceria o totemismo com o xamanismo vertical. Recategorizando o

perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro como “animismo em seu aspecto forte”3, o

autor atesta que o reino do social não termina com os seres humanos nas diferentes ontologias

nativas da Sibéria. Pedersen formula uma grade composta de animismo perspectivista e

xamanismo horizontal de um lado e totemismo e xamanismo vertical de outro. Ou, em outros

termos, poderíamos dizer que nas áreas setentrionais (animista/horizontal) prevalecem

formações “contra-Estado” e nas áreas meridionais (totêmica/vertical) formações “de Estado”.

Em seu artigo “Xamanismo e Sacrifício”, Viveiros de Castro (2002a: 457-472),

refletindo sobre o citado artigo de Pedersen conclui que o xamã horizontal pan-amazônico

3 Viveiros De Castro (2002a) em seu “Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena” (:345-399), repensando as diferentes ontologias nativas (animista, totemista e naturalista), define o animismo como: “(...) uma ontologia que postula o caráter social das relações entre as séries humana e não-humana: o intervalo entre natureza e sociedade é ele próprio social.” (:364)

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impediria a coincidência entre poder político e potência cósmica e que, por outro lado, a

instituição de um sistema sacrificial de tipo clássico significaria a captura do xamanismo pelo

Estado (grifo meu). Consideramos portanto relevante, como fio condutor de nosso trabalho,

abordar a relação dos mecanismos contra-Estado/com-Estado próprios das sociedades

ameríndias e o xamanismo à luz do “perspectivismo” e da tipologia do xamanismo vertical e

horizontal conforme aqui explicitados.

Isto posto, daremos seguimento apresentando agora um breve resumo da etnologia

Pano.

Caracterização Geral dos Grupos de Língua Pano

Constituída por aproximadamente trinta mil falantes, a família etno-lingüística

Pano (nome de um de seus grupos, hoje extinto) ocupa uma área contígua, que se estende do

alto Solimões (paralelo 5ºS) até o alto Purus (paralelo 10ºS), numa região fronteiriça entre

Brasil e Peru.

Entre estes paralelos, do oeste para o leste, encontram-se grupos pano desde o

Ucayali e seus afluentes da margem esquerda (75ºW), até as cabeceiras das bacias do Javari,

Juruá e Purus (70ºW) (Erikson, P. In Carneiro da Cunha (org.), 1992:239). Saindo desta área

principal, a única concentração pano importante, localiza-se na região limítrofe entre

Rondônia e Bolívia, desde o alto rio Madeira até rio Beni, onde estão as populações Kaxarari,

Chacobo, Pacaguara e Karipuna. São grupos minoritários sul-orientais, que de acordo com o

mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju (1987) estariam situados no quadrante 64º a 67ºW e

8º a 12ºS. Para Erikson (op. cit.: 240), estes grupos representariam um pequeno resíduo, que

teria se separado da maior parte dos pano por um corredor de população Arawak. Estes

últimos, teriam feito sua intrusão na área por volta dos 700-800 d.c. (ibid.: 245).

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Há ainda outros raros bolsões pano, de pequena dimensão, resultantes de

migrações forçadas ocasionadas pelo “boom” da borracha no início do século XX e pelo

sistema de patronagem aí instituído. Assim, encontramos uma pequena comunidade mayoruna

na região de Tefé e alguns outros pano, na maior parte Shipibo, deportados para a região do

rio Madre de Dios.

Outro detalhe que nos chama atenção é a provável migração recente de alguns

grupos, que podemos notar se compararmos os mapas de Nimuendaju (op. cit.), de 1944, com

o mais recente de Erikson, no já mencionado artigo (1992: 242). Por exemplo, os Marubo que

no primeiro mapa estão alocados nas coordenadas 4ºS/73ºW (entre o alto Solimões e o rio

Javari), já no segundo mapa aparecem mais ao sul, precisamente nas coordenadas 6ºS/73ºW

(entre o alto Ituí e o alto Curuçá). Também temos uma comunidade Yaminawa, que não

consta no mapa do Nimuendaju, mas sim no de Erikson, localizada às margens do rio Iaco no

Acre (10ºS/69ºW).

Contudo, quando se considera o tamanho da extensão territorial, a região “pano”

chama atenção pela sua homogeneidade étnica excepcional, reforçada por uma expressiva

coesão lingüística e cultural. Tal homogeneidade, mesmo com a fragmentação interna destes

grupos, fez com que Erikson (1993:47), usando critérios essencialmente lingüísticos dividisse

o bloco Pano em sete subconjuntos principais, excetuando-se os separados do tronco comum,

classificados como Pano meridionais (Chacobo, Pacaguara, Karipuna, Kaxakari) (1992:240).

Seguindo de sul para norte, segundo o autor, teríamos a seguinte distribuição dos sete

subconjuntos:

– Os Shipibo – Conibo – Shetebo, ou Pano do Ucayali (população: ± 20 mil).

– Os Yaminawa (“gente do metal”) e vários outros “-mawa” (Sharanawa,

Parquenawa, Mastanawa) que Townsley batiza de “Purus Panoans” (população: ± 1700).

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– Os Amahuaca, lingüisticamente diferentes dos Yaminawa, mas que mantêm com

eles estreitas relações (população: ± 1000).

– Os Kaxinawa (no Peru, Cashinahua). Apresentam características de uma “etnia”,

em termos políticos, matrimoniais e territoriais. Etnograficamente são os mais bem

conhecidos e para muitos, seriam o paradigma de uma sociedade pano típica (população: ±

2500).

– Os Cashibo. Dividem-se em vários grupos, dos quais o mais conhecido é o

grupo Catacaibo (população: ± 1200).

– Pano medianos: conglomerado formado, na região do alto Tapiche e alto

Ipixuna, pelos Poyanawa, Capanawa, Katukina (Waninawa, Shanenawa), Yawanawa, Remo e

Marubo (população: ± 1300).

– Os Mayoruna (termo de origem quichua). Compartilham com os Cashibo a

reputação de ferocidade. Este bloco compreende os Matsé, os Matis, os Korubo, os Kulina-

Pano, os Maya e outros grupos menores, todos falando dialetos mutuamente inteligíveis

(população: ± 1000).

Erikson lembra oportunamente que estas sete categorias não constituem o que se

convém chamar de “etnias” (1992:242), trata-se antes de reagrupamentos efetuados por

observadores estrangeiros, sendo que os principais interessados (os nativos) não se

reconhecem nestes “etnônimos”, ou só o fazem em situação de contato por uma inevitável

condescendência em relação ao interlocutor. Estas denominações têm portanto, um caráter

exógeno (são impostas por um grupo pano vizinho) e muitas vezes são pejorativas, como por

exemplo, o morfema “kaxi-” que quer dizer “vampiro” e é atribuído aos Kaxinawa e aos

Cashibo, ou como o “maru” (que quer dizer “careca”) atribuído aos Marubo.

Por outro lado, considerando que o termo “Huni”, (ou “Honi”, “Oni”, “Odi” que

significam “gente, gente como nós”) utilizado pelos grupos pano de maneira geral para auto

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referir-se, tem uma flexibilidade semântica capaz de englobar uma designação mais próxima

(segmento do grupo local, grupo local) até um nível mais amplo, expressando todos os Pano,

no sentido de humanidade (“todos como nós”, “todos que têm tatuagens”). Observamos que

não seria pertinente definir “etnias” com claras denominações tribais, sobretudo porque este

termo auto referencial “Huni”, de uso comum, parece abrir caminhos para o estabelecimento

de alianças entre grupos.

Se o ecumenismo lingüístico exerce um papel centrípeto no “macro-conjunto

pano” (Erikson, 1993:45), também do ponto de vista cultural imperam as similitudes. A

maioria das características discerníveis em um grupo pano pode ser encontrada na maior parte

dos outros. Em geral, temos: grandes casas comunais (malocas), uma alimentação baseada na

mandioca doce e na banana, com valorização ritual do milho, endocanibalismo funerário

(prática em declínio nas últimas décadas) e extrema importância das guerras intestinas.

Também, no modo de pensar e na estrutura da vida social, há um pujante dualismo

assimétrico, simbolicamente marcado no dimorfismo sexual e que é sustentáculo de uma

teoria dos sabores e de poderes místicos opondo os princípios do “doce” (mulher) e do

“amargo” (homem). Ainda há a utilização frequente do tabaco (inalado) e do alucinógeno

“ayahuasca” (ambos substâncias do “amargo”) nas sessões xamânicas, bem como o emprego

do veneno de sapo “Kampo” (estimulante cinegético), e uma evidente coerência estilística na

ornamentação dos objetos e dos corpos (Kästner apud Erikson, 1993:48).

Algumas instituições pano reforçam o sentido comunitário, através do sistema de

parentesco e da onomástica. A maioria dos pano interfluviais utilizam um sistema de tipo

Kariera australiano, que permite repartir o universo social em oito grandes classes (quatro por

sexo) podendo ser consideradas como seções matrimoniais (Kensinger apud Erikson,,

1993:48). Cada uma destas seções dispõe com exclusividade de um estoque específico de

nomes próprios, de maneira que a todo chamado, corresponde idealmente, para Ego, um

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termo de parentesco particular. Sendo assim, num primeiro encontro e mesmo na ausência de

um ancestral comum, dois desconhecidos podem determinar, pelo viés da onomástica, qual é

o vínculo de parentesco putativo que os une (Erikson, 1993: 48). Erikson veria no sistema

onomástico, considerando o seu potencial supra-étnico, o esboço de um sistema pan-Pano.

A consciência de pertencer a um conjunto “Pano” pode também ser vislumbrada

através dos mitos de origem, que atribuem aos diversos grupos pano uma emergência comum

e exclui tanto os brancos como outros ameríndios de família lingüística diferente. Um reino

pan-Pano pode se realizar também na escatologia de certos grupos, que promete a reunião

post-mortem de todos os Pano.

Por outro lado, cada grupo pano está tanto apto a exagerar suas diferenças internas

quanto a salientar sua semelhança com grupos vizinhos, num fluxo constante que impede o

etnólogo de categorizar fronteiras étnicas coincidentes com aquelas dos interessados. O

dualismo assimétrico comum aos pano se manifesta na identificação parcial à outrem, de

maneira que uma das metades do grupo local se vê sistematicamente assimilada ao exterior,

encarnando algum tipo de componente exótico percebido como indispensável à constituição

do si. A alteridade aqui é constituinte, pois a existência do próprio grupo local é já definida

como a fusão de duas partes de origem necessariamente diferente.

Tal fato não passou despercebido pelos “panólogos”. Observando esta

permeabilidade conceitual dos “etnônimos”, Bárbara Keifenheim (1992:79-93) publica um

artigo sobre identidade e alteridade entre os pano. Neste trabalho, a autora estuda os sistemas

classificatórios dos diferentes grupos do “macro-conjunto” bem como os modelos relacionais

internos e externos que eles engendram. De fato, a área pano apresenta um contraste marcante

entre sua unidade manifesta ao nível global e sua extrema atomização em escala local. Afinal,

conclui Erikson, “... la parcellisation intense, loin de représenter un obstacle à l`homogénéité,

en constitue peut-être le motoeur essentiel.” (1993:51).

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Feito este panorama geral, vamos agora mapear as etnografias pano. Prosseguimos

com breves comentários de cada uma delas e dos respectivos grupos relatados.

Os “Yaminahua” por Graham E. Townsley (1988).

Etnografia produzida a partir de trabalho de campo realizado entre 1980 e 1984, no

sudoeste peruano em duas comunidades Yaminahua: a de Paititi no rio Huacapistea e a de

Huayhuashi, próxima do assentamento missionário de Sepahua no rio Urubamba, visita

também as comunidades do rio Purus.

O autor parte de dois interesses principais, o xamanismo e a mudança cultural,

cujo significado ele procura apreender através das atividades cotidianas nas relações de

parentesco e na organização social. Townsley propõe-se a fazer uma etnografia geral dos

Yaminahua e outros grupos de suas cercanias, como os Amahuaca, Sharanahua e Cashinahua.

Sua análise explora a natureza da organização dual Yaminahua e a ideologia que a

fundamenta.

Segundo o autor, estes grupos apresentam uma elaborada cosmologia dualista que

classifica sociedade e natureza em duas grandes classes simbólicas, consideradas opostas e

complementares. Prova da pujante cosmologia dual Yaminahua é o xamanismo, que não só

sobreviveu às transformações culturais, mas está florescendo cada vez mais, dada sua

capacidade de lidar com o mundo dos “outros”, inclusive o mundo não nativo. Chamamos

atenção para o fato de que o xamã Yaminahua é “dawa” (outro, estrangeiro).

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Os “Marubo” por Delvair Montagner Melatti (1985).

Tese de doutorado baseada em trabalho de campo (1974 a 1983) entre os Marubo

situados ao longo das cabeceiras dos rios Ituí e Curuçá (afluentes do Javari), ao sul do

município de Atalaia do Norte no Amazonas.

O foco da tese são os rituais de cura. Melatti descreve um detalhado quadro da

cosmovisão, da tipologia das doenças e de como os nativos reagem diante da morte. Depara-

se então com problemas conceituais sobre o que é doença, enfermidade, moléstia e sintoma na

cultura Marubo. As práticas destinadas à cura das enfermidades estão intimamente ligadas aos

cânticos xamânicos. Ao constatar a eficácia da cura pelos cânticos e sessões xamânicas, a

autora adere aos trabalhos de Tambiah (apud Melatti,1985: 13), no que dizem respeito à

abordagem lingüística dos atos mágicos que combinam palavras e ações (“speeching acts”).

Também busca respaldo em Lévi-Strauss para explicar a cura da doença através da

“manipulação simbólica” efetuada nos cantos xamânicos (Lévi-Strauss apud Melatti,

1985:583). Comparando o ritual Marubo ao dos Cuna (Panamá) tece analogias entre a “sessão

xamânica” e a “sessão psicanalítica” seguindo os argumentos de Lévi-Strauss em seu “A

Eficácia Simbólica”.

Os “Kaxinawa” por Elsje Maria Lagrou (1998).

Esta tese de doutorado explora a interface entre o social e o pensamento

cosmogônico numa sociedade indígena do sudoeste Amazônico Brasileiro. A autora trabalhou

nas aldeias de Cana Recreio, Moema e Nova Aliança, todas no rio Purus e a sua pesquisa de

campo ocorreu entre 1989 e 1996.

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Voltaremos a falar da concepção “Yushin” e destes “perceptos” expressos pelos desenhos

“Kene Kuin” ao longo do capítulo III, em específico no tópico 3.5.

Os “Sharanahua” por Janet Siskind (1975)

Siskind fez seu trabalho de campo na comunidade Sharanahua de Marcos (Peru),

20 milhas à oeste da fronteira do Brasil. No início de sua pesquisa em 1966, a autora registrou

89 pessoas vivendo na aldeia. Estima que por volta de 1900, os Sharanahua saíram do rio

Taruacá no Brasil, pressionados pelas doenças e patronagem do “ciclo da borracha”. Atesta

rápidas mudanças culturais ocorridas nos 25 anos anteriores à sua chegada, entre elas, a

adoção de canoas e de vestimentas peruanas.

A estrutura que ordena as relações sociais dentro da aldeia é a troca de irmãs entre

homens, ou seja, esposas preferenciais são primas cruzadas. A residência tende a seguir a

regra uxorilocal, segundo a qual o homem presta serviços ao sogro (“serviço da noiva”).

Porém, entre os Sharanahua, à medida que o homem tem filhos e adquire sua roça, ele pode

formar o seu próprio domicílio.

Uma necessidade crucial para a vida Sharanahua é a de assegurar suprimento de

comida e este fato modela as interações entre homens e mulheres, velhos e jovens, parentes e

afins. Reciprocidade e generosidade são altamente valorizadas. Há uma alta valorização da

mandioca, sem a qual uma refeição não é completa. A caça é interpretada por Siskind como

um sistema sócio-econômico: a provisão de caça por um homem a seu grupo lhe assegura

vantagens sociais, como por exemplo, ser estimado como marido. Um bom caçador é um

símbolo de virilidade e tem melhores chances de se casar.

O xamanismo faz uso da ayahuasca, chamada “Shori”, que não é de uso exclusivo

dos xamãs, mas só um xamã consegue controlar as visões e propiciar a cura. As doenças mais

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comuns são tratadas por herbalistas e no caso das mais graves usa-se o “sopro” de fumaça do

tabaco sobre o doente.

Os “Matis” por Philippe Erikson (1990)

Tese que se pretende comparativa, situando os Matis em relação ao subconjunto

Mayoruna e estes ao macro-conjunto Pano. Os Matis residem todos no Brasil, em duas aldeias

situadas sobre o igarapé Boeiro no médio Ituí. O próprio “etnônimo” indica o grau de

semelhança com os Matsés (outro grupo Mayoruna), com os quais a intercompreensão

lingüística é praticamente total.

Erikson encontra o grupo em plena crise de identidade, notando os temas

essenciais aos Matis colocados em questão após o contato: identidade étnica, organização

social e principalmente ornamentação corporal e percepção de si. Estas questões se tornam

então os fios condutores da tese.

Uma aldeia Matis pode se reduzir a uma grande casa comum (“shobo”). Diferente

dos outros Pano, os Matis insistem no sistema patrilocal de residência, e o casamento

preferencial é entre primos cruzados bilaterais, ratificando, segundo Erikson (:110), o sistema

de tipo kariera australiano característico dos Pano.

Através das tatuagens e da ornamentação corporal, marca-se o pertencimento às

metades “tsasibo” ou “ayakobo”. As tatuagens têm ainda a finalidade de incorporar o exterior,

caracterizando os cativos e seus descendentes como Matis, ou, como dizem os nativos “somos

todos mushabo” (pessoas tatuadas) (:107).

Por fim, a cosmovisão é compatível com o sistema dual de opostos

complementares comum aos Pano. Entre os Matis, este sistema pode ser redutível ao princípio

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do “chimu” (amargo) e do “bata” (doce). A doença, por exemplo, é explicada por um “sho”,

entidade que envia minúsculas zarabatanas e que aparece na forma “chimu” (amargo).

O autor afirma que sua pesquisa pretendeu ser “sinestésica”, porque, aos modos

dos conceitos nativos, ilustra a imbricação estreita entre as práticas territoriais e agrícolas e a

escatologia dos Matis, e ainda ressalta os vínculos entre as práticas cinegéticas, concepções

etiológicas e o sistema gustativo (:11).

Congruente com este estilo conceitual sinestésico matis de permeabilidade

dinâmica entre pares de opostos e sua concepção de humanidade para além dos limites de seu

grupo (uma humanidade não exclusiva), o xamanismo se estende para além do circuito

fechado dos especialistas, caracterizando-se aí um “xamanismo sem xamã” (:196).

Os “Yaminawa” por Oscar Calavia Saez (1994)

O projeto de pesquisa do autor (1990) segue três tópicos básicos: fragmentação

dos grupos Pano, alternativas geradas pelo fluxo/refluxo da ocupação branca e, por fim, o

binômio mito/história, salientando-se a presença de um corpus de mitos referentes ao “Inca”

em muitos dos grupos Pano. A pesquisa de campo foi inicialmente realizada em 1991, na

comunidade Yaminawa da aldeia indígena Cabeceira do Rio Acre, no município de Assis

Brasil, estado do Acre.

A “casa” Yaminawa é de estilo regional, habitada por famílias extensas e

distribuídas à jusante (moradores mais antigos) e à montante (grupos recentes, migrados do

rio Iaco). Os Yaminawa acham mais fácil e prazeirosa a convivência entre consangüíneos e

consideram um pesado fardo ajudar o sogro e residir na casa de sua mulher. Não há uma regra

de residência fixa, mas sim um conjunto de regras cuja interação conforma o ciclo de vida

residencial (:50).

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O termo de parentesco que se refere à consangüinidade é “Yura”, que é definido

como corpo/carne ou grupo unido por relações carnais e proximidade física. “Dawa” é o

estrangeiro ou mesmo não humano, mas também é uma das metades em que o mundo “Yura”

se divide.

A segunda parte do trabalho é uma tentativa de produzir uma crônica Yaminawa,

ou seja, uma etno-história baseada em relatos orais confrontados à documentação de outros

grupos da primeira metade do século XX e relatórios de contato com a FUNAI (1975).

A terceira parte dedica-se à mitologia Yaminawa e esta aparece recortada pela

história e pela sociologia. O encontro entre história/sociologia/mito se dá mediante os relatos

sobre o “Inca”, e com isto enfrenta-se o conceito de História a partir da experiência

Yaminawa.

Por fim, no que se refere ao xamanismo, Calavia Sáez faz colocações ao

“complexo xamânico” Yaminawa e o uso sistemático do “shori” (alucinógeno). Para o autor,

este “complexo” não é só uma tradição ritual (embora use ritos) ou “sistema simbólico”, mas

pode ser visto como uma ciência, não no seu sentido positivo, mas como um espaço

institucional definido. As questões do “complexo xamânico” serão vistas com mais detalhes

ao longo do capítulo IV .

Os “Katukina” Pano por Edilene Coffaci de Lima (2000)

A autora inicia a pesquisa de campo entre os Katukina em 1991 na aldeia do rio

Campinas em terras demarcadas entre os municípios de Ipixuna (AM) e Tarauacá (AC). De

1994 a 1997, Lima registra um crescimento demográfico de 70% na aldeia de Campinas (:18).

Um dos principais motivos do crescimento da aldeia de Campinas foi a construção de uma

rodovia, recebendo com isto os habitantes da aldeia do rio Gregório.

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Estes grupos Katukina têm redes de aliança com os Yawanawa e os Shanenawa

que habitam as mesmas terras demarcadas. O termo Katukina serve mais às relações externas

e foi dado pelo governo brasileiro, sendo que os nativos identificam-se a partir de seis

etnônimos: Varinawa (Povo do Sol), Kamanawa (Povo da Onça), Satanawa (Povo da Lontra),

Waninawa (Povo da Pupunha), Nainawa (Povo do Céu) e Numanawa (Povo da Juriti). Os

Katukina afirmam ainda no passado uma união com os Marubo e a semelhança lingüística

entre ambos é estimada em 50% (:15).

A tese de Lima parte do pressuposto de que se existe um sistema para tratar da

alteridade sociológica, deveria haver também um para tratar da alteridade cosmológica. A

ênfase que os Katukina insistiam em dar ao simbolismo dos animais levou-a a explorar o

caráter fundamentalmente contextual dos sistemas taxonômicos. As concepções Katukina

sobre o que são homens, animais e espíritos se entrecruzam. Uma pessoa é resultado de

processos sócio-fisiológicos que modelam seu corpo e este processo como um todo é

compreendido pelos nativos como manutenção do equilíbrio com a alteridade. Daí a autora

estudar o caráter relacional destas fronteiras.

O dualismo fundamental entre os princípios doce (“vata”) e amargo (“muka”),

comum aos Pano, está presente na cosmovisão Katukina. Na escatologia, Lima atesta uma

separação radical entre vivos e mortos (:26, 125).

O xamanismo Katukina é dual, pois se vê recortado entre os atributos do xamã

(“Romeya”) e rezadores (“Shoitiya”). Porém, a autora só encontra rezadores e descarta a

fórmula de “xamanismo sem xamã” por considerá-la essencialista. Além do mais, a presença

ativa e abundante dos rezadores de algum modo estabelece o trato especializado com a

alteridade dos espíritos “Yushin”.

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Os “Yawanawa” por Laura Pérez Gil (1999)

A autora parte da idéia de pesquisar a relação entre medicina tradicional,

supostamente de caráter xamânico e a biomedicina. Muda ligeiramente a sua abordagem, pois

percebe a necessidade de conhecer o xamanismo Yawanawa em meio a um contexto de

pluralismo médico. Deste modo, a tese vai explorar essencialmente as concepções de cura e

doença que estão operando na prática xamânica.

A população Yawanawa tem um modelo de habitat disperso e, ao longo do Rio

Gregório, existem várias colocações formadas por uma até cinco casas, sendo que, cada

colocação é ocupada por uma família extensa. Contudo, existe uma aldeia central, Nova

Esperança, onde reside o atual líder, abrangendo um posto de saúde, uma escola e posto de

comunicação radiotransmissor. A distância entre uma colocação e outra varia e o tempo de

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Os “Shipibo-Conibo” por Peter G. Roe (1982)

Roe fez seu trabalho de campo entre os Shipibo, grupo de língua pano consistindo

de 16.000 a 20.000 falantes, espalhados em aldeias de no máximo 150 pessoas às margens do

rio Ucayali e relacionados estreitamente mais ao sul aos Conibo. São índios de hábitos

fluviais, “canoeiros” e se sentem pouco à vontade na floresta.

O autor, influenciado pela etnologia sul-ameríndia e pela arqueologia, busca

através da coleta dos mitos Shipibo (grupo Pano do Ucayali) correlacioná-los ao estilo de arte

decorativa e elucidar seus significados.

Seu objeto de estudo é a arte verbal Shipibo e sua tese parte do pressuposto de que

por baixo de uma pletora de mitos registrados da floresta tropical sul-americana há uma

cosmologia basal constituída pela fauna e por outros “símbolos naturais”. Estes significados

estão baseados em analogias e equivalências de forma, caráter e comportamento dos animais e

humanos. A definição do que os animais significam é essencial, pois é daí que os nativos

compõem e definem a humanidade.

Para Roe, parece haver “símbolos poderosos” de grande ocorrência entre as

populações humanas, das mais variadas culturas, mas estes símbolos, por serem construtos

mentais, podem mudar de significado quando justapostos a outros símbolos dentro de

sistemas locais (:6). Roe presta reverência à Lévi-Strauss e à sua análise estruturalista dos

mitos, porém seu propósito é ir além. Não basta entender como partes de um sistema mítico se

opõem ou se correlacionam e iluminam vários temas, pois é preciso relacionar estes temas a

um todo maior (:7).

O autor argumenta que a cosmologia sul-ameríndia é concebida como um zigoto

cósmico que postula a existência de um contínuo e autogerativo processo de diferenças,

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Conclusão dos resumos etnográficos

Os resumos etnográficos apresentados nos permitiram ressaltar a relação entre o

dualismo desequilibrado e precário, vigente na cosmologia e na organização social das

sociedades pano e a constituição de dispositivos contra-Estado, tema que perseguimos neste

trabalho.

O xamanismo figura como um destes dispositivos ao contribuir, por exemplo,

para que o poder do chefe não seja o único. Também o xamanismo, como um mecanismo de

permeabilidade de capacidades e agências (de cura ou de comunicação) entre as pessoas

(inclusive não humanas), pode se constituir num empecilho para as relações de posições fixas,

hierárquicas.

Ao romper com a divisão entre mundo dos humanos e não humanos, o

xamanismo, sobretudo, implica a noção de perspectiva, isto é, a posição que o corpo ocupa

numa relação (e não sua substância ou essência) irá determinar sua humanidade (ou

animalidade e sobre-humanidade).

Se, o corpo, lugar da perspectiva, isto é, da agência, pode se localizar em

diferentes posições (de relação) e se todos os seres ocupam necessariamente um lugar,

desigual, por certo, no mundo, o xamã será o principal negociador destas relações

perspectivas, ele será um atravessador de fronteiras, alguém que não se detém diante de uma

bipartição prévia e fixa do mundo. Além disso, o xamanismo trabalha os corpos, faz alianças

com as potências não-humanas através da manipulação dos corpos, dos odores, da fumaça,

dos líquidos, das secreções etc. Os corpos, na prática xamânica, não são tomados como coisas

terminadas.

E esta não detenção diante de uma dualidade fixa (humano/não-humano,

forma/conteúdo), enfim, uma recusa de conceber os termos fora da relação, contribui para a

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recusa de uma totalização e centralização do poder num sujeito separado, base da constituição

do Estado. Tentaremos explicitar esta relação nos capítulos que se seguem.

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CAPÍTULO I

POLÍTICA, FRAGMENTAÇÃO E DUALISMO PANO

Introdução

O presente capítulo tem por objetivo evidenciar o dualismo assimétrico Pano,

essencial para o entendimento da cosmosociologia e da política intra e inter grupal. A divisão

em metades de opostos complementares tem sido notada como característica comum do

macro-conjunto Pano por vários especialistas. Townsley (1988) e Roe (1982) chegam a

comparar o dualismo Pano à dinâmica cosmovisão taoísta chinesa do princípio Yin/Yang,

dado o seu caráter complementar, relacional e transformativo.

Básico para entender as noções de identidade/alteridade, esse dualismo relacional

é tema central da obra de Deshayes & Keifenheim (1994) entre os Kashinawa do Peru.

Assim, seguiremos por ora os passos destes autores, trazendo também o relato de

Carid Naveira (1999) entre os Yawanawa do Acre, que evidencia os aspectos da política

nativa de incorporação do outro pelo viés da guerra e do ritual.

1.1 Dualismo, Identidade/Alteridade: o caso Kashinawa Peruano

Deshayes & Keifenheim (1994) fizeram seu trabalho de campo entre os

Kashinawa peruanos, grupo de família lingüística pano que totaliza entre 2000 e 3000 falantes

nas fronteiras entre Brasil e Peru. Do lado peruano existem duas grandes aldeias no alto Purus

e Balta no rio Curanja (afluente do Purus). Existe ainda, uma grande circulação entre as

aldeias de ambos os lados da fronteira.

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O ponto desenvolvido no livro4 aqui analisado são as concepções nativas do

“Outro”, partindo do princípio de que o outro não é outro por natureza, mas por relação a si.

Concorrem duas concepções da relação ao outro, gerando primeiro um Outro constituído de

identidade, e segundo, um Outro constituído de alteridade. Estes dois modos de conceber o

Outro ordenam e estruturam o mundo, mas sobretudo definem a identidade ao distingui-la da

alteridade (:29).

É o que Deshayes & Keifenheim (ibidem) chamam de modelo ternário da

alteridade, que estrutura de maneira isomorfa tanto a aliança interna quanto as relações

externas aos outros seres humanos. No léxico nativo o termo “Kuin” define a ordem do Si e o

que não for “Kuin” é “Kuinman” (não-Si)5.

Por sua vez, o termo “Bemakia” define a ordem do “Outro” e o que não for

“Bemakia” é “Kayabi” (não-Outro). Entre estes opostos Kuin/Kuinman, Kayabi/Bemakia

existe uma zona intermediária e toda uma gama de possíveis relações. Como exemplo, numa

aliança matrimonial dada, chama-se Kuin aquele que, distinto pelo vínculo genealógico mais

próximo dentro da seção dos desposáveis, o casado com uma prima cruzada. Os casamentos

entre os “Kuin” perfazem 5% dos casamentos Kashinawa. Já “Bemakia” designa a relação de

casamento sem nenhum vínculo genealógico, ou seja, com alguém de fora da aldeia, um

estrangeiro. Este tipo representa menos de 5% dos casamentos na aldeia

(KEIFENHEIM,1992:82). Entre estes termos existe uma ampla zona intermediária de aliança

matrimonial que concerne aos casamentos entre esposos com qualquer vínculo genealógico,

excetuando-se aqueles definidos por “Kuin”. Segundo a autora, este tipo corresponde a 90%

dos casamentos.

Há de fato dois pólos claramente definidos e uma ampla zona intermediária “Huni

Kuin” gerada entre estes. O nível mais concêntrico (“Kuin”) só é praticado pela aliança entre

4 Esta obra tem suas origens na tese de doutorado em etnologia defendida na Universidade de Paris 7 em 1982.

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chefes de metades, em especial quando da criação de uma nova aldeia. O nível mais

excêntrico (“Bemakia”) integra o conjunto dos Kashinawa em comunicação social através do

casamento.

Ainda, a relação dual Si/Outro se apóia nas divisões da sociedade “Huni Kuin”

(autodenominação), sendo que nenhuma metade pode ser auto-suficiente e nenhuma metade

tem superioridade sobre a outra. A primeira divisão distingue duas metades totêmicas, “Inu” e

“Dua”. A “Inu” relaciona-se com a performance cineg

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31

E esta ampliação corrobora o argumento de que a organização dualista, nestas

sociedades, apresenta sempre a interferência de um componente não exclusivo, uma tendência

à ternarização, o que amplia os personagens em cena e justamente impede a classificação

estática e a separação permanente entre os termos.

Portanto, podemos inferir que este tipo de organização das relações sociais faz

parte dos dispositivos contra-Estado, ou seja, mecanismos que evitam a hierarquização

estática das relações e a separação entre poder e o vínculo social.

1.2 Conceito “Nawa”

Todo estudo sobre o conjunto da família lingüística Pano se depara com o

problema de identificação de seus constituintes. A situação se torna confusa, com grupos

distintos chamados por um mesmo nome, enquanto outros com nomes diferentes se

reconhecem, entretanto, como pertencentes ao mesmo grupo.

Uma das explicações para estas incertezas é que muitos grupos possuem uma

classificação gradativa da alteridade, (conforme vimos entre os Kashinawa Peruanos)

abarcando os diferentes grupos Pano em um grupo maior e que em sua maioria usam a mesma

autodenominação: Huni Kuin, Honi Kon, Uni Koi etc (Keifenheim: 1990:80). Huni, Honi,

Uni significando “homem” no sentido de “ser humano” e Kuin, Kon e Koi (traduzidos

freqüentemente por “verdadeiros”), referindo-se à menor rede endógena do grupo.

Para Keifenheim, esta confusão não é conseqüência de uma falta de acuidade

nativa nem uma deficiência dos dados recolhidos pelos pesquisadores, mas ela mesma remete

ao cerne da conceitualização de alteridade. Ela revela a dinâmica relacional e diferencial no

interior do conjunto Pano, ao mesmo tempo em que o campo “imaginado” do “Outro” exterior

à este conjunto (ibid.: 80).

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32

Ainda segundo a antropóloga, o estudo das autodenominações, bem como dos

nomes dados pelos outros, não pode avançar senão através do estudo dos conceitos de

identidade e alteridade de cada grupo Pano e do sistema categorial aí subsumido.

Conforme vimos no tópico anterior, é o sistema relacional “Huni Kuin” que está

em jogo aqui. Um dos termos chaves para o entendimento deste contexto é o conceito

“Nawa”. Este termo figura no nome de um grande número de grupos Pano: Capanawa,

Isconawa, Kashinawa, Sharanawa entre outros.

Estes nomes são compostos de um epônimo e o termo “nawa” aparece aí como

um sufixo significando o sentido mais geral de “gente”. Na língua Pano também há o sufixo

“-bo”, exprimindo a idéia de “gente” como em Shipibo, Conibo, Marubo, mas à diferença de

“nawa”, “-bo” é um pluralizador neutro. Ou seja, “nawa” é indissociável de uma conotação

relacional referido à alteridade. É de se notar ainda que os exemplos citados de “nawa”

(Yaminawa. Kashinawa etc.) não são autodenominações, mas sim nomes dados por outros

grupos (Pano ou não, brancos, missionários e caboclos) e ressentidos pelos nativos como

denominações pejorativas. Quando se fala de “nawa” sem precisão específica, trata-se em

geral de pessoas que não se pode nomear ou de gente com as quais não se estabelecem

relações.

Mas, segundo Keifenheim (1990), “nawa” não é pensado somente no exterior da

sociedade como Outro, estrangeiro, inimigo ou neutro. Em certos grupos existem seções ou

metades internas que levam a marca de “nawa”. A autora exemplifica que dos sete grupos

identitários Amahuaca, cinco utilizam o pluralizador “-bo” para se autodenominar e dois usam

“nawa”: Shawanawa e Kutinawa. Já uma das metades dos Yaminawa se chama “Dawa

Wakebo” (descendentes de estrangeiros) (ibid.: 81).

Portanto, o conceito “nawa” atravessa todos os grupos Pano e seu estudo permite

esclarecer a problemática de identidade/alteridade, ou seja, os modelos relacionais no seio de

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33

um mesmo grupo e entre outros Pano, bem como a dinâmica das relações com a sociedade

envolvente dos brancos.

1.3 Guerra e Festa: política Yawanawa

Carid Naveira (1999) fez seu trabalho de campo entre os Yawanawa6 em 1999 na

Terra Indígena do Alto rio Gregório (Alto Juruá) no Acre na aldeia de Nova Esperança.

Os argumentos do autor baseiam-se na suposição dos Pano como “nebulosas

compactas” (Erikson, 1993 apud Carid Naveira, 1999:36) que transmite uma idéia de

pequenos corpúsculos similares e em contínuo processo de movimento e formação,

autônomos e dependentes entre si simultaneamente. Nesta medida usando dados concretos,

procura indagar quais os limites dos grupos e se a noção de etnia corresponde a estes ou a de

tribo.

Assim, mediante seus dados de campo, Carid Naveira pretende esclarecer as

causas que levam os Pano à ávida tendência em se fusionar e se fissionar constantemente e,

neste sentido, sua tese versa sobre dois organizadores básicos ao entendimento do fenômeno:

a guerra e o ritual. É através do exercício da guerra e do ritual que o conjunto adquire seu

caráter ou, ao menos, onde este se demonstra mais concentrado (ibidem.:61).

Todo estudo de identidade/alteridade Pano remete inevitavelmente aos trabalhos

de Deshayes & Keifenheim (1994), porém Carid Naveira afirma que o “sistema relacional

Huni Kuin” destes autores requer algumas matizações quando aplicados aos dados

Yawanawa. Pois, diferente dos Kashinawa, que possuem um campo identitário com uma

nítida definição do outro (branco, Yuxin etc...), os Yawanawa vêem uma plêiade de

6 Ver também na apresentação dos grupos de língua Pano: “Os Yawanawa” por GIL, Laura Perez (1999).

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possibilidades que percorrem todas as viabilidades internas e provavelmente transições destas

categorias (1999: 58).

Nos rituais dos Yawanawa, o outro vem de fora e encena o de dentro, é o ápice do

“Mariri” (festa) intertribal do “Uma Aki” (festa da caissuma). Já nos rituais Kaxinawa, o

outro é encenado por uma das metades que faz o papel do exterior. Para Carid Naveira o

“Mariri” Yawanawa seria uma verdadeira “máquina de criar parentes” (ibidem.:59).

Assim como no ritual, a guerra Yawanawa incorpora o de fora e nesta temos o

cativo, que se tornará um parente7. Buscam-se esposas e genros mas não sogros8, obtendo-se

uma “troca assimétrica” (ibidem.:98). Longe de um desarranjo, a guerra tenta criar a ordem

desejada, mas esta ordem não tem por horizonte a permuta e sim a absorção hierárquica.

No caso Yawanawa, a guerra é um dos pivôs que regulam a ação sobre o exterior,

com o tempo, cria-se vínculos com ele. Segundo Carid Naveira, a guerra não é uma condição

ontológica da aliança, mas sim uma conseqüência sociológica (1999: 97).

O ritual “uma aki” possui uma encenação guerreira, indo desde relações jocosas

entre casáveis à divisão em dois grupos de provávei

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sociais, sendo a brincadeira (“Mariri”) uma ponte de entrada que facilita a incorporação do

outro (ibid.:154).

O próprio autor atesta, por fim, que os grupos Pano têm mantido, ao longo do

tempo, a característica de fragmentar-se e posteriormente fundir-se de novo. A chegada dos

brancos em seu primeiro momento somente exacerbou as tendências centrífugas (com as

“correrias” do “boom” da borracha) e agora num segundo momento exacerba as tendências

centrípetas (demarcação de terras indígenas e fim da guerra). (ibid.:60).

Conclusão do Capítulo

Todo trabalho de Deshayes & Keifenheim (1994) está fortemente calcado em

Pierre Clastres a quem os autores atribuem o pioneirismo de fazer uma “Antropologia Política

do Sujeito” por abordar a questão do poder nas sociedades sem Estado (ibidem.: 235-236). O

“sistema relacional Huni Kuin” descrito pelo casal de antropólogos e que engloba o sistema

de parentesco, parece-nos confirmar a teoria da troca de Clastres, na qual, da guerra,

procedem-se as trocas e concluem-se as alianças.

Ou seja, o alargamento do horizonte político reporta-se à necessidade imperiosa

que cada uma das unidades tem de se constituir através das alianças, “pois a função da

exogamia local não é assegurar a proibição do incesto mas sim obrigar a contrair casamento

fora da comunidade local operando como meio de aliança política” (Clastres, P.;2003:82).

Tomar a guerra como um dispositivo de incorporação e aliança política dá a ela um sentido

positivo para a constituição dos grupos, ao contrário de considerá-la como um limite inferior

da sociedade, um caso particular da aliança matrimonial.

Já Carid Naveira (1999), com os dados Yawanawa, coloca ressalvas ao afinado

esquema de Deshayes & Keifenheim. A guerra dos Yawanawa também é preeminente, com

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36

um caráter prospectivo e criador, porém, o autor ressalta o contexto da predação, com seus

aspectos hierárquicos e assimétricos. O que se almeja é uma “troca assimétrica”, “aliança

trapaceada”, pois um Yawanawa ressente-se da obrigação para com o sogro.

Ainda, Carid Naveira ressalta o aspecto político dos rituais Yawanawa, pois neles

teríamos a continuação da guerra por outros meios9, isto é, o outro vem de fora a convite e

não como cativo, mas encena uma das metades de dentro, ora como grupo agressor ora como

agredido e que culmina na possibilidade de sua incorporação por esta máquina de fazer

parentes. Assim, pelo viés do ritual Yawanawa, temos dispositivos de incorporação e aliança

política semelhantes à guerra indígena de Clastres.

Podemos concluir que ambos, guerra e ritual, não estão autonomizados e

destacados do socius e, portanto, constituem mecanismos contra-Estado.

9 Traçamos aqui um paralelo do ritual nativo descrito por Carid Naveira e a definição de “política” conforme FOUCAULT (1998) em “Genealogia e Poder” (:167-177): “Inverteríamos assim a posição de Clausewitz, afirmando que a política é a guerra prolongada por outros meios. (...) A política é a sanção e a reprodução do desequilíbrio das forças manifestadas na guerra” (:176).

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37

CAPITULO II

CHEFE E XAMÃ

Introdução

Conforme vimos na introdução da dissertação, Erikson (1988) em resposta à

Santos Granero (1986),10 chamara atenção para o fato de que o dualismo seria o grande

princípio organizacional da sociedade Cashinahua e em conseqüência disto existiria aí uma

clara divisão entre os papéis do líder (xanen-ibu) e do xamã (huni mukaya). Para este grupo

Pano, xamãs e líderes devem pertencer a metades opostas e suas funções não se sobrepõem, o

que seria um dos fatores que impediria o acúmulo de poder nas mãos de um indivíduo ou de

um restrito grupo.

De fato, Deshayes & Keifenheim (1994) afirmam que os Cashinahua do lado

peruano relatam a distinção entre duas metades totêmicas, “Inu” e “Dua”. Sendo que, a

metade “Inu” estaria relacionada com a performance cinegética, a alianças e chefia, já a

“Dua” exprimiria a beleza e a ordem sobrenatural, abarcando os cantos esotéricos rituais e o

xamanismo. Também, lembram os autores, que nenhuma metade é suficiente a si mesma ou

tem superioridade sobre a outra. (: 62-63)

Portanto, antes de passarmos para a discussão do xamanismo em específico,

veremos neste capítulo, seguindo os argumentos de Deshayes (1992), como se constitui o

chefe e o xamã Cashinahua e suas respectivas relações de poder, enfatizando aí os

mecanismos contra-Estado.

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como seu amante e potencial esposo11. Como o casamento, via de regra, é uxorilocal entre os

Kashinawa, os pais perdem um caçador e a família da esposa ganha um, sendo que o esposo

passa a dever ao sogro o “serviço da noiva”.

O caçador-modelo Kashinawa, o “Menki”, apresenta as seguintes características

básicas: dom da caça (generosidade), tendência à poliginia e profusão de palavras

(pacificador). Poderíamos traçar aqui uma analogia entre estes quesitos do caçador Kashinawa

e os que Pierre Clastres sintetiza como atributos do chefe indígena: generosidade, poliginia e

oratória (Clastres, P., 2003).

Quanto maior o prestígio do “Menki”, maior a probabilidade de tornar-se, ele

próprio, um chefe, ou senão isto, pelo menos um opositor de outro chefe. Em caso de grave

conflito, poderá ocorrer um cisma na aldeia, gerando então uma nova aldeia e um novo chefe,

seu “Nabu Kuin”, mais os dissidentes da anterior. Este novo chefe se faz reconhecer entre

outros grupos, descrevendo a sua aldeia como um lugar de caça abundante e tranqüilidade

frente aos brancos, atraindo para si aliados.

Segundo Deshayes (1992) esta prática é comum entre os chefes Kashinawa, e tem

implicâncias sociológicas, notadamente na dinâmica intercomunitária, caracterizando o

frequente processo de esfacelamento e recomposição das unidades aldeãs, já descritas por

diversos especialistas. Esta dinâmica também permite ao conjunto de aldeias, assim formadas,

viver como pertencendo a uma totalidade que são os Kashinawa.

O contrário do bom caçador, o “Menki”, é o “Yupa”. De acordo com a concepção

nativa, “Yupa” é aquele que tem azar na caça, pois contraiu uma substância de mesmo nome e

que não o deixa mais perceber a presença dos animais. Há remédio para isto: fazer jejum com

abstinência sexual e entrar em contato com a cobra anaconda (no mito, o mestre da

ayahuasca).

11 Também entre os Sharanawa ver as correlações de carne de caça e sexo, em SISKIND, J. (1975).

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Porém, um homem pode deixar de caçar por uma razão diferente de ser “Yupa”,

ou seja, quando ele passa a ver os animais como pessoas e daí adquire a habilidade de falar

com eles. De acordo com Deshayes (1992), um Kashinawa (não-xamã) só pode se comunicar

com um idêntico (ibid.:102). Diferente do caçador que imita os gritos dos animais para atraí-

los, o homem cuja fala é inteligível a eles, passa a ser um “mukaya” ou o “ser com o amargo”

(“muka”).

Esse estado incurável, deve contudo ser tratado para que o amargo transforme o

homem em um “Huni Mukaya” (o xamã). O xamã Kashinawa seria um “incurável” que não

pode se livrar da “muka”, mas que deve aprender a conviver com ela (ibid.: 103).

Segundo Deshayes, entre os Kashinawa, o “Huni Mukaya” não é o único

curandeiro, mas é aquele que tem o privilégio de lidar com as doenças dos espíritos, enquanto

o “Huni Dauia” (homem dos remédios), pelo conhecimento das plantas e venenos da floresta,

trata das doenças do corpo.12

Mas dadas as características descritas pelo autor, estabelecem-se comportamentos

prototípicos: o chefe é um “ultra-Menki” e o xamã um “infra-Yupa”. Projetados no limite da

sociedade, o xamã, não mais caçador, encontra-se na porção inferior, de fora da troca e do

dom. Quanto ao chefe, também está fora da troca, mas desta feita pelo excesso do dom. Em

descontinuidade com o interior, ambos estabelecem porém relações contínuas com o exterior:

o chefe com homens não Kashinawa e o xamã com seres não humanos (ibid.:105).

Seguindo esta lógica, teríamos como características do chefe uma excessiva fala

para com o interior do grupo e uma hiper-escuta dos animais da floresta (de fora).

Inversamente, o xamã seria aquele que fala para os animais (para fora) e possui uma hiper-

escuta com os de seu grupo (de dentro). Deshayes conclui que estes dois personagens não

12 Veremos mais adiante, nos caps. III e IV como as noções nativas sobre os “Yuxin” (espíritos) colocam

ressalvas a esta divisão de especialistas para doenças do espírito e do corpo.

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partilham a comunicação da mesma maneira, o chefe lida com a aliança no seio de seu grupo

e o xamã lida com aliança no exterior do grupo.

Para o autor, estes são mecanismos contra-Estado que afastam tanto o Menki

quanto o Huni Mukaya da possibilidade de agregar para si uma relação de poder baseada na

autoridade. Segundo o seu artigo, os Kashinawa teriam ainda o hábito de suspeitar tanto de

seus chefes quanto de seus xamãs.

Conclusão do Capítulo

O chefe Kaxinawa descrito por Deshayes (1992), está de acordo com o tipo ideal

de Clastres (2003): pacificador, generoso, bom orador e geralmente poligínico. Sendo que, as

últimas três características definem o conjunto das prestações e contraprestações pelo qual se

mantém o equilíbrio entre a estrutura social e a instituição política.

Dando continuidade às questões abertas por Pierre Clastres, como o “paradoxo da

chefia sem poder”, o autor, manipulando os dados Kaxinawa, procura ratificar a idéia de que é

pela troca desigual ou recusa da reciprocidade que a sociedade indígena rejeita a autoridade

hegemônica e estável, tecendo um modelo no qual o chefe (ultra-Menki) e o xamã (infra-

Yupa) estão confrontados.

Ou seja, o ponto que queremos enfatizar é que o tipo-ideal de xamã “infra-Yupa”

deriva diretamente do modelo de chefia indígena. Ambos, chefe e xamã estão impedidos de

relações do tipo comando-obediência com os demais do grupo pelo mecanismo da troca

desigual a que estão sujeitos. São eles que estão em constante dívida para com o grupo e não o

contrário13.

13 Em obra organizada por ABENSOUR, M. (1987) o artigo de Luc de Heusch (: 41-57) explicita este ponto, o do “sentido da dívida”, argumentando que o projeto inicial de Clastres teria marcado uma oposição fundamental entre as sociedades que recusam o poder e aquelas onde o Estado se afirma. As primeiras imporiam uma dívida

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Então, entre os Kashinawa, além do dualismo complementar que divide as

funções para cada metade, o modelo que opõe chefe a xamã cria mais um mecanismo contra-

Estado. Neste caso, conforme a teoria clastreana é o micro-dispositivo intra-grupo da “troca

desigual” que abarca tanto o chefe ultra-Menki quanto o xamã infra-Yupa.

Mas temos que mencionar Carid Naveira (1999), que coloca certas ressalvas à

concepção clastreana da chefia como instituição vazia de poder, pois apresenta relatos de

campo com exercício de mando-coerção e violência por lideranças Yawanawa (ibidem: 70).

Por outro lado, pelo mesmo relato também se percebe que a noção nativa de liderança

expressa pelos termos Shanaihu e Niaihu implica posse de uma qualidade ou “(...) domínio de

um território que expresse a capacidade de mando em limites determinados.” ( ibidem: 67,

grifo meu)

Seguindo esta noção nativa, pelo relato de Carid Naveira14, um líder local que se

torne um “mandão local”, em pouco tempo vê-se às voltas com fissões e novas locações são

formadas pelos dissidentes da anterior (:67).

Conforme vimos neste capítulo, Deshayes (1992) atesta no seu artigo, que um

bom caçador (“Menki”), pelo excesso de Dom é ele mesmo um chefe ou então está a ponto de

se tornar um, opondo-se a outro e dando margem a divisões na aldeia. Micro-política esta, que

evidencia uma das causas centrífugas do constante movimento de fusão/fissão dos grupos

Pano.

Poderíamos inferir, com bases nestes dados e a característica de fissão/fusão da

“política Pano” ressaltada também por Erikson (1992,1993), que entre estes grupos a

permanente ao líder, que impediria o prestígio de se constituir em poder coercitivo. Já nas sociedades de Estado conclui-se que seria o povo a estar em contínua dívida para com o soberano. 14 Transcrevo a passagem: “A questão da territorialidade não está isenta de importância e vincula-se obviamente às relações políticas, o surgimento de novas colocações deve-se, em muitas ocasiões, a desavenças deste tipo e na medida em que estas colocações crescem, ou não, o poder da liderança pode se ver erodido pelos cabeças de família que estão a constituir lugares com nome próprio, roças, trilhas e normativas diferençadas.”(CARID NAVEIRA,1999: 67-68)

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capacidade constante de fissionar e fundir-se novamente, seja mais um mecanismo contra-

Estado que ao longo do tempo impediria um poder local de se autonomizar do socius.

Que chefes indígenas “mandões” possam ser encontrados isto é fato, mas o que é

mais interessante nas assertivas de Clastres, e os dados da etnografia Pano parecem confirmar,

é perceber a ação dos dispositivos políticos da “sociedade primitiva” na qual o exercício de

mando-coerção tão logo ocorra, não resulta numa forma de Estado.

Que isto possa em dado momento vir a acontecer é também possível, mas até

agora e a julgar pelos relatos etnográficos, os “mecanismos contra-Estado” das sociedades

indígenas vêm prevalecendo à “captura pelo Estado”.15

Vamos agora passar ao próximo capítulo enfatizando a cosmosociologia Pano e

tentar perceber, à luz do “perspectivismo”, como micro-dispositivos “contra-Estado” atuam e

interagem na formação da pessoa indígena e do xamã.

15 A “captura pelo Estado” faz referência à passagem de VIVEIROS DE CASTRO (2002a:472) já explicitada por nós na introdução. Também com bases nas assertivas de Clastres sobre os mecanismos contra-Estado, ver o capítulo “7000 A.C.-Aparelho de Captura” de DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1997) que renomeia estes mecanismos como dispositivos de conjuração-antecipação: “Assim as sociedades primitivas se definem por mecanismos de conjuração-antecipação; as sociedades com Estado se definem por aparelhos de captura; (...)” (1997:126).

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CAPÍTULO III

“COSMO” – POLÍTICA DO CORPO

Introdução

Ao ler sobre o xamanismo nas etnografias dos grupos Pano, chama nossa atenção

o fato de que um iniciado à prática xamânica deve passar por inúmeras provas: dietas,

abstinência sexual, privações e provações corporais de todos os tipos. De acordo com os

relatos recentes, tais provações, em muitos casos, explicam o alto índice de desistência e o

fato de não existirem xamãs em muitas locações (Gil,1999).

Muito se discorreu sobre as “técnicas do êxtase” (Eliade,1998), alguns

pesquisadores considerando-as faculdades do espírito (“vôos extáticos”) e outros, como

“estados alterados da consciência”, traduzindo em termos ocidentais o fenômeno do

xamanismo, tal como aponta Atkinson (1992) em seu artigo. Um ponto em comum nestes

trabalhos era a atenção dada aos poderes xamânicos de acesso à “alma”, “espírito” ou

“mente”. Termos que variavam de acordo com a vertente teórica dos pesquisadores, desde os

mais “espíritas” aos mais “psicologizantes”, e que podemos reduzir a um só termo da velha

dicotomia corpo/alma.

O fato é que os dados etnográficos Pano sinalizam uma grande importância que os

nativos dão ao corpo, seus constituintes e suas propriedades. Assim, cabe aqui perguntarmos o

que faz de um corpo um xamã?

A questão da corporalidade não passou despercebida pela etnologia ameríndia.

Lévi-Strauss, ao chamar atenção para a importância das qualidades sensíveis e, por

conseguinte, do corpo e de seus constituintes (1971, 1997) e, mais ainda, na vasta

problemática esboçada nas “Mythologiques” (1971), tratou de princípios que operam, não

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apenas nos mitos, mas também no nível da estrutura social ameríndia. Com isto, inspirou uma

série de estudos etnográficos na década de 70 sobre grupos brasileiros (Jê, Tukano,

Xinguanos, Tupi) que enfatizavam a questão da corporalidade como organizadora do

pensamento indígena sul-americano. Alguns dos conceitos delineados nestes trabalhos foram

expressos por Seeger et ali no artigo “A Construção da Pessoa nas Sociedades Indígenas

Brasileiras” (1979). Os pesquisadores do referido artigo, percebendo a inadequação dos

modelos da Antropologia Africanista (e melanesista também) para o continente americano,

postulavam a tese de que:

“(...) as sociedades do continente se estruturam em termos de idiomas

simbólicos que (...) não dizem respeito à definição de grupos e à transmissão de bens, mas

a construção de pessoas e à fabricação de corpos” ( ibid.: 10, grifo meu).

Seguindo o referido texto, os autores reforçam sua posição, em especial ao notar

que a dialética nativa básica entre corpo e nome define a pessoa indígena em uma pluralidade

de níveis estruturados internamente. Cito:

O ponto a ser enfatizado é que o corpo é o locus privilegiado pelas

sociedades tribais na América do Sul, como a arena ou o ponto de convergência desta

oposição. Ele é o elemento pelo qual se pode criar a ideologia central (...) nas sociedades

tribais Sul Americanas (...). (ibid.: 13).

Mediante estas conclusões, os autores propõem entre outras coisas, repensar a

velha oposição Natureza/Cultura. É o que Viveiros de Castro procura fazer a partir dos dados

Yawalapití em “A Fabricação do Corpo na Sociedade Xinguana” (1979). Uma das idéias

centrais dos nativos enfatizada pelo autor é a de que o corpo humano precisa ser submetido a

processos intencionais e periódicos de fabricação.

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Neste ínterim, retornamos à nossa pergunta inicial, o que faz de um corpo um

xamã, e talvez a questão deva agora ser reformulada para “como se fabrica um corpo que se

xamaniza?”.

No mesmo artigo, Viveiros de Castro (1979) nos informa que a noção Yawalapiti

de fabricação está imbuída estruturalmente da noção de metamorfose, processo corriqueiro

nos mitos, na doença e no xamanismo xinguanos. No limite, o xamã seria aquele que muda a

forma corporal, ou seja, o mestre da metamorfose. Guardemos esta observação, para agora

avançarmos as noções de “perspectivismo” e de “multinaturalismo” ao tema xamanismo e

“política do corpo”.

Segundo Viveiros de Castro (2002a), o pensamento perspectivista ameríndio tem

como noções básicas um universo habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas,

humanos e não-humanos, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. Esta concepção

ameríndia, segundo o autor, supõe uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos,

exatamente o oposto das concepções cosmológicas ocidentais. Tal inversão confirma a

inadequação da distinção clássica entre Natureza e Cultura para descrever dimensões internas

a cosmologias não ocidentais, como muitos antropólogos já haviam percebido.

Em suma, o pensamento ameríndio se fundamentaria em um veio original mítico

de uma só humanidade constituída de humanos e animais, tendo estes posteriormente se

afastado deste fundo comum. Por conseguinte, animais e outros seres não humanos possuem

um componente espiritual que os qualifica como pessoas, e veriam a si mesmos como

humanos e aos humanos como animais ou espíritos, o que muda então é o ponto de vista de

cada um. Já para os humanos, o corpo visível do animal é concebido como “roupa” ou

“equipamento”, uma aparência que esconderia uma essência antropomórfica.

Neste ponto, para fecharmos a questão, retornamos à metamorfose e seu mestre, o

xamã. Dadas as noções perspectivistas, um xamã seria então aquele que possui diversos

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pontos de vista, podendo assumir uma perspectiva diferente da sua e retornar à original, o que

explicaria em bom termo a intencionalidade nativa de fabricar um “corpo-xamã”. Redefine-se

então o xamã como um “metamorfo” e a metáfora plausível de sua atuação seria a de um vaso

comunicante inter-espécies, cruzando as barreiras corporais e adotando perspectivas de

subjetividades outras, com isso, tecendo um diálogo trans-específico, ou seja, realizando uma

“arte política” (Viveiros de Castro, 2002a: 358).

Nesta “Pólis” que abrangeria espaços humanos e não humanos e que, obviamente,

não se reduz a categorias distintivas entre o Profano e o Sagrado, ou Natureza e Cultura,

teríamos a plenitude de uma política do corpo, ou melhor, uma cosmopolítica do corpo.

Para fechar o nosso argumento, basta lembrar, que ao definir o xamanismo à luz

do “perspectivismo” e do “multinaturalismo”, Viveiros de Castro compara os xamãs a “(...)

diplomatas que tomam a seu cargo as relações interespécies, operando uma arena

cosmopolítica onde se defrontam as diferentes categorias socionaturais” (2002a: 468).

Mediante o exposto, para responder “o que faz de um corpo um xamã?”, ou

melhor, “como se fabrica um corpo que se xamaniza?”, é preciso entender primeiro as

noções de pessoa, o esforço ritual, o conceito nativo dos “Yuxin” (espíritos), enfim, os

preceitos básicos da cosmologia Pano. Esse é o objetivo deste capítulo.

Por questão de economia, nosso recorte privilegiará os dados etnográficos dos

grupos meridionais (Pano do rio Purus e do Acre), sem descartar, quando convier à análise, os

dados dos grupos de outras áreas.

3.1 Construindo “pessoas verdadeiras”: os “Huni kuin”

Após a introdução deste capítulo, é plausível afirmar que nas sociedades indígenas

sul-americanas tudo o que é visível, seja em sonho ou sob efeito de alucinógenos, é matéria,

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tem corpo, porém com gradações qualitativas diferentes, daí o intenso esforço nativo para se

fabricar um corpo humano (e mantê-lo como tal).

Leite Lopes (2001) esclarece bem este aspecto ao aplicar o modelo perspectivista

em sua análise dos xamanismos Araweté, Tukano e Bororo, chegando a interessantes

conclusões. Diferente da noção platônica de alma etérea transcendental, a “alma” dos

ameríndios é um tipo de corpo e segue a lógica das transformações corporais.

Tal como Crocker (1985) já verificara em “Vital Souls”, poderíamos concluir que

a categoria nativa de corpo deva ser melhor pensada em um termo híbrido tal como “almas-

corpos”.

Dada a noção “perspectivista” de indiferenciação da alma (Viveiros de Castro,

2002a), a construção contínua de pessoas é central para os ameríndios, já que a sua

descontinuidade implicaria que a alma, sob outros hábitos, se transformasse em outro tipo de

corpo. Ou seja, haveria uma ameaça constante no cosmos de subjetividades outras que podem

incorporar a alma de uma pessoa humana à sua perspectiva não humana.

Este modo de pensar indígena faz-nos compreender melhor o intenso esforço

ritual, a constante fabricação do corpo por parentes próximos, o processo da cura e do

xamanismo. Num universo fluido, tudo visa a impedir a captura de uma pessoa por

subjetividades outras, sem o quê, o corpo então seria visto em outra forma e não mais como

humano pelos seus.

A construção da pessoa, com enfoque no gênero é tema central da tese de

McCallum (1989), não por menos. A antropóloga trabalhou junto aos Cashinahua, grupo Pano

fronteiriço da área entre o Brasil e o Peru. A maior parte de sua pesquisa de campo realizou-se

durante os anos de 1984-85, preferencialmente nas aldeias de Recreio e Fronteira no Estado

do Acre.

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McCallum compreende a “socialidade”16 Cashinahua como centrada no gênero e

na “personhood”17 (1989: 37). A organização social dualista Cashinahua, segundo a autora,

poderia ainda ser vista como uma transformação dos sistemas do Brasil Central, ou dos

grupos endogâmicos das Guianas.

Mas a autora, comparando o dualismo Cashinahua com aquele dos grupos Jê e dos

grupos endogâmicos das Guianas, constata que, para os primeiros, a real dicotomia estaria

entre os aspectos perecíveis e imperecíveis (os nomes neste último) do corpo e não na

dialética entre “personhood” e corpo (ibid.: 40). Sua intenção é concentrar a análise mais na

relação vivida entre o nome e o corpo do que na descrição da estrutura formal de transmissão

de nomes. Os Cashinahua tem um estoque restrito de nomes e o casamento exogâmico de

metades tipo Australiano, segundo a autora, define-se por transmissão de nomes em geração

alternada. Assim, uma mulher teria o nome de sua MM e um homem, de seu FF, sendo que o

seu nome pertenceria à mesma seção de casamento.

Mas a aldeia nativa ideal, estimada entre 50 a 100 habitantes e conforme uma

unidade endogâmica, não ocorre muitas vezes na prática, pois os nomes podem ser

transmitidos bilinearmente e não só por patrimetades.

Sendo assim, o sistema onomástico trabalharia como um princípio de transmissão

paralela e a criança Cashinahua receberia seu nome após algumas semanas do nascimento. O

uso deste nome verdadeiro (“Kena Kuin”) definiria as “pessoas verdadeiras” (“Juni Kuin”),

termo pelo qual os nativos se reconheceriam.

16Entendemos o uso do termo “socialidade” conforme VIVEIROS DE CASTRO (2002a:295-316) em “O conceito de sociedade em Antropologia”. O autor chama atenção para a tendência da antropologia contemporânea em “(...) recusar concepções essencialistas ou teleológicas da sociedade como agência transcendente aos indivíduos (...)” (:313). E, segundo ele, ao invés do conceito de sociedade, “(...) preferem-se noções como socialidade, que exprimiriam melhor o processo intersubjetivamente constituído da vida social” (:313). 17 Referindo-se ao pensamento perspectivista ameríndio, VIVEIROS DE CASTRO (2002) traduz “personhood” como “personitude” ao citar Marilyn Strathern: “(Esta) convenção requer que os objetos de interpretação –humanos ou não- sejam entendidos como outras pessoas; (...), o próprio ato de interpretação pressupõe a personitude (personhood) do que está sendo interpretado.” (STRATHERN,M. apud VIVEIROS DE CASTRO,2002a:360). Entendemos o uso de “personhood” por McCallum, que também se refere em sua tese à

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De acordo com McCallum, há um vínculo afetivo maior entre as pessoas com o

mesmo nome, e isto é bastante forte entre as meninas. À medida que a criança cresce, somente

os mais íntimos podem usar o seu verdadeiro nome sem ofendê-la.

A autora conclui que os verdadeiros nomes e sua transmissão não estão ligados à

individualidade, mas a relações específicas, ou seja, a uma teoria da socialidade que, para os

nativos, estaria de acordo a uma concepção de reprodução cíclica.

Portanto, corpos verdadeiros seriam produzidos através da socialidade, ou seja,

parentes teriam que ser constantemente fabricados por determinadas relações entre os

Cashinahua. A idéia de “Nabu Kuin” (parente real) diz respeito a um mundo de afeição e

cuidados, distinguindo Ego dentre as mais distantes relações classificatórias, o que implica

que uma criança deva saber como chamar um parente para ser socializada.

Esta demanda produtiva de corpos Cashinahua é expressa no esforço ritual e é o

que veremos a seguir de acordo com o relato de McCallum.

3.2 Fábrica de Corpos/Pessoa: ritual “Nixpo Pima”

Nixpo Pima é um ritual de iniciação cuja importância é o vínculo definitivo das

crianças a seus nomes, daí McCallum chamá-lo de “batismo Cashinahua” (ibid.:132). A

pesquisadora não presenciou o ritual durante sua estadia no campo, e a explicação que lhe foi

dada é que, à época, não havia líder de canto, essencial à sua execução.

De acordo com os relatos de seus informantes, o rito consiste na mastigação da

planta “nixpo”, tingindo com isto os dentes das crianças de negro e assim protegendo-os do

decaimento (ibid.: 133). Durante este período, o “líder de canto” entoa cânticos cujos motivos

Strathern, como a noção de pessoa ou o ato de personificar (ou tornar-se pessoa) algo ou alguém, agência intencional.

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levam à aldeia do “Inca”.18 Os cantos são direcionados a tranqüilizar o apetite do “Inca-Inu”

por carne humana, tornando mais segura a viagem das crianças (McCallum, 1989: 136). O

ritual coincide com a época da colheita do milho, alimento que as crianças (meninos e

meninas) poderão ingerir após o uso do “nixpo”. Os nativos explicam que o milho dá

segurança a elas ao evitar que os espíritos canibais “Inca” as devorem.

Para McCallum, fica claro que neste rito de passagem a criança é preparada para

engajamentos corporais com espíritos e para, a partir daí, tomar lições para o seu

desenvolvimento em adultos. Não só isso, o “nixpo pima” seria também o primeiro passo para

a criação da diferença de gênero. Depois do ritual, a diferenciação sexual se vincula cada vez

mais à diferença de gênero. A produção cultural “gênero” estaria ligada ao processo

econômico e entre os nativos somente adultos produtores seriam completamente “gendered”

(ibid.: 142) e neste sentido, pessoas completas.

Devido à ênfase que os nativos dão à divisão e interdependência entre os sexos,

McCallum percebe que as agências masculina e feminina Cashinahua seriam opostos

complementares dentro do processo econômico e social. A bem de sua análise, a autora

recorre aos conceitos de “cross sex relations/same-sex relations” de produção,

fundamentando-se nos trabalhos de M. Strathern na Melanésia.

Porém, faz uma ressalva lembrando que, diferente da Melanésia de M. Strathern,

entre os Cashinahua a concepção da pessoa assume uma integridade do “Self”,19 não divisível

como em alguns casos da Oceania (ibid.: 201). Pessoas Cashinahua não se relacionariam às

suas possessões em termos da dicotomia sujeito/objeto. Suas coisas são consideradas aspectos

18 A imagem do Inca está relacionada ao canibalismo. Os Cashinahua têm histórico recente de endocanibalismo.

Para as concepções do Inca na mitologia Pano, ver CALAVIA SÁEZ (1995). 19 Entendemos o uso do “Self” (noção de Eu/ consciência de Si) pela autora, conforme a vertente fenomenológica de Carl Rogers, expoente máximo da “teoria do Self” na América. Diz o autor sobre o desenvolvimento do Self: “(...) uma porção do campo perceptual total do indivíduo torna-se diferenciada e simbolizado através de uma representação consciente de ser e de seu funcionamento. Esta conscientização pode ser descrita como experiência do self. Esta representação consciente do ser e (...) da interação com o ambiente, (...), dá origem ao conceito de self, um objeto perceptual no campo experiencial.” (ROGERS, C. In MILLON, T.[dir], 1979:144).

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de si mesmas, o que explicaria, por exemplo, o fato de destruírem os objetos que pertenciam

ao morto enquanto vivo.

3.3 A Fábrica Contínua de Corpos/Pessoas: o ritual “Kachanaua”

Ainda segundo Cecília McCallum, os Cashinahua afirmam que este ritual é feito

para propiciar uma boa roça, consistindo de canções que nomeiam as plantas ou, melhor

dizendo, os seus “espíritos” “Yuxin”. Existem pequenos e grandes “Kachanaua” que podem

levar de duas semanas a um mês. Além de ser um ritual propiciatório da vida vegetal e

aquisição de caça, é visto como mantenedor de uma comunidade moral (McCallum,

1989:286), gerando um estado de bom ânimo em tempos de crise. Há graça e jocosidade que

assumem aspectos carnavalescos, com grande consumo de “caissuma” (fermentado de milho),

como por exemplo no ritual Kachanaua das mulheres20, cujo ápice consiste na inversão dos

papéis feminino/masculino.

McCallum (1989) interpreta este ritual, não como um mecanismo de restaurar a

ordem, mas, ao contrário, como a expressão de um cotidiano que lida e relaciona-se com os

“Yuxin” . O ritual restabeleceria o mundano e não uma interrupção deste. Sendo assim, o

mundo de fora, da floresta, de plantas selvagens, entra como força renovadora e através dos

cantos de nomeação transfere poder às plantas domésticas. McCallum lembra ainda que

nenhum nativo explicou o ritual em termos que recorressem à mitologia (ibid.: 314).

O Kachanaua, pela ótica da organização, diz respeito à reprodução dos seres e

esta só é possível quando o de fora é trazido para dentro e ambos são propriamente

20 Este é chamado de ritual “Conta” (McCallum,1989: 300).

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combinados (McCallum, 1989: 322-323). Todo o processo resulta na criação de vida, mas de

um modo constante e que envolve ciclos de produção, distribuição e consumo.21

Estas atividades estão engajadas nas redes de parentesco, numa variedade de

relações, cujo ponto central do processo social para McCallum são as relações

masculino/feminino e que nada tem a ver com a dominação masculino/feminino ou teoria da

exploração. Neste aspecto a autora justifica que, centrando o foco na questão do gênero, pode-

se esclarecer os aspectos econômicos e políticos nativos, sem recair no discurso estrutural

funcionalista da organização social (ibid.: 352).

Mediante o relato etnográfico minucioso de McCallum dos rituais, notamos um

aspecto central para a fabricação do corpo ou pessoa Cashinahua: é o conceito nativo de

“Yuxin”. Descritos como “espíritos” ou forças renovadoras do exterior que se relacionam com

plantas domésticas e crianças, os “Yuxin” são necessários a todo o desenvolvimento para

tornar-se “Juni Kuin” (pessoas verdadeiras).

Vejamos agora com maior detalhe este conceito fundamental, não só ao

pensamento Cashinahua, mas também comum a outros grupos Pano.

3.4 Cosmologia Pano: o conceito “Yuxin”

Townsley (1988), em sua etnografia “Yaminawa”, relata que na noção de pessoa

nativa existem três componentes, um dos quais seria o corpo físico “Yora” e os outros dois

seriam não físicos. Estes últimos seriam melhor entendidos como aspectos da consciência e da

vivacidade, respectivamente o “diawaka” e o “wëroyoshi” (ibid.: 107). O “diawaka” seria

uma “sombra” que produz as idéias e diz o que fazer, ao passo que o “wëroyoshi” seria mais

bem entendido como uma essência vital que anima e dá vida e, portanto, causa a morte ao

21 Vimos na introdução da dissertação que SANTOS GRANERO (1986) usa preceitos semelhantes à McCallum, na análise do ritual, entendendo como processo econômico de produção/reprodução ou técnicas de “life-giving”,

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abandonar o corpo. Contudo, a morte, segundo Townsley (1988), é o momento em que as

relações entre “yora”, “diawaka” e “wëroyoshi” são asseveradas. O “wëroyoshi”, diz o autor,

tem um tênue vínculo com o corpo durante a vida, estando sujeito a vagar e ficar à mercê de

outros espíritos “yoshi”. Os sonhos e alucinações confirmam as andanças do “wëroyoshi” e é

nestas condições que também se entra em contato com a alteridade.

De tudo isso, o autor conclui que a ontologia Yaminawa teria um esquema

tripartite, dividindo o indivíduo em categorias que, embora inicialmente possam se parecer

com nossas idéias de corpo, razão e percepção, são significativamente diferentes.

Não é difícil perceber, a partir da etnografia de Townsley, por exemplo, que as

noções “diawaka” e “wëroyoshi” não se reduzem a “funções mentais” e que elas não estão

localizadas no cérebro (ibid.: 108). O “diawaka”, fortemente vinculado ao corpo, tem nas

sombras das pessoas a confirmação de sua existência que, após a morte, permanece ligada aos

vivos de maneira invejosa e negativa sendo que a intenção do rito funerário é aplacá-lo. O

“wëroyoshi” ao deixar o corpo e viajar para a terra dos mortos (“Bai Iri”) encontra um lugar

sedutor. Assim, dentro da concepção nativa do “Yoshi”, a perda da alma na doença pode ser

recuperada ao se tentar atrair o “wëroyoshi” de volta à terra dos vivos. Este seria todo o

esforço xamânico para o que poderíamos chamar de “cura”.

As visões induzidas pelo alucinógeno “ayahuasca” (Banisteriopis Caapi, “Shori”

em Yaminawa, ibid.:127), dirigidas por procedimentos rituais e cantos xamânicos, conferem

aos humanos acesso controlado ao mundo dos espíritos o que torna o poder da visão central

ao xamanismo Yaminawa (ibid.: 127).

Por sua vez, toda a mitologia Yaminawa é marcada pelo mundo “Yoshi”. Dos

eventos recontados nos mitos, surge uma ordem no mundo que emergiu do caos primordial,

de coisas que ainda não tinham suas formas fixas, onde tudo era mutável. Porém, estes

poderes, os “Yoshi”, continuam a existir e interagir (ibid.:128).

e que, no caso Piaroa, os xamãs teriam o monopólio destes “meios místicos de reprodução”.

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Não é difícil notar pela etnografia, e Townsley enfatiza isto, que, subjazendo a

organização dual e o campo da ação xamânica, existe um sistema conceitual cujo centro é o

“Yoshi”. Este conceito interpenetra o mundo aparente em cada ponto e está latente em todas

as situações. A noção central de “Yoshi” aparece na cosmologia de vários grupos Pano sob

diversas formas mas segue uma lógica semelhante.

Em McCallum (1989), também vemos a descrição da cosmologia nativa

fundamentada no “Yuxin” como categoria epistêmica e muito semelhante ao “Yoshi”

Yaminawa. A autora da tese, descreve o que ela chama de uma teoria das “almas” (ibid.: 143),

definindo o “Yuxin” como um ser intangível para os estados ordinários da consciência, afeito

a uma força ou poder que afeta o estado dos corpos e objetos inanimados ou substâncias que

os habitam sendo que as pessoas morrem quando seus “Yuxin” deixam seus corpos (ibid.:

144). Já nos “estados alterados de consciência”, que se tem sob efeito de alucinógenos, ou nos

sonhos e nas doenças, o “Yuxin” não só é tangível como assume aspectos antropomórficos

(ibid.: 144).

Tanto McCallum quanto Townsley vêem dificuldades em traduzir “Yuxin” em

termos como “espíritos” ou “almas”, fazendo ressalvas pertinentes sobre o cuidado que se

deve ter ao usar estas noções em termos ocidentais.

A antropóloga explica que uma pessoa tem um número variado de “Yuxin”,

nomeados distintamente e associados a partes do corpo. A dicotomia, segundo McCallum

(1989), estaria entre a “alma verdadeira” (“Yuxin Kuin”, “Bedu Yuxin” ou “Nama Yuxin”,

conforme o contexto) e a “alma corpo” ou “sombra” (“Yuda Yuxin” ou “Yuda Bake”).

Assim, quando por exemplo, alguém sonha, é o seu “Nama Yuxin” (alma sonho) que vagueia

enquanto o corpo dorme, ao passo que, quando alguém morre é o seu “Yuxin Kuin” que saiu

do corpo e foi para a terra dos mortos. A autora ratifica a dicotomia, pois a “alma verdadeira”

(“Yuxin Kuin”) é imortal e a “alma corpo” (“Yuda Yuxin”) é mortal, sendo que a “alma

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Diz ainda a antropóloga que o “Yuxin” é o mais extenso e polissêmico conceito-

chave da ontologia Cashinahua. Esta noção implica que todos os seres vivos têm “Yuxin”

(entendido como agência intencional), sendo que a água, o ar e o fogo são conectores ou

desconectores (o fogo neste caso) de “Yuxin”(Lagrou, 1998: 49). Mais ainda, somando-se à

noção de “Yuxin” está a idéia de “Ibu” (guardião ou dono, criador, genitor). O termo “Ibu”

descreve uma qualidade demiúrgica de criação e de contínua responsabilidade por ela. Assim,

por exemplo, os três “Yuxibu” mais poderosos são “Ibu” dos três níveis interconectados deste

mundo: água (“Yube”/lua), floresta (“Ni ibu”) e céu (Inka) (ibid.: 70).

A expressão da cosmologia “Ibu” no mundo social significa pai e mãe e, por

extensão, líder, sendo portanto essencial para entender a política nativa. Os diferentes líderes

da comunidade são designados como “Ibu”: o homem (“xanen ibu”) e mulher (“xanen ainbu

ibu”) chefes de uma aldeia, líder masculino e feminino de canto e mestra tecelã (“ainbu

keneya” ou mulher com desenho). Há ainda um sentido coletivizador na noção “Ibu”, pois

Lagrou relata que um falante usa o termo “Yuxibu” quando quer enfatizar que está lidando

com mestres de coletividades de seres pertencentes a uma mesma classe e não com os

“Yuxin” de uma planta ou animal em particular (Lagrou, 1998: 70).

3.5 Usos do Corpo: os “Kene Kuin”

Erikson (1993), bem como outros “Panólogos”, já chamava atenção para a

evidente coerência estilística na ornamentação dos objetos e dos corpos entre os diferentes

grupos Pano.

Lagrou (1998) não deixa de notar a ênfase que os Cashinahua dão aos cuidados do

corpo, ao comportamento e ao uso de ornamentos e desenhos. Esta ênfase no desenho

corporal é tão marcante que foi escolhida como elemento crítico da auto-imagem nativa,

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distinguindo os Cashinahua dos demais grupos Pano como “Povo com desenho”. Nesta

medida, por exemplo, os Shipibo do Ucayali seriam igualmente “povo com desenho” e

portanto “Huni-Kuin” (pessoas verdadeiras), diferente dos vizinhos dos Cashinahua que

também são grupos Pano, os Kulina e os Kampa, mas que não têm desenhos considerados

elaborados (Lagrou,1998: 182).

Não é por acaso que um dos pontos centrais da tese de Lagrou sejam os desenhos.

Constituída com base na ontologia “Yuxin”, teríamos, segundo a autora, uma tríade

perceptiva dos Cashinahua: “Kene” (desenho), “Dami” (imagem) e “Yuxin” (espírito). Esta

trilogia nativa, diz ela, entende que todas as coisas e seres percebidos são “fenômenos”,

implicando que todas as percepções têm algum nível de existência. Com isto, os intrincados e

belos desenhos geométricos são considerados guias para a percepção e cognição Cashinahua.

“Kene” se torna então um tipo de código escrito, ao ser inscrito em corpos e objetos e

seguindo regras estritas de composição e execução (ibid.: 198).

Definindo o conceito “Kene”, a autora explicita que ele não é o corpo nem o

“Yuxin” a que se refere, mas um código composto de signos que aludem a uma presença, à

possibilidade de revelação de “Yuxin” em forma incorporada. Daí “Kene” conter a

possibilidade de formas e de seres, capturados ao nível de “Yuxin”, mundo das imagens

livres. Por outro lado, o conceito “Dami” significa imagem, só que deformada ou em processo

de formação. É pura transformação e, portanto, termo relacional.

É esta a lógica que subjaz à experiência com a ayahuasca, usando-se o verbo

“dami” para descrever as transformações de imagens percebidas pelo alucinógeno: “dami en

uiin” (vejo transformações) ou para ver transformações em si mesmo como na expressão “en

damiai” (estou transformando) (Lagrou, 1998: 201). Portanto, “dami” também significa

modelar, produzir formas, assim como um pai que modela o feto na barriga da mãe. Esta

capacidade transformativa, lembramos, é própria também dos “Yuxibu” (genitor).

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É preciso notar, contudo, que o verdadeiro “Kene” é uma atividade estritamente

feminina, da mesma maneira como cozinhar, fiar, tecer e fazer cerâmica o são. Neste sentido,

os homens ao produzirem desenhos, só fazem “dami”, imagem inacabada.

Townsley (1988) também notifica a importância da visão induzida por drogas

entre os Yaminawa, com sessões dirigidas por procedimentos rituais e cantos, dando acesso

controlado ao mundo dos espíritos (ibid.:127). O controle das visões é central ao xamanismo

Yaminawa, mas, pelo crivo crítico dos Cashinahua, os desenhos deles são considerados

menos elaborados, ou na linguagem nativa, “Yaminawa Kene” (Lagrou,1998: 182).

Mas é importante notar até aqui um aspecto, o da sinestesia nesta tríade perceptiva

Cashinahua: sons, cantos que evocam imagens “Dami” e que resultam em desenhos “Kene”

nas mãos de exímias artesãs.

Lagrou (1998), mediante os dados etnográficos Cashinahua, traz uma crítica às

noções ocidentais de arte e cognição, noções estas que, desde Platão, privilegiaram a

existência de uma realidade lógica e verdadeira do ser, alcançável pelo intelecto, em

detrimento das aparências sensíveis que se tornaram sinônimos de ilusório ou falso. Os

desenhos “Kene”, por Lagrou, nos contam outra história...

Conclusão do Capítulo

Como vimos, ao apresentarmos as condições da produção de conhecimento e, por

conseguinte, da fabricação do corpo e pessoa, o fundamental para o entendimento da

epistemologia nativa é a categoria “Yoshi”. Nas etnografias, os autores tentam defini-la pela

sua capacidade fluida, transformativa, interativa, etérea, mas que se corporifica e que, sob

determinadas condições, pode ser vista em seu aspecto antropomórfico.

O leitor pode se surpreender ao ver que um capítulo com o termo “corpo” em seu

título, discorra longamente sobre uma categoria que à primeira vista possa parecer exatamente

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o seu contrário. Contudo, o entendimento do conceito nativo “Yoshi” esclarece a questão

proposta no início: “o que faz de um corpo um xamã?”

As substâncias consideradas amargas (“muka”, “rome”), como a ayahuasca, o

rapé do tabaco, o veneno do sapo são, como nos indica Lagrou (1998), meios de ação

“Yuxin”. E, ao abster-se de substâncias tidas como “doces”, propicia-se a agência “Yuxin”,

no sentido de que sejam produzidas mutações corporais.(:146)

Da mesma maneira, Townsley (op.cit.) considera que não é simplesmente uma

questão de conversão em xamã, mas sim de ser substantivamente transformado. O iniciado, ao

ingerir determinadas criaturas ou plantas, é como se algo delas, o seu “Yoshi”, passasse agora

a fazer parte dele.

Assim, o poder do xamã está intimamente ligado à sua capacidade de lidar com

este mundo fluido, poder este adquirido através de um aprendizado que visa uma

transformação da pessoa, no sentido de uma metamorfose completa do “corpo-alma”.

Adquirir conhecimento implica diretamente esta metamorfose.

Mais ainda, o que é próprio do “Yuxin” é transformar-se. O xamã, ao demonstrar

sua “Yuxinidade”, demonstra ser possuidor da capacidade de familiarizar-se com a alteridade,

transitando entre os diferentes domínios do cosmo e fazendo sua política. A lógica animista,

ou “perspectivista em seu aspecto forte” (Pedersen, 2001) dos “Yuxin” Pano, promove as

bases de um conhecimento compartilhado por todos e, por conseguinte, de um ambiente

político propício a relações características do xamanismo horizontal.22

Passemos agora ao quarto capítulo, no qual discutiremos com maior detalhe o

xamanismo horizontal pan-Pano através da iniciação, do aprendizado e dos diferentes

estatutos dos xamãs.

22 Discutimos este ponto, no item “Instrumental teórico-metodológico: Perspectivismo e Tipologia”, na introdução da dissertação.

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Para os grupos Pano, como vimos no capítulo anterior, tal princípio se enquadra

no conceito nativo de “Yoshi”. Ligado a este sistema de energia global, há, portanto, uma

noção nativa de poder xamânico.

Hugh-Jones (1994), ao fazer a distinção entre xamanismo horizontal e vertical,

exemplifica este poder xamânico com dois tipos básicos de xamã entre os Tukano do noroeste

amazônico: o “payé” e o “~kubu”. O primeiro, considerado um xamã propriamente dito, teria

como técnicas o uso de alucinógenos, a sucção de objetos ou substâncias malignas do corpo

do doente, o sopro com fumaça de tabaco e o transe ascensional, caracterizando-se na

tipologia como xamã horizontal. Já o segundo, o “~kubu”, seria um possuidor de cantos,

conduzindo rituais de produção e reprodução e propiciando a cura somente com cantos e

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perceber, mais uma vez, como o xamanismo de tipo horizontal vincula-se a condições

“contra-Estado”.

4.1 A Carreira Xamânica: iniciação e aprendizado

Melatti (1985), entre os Marubo, grupo Pano situado a norte dos grupos

meridionais “Nawa”, nos oferece uma descrição da iniciação e aprendizado xamânico.

Também aí segue-se a lógica dos “Yoshi” e relacionados a eles estão os espíritos “Yobé”,

alguns com qualidade de cura por sua capacidade neutralizadora dos “Yoshi” nefastos.

Melatti descreve em sua tese que, na cura xamânica, o “Yobé” conta ao curador

xamã o tipo de doença e assim, ao executar o canto de cura, o “Yoshi” da doença toma forma

e pode ser exortado a sair do corpo enfermo. Segundo ela, um curador aprende dos “Yobé”,

ao usar ayahuasca ou nos sonhos, e ensina esta técnica de “dar forma” aos aprendizes.

Durante todo o aprendizado, há uso de ayahuasca e, sob seus efeitos, são vistos “dardos

mágicos” que são introduzidos no corpo do iniciante e é isto que vai lhe conferir os poderes

de cura (ibid.: 261).

Líderes de maloca geralmente são curadores, mas só alguns são exímios nesta arte,

e seu status, segundo o relato de Melatti, está vinculado à capacidade intelectiva de

memorizar e recriar novos cânticos. Vários curadores de diferentes malocas podem se unir

para uma sessão de cura com ayahuasca, acionando um mecanismo de solidariedade entre

parentes consangüíneos e afins.

Mas a autora enfatiza que há um diferencial entre curador (vários o são) e xamã.

Para alguém se tornar um xamã, precisa receber um chamado sobrenatural que se manifesta

através da doença e que pode ocorrer em qualquer idade. A partir desta revelação, o iniciado

deve passar ainda por um rigoroso treinamento, aprendendo cânticos, evitando alimentos

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considerados doces e ingerindo substâncias consideradas amargas (“Rome”) como o “rapé”

(pó de tabaco) e a ayahuasca. Tal como notificado por Erikson (1990), vemos aqui também o

princípio dual entre os sabores doce e amargo concomitante à lógica dos “Yoshi”.

Muitos iniciantes desistem nesta fase, permanecendo como curadores comuns.

Um xamã, ao passar pelo aprendizado completo, adquire a habilidade de dialogar com os

“Yobé” de sua seção e esta habilidade segundo os nativos só ocorre se os “Yobé” assim o

quiserem (Melatti, 1985: 262).

Aí está a principal diferença, pois um curador comum não tem a capacidade de

intimidade com os seus “Yobé” e seu status dependerá apenas de sua vontade individual e

capacidade intelectual.

Outro chamado vocacional pode ser pela picada de insetos e, quando isso

acontece, significa que aquela pessoa vai ser curador ou xamã e, se já for curador, em breve se

transformará em xamã (ibid: 263). Contudo, Melatti não relata picadas intencionais com este

fim.

Digno de nota ainda é o grande conhecimento que os curadores têm da anatomia e

fisiologia do corpo humano e isto se percebe pelo conteúdo das narrativas dos cânticos.

A doença é explicada pela movimentação dos “Yoshi” no corpo que tomam

preferencialmente o eixo vertical, indo da cabeça aos pés. Os cânticos retomam este caminho

pelo corpo expulsando a doença pelos membros inferiores e orifícios corporais.

Novamente temos sons que são imagens, atuando na manipulação corporal, o que

faz Melatti comparar os cantos de cura Marubo aos cânticos dos Cuna descritos por Levi-

Strauss, aderindo à interpretação psicológica do ritual xamânico tal como uma “eficácia

simbólica” (Levi-Strauss, 1991: 215-236).

Townsley (1988), com os Yaminawa, apresenta mais exemplos em que a

mitologia e o xamanismo revelam aspectos conceituais e cognitivos. Conceito e símbolo se

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imbricam mas, segundo o autor, é necessário reintegrá-los aos reinos da ação e da experiência

com o qual estão vinculados (ibid.:126). Por sua etnografia, reforça-se mais uma vez que,

subjacente à organização dual e ao campo do xamanismo, está um sistema conceitual cujo

centro é o “Yoshi”. Este conceito interpenetra o mundo aparente em cada ponto e está latente

em todas as situações, conforme vimos anteriormente.

Ainda segundo Townsley, o processo de iniciação xamânica também apresenta

quadros da organização dual Yaminawa. Os xamãs “Roa” e “Dawa” são distinguidos como

aqueles que têm diferentes acessos a determinados “Yoshi” e seus poderes.

Podemos ver aqui semelhanças com o sistema Marubo dos “Yobé” por seções,

mas, entre os Yaminawa, há dois xamãs durante a iniciação, cada um apresentando os Yoshi

de sua metade ao iniciado (Townsley, 1988.: 135).

Townsley também descreve que a iniciação é árdua e poucos conseguem ir até o

fim, pois há dieta estrita, absoluta abstinência sexual e dolorosos ordálios supervisionados por

um xamã experiente. Segundo o autor, o aprendizado Yaminawa visa apresentar aos neófitos

os espíritos de animais e plantas que darão a eles os poderes que procuram. O “Shori”

(ayahuasca) é um destes poderes, que ensina os cânticos apropriados às espécies encontradas.

Seguem-se picadas de formigas (“ani”) e depois de vespas (“dai wida”), consideradas ambas

muito dolorosas (ibid.: 133).

Mas o último e mais poderoso espírito de todos é “Rodo”, a cobra anaconda,

mestre dos mestres, o “iwo” de todos. Além disso, o iniciado deve ingerir a língua e os

excrementos da cobra. Explica-se então a dureza dos ordálios, pois a questão nativa do

aprendizado não pode ser vista meramente como uma aquisição de conhecimento no sentido

Ocidental, mas sim, pensada como uma transformação substantiva, num processo que imbrica

o físico e o mental. Tornar-se xamã é tornar-se um tipo radicalmente diferente de ser humano

(ibid.: 133).

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Mais ainda, a transmissão do conhecimento não é automática, os espíritos

escolhem o neófito tanto quanto este os escolhe. Nem iniciado nem o mestre xamã

determinam o processo, eles simplesmente criam as condições na qual ele ocorre.

Townsley (1988) conclui, corroborando Carlo Severi e os cantos de cura Cuna

(ibid.:137), que as metáforas produzidas nos cantos “Koshuiti” Yaminawa não são destinadas

a produzir efeitos no consciente ou subconsciente dos pacientes.24 As metáforas são

direcionadas para os xamãs e para os “Yoshi”, inteligíveis somente por eles e toda a

“performance” se faz nesse sentido. O conceito de “Yoshi”, dotado de consciência e volição, é

o fundamento e fim da prática xamânica (Townsley, 1988: 137).

Lima (2000), em sua recente tese, concorda neste ínterim com Townsley, pois,

entre os Katukina, a condição que marca o “duplo” da vida xamânica é conviver com duas

famílias. A familiarização com seres metafísicos (“Yoshi”) não é simplesmente uma questão

de aquisição de conhecimentos, mas sim, de transformação substancial (: 139).

Dentro desta lógica, não é de surpreender que entre os Katukina existam relatos de

“casamento místico” entre xamãs e mulheres-espíritos, tal como há entre os Shipibo-Conibo

(ibid.: 138). Este casamento, que completa o aprendizado xamânico Katukina, pode gerar

“filhos-espíritos” e estes podem auxiliar o xamã na cura. Segundo Lima (2000), a abstinência

sexual durante o aprendizado é esclarecida pelos nativos como uma forma de evitar o ciúme

da “mulher-espírito”.

Há também, na iniciação Katukina, uma revelação, um chamado e distinguem-se

rezadores de xamãs. Os rezadores têm atributos mais modestos cabendo a eles tratar de

pequenos desarranjos corporais com cantos de cura. Só os xamãs sabem curar e vingar

doenças por feitiços e tornar efetivo os cantos para atrair a caça. A rigor, o xamã Katukina

pode praticar todo o tipo de cura.

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A iniciação de rezadores/xamãs segue as mesmas etapas: encontro com a “cobra-

grande”, sonhos que revelam os segredos de cura e incentivo da esposa para que seu marido

torne-se rezador ou xamã (Lima,2000: 133).

Os ritos de cura entre os Katukina, assim como em outros grupos Pano, são

concebidos como um embate entre os especialistas xamânicos e seres sobrenaturais. Tal como

os Marubo descritos por Melatti, também aqui prescreve-se restrições alimentares para a

manutenção do “Rome” (amargo) no corpo evitando a ingestão de alimentos “Vata” (doce). O

“Rome” é a substância que permite a comunicação com os espíritos auxiliares para os

Katukina e outros grupos Pano.

4.2 Rezadores/Cantadores/Ervateiros/Feiticeiros

A pluralidade de nomes referidos a determinados especialistas não é incomum

entre os grupos Pano. Gil (1999), em sua tese, ressalta a confusa profusão de nomes com que

os Yawanawa fazem referência aos praticantes do xamanismo. Como exemplo, podemos citar

os seguintes termos: xinaya, tsimuya, shuintia, rumëya, niipuya, yuvehu e kushuintia

(ibid.:32). Para entendermos estas denominações e suas variantes, devemos antes lembrar as

características e condições de aquisição e produção do saber Yawanawa já, em parte,

salientadas em nosso resumo.25

Segundo Gil (1999), existem agentes de saúde indígena e as propostas da bio-

medicina são interpretadas e adaptadas às categorias nativas que, por sua vez, se modificam.

Ainda, em meio a rezadores e ervateiros, introduz-se a terapia evangélica, configurando-se um

campo no qual concorrem várias opções de cura sem contradição no seu uso simultâneo.

24 Com tal assertiva, Townsley coloca uma crítica à interpretação psicologizante da “eficácia simbólica” de Lévi-Strauss, comentada anteriormente e à qual MELATTI (1985) adere. A questão importante para Townsley é evidenciar, pela descrição da ação ritual, qual é a lógica nativa que está implicada no ato da cura. 25 Vide Apresentação dos Grupos Pano, os “Yawanawa” por GIL, Laura Perez (1999).

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Também, entre os Yawanawa, existem especialistas no campo xamânico que são de outros

grupos ou se formaram entre outros Pano (entre os Shawanawa, Cashinahua e Katukina), mas

que exercem seus saberes na aldeia de Gregório (Gil,1999: 40).

Portanto, a aquisição dos saberes ultrapassa as fronteiras tribais e vincula-se às

relações de parentesco em virtude principalmente de casamentos interétnicos. Este saber é

bem prezado e não é dado com facilidade e nem para qualquer pessoa que não esteja

comprometida pela rede de parentesco, ou seja, quem não encontra parente próximo para lhe

ensinar esbarra em graves dificuldades para aprender.

Gil (1999) salienta que é neste contexto interétnico que devem ser entendidas

algumas das práticas xamânicas. Se algum conhecimento ou técnica específica aparece de

forma pontual ou restrita entre os seus interlocutores Yawanawa, com certeza, estas não estão

desligadas de uma tradição Pano mais ampla e, portanto, comum a vários outros grupos

(ibid.:40). Outra questão ressaltada pela autora são as acusações de feitiçaria e

envenenamento que, diferente de outros Pano, são fundamentalmente intratribais e restritas à

aldeia de Gregório.

De acordo com a autora, a decisão de um Yawanawa em se iniciar nas práticas

xamânicas parte mais de um interesse pessoal do que de um chamado dos espíritos “Yuxin”,

como no caso dos Cashinahua, e se verifica, na prática, pelo desejo de não depender dos

outros nos momentos de doença, tanto própria quanto de familiares próximos. Contudo, a

eficácia do rezador (“xinaya”), diz ela, vai depender de seu comprometimento com o processo

de iniciação. O papel dos sonhos e visões induzidas pela ayahuasca (“uni”) e pelo “raré”

(datura) é essencial para se entrar em contato com parentes mortos e os “Yuxin” detentores de

conhecimento.

Por outro lado, segundo o relato de Gil (1999: 42), é fundamental nesta fase a

memorização de cantos e rezas e acompanhamento dos tratamentos a doentes. O importante é

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o ver e o escutar, pois o iniciado, ao declarar que conhece uma reza, não o faz diretamente,

mas sim afirmando que as escutou exaustivamente. Ainda que a ajuda do mestre seja

primordial na iniciação, a aquisição de conhecimentos e poder dependem exclusivamente do

esforço do aprendiz. Não há qualquer evidência entre os Yawanawa de que o mestre passe seu

próprio poder ao iniciando, como, por exemplo, os dardos mágicos colocados no corpo, fato

mais comum aos Katukina ou aos Marubo. Por último, a autora enfatiza que, após intensos

resguardos, o acúmulo de “Tsimu” (amargo) é vital para que os conhecimentos tenham a

eficácia desejada.

Retornando então às denominações. Os termos Tsimuya, Yuvehu e Rumëya (este

último de origem Katukina), de acordo com Gil (1999), são os únicos que se enquadram pelos

Yawanawa sob o rótulo de “pajé”. Segundo a autora, as razões para isto são obscuras e, de

acordo com os Yawanawa, podem ser devidas ao maior grau de poder que estes “pajés”

possuem.

Gil em parte contesta este fato, pois, ao comparar estas denominações de pajé com

o estatuto do “xinaya” (rezador) ou do “Kushuintia” (soprador), verifica que estes últimos são

também detentores de grande poder e conhecimento e de conformidade ao comprometimento

de cada um com o processo de iniciação. Por seu relato, o termo “xinaya”, traduzido

literalmente, significa “aquele que tem pensamento” (ibid.:34) e sua prática entre os

Yawanawa caracteriza-se principalmente pela reza sobre a caissuma de mandioca ou jenipapo

durante as sessões de cura, nas quais também se toma a ayahuasca.

Esta reza recebe o nome genérico de “shuãnka”, mas o termo varia de acordo com

o objetivo a ser alcançado (ibid.:34). Xinaya também pode ter um sentido genérico, para

referir-se a especialistas que possuem uma formação completa e que são poderosos. Assim,

distingue-se o “xinaya” do “shuintia”, pois o primeiro realizou o resguardo de iniciação

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durante um ano e o “shuintia” apenas durante três ou seis meses (Gil,1999: 34), mas ambos

estão associados à mesma prática que é a de rezadores.

Já o termo Yuve (Yobé entre os Marubo), ou Yuvehu, é reservado, entre os

Yawanawa, a contextos específicos, como, por exemplo, ao especialista, quando imerso no

processo de ensinar ou para designar aquele que recebe os “Yuxin”. Gil (1999) refere ainda o

uso deste termo, tal como entre os Cashinahua, associado à aquisição de conhecimento através

da ayahuasca e, portanto, conhecimento xamânico. Também a técnica que se associa aos

Yuvehu é o canto referido como “Meka” e a possessão.

A reza (“shuãnka”), portanto, diz Gil, está associada ao xinaya e ao shuintia,

enquanto que a técnica de quem usa o assopro (“kushuaka”) para a cura designa o especialista

como um “Kushuintia”. Por sua vez, o termo “Tsimuya” (aquele que tem o amargo) é

semelhante ao “Mukaya” Cashinahua, porém entre os Yawanawa um “Tsimuya” não possui a

capacidade de extrair ou enviar a outrem a substância xamânica denominada “muka”.

Gil (1999) ressalta que esta denominação, “tsimuya”, é de longe a mais ambígua

de todas e os nativos usaram este termo apenas em referência a dois xamãs, a João Grande e a

um outro que era notório por possuir três espíritos auxiliares (ibid:37). Mas os Yawanawa

indicaram desconhecer entre eles qualquer “pajé” que tirasse pedras do corpo como o fazem

os Katukina, os Kanamari ou os Kulina. Os “pajés” destes grupos eram considerados muito

poderosos e perigosos e, portanto, beirando a pejorativa categoria de “bruxos” ou

“feiticeiros”.

Por fim, temos o termo niipuya (ervateiro) que designa os que sabem manipular os

“rau”, palavra-conceito que, segundo a autora, engloba as folhas do mato utilizadas num

amplo leque, que vai desde a cura até o envenenamento (ibid.:37).

Portanto, o interessante é que apesar da grande profusão dos nomes, uma mesma

pessoa pode ser designada de diversas formas dependendo mais da técnica ou ação que está

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sendo colocada em prática. Também o uso de determinado termo serve para destacar alguma

característica do especialista a quem estão se referindo como, por exemplo, no caso de um

xinaya (rezador) que adota o papel de mestre ou utiliza o “meka” (canto) para curar, pode

perfeitamente ser chamado de “Yuvehu”. Não é de se estranhar que alguém, ao pretender

menosprezar o poder de um especialista, refira-se a ele como “shuintia” ao invés de “xinaya”.

Alguns termos de fato se relacionam a meios de cura específicos, o xinaya e o

shuintia com o “shuanka” (reza), o Yuve com o “meka” (canto), o Kushuintia ao “Kushuaka”

(assopro), o niipuya aos “rau” (folhas do mato). Entretanto, é comum constatar que um

determinado especialista conheça vários ou todos estes métodos e os utilize, sintetizando em

si quase todo o leque de denominações existentes. Este era o caso já citado do “Tsimuya”

João Grande, conhecedor tanto das rezas, do canto, do assopro, como do uso das plantas.

Lagrou (2004) atesta a característica de todos os xamãs Yawanawa em

gradualmente acumular diferentes tipos de poderes, mas, por outro lado, diz a antropóloga,

eles distinguem muito mais radicalmente do que os Cashinahua, as doenças que são tratadas

por plantas medicinais daquelas que são curadas por cantos. Por sua vez, os Cashinahua

distinguem sem possibilidades de conjunção o “dauya” (ervateiro) do “mukaya”, sendo este o

que tem o amargo e que pode enviar ou extrair a substância “muka” de outrem.

Para Lagrou (2004), há uma tendência nos relatos etnográficos em afirmar o

desaparecimento de “verdadeiros xamãs” ou “pajés”. Entretanto, segundo a autora, os mais

temidos como feiticeiros permanecem, para os Katukina, Yaminahua e Yawanawa, agindo

através de cantos enquanto que, para os Cashinahua, a ação típica do feiticeiro é o

envenenamento.

Com os Yawanawa, segundo Gil (1999), as doenças tratadas com os “rau”

(plantas medicinais) têm um complexo etiológico imbuído da idéia de vingança, não pela ação

dos homens, mas sim pela ação dos “Yuxin” (:58-62). A “Kupia” (vingança) é a retaliação

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dos “Yuxin” pela desobediência a resguardos e a tabus alimentares. Com efeito, o nome de

várias enfermidades entre os nativos contém esta palavra, como por exemplo, podemos citar o

“mai pisi kupia” (a vingança do cará podre) ou o “Yuxin Kupia” (vingança do Yuxin)

(Gil,1999: 59).

A reza é ineficaz para estas doenças, sendo conveniente a atuação do niipuya

(ervateiro) com os “rau”. Entre os Yawanawa, assim como em outros grupos Pano, os entes

são dotados de um princípio espiritual, ou melhor, são substâncias portadoras de “Yuxin”.

Esta concepção da realidade nos permite entender a utilização que dos “rau” fazem os

Yawanawa, práticas e técnicas que estão inseridas numa cosmologia de tipo xamânico, tal

como vimos anteriormente. Neste sentido, podemos concluir que um niipuya, por exemplo, ao

manipular suas ervas, está lidando também com a alteridade “Yuxin”, inclusive com poder

para curar ou matar.

4.3 “Xamanismo sem Xamã?” Procure pelo feiticeiro

Dadas as considerações de um complexo xamãnico, ou uma cosmologia de tipo

xamânico entre os Pano, cabe perguntar agora o que querem dizer os nativos quando afirmam

não existirem xamãs.

Calavia Saez (1995), ao relatar sobre o xamanismo Yaminawa, afirma que este

pode estar em toda e em nenhuma parte, sendo possível que um pesquisador passe meses sem

vê-lo e depois se dê conta de que está associado a todos os aspectos da vida cotidiana

(ibid:105). Seus informantes afirmavam não existirem especialistas, e que o único “pajé”

conhecido estava velho e aposentado. Mas, aos poucos, o antropólogo percebe que as

negativas a um “verdadeiro e poderoso xamã” poderiam ser explicadas como sendo restrições

típicas de muitos sistemas ligados à feitiçaria. Também existe uma prudência dos Yaminawa

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perante os interlocutores brancos que prezam por uma certa etiqueta no assunto. Alguns

brancos desacreditam nos xamãs e os ironizam, enquanto outros não só acreditam como

temem a feitiçaria dos índios (ibid.:105).

Assim, o passo seguinte de Calavia Saez (1995) foi considerar que existia “pajé”,

porém na sua expressão menor, o “Koshuiti”, traduzido como “segundo doutor” (ibid.:106).

Segundo o autor, “Ñiumuã” (“o doutor”) é a expressão nativa mais alta de xamã e a diferença

deste para o “Koshuiti” (ajudante ou enfermeiro) é fundamentalmente de grau de poder. Os

“Ñiumuã” invariavelmente são considerados maléficos, centrando-se na habilidade de matar e

por isto mesmo incorrem na categoria de feiticeiros.

De acordo com o que Calavia Saez (1995) chama de “sistema de feitiçaria”, há

uma pretensão entre os Yaminawa de que as atividades do xamã sejam exercidas apenas “para

o bem”, mesmo que tal fato implique na sua relativa diminuição de prestígio.

Outro ponto salientado pelo autor é a tradução nativa das distintas figuras do

xamanismo em termos da hierarquia médica e não a sacerdotal, quadro que se explica pelo

influxo da Umbanda e sua visão medicalizada do mundo espiritual no modo indígena

(ibid:106).

Contudo, segundo o antropólogo, não demorou para que as mesmas pessoas que

negavam a existência de “pajé” entre os Yaminawa, começassem a enaltecer o seu “Koshuiti”,

de nome Sebastião, o mesmo que antes haviam relatado estar aposentado (ibid.:105-106).

Agora passava a ser referido como o mestre de todos os Yaminawa, capaz de fabricar o

“Shori” e detentor de todas as tradições. Essa valorização, atesta o autor, foi aumentando até o

final de sua pesquisa de campo. O próprio Sebastião, quando argüido, negava ter qualquer

conhecimento mas afirmava ser “doutor”, capaz de curar e tomar “shori” (ibid.:106).

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Por sua vez, Lima (2000) questiona a existência de um “xamanismo sem xamãs”,

pois, para ela, trata-se antes de um essencialismo dos pesquisadores que elegeram um tipo

ideal ou real de xamã (ibid.:127).

Segundo a autora, no xamanismo Katukina há rezadores (“shoitiya”) e xamãs

(“romeya”), porém ela, durante todo o seu trabalho de campo, só conheceu rezadores. Para

Lima, a presença ativa e abundante dos rezadores de algum modo estabelece o trato

especializado com a alteridade dos “Yuxin”, cabendo perfeitamente aos “shoitiya” Katukina o

título de mediador dos dois mundos, comumente outorgado aos “xamãs verdadeiros”. Ainda,

sua etnografia sugere haver aí também um “sistema de feitiçaria” tal como o descreve Calavia

Saez (1995:106), sendo que, entre os Katukina, somente um “romeya” sabe curar e vingar

feitiços, pois é capaz de extrair patógenos do corpo do doente.

Como vimos anteriormente, Lagrou (2004) já constatara o desaparecimento do

“mukaya” Cashinahua e do seu equivalente entre outros grupos Pano, supostamente

considerado “verdadeiro xamã” e uma prevalência da categoria de “feiticeiro”. A autora

considera que o que deve ser levado em conta como critério definidor de categoria de xamã

do tipo “mukaya” é a capacidade que este possui de se comunicar à sua vontade com a

alteridade “Yuxin” (ibid.: 17-18, grifo meu). Se de fato a percepção “Yuxin” permeia o

cotidiano de toda a vida nativa, pode-se dizer que de xamã todos têm um pouco, mas o que se

perde sem a figura do “mukaya” é a habilidade comunicativa com a alteridade submetida por

sua vontade própria.

Conclusão do Capítulo

Ao seguirmos o caso Yawanawa descrito por Gil (1999), percebemos o cuidado

que se deve ter para evitar essencialismos ao eleger um determinado praticante de uma técnica

como um tipo específico de xamã.

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Mas, independente da técnica, é importante frisar que, desde a iniciação e em todo

aprendizado xamânico entre os grupos Pano, está presente a concepção dos “Yuxin”.

Concepção esta, que, como vimos, é animista por excelência, ou “perspectivista em seu

aspecto forte”, no dizer de Pedersen (2001), e que permeia toda a realidade nativa. Adquirir

conhecimento é se “Yuxinizar”, o que, em determinadas condições, significa se “xamanizar”,

transformando-se substancialmente.

Colocando o fato de um conhecimento compartilhado por todos, pela concepção

dos “Yuxin”, concluímos pela prevalência de um xamanismo de tipo horizontal pan-Pano,

conforme a classificação de Hugh-Jones (1999). É certo que em alguns grupos, como por

exemplo, entre os Cashinahua, poderíamos estabelecer um ordenamento, elegendo detentores

privilegiados de conhecimento que se aproximariam do tipo vertical, mas, mesmo aí, o

conhecimento advém dos “Yuxin” e são estes que, em muitos casos entre os Pano, elegem o

iniciante ao xamanismo. Assim, prevalecendo um modo animista de conhecimento

compartilhado entre os Cashinahua, optamos por enquadrá-los no xamanismo de tipo

horizontal.

Vimos ainda que, entre os Marubo descritos por Melatti (1985), o iniciante só será

um xamã completo se espíritos “totêmicos” de sua metade, os “Yobé”, o escolherem.

Poderíamos ver aí um xamanismo de tipo vertical comum às sociedades totêmicas, como

Pedersen (2001) o faz na Sibéria, porém o pensamento Marubo também está permeado pela

noção animista dos “Yuxin”.

Contudo, se estes dados são insuficientes para classificarmos o xamanismo entre

os Cashinahua e os Marubo como sendo de tipo horizontal, lembramos que Hugh-Jones

(1999) nota que em muitos casos a ocorrência dos tipos horizontal e vertical é concomitante e

que um não anula o outro, como, por exemplo, entre os Bororo ( :33).

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Já no tocante à questão dos chamados “sistemas de feitiçaria”, descritos por

Calavia Saez (1995), pode-se perceber o funcionamento de mais um dos dispositivos “contra-

Estado”, ao se desprestigiar um indivíduo que detenha para si um saber e poder que o

autorizaria a exercer relações de coerção sobre outrem.

Mediante o que foi anteriormente exposto, podemos corroborar Viveiros de Castro

(2002a), ao afirmar que o xamanismo horizontal pan-amazônico implica em relações que

evitam um tipo de xamanismo propício a concentração de um poder e saber autônomo e

destacado do socius, tão comum às formulações dogmáticas de tipo sacerdotal.

Como vimos, levando-se em conta a existência de um “complexo xamânico”, a

cosmopolítica entre os grupos Pano, fundamentada no conceito “Yuxin”, caminha no sentido

oposto de uma formulação dogmática.

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CONCLUSÃO

Vimos no primeiro capítulo que o termo “nawa” não é pensado somente como o

exterior da sociedade, como Outro, estrangeiro, inimigo ou neutro. Em certos grupos, existem

seções ou metades internas que levam a marca de nawa. O conceito “nawa” atravessa todos os

grupos Pano e seu estudo permite esclarecer a problemática de identidade/alteridade, ou seja,

os modelos relacionais no seio de um mesmo grupo e entre outros Pano, bem como a

dinâmica das relações com a sociedade envolvente dos brancos.

Os dados Cashinahua por Deshayes & Keifenheim (1994) exemplificam isso com

uma das metades encenando o “Outro” e toda a sua dinâmica relacional de

identidade/alteridade conforme o dualismo complementar Pano.

Já com os dados Yawanawa, Carid Naveira (1999) ressalta o aspecto político dos

rituais “Mariri”, pois neles teríamos a continuação da guerra por outros meios. Neste caso, o

“Outro”, estrangeiro ao grupo, viria de fora a convite e não como cativo, encenando uma das

metades de dentro, alternando-se as posições entre grupo agressor e grupo agredido e

culminando na possibilidade de incorporação daquele que é externo.

Enfim, a definição de “nebulosas compactas” para o macro-conjunto Pano

(Erikson,1993) bem como o sistema relacional “Huni Kuin” Cashinahua (Deshayes &

Keifenheim,1994) implicam por si só numa crítica aos preceitos clássicos de identidade e

fronteiras étnicas.

No segundo capítulo, enfatizamos a política nativa através da condição da chefia e

do xamanismo Cashinahua peruano. Neste concluímos que, tanto o tipo-ideal de xamã “infra-

Yupa”, quanto sua contra-parte o chefe “ultra-Menki” a que chega Deshayes (1992), derivam

diretamente de um modelo único, a saber, o da chefia indígena de Clastres. Ambos, chefe e

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xamã estão impedidos de relações do tipo comando-obediência com os demais do grupo, pelo

mecanismo da troca desigual a que estão sujeitos. São eles que estão em constante dívida para

com o grupo e não o contrário.

Além do dualismo complementar que divide as funções para cada metade, opondo

de um lado chefia, de outro xamanismo, temos mais um mecanismo “contra-Estado”. Neste

caso, conforme a teoria clastreana, seria o micro-dispositivo intra-grupo da “troca desigual”

que abarcaria tanto o chefe ultra-Menki, quanto o xamã infra-Yupa.

Vimos também, com Carid Naveira (1999), que a noção de líder Yawanawa

expressa pelos termos Shanaihu e Niaihu, significa o exercício de um domínio em limites

determinados. O autor percebe, mediante este fato, que o exagero de um líder no exercício de

mando e coerção é motivo para fissões e, como conseqüência, novas locações são formadas

pelos dissidentes da anterior.

Ou seja, dada as questões dos sistemas de identidade, do dualismo complementar

expresso entre outros pelo conceito “Nawa” e as condições do possível lugar de poder (o

chefe e o xamã), podemos ratificar que o que é próprio da “política Pano” e que faz deles uma

“nebulosa compacta” é a constante alternância dos fatores de fusão/fissão dos grupos.

Inferimos serem estes os diferentes mecanismos contra-Estado que, ao longo do tempo,

interferiram na não centralização territorial. E, a contar pelas etnografias aqui estudadas, esta

é uma tendência que vem prevalecendo, mesmo com o atual privilégio das tendências

centrípetas insufladas pelas recentes demarcações de terras indígenas.

No capítulo III , procuramos esclarecer a questão proposta inicialmente de “o que

faz de um corpo um xamã?” e, para isto, apresentamos as condições da produção de

conhecimento nativo e, por conseguinte, da fabricação do corpo e pessoa pela produção ritual.

Acompanhando McCallum (1989) e sua descrição do ritual “nixpo pima” e

“Cashanawa” dos Cashinahua, percebemos a produção de pessoas através da lida com a

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alteridade “Yuxin”, o que faz do ritual arena cosmopolítica por excelência. Vimos que, o

fundamental para o entendimento da epistemologia nativa é a categoria “Yuxin”. Nas

etnografias, os autores tentam defini-la por sua capacidade fluida, transformativa, interativa,

etérea, mas que se corporifica e que, sob determinadas condições, pode ser vista em seu

aspecto antropomórfico.

Enfim, o que faz de um corpo um xamã é se “yuxinizar”, é transformar-se

substancialmente pela ingestão de determinados alimentos e por certos procedimentos rituais,

que veiculam propriedades “Yuxin”. Ou, em outros termos, ser xamã é conhecer e adquirir

conhecimento pelo “perspectivismo” é “tomar o ponto de vista daquilo que deve ser

conhecido” (Viveiros de Castro,2002a: 358). O ponto de vista dos “Yuxin” deve ser levado

em conta nesta arena cosmopolítica xamânica.

Explicitada a lógica animista/perspectivista dos “Yuxin”, passamos finalmente

para o quarto capítulo da dissertação. Através da iniciação e aprendizado das especialidades

xamânicas e do problema da “existência do xamã”, retornamos em especial às questões do

xamanismo e poder, colocadas por nós na introdução da dissertação.

Chamamos atenção novamente para o artigo de Pedersen (2001) que, usando a

tipologia de Hugh-Jones (1999) e a noção de “perspectivismo” formulada por Viveiros de

Castro (2002a), conseguiu estabelecer e correlacionar áreas onde prevalecem o animismo em

seu “aspecto forte” (perspectivista) com o xamanismo de tipo horizontal (áreas setentrionais

norte asiáticas) e locais onde imperam o totemismo coincidente a um manifesto xamanismo

de tipo vertical (áreas meridionais).

Como vimos, podemos estabelecer correlações deste tipo, vinculando o animismo

ao xamanismo horizontal, quando se trata da área Pano. A lógica animista e puramente

perspectivista dos “Yuxin” não contradiz, por exemplo, a lógica totêmica dos “Yobé” Marubo

(Melatti, 1985), tal como descrevemos na seção 4.1 de nosso trabalho.

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Mesmo no caso Marubo, não podemos afirmar a ocorrência de um xamanismo do

tipo vertical. O ponto central da definição de Hugh-Jones (1999) para o xamã do tipo vertical,

o “~KUBU” dos Tukano, é que este é o detentor privilegiado de um saber/poder.

O xamã de tipo vertical, cujo paradigma é o do “mestre-da-verdade” (Detienne,

M., 1981), não se adequa bem a um conhecimento que é compartilhado por todos os grupos

Pano. Colocando em termos tipológicos, fundamentados pelos dados aqui expostos da

etnografia Pano, optamos por concluir que existe um complexo xamânico de tipo horizontal

pan-Pano, onde cada qual participa de diversas maneiras, sem que determinados especialistas

venham a ser detentores exclusivos de um saber.

Mesmo diante desta possibilidade, o especialista nativo é categórico ao afirmar

que o conhecimento vem dos “Yuxin” ou dos “Yobé”, como é no caso Marubo. Mas de modo

geral, nos grupos Pano, encontramos diversos tipos de xamãs, com diversas técnicas de curas,

sem contradição entre si, conforme vimos ao longo do capítulo IV .

Freqüentemente, recai sob aquele que se diz detentor de poder tão grande o

estigma de feiticeiro, categoria quase sempre marginalizada e afastada do interior do grupo. O

feiticeiro é aquele que existiu no passado do grupo ou então quase sempre pertencente a um

grupo de fora, vinculando-se aos “sistemas de feitiçaria” descritos por Calavia Saez (1995).

Enfim, os mecanismos “contra-Estado” entre os Pano se dão já na própria

produção e distribuição do conhecimento, na estrutura mesma do pensamento nativo,

seguindo a lógica animista/perspectivista dos “Yuxin”, passando pela fabricação de

corpos/pessoas no esforço ritual e permeando toda a iniciação e aprendizado xamânico.

Complementando Viveiros de Castro (2002a: 457-472), no já mencionado artigo

“Xamanismo e sacrifício”, poderíamos dizer que seriam estes os micro-dispositivos políticos

dos grupos Pano, uma configuração de relações de poder propícia ao xamanismo horizontal e

que afasta a vigência do xamanismo vertical de característica sacerdotal.

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