III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
A DITADURA MILITAR NO BRASIL E NO CHILE: UM ESTUDO
COMPARATIVO DA PARTICIPAÇÃO DOS MILITARES E CIVIS
NA TRAMA GOLPISTA1.
Jorge Nelson Cáceres Olave Junior.2
RESUMO: O presente artigo pretende conduzir uma análise crítica e comparativa das
Forças Armadas do Brasil e do Chile focando estabelecer a relação que estas instituições
tiveram com os setores civis na trama golpista que se alastrou nos respectivos países. Em
sua especificidade, tenta entender o programa político, econômico e social de seus
integrantes na formulação e construção de uma “nova” sociedade antes e durante os
golpes de estado de cada país. Tendo em vista defender uma tese que não fique
circunscrita a nenhuma explicação descolada da realidade histórica e social destes países
latino-americanos e respeitando as suas particularidades, o conceito de ditadura militar-
civil, dada a sua complexidade, é o melhor que define as potencialidades e
desdobramentos da trama golpista nestes países.
PALAVRAS-CHAVE: ditadura; militar; civis; golpe de estado; política.
INTRODUÇÃO:
A derrocada do governo democrático de Salvador Allende no Chile em 11 de
Setembro de 1973 destituído por um golpe militar liderado pelas três armas chilenas
(Aeronáutica, Exército e Marinha), Carabineros (polícia) e por setores da burguesia e da
classe média, condicionou a instauração de um projeto político-social-econômico
renovado para aqueles que assumem o poder, trazendo consigo sérias transformações no
conjunto da sociedade deste país.
Por outro lado, nove anos antes, o maior país do continente sul-americano passara
por um processo político parecido, porém, não idêntico ao do país andino. As correlações
1 Trabalho apresentado à III Semana de Ciência Política organizada pela Universidade Federal de São
Carlos nos dias 27 a 29 de Abril de 2015. 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação Integração em América Latina – Prolam/USP. E-mail: jc-
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
de forças internas de cada país iriam ditar a constituição dos respectivos regimes
autoritários. No caso do Brasil não se pode esquecer que o ano de 1964 não se consolidou
num mero acidente, mas sim pela organização e união de determinados setores militares
e civis conservadores, em oposição às Reformas de Base, ao nacional-popular e à
ampliação da participação política de setores populares impondo, desta forma, a trama
golpista ao país.
Os autores do golpe seriam as classes dominantes, os
latifundiários, os grandes empresários e banqueiros, liderados por
associações de classe sob a coordenação e a cobertura ideológica
do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e do Instituto
de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes). Agindo por si ou com
apoio externo, essas forças também formariam um bloco
irresistível. (CARVALHO, 2005, p.120)
Passados cinquenta anos do Golpe militar-civil no Brasil a ideia que este processo
fora uma “revolução” ainda é defendido por amplos setores conservadores da sociedade
civil e das Forças Armadas Brasileiras. A “ameaça comunista” deveria ser extirpada da
sociedade brasileira custe o que custasse sendo necessário para atingir os seus objetivos
a utilização do poder da violência em um contexto de Guerra Fria, onde o mundo era
dividido entre dois grandes blocos ideológicos: o capitalista e o socialista. A ferramenta
utilizada que perpetuaria o poder dos interesses das classes dominantes conservadoras
estaria vinculada ao uso do aparelho de regulamento e controle social, isto é, o Estado.
No caso chileno, desde o ano de 1964 quando o democrata-cristão Eduardo Frei
Montalva é eleito presidente da República com um projeto político intitulado “revolução
em liberdade”, o Chile começara a realizar profundas transformações políticas e sociais
no conjunto da sua sociedade muito devido ao estrangulamento do modelo econômico de
substituição de importações e a influência da revolução cubana. Um dos projetos
presentes no programa da democracia-cristã chilena focava a reforma agrária, a
incorporação dos pobres das cidades à economia e a “chilenização” do cobre.
No início da década de 60, o surgimento de ideias de reformas e
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
revolução trouxe mudanças nas propostas políticas dos governos.
Embora o partido de Frei fosse conservador, o Programa de
“Cómo avanza La Revolución en Libertad” do Partido
Democrático Cristão, “Um programa que se cumpre e não se
discute”, implantado no governo Frei, tinha uma proposta social-
democrata-cristã. A proposta consistia, entre outras coisas, numa
reforma estrutural da economia, destacando uma nova política
conhecida como chilenização do cobre, a principal fonte de
riquezas do Chile, criando a Codelco, a Corporação do Cobre.
Como cita o documento do programa: “Por uma educação para
todas as crianças chilenas, pela organização da comunidade
(Promomoción Popular), pela criação de novas fontes de trabalho,
pela Reforma Agrária, pelo Plano de Viviendas, pela reforma do
sistema de propriedade, pela modernização da legislação do
trabalho e a ampliação das bases sindicais, pela extensão e
melhoramento dos programas de saúde, pela reforma e ampliação
do sistema de segurança social, por alcançar essas metas, disse o
presidente Frei que não se transigirá, que não mudará nenhuma
das propostas nem por um milhão de votos (...) figuram também
outras pontos de grande importância como a aceleração do
crescimento econômico, o controle paulatino da inflação, a
redistribuição dos salários, o melhoramento da balança comercial,
a reforma constitucional, a racionalização da administração
pública e toda uma nova linha de ação nas relações
internacionais” (FILHO, 2009, p.40-41).
Desta forma, o governo Frei tentava realizar algumas concessões à esquerda -
mesmo derrotada nas eleições de 1964 – que já era a representante significativa dos
setores populares do Chile na década de 1960. Transcorridos seis anos de governo Frei,
chega a vez do ex-senador e fundador do Partido Socialista do Chile em 1933, Salvador
Allende Gossens, tentar por meio da união das mais variadas vertentes político-sociais
aglutinadas na Unidade Popular (UP), uma coalizão que tinha como eixo os Partidos
Comunista e Socialista, social-democratas (PSD), Ação Popular Independente (API), o
Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU), radicais (PR) e parte da esquerda
católica, construir uma “via chilena ao socialismo”.
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
Salvador Allende elege-se em 1970, por meio de uma eleição polarizada, com uma
votação percentual de 36,3% dos votos válidos, seus oponentes Jorge Alessandri, do
Partido Nacional e Radomiro Tomic da Democracia Cristã recebem 34,9% e 27,9% dos
votos válidos respectivamente. Alberto Aggio observa bem esse período:
Após a vitória da UP, a extrema direita desencadeou uma tentativa de
desestabilização política que culminou no assassinato do comandante-
chefe do Exército Chileno, general René Schneider. Mas foi no plano
político-institucional que a conjuntura aberta com a vitória de Allende
conseguiu ganhar estabilidade: através de um acordo firmado entre a UP e
a DC, ratificou-se a vitória de Allende no Congresso Nacional.
Confirmado, então, como novo presidente, Allende assumiu o governo no
dia 4 de novembro do mesmo ano [...] Nascia aí à chamada experiência
chilena, expressão cunhada na época por intelectuais e políticos de
esquerda, não apenas do Chile, com o claro sentido de indicar a opção e o
desafio que se abria diante da esquerda daquele país, cujo presidente eleito
e empossado anunciava a intenção de realizar a “transição ao socialismo
em democracia”. (AGGIO, 1993, p.16).
É justamente a caracterização desta democracia que chamaria a atenção aos
estudiosos do assunto. O Chile -quando colocado em paralelo ao restante dos países da
América Latina- é considerado um país que em sua história respeitara os alicerces da
institucionalidade, entre os anos de 1932 a 1973 tivera sete presidentes ininterruptamente
eleitos pela via democrática. O Brasil, por outro lado, vivenciou entre os anos de 1889-
1930 um sistema eleitoral baseado na troca alternada do poder entre os representantes de
duas oligarquias (a paulista e a mineira) para logo em seguida instaurar um projeto
político iniciado com a Revolução de 1930 que culminaria na instauração de uma ditadura
até o ano de 1945. Os anos de 1946-1964 denominados pela historiografia brasileira como
“República Populista” também serão de instabilidade política muitas vezes instigada pela
União Democrática Nacional (UDN), partido de direita que representava os interesses dos
setores conservadores da sociedade brasileira.
Por outro lado, a história é a ciência do homem, e é a construção deste mesmo
homem no seu tempo. Cada tempo cronológico elenca novos temas e novos desafios que,
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
no fundo, dizem e representam muito mais que suas próprias inquietações e convicções
do que tempos memoráveis, cujas formas podem ser logo descobertas. O passado deve
ser entendido como uma estrutura em progresso e não uma estrutura estática e/ou irreal.
Da mesma forma que será a preocupação deste artigo compreender o objeto de estudo
aqui proposto. Tal objeto exprime o movimento histórico das sociedades brasileira e
chilena procurando estabelecer pontes com a grande hipótese deste trabalho: a
participação, a união e a estratégia política de militares e civis na trama golpista do Brasil
e do Chile.
Assim, Octavio Ianni, sociólogo brasileiro, compreende que:
No esforço para entender a história de um país, a perspectiva
comparativa pode dar origem a perguntas bastante úteis e às vezes
novas. Há vantagens adicionais. As comparações podem
funcionar como um teste negativo, ainda grotesco, de
interpretações históricas correntes. Uma abordagem comparativa
pode originar novas generalizações históricas. (IANNI, 1975,
p.17).
Por fim, faz-se necessário atribuir determinados simbolismos e questionamentos
que se esforçam em entender a história peculiar de cada país, neste caso o Brasil e o Chile,
a partir das suas complexas estruturas políticas, sociais e econômicas. Estas estruturas
estariam vinculadas a partir das mudanças ocorridas nas instituições representativas do
Brasil e do Chile. Por outro lado, as particularidades, os nuances e os reflexos da
sociedade brasileira e chilena serão compreendidas quando ligadas a história de cada país
se firmando em seu próprio devir buscando, assim, alcançar e objetivar novas
perspectivas que caminhem em direção da compreensão do objeto de estudo aqui
proposto.
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
BRASIL, 1964; CHILE, 1973: O CAMINHO SEM VOLTA. O GOLPE DE
ESTADO.
O Brasil dos anos 1960 vivia uma intensa polarização política que culminaria nas
propostas contidas no programa de governo de João Goulart intitulado “reformas de
base”. Será no dia 13 de março de 1964 que João Goulart -após convocar um comício na
Central do Brasil na cidade do Rio de Janeiro- assinaria os decretos facilitadores da
reforma agrária e de encampação das refinarias particulares de petróleo, entre outras
propostas.
A historiografia brasileira aponta que o 31 de Março de 1964 não foi um
acontecimento casual ou intempestivo de determinados grupos conservadores presentes
na sociedade. Os militares brasileiros unidos a alguns setores conservadores da sociedade
civil não despertaram da noite para o dia e decidiram a bel-prazer realizar o Golpe de
Estado no Brasil. Para se chegar ao 31 de Março de 1964 a dinâmica histórica que
antecedeu a este fatídico dia se fez presente. O historiador e militar Nelson Werneck
Sodré joga luz a esta afirmação ao analisar os momentos que precederam o Golpe Militar-
Civil Brasileiro:
A partir do momento mesmo em que ficou assegurada a posse do
vice-presidente João Goulart no cargo que vinha de ser
abandonado pelo sr. Jânio Quadros, elementos militares iniciaram
a conspiração para depô-lo. Todos eles, após a vitória do golpe de
abril de 1964, confessaram tal atividade e vangloriaram-se dela.
Aos primeiros conspiradores, de número reduzido, outros se
foram juntando, à medida, principalmente, em que, no governo
do sr. João Goulart, abriam-se condições para o alargamento da
democracia brasileira e esse alargamento permitia encaminhar as
reformas de que a estrutura brasileira necessita, de forma cada vez
mais premente. Assim, a afirmação de que o golpe resultou de
acontecimentos de março de 1964 – o comício do dia 13, o
episódio dos marinheiros, a solenidade do Automóvel Clube, já
ao findar o mês – não corresponde à verdade. Tais acontecimentos
contribuíram, evidentemente, para a eclosão do ato de força, mas
este vinha sendo meticulosamente preparado há muitos e muitos
meses, e as confissões, nesse sentido são numerosas. A decisão
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
para a solução de força amadureceu, sem a menor dúvida, a partir
do Plebiscito em que o presidente retomou os poderes que o golpe
político de setembro de 1961 lhe havia retirado. Já a realização
do plebiscito, pelo sentido popular de que se revestiu,
confirmando a realidade a significação da palavra, importava em
derrota que as forças da reação não poderiam suportar. (SODRÉ,
2010, p.465-466).
Para se chegar à eclosão da força a que se refere Werneck Sodré vale a pena pensar
o dia 19 de Março de 1964. Neste dia o Brasil assistiria nas ruas paulistas a “Marcha da
família com Deus pela Liberdade”, marcha que tinha em sua gênese social setores
católicos da classe média urbana e movimentos de mulheres conservadoras, contra a
política “populista” e as “ideias comunistas” presentes no governo de João Goulart. Este
é um dos episódios fundamentais para a compreensão do conceito de golpe “militar-civil”
no Brasil.
Nada era pacifico até 31 de Março. As opções estavam abertas até
o último momento. Houve, sem dúvida, nos últimos meses antes
do golpe, uma polarização das forças políticas. Grandes
manifestações se verificaram a favor e contra Goulart nos
principais centros urbanos. Lembro-me de um comício de Leonel
Brizola em Belo Horizonte, em 25 de fevereiro de 1964, que foi
desbaratado por opositores apoiados pela polícia estadual do
governador Magalhães Pinto. Do conflito resultaram mais de 50
feridos. O prédio da Secretaria de Saúde foi tomado por
opositores e a mesa foi ocupada por senhoras que agitavam terços.
Brizola não passou do hall de entrada. O comício de 13 de março
em frente à Central do Brasil no Rio de Janeiro, em apoio às
reformas, mobilizou 150.000 pessoas. Em São Paulo, no dia 19
de março, os inimigos do presidente reuniram 500.000
manifestantes na “Marcha da família com Deus pela liberdade”.
No dia 2 de abril, calcula-se que um milhão de cariocas tenha
desfilado no Rio de Janeiro para festejar o êxito do golpe.
(CARVALHO, 2005, p. 122).
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
Seis dias depois deste momento histórico, em 25 de março de 1964, o Ministro da
Marinha, Silvio Mota, emitiria a ordem de prisão contra os marinheiros reunidos na Sede
do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. A exigência de melhores condições de
trabalho e o apoio irrestrito e incondicional às Reformas de Base do governo João Goulart
iriam ser as principais causas daquilo que seria denominado e difundido em todo o país
pela imprensa nacional como a “Revolta dos Marinheiros”. Jango, por outro lado, decide
anistiar todos os marinheiros envolvidos na Revolta. Essa atitude geraria uma enorme
insatisfação dentro das Forças Armadas. Para grande parte dos oficiais, inclusive para
aqueles que defendiam o estado de direito, o governo Jango estava subvertendo os pilares
básicos da instituição militar: a hierarquia e a disciplina.
No dia 27 de Março de 1964, o governador da Ganabara, Carlos
Lacerda (1914-1977), mandou a família para a casa de amigos e
resolveu dormir no Palácio Guanabara. Apelidado de “O Corvo”,
por seu nariz adunco e sua participação na crise que levou ao
suicídio de Getúlio em agosto de 1954, o conspirador via chegada
a hora do acerto de contas com seus inimigos políticos. Em sua
avaliação, a situação do país tinha atingido o ponto de não
retorno. O sinal verde para o Golpe abriu-se com a Revolta dos
Marinheiros e o discurso radical do presidente João Goulart no
Automóvel Clube, no dia 30 de Março, para um público de
sargentos e suboficiais. (FILHO, 2006, p. 152).
Cinco dias após a ordem de prisão emitida pelo Ministro Mota contra os
marinheiros reunidos na Sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, o
presidente João Goulart fora o convidado de honra da festa promovida pela Associação
dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar na sede do Automóvel Clube, no Rio de
Janeiro. A presença de Goulart seguido do discurso defendendo os princípios presentes
nas Reformas de Base reiterando a opção pela luta política no espaço público reforçaria
a insatisfação e o estrago político causado pela anistia aos Marinheiros. As cartas do jogo
estavam dadas e o “afronte” às três armas brasileiras constituídas (o Exército, a Marinha
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
e a Aeronáutica) já era uma realidade praticamente insustentável para a manutenção no
poder do governo de João Goulart.
Sobretudo, Goulart não atendeu aos apelos dramáticos de
Tancredo Neves e outros amigos no sentido de não comparecer à
festa dos sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro, realizada
no Automóvel Clube a 30 de março. Respondeu que devia muito
aos sargentos e não podia decepcioná-los. Não só compareceu à
festa como abandonou o texto escrito do discurso e falou de
improviso, em tom exaltado, para um auditório de que fazia parte
o famigerado “cabo” Anselmo. Como se sabe, o discurso
precipitou o início do golpe. Ao ouvi-lo, o general Mourão Filho
decidiu deslocar suas tropas de Juiz de Fora em direção ao Rio
De Janeiro. Nas palavras de um dos conspiradores, muitos
militares dormiram legalistas a 30 de março e acordaram
revolucionários no dia seguinte. A atitude do presidente diante
dos movimentos dos sargentos e marinheiros era tudo o que
faltava para que os conspiradores militares conseguissem o apoio
da maioria de oficiais que hesitava em aderir a seus planos.
Corroer as bases da disciplina era inaceitável para qualquer
oficial, mesmo para os que apoiavam as reformas propostas pelo
presidente. (CARVALHO, 2005, p. 123-124).
·
Por outro lado, no Chile observa-se que logo após as eleições de 1970 os conflitos
ocorridos no meio político-social tendencialmente se aprofundaram. Os setores
conservadores da sociedade chilena tentam de todas as formas criar uma política de
enfrentamento ao governo de Salvador Allende, desde que este subira ao poder:
O Chile vivia, segundo a direita, um insanável antagonismo. Os acontecimentos do
período apenas revelaram que o socialismo, para prevalecer, só poderia fazê-lo
destruindo a democracia. Este segmento acreditava que o governo de Allende
empurrava, paulatinamente, o país para uma desagregação total, o que possibilitaria a
implantação da ditadura do proletariado. Toda sua política esteve assentada nesta
crença, e suas interpretações posteriores nada mais fizeram do que legitimar a correção
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
da sua política na época e justificar a necessidade de uma “ruptura radical” mediante
a intervenção das Forças Armadas no processo político. (AGGIO, 1993, p.29).
Passado dois anos da eleição presidencial e conduzida pelas organizações patronais
e com ativo apoio externo ocorre uma paralisação geral de vários setores econômicos do
Chile em outubro de 1972. Este acontecimento seria o ponto culminante das reivindicações
parciais dos setores empresariais e da classe média, pressionando o governo com a ameaça
e depois com a efetivação de paralisações de âmbito nacional. Estas manifestações
iniciaram-se por setor e por região no início do mês, com reivindicações pontuais e
corporativas, para depois ganharem dimensão nacional. Para atingir este patamar, o
movimento precisou ultrapassar os interesses corporativos e contraditórios existentes no
seio do empresariado, algo que somente pôde ocorrer em virtude de uma articulação
política alcançada a partir das próprias organizações patronais.
A oposição ao Governo da Unidade Popular favoreceu o
crescimento do “gremialismo”. Guzmán teve uma estreita relação
com os dirigentes do empresariado, a quem tomaram essas ideias
sobre o papel dos grêmios. Estas lhes foram muito úteis, pois
proporcionavam um bom argumento para integrar interesses
heterogêneos na luta contra Allende, desde os grandes
agricultores da sociedade nacional da Agricultura (SNA) e os
grandes industriais da sociedade de fomento fabril (SFF), até os
pequenos comerciantes da confederação do comércio varejista e
os donos de caminhões. Esta aproximação foi assumida pelos
dirigentes das organizações de empresários na greve de 1972,
conhecida como a “greve de outubro”, a que se ligou a FEUC
(Federação dos estudantes da Universidade Católica) e que
constituiu a base do documento dos grevistas, denominado a
“especificação do Chile”. A FEUC participou ativamente da
política nacional, apoiando uma importante greve impulsionada
pelos mineiros da empresa de propriedade do Estado denominada
“El Teniente”. (HUNEEUS, 2000, p.239).
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
A simultaneidade das demandas e a forma de ação com comandos múltiplos, táticas
de guerrilha e greve generalizada explicitavam, portanto, a presença da direita civil em
todo o movimento, cujo intuito era gerar uma situação de enfrentamento decisivo das
classes proprietárias contra o governo, esperando que o clima geral de instabilidade e
violência propiciasse um levante militar. Importava à direita civil/conservadora colocar as
organizações patronais como lideranças do movimento, evitando assim uma identificação
política mais precisa. Expressando a fusão de interesses que se forjavam, o movimento
teve como seu centro dirigente o “gremialismo”, liderado por Jaime Guzmán, articulando
as reivindicações das organizações patronais dos comerciantes, dos industriais, dos
empresários agrícolas, dos construtores, dos transportadores e aquelas dos técnicos e
profissionais do nível médio.
O “gremialismo” foi o principal grupo de poder dos civis que
apoiaram o regime de Pinochet. Colaborou ativamente na sua
instauração e consolidação, aproveitando as condições próprias
do autoritarismo para desenvolver seu próprio projeto político: a
construção de um poderoso movimento de direita. Este
movimento esteve integrado por um grande número de ativistas
que assumiram diversos papeis dentro do sistema político e
atuaram com uma grande coesão fundamentada em uma dupla
lealdade. Por um lado, uma lealdade externa, em direção ao
regime militar, com especial adesão ao general Pinochet, que os
fez justificar cada uma de suas principais políticas, inclusive os
atropelos aos direitos humanos; por outro lado, uma lealdade
interna, em direção aos princípios do movimento gremial,
privilegiando o trabalho com pessoas que aderiram a este e a
liderança de Guzmán. (HUNEEUS, 2000, p.329).
No final de 1972, restam poucas manobras políticas para a continuidade do projeto
colocado por Salvador Allende. Isto não significou necessariamente a própria superação
no sentido de permear a resolução dos conflitos políticos ocorridos em outubro daquele
ano, como no caso da greve geral convocada pelo patronato e a classe média. Certamente
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
estes refluíram, mas para voltarem à cena política com toda a intensidade, desembocando
no Golpe de Estado de Setembro de 1973.
Já no Brasil, o empresariado, a imprensa, os proprietários rurais, setores da Igreja
Católica e setores civis conservadores da sociedade, também tiveram o seu papel ativo na
estruturação da trama golpista que estava se consolidando no final de Março de 1964.
Jorge Ferreira ajuda-nos a compreender melhor este processo que começava a se
estruturar nas intuições políticas brasileiras.
Jango percebeu que não eram grupos civis e militares minoritários
que tentavam golpear as instituições, como ocorrera em episódios
anteriores. Era um movimento conjunto das Forças Armadas com
apoio de empresários, de amplos setores das classes médias e dos
meios de comunicação. O movimento ainda contava com os
governadores da Guanabara, de Minas Gerais, de São Paulo e do
Rio Grande do Sul, com suas polícias civis e militares. No
Congresso Nacional, grande parte dos parlamentares deu aval ao
golpe. O Supremo Tribunal Federal calou-se diante da crise
política. Além disso, o movimento golpista tinha o apoio do
governo norte-americano. Jango compreendeu a extensão do
golpe que estava em curso. A convocação para a resistência
deflagraria uma guerra civil com consequências imprevisíveis.
Na manhã do dia 1° de Abril, ele iniciou o recuo. Ao meio-dia,
partiu para Brasília – atitude interpretada como capitulação.
(FERREIRA, 2007, p.24).
Chegando a Brasília, Jango ciente das manobras golpistas propagadas por setores
conservadores das Forças Armadas e da sociedade civil, emite um comunicado apontando
que as Reformas de Base propostas em seu governo uniram forças políticas e econômicas
que impediam ao povo brasileiro um melhor acesso aos padrões de cultura, de segurança
e de bem-estar social. Assim, as instituições legitimamente eleitas pelo povo brasileiro e
os possíveis ganhos sociais (idealizados no plano de Reforma de Base) da sociedade
brasileira corriam um sério risco de serem devastados e extirpados do cenário político
nacional enquanto projeto social. O Golpe era uma questão de horas.
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
Para Guillermo O´Donnell o cenário que se forma tanto no Brasil quanto no Chile
no período pré-golpe reflete a necessidade de se criar um “consenso tácito” entre as
classes dirigentes:
Nestas condições, o melhor que se pode esperar é o “consenso
tácito”. Ou seja, despolitização, apatia e refúgio num cotidiano
altamente privatizado [...] o “consenso tácito” é um alicerce muito
arenoso para dar sustentação ao Estado. O medo, por seu lado, é
junto com a grande burguesia e os setores médios “modernos”
mais intimamente ligados a ela, o grande suporte do estado
burocrático-autoritário. (O´DONNELL, 1986, p.25)
Por outro lado, o ano de 1972 no Chile representou a tentativa de Salvador Allende
manter o consenso institucional e social dos chilenos. Diante de toda a polarização
política presente no conjunto da sociedade, o Exército teria um papel proeminente no
entendimento dos fatos ocorridos, não necessariamente como protagonista, mas acima de
tudo como articulador dos processos políticos colocados, quando seus integrantes aos
poucos começam a ocupar cargos dentro do aparato burocrático estatal chileno.
Sem dúvida, esta procedência política do Exército não se devia ao
desconhecimento do que estava ocorrendo no país, senão muito
bem o desejo de permanecer, de acordo com os deveres
constitucionais, como instituições obedientes e não deliberantes.
Não obstante, ao final de 1972 os fardados passaram a formar
parte do gabinete do presidente Allende, como uma medida que
tendia a facilitar um acordo de governabilidade após a “greve de
outubro”. Assim, o próprio comandante-em-chefe do Exército,
general Carlos Pratz, integrou o governo como ministro do
Interior. (FRANCISCO; SOTO, 2006, p.141)
Logo ocorre uma última tentativa de manter a institucionalidade por parte do
governo de Salvador Allende, quando este decide trazer para seu governo o alto comando
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
das Forças Armadas, buscando assim manter seu projeto político, sempre visando à
manutenção da construção da via socialista em democracia:
Allende fez ainda uma última tentativa de reestruturação ministerial,
trazendo novamente os militares para um gabinete de emergência que
duraria pouquíssimo tempo. Contudo, a intenção de Allende ao
reincorporar os militares não era mais a de estabelecer uma política de
consenso. Os militares estavam sendo chamados para defender o governo
contra uma sedição aberta e, neste caso, à medida que as Forças Armadas
tinham de optar por um dos dois lados, o papel dos militares extrapolava a
tradicional postura institucional para postar-se a favor de um dos blocos
do conflito. A posição de árbitros, em última instância, estava, portanto,
cancelada, e a correlação de forças no interior do aparelho militar já se
mostrava favorável a uma solução extra constitucional. Na leitura da
corrente que prevaleceria no alto comando, aos militares importava salvar
a nação e não um governo que, de acordo com essa visão, já havia deixado
de ser legal. Ao contrário de outubro de 1972, portanto, a presença militar
no governo acentuaria mais ainda as fortes dissensões no interior das
Forças Armadas. (AGGIO, 1993, p. 150).
Vê-se que no plano político, o mundo observa a subida ao poder de um exército
tendo um consistente aparato ideológico que permite o respeito à hierarquia, à disciplina
e a obediência por parte de seus membros a esta instituição secular vinculado estritamente
aos setores civis conservadores da sociedade. A própria lógica constitutiva engendrada
pelo regime militar perpassa por questões que reverberam e aludem ao Estado Liberal
Burguês. É a lei e a ordem que devem ser preservados pelos militares em detrimento da
“resistência marxista” de grupos políticos opositores ao regime.
Em matéria econômica, a construção do que seria o estado burocrático-autoritário
chileno estabeleceria vínculos que estariam ligados aos interesses da burguesia nacional
gerando assim uma política monetarista ortodoxa, inspirada nos ideais do economista
liberal norte-americano Milton Friedmam, estudioso da Universidade de Chicago, cuja
grande aposta fora o controle inflacionário, privatizações das instituições estatais do
governo e respeito às liberdades dos fluxos de capitais nos mercados financeiros mundiais,
desenhando no que desembocaria nas políticas econômicas neoliberais, atraindo consigo
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
a atenção da comunidade internacional dos negócios, estudos desenvolvidos nas grandes
universidades e organismos multilaterais (Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco
Mundial (BIRD) Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)) que observam o
experimento recém-iniciado.
Num outro plano, o sistema institucional do estado burocrático-
autoritário reflete as prioridades que os seus atores assumem. As
instituições especializadas na coação ocupam o mais alto lugar
desse sistema, pelo direito de haver imposto a ruptura da situação
precedente e porque ficam encarregados de impor a ordem e- não
menos importante- de ser uma garantia contra possíveis alterações
futuras. Por outro lado, a normalização da economia fica a cargo
de “técnicos” civis que vêm do coração da grande burguesia e dos
organismos financeiros internacionais; eles acreditam na
racionalidade da ortodoxia econômica sabem como aplicar e são
reconhecidos como interlocutores confiáveis pelo grande capital
local e internacional. Estes são os dois eixos dos políticos e do
peso institucional do estado burocrático-autoritário na sua
primeira etapa. As duas grandes tarefas de imposição de ordem (e
os seus agentes organizacionais, as Forças Armadas), e de
normalização da economia (e a base social na grande burguesia,
com suas prolongações nos “técnicos” que as tentam) se
introduzem institucionalmente no estado burocrático-autoritário.
Por isso este aparece, também aqui, como uma conjugação
diáfana de coação com a denominação econômica. (O´
DONNELL, 1986, p.27).
Desta forma o poder instituído pelas Forças Armadas tanto no Brasil quanto no
Chile se consolidaria, a partir de um duro golpe contra os alicerces democráticos dos
respectivos países. Assim, logo após o Golpe de Estado, houve a necessidade de se
implementar o mais rápido possível uma nova conduta que remeteria à consolidação
eficiente de um novo modelo político-econômico-social.
Ademais se faz necessário realizar uma pertinente pergunta: qual a relevância dos
dois casos (o brasileiro e o chileno) para o que está querendo se comprovar, qual seja que
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
os golpes e as ditaduras subsequentes foram fruto de um pacto militar-civil interno em
cada um dos dois contextos?
A resposta estaria vinculada a importância de se pensar que em ambos os casos o
golpe militar foi um ato de força e de consenso presente na conjuntura das forças sociais
conservadoras do Brasil e do Chile. Utilizar o conceito militar-civil é importante na
medida em que logo após os Golpes de Estado no Brasil e no Chile (no desenrolar da
consolidação das respectivas ditaduras) o elemento militar ganhou proeminência sobre o
civil, impondo -muitas vezes- as cartas do jogo a serem seguidas tanto no âmbito político,
econômico e social. Como pode ser mostrado no caso do Brasil, os militares desde a
década de 1950 acompanham sempre atentos o regime democrático populista. É certo que
vez por outra (em 1945, 1954, 1961) os militares tentaram chegar ao poder se utilizando
muitas vezes de ferramentas políticas distintas, porém, sem êxito. Somente em 1964 a
vitória se constrói como certa e o elemento militar quando chega ao poder se configura
com mais força do que o civil em um primeiro momento. Para corroborar o que está sendo
dito, recorre-se mais uma vez a Werneck Sodré que sinaliza:
O que ajudou extraordinariamente a conquista de largas camadas
de opinião e de ponderáveis forças econômicas e políticas, da
parte dos que vinham conspirando desde 1961 foi, sem dúvida, o
quadro militar, e aqui voltamos ao tema específico deste trabalho.
Convém tomá-lo, de início, nas exterioridades, nos
acontecimentos de março de 1964, de que participaram militares,
e que antecederam e precipitaram o golpe que deporia o
presidente João Goulart. Note-se como são absolutamente
diferentes daqueles que ajudaram a depor o presidente Getúlio
Vargas em 1945 e em 1964, mostrando como só variou a forma:
o conteúdo desses golpes foi sempre o mesmo. O sentido deles
não se alterou em nada (SODRÉ, 2010, p.467-468)
Os acontecimentos que procederam aos Golpes de Estado no Brasil e no Chile
tornaram-se símbolos da participação civil e da politização de uma sociedade dividida e
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
alimentada por projetos nacionais inegociáveis. Para isso uma parcela da sociedade civil
conservadora (o empresariado, a imprensa, proprietários rurais, setores da Igreja Católica,
entre outros) acabou se unindo em uma via de mão dupla à força das armas representadas
na figura dos militares, dentro de um projeto onde a unidade representada no conceito de
golpe “militar-civil” pode ser aplicada ao se analisar os fatos históricos, políticos e sociais
de ambos os países latino-americanos, neste caso, o Brasil e o Chile.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AGGIO, Alberto. 1993. Democracia e Socialismo: A Experiência Chilena. São Paulo:
Editora da Universidade Estadual Paulista.
CARVALHO, José Murilo. 2005. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro.
Editora Jorge Zahar.
FERREIRA, Jorge e GOMES, Angela de Castro. 2007. Jango, as múltiplas faces. Rio
de Janeiro. Ed: FGV, 2007
FILHO, Oswaldo Munteal. 2009. As Reformas de Base na Era Jango: Rio de Janeiro:
Domínio Público– Nibrahc-Uerj-Ifch, p. 40-41.
FILHO, João Roberto Martins. 2006. O Golpe de 1964 e o regime militar: novas
perspectivas. São Paulo: EDUFSCAr.
FRANCISCO, Alejandro San; SOTO, Angel. 2006. Un Siglo de Pensamiento Militar
En Chile. El Memerial Del Ejercito 1906-2006. Santiago: Editora Centro de Estudios
Bicentenario.
IANNI, Octavio. 1975. A Formação do Estado Populista na América Latina. Rio de
Janeiro. Editora: Civilização Brasileira.
III Semana de Ciência Política
Universidade Federal de São Carlos
27 a 29 de abril de 2015
HUNNES, Carlos. 2000. El régimen de Pinochet. Santiago: Editorial Sudamericana.
O´DONNELL, Guillermo. 1986. Contrapontos: Autoritarismo e democratização. São
Paulo. Biblioteca Vértice.
Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Sabin, Ano 7, n° 83, Agosto
2012.
SODRÉ, Nelson Werneck. 2010. História Militar do Brasil. São Paulo. Editora:
Expressão Popular.