1
Retirado de: http://obeco.no.sapo.pt/rkurz411.htm (17/03/2015)
Robert Kurz
A LUTA PELA VERDADE
Notas sobre o mandamento pós-moderno de
relativismo na teoria crítica da sociedade
Um fragmento
Nota prévia editorial: O presente texto constitui um fragmento do espólio de Robert
Kurz. É aqui publicado sem qualquer tratamento editorial prévio. Anotações entre
parênteses e espaços em branco entre parágrafos foram assim deixados pelo autor e
apontam para exposições que Robert Kurz já não pôde elaborar.
Fragmento póstumo, dirigido contra o mandamento pós-moderno de relativismo na
teoria crítica da sociedade. Este mandamento é identificado como resultado da
incerteza transitória, no final da época burguesa, em que também o campo de crítica do
capitalismo legitimado com as ideias de Marx se apresenta muitas vezes como uma
espécie de labirinto para quem está de fora. A resposta pós-moderna a esta situação
consiste agora em viver a "perda de todas as certezas" não porventura como
problemática, mas em elevá-la a dogma, a nova garantia de salvação, cuja promessa
de felicidade consiste em já não ter de se comprometer com nada e deixar tudo em
aberto. Qualquer posição determinada, que desde logo não reconheça também o seu
contrário, é acerbamente criticada por este dogma. Mas essa imprecisão e
ambiguidade não podem ser mantidas por tempo ilimitado porque a própria gravidade
da situação de crise está a obrigar a uma definição. O pensamento pós-moderno, ao
rejeitar uma nova clareza ou definição de conteúdo e pretendendo ver justamente nessa
rejeição o novo em geral, está apenas a apelar ao potencial de barbárie nele
adormecido, sendo apanhado de surpresa pela sua própria decisão infundamentada.
(Resumo na Revista EXIT! nº 12)
Conflitos sobre a verdade * Da teorização da política à politização da teoria * (Da
politização do privado à privatização do político) * Na ordem do dia estão a
táctica, a estratégia, o mimetismo, a camuflagem * O dogma "anti-dogmático" da
pós-modernidade * O apertar do parafuso * O lugar na história como campo de
2
batalha das ideias * Linguistic turn * Totalitarismo da linguagem e coisa em si *
(Anti-essencialismo) * (A atitude existencial) * (Subjectivismo estrutural) * (A falta
de fundamentos da narrativa, construção/desconstrução e discurso) * (Crítica da
objectividade negativa ou positivismo do discurso?) * (Relativismo histórico e pós-
história) * (Esclarecer o adversário e esclarecer-se si mesmo) * (Negar a
objectividade da verdade) * (Do positivismo dos factos ao positivismo da narrativa,
da construção e do discurso) * (História da formação e história interna) *
(Relativismo estrutural, sem conceito da totalidade) * A história como campo de
batalha das ideias, as ideias como armas da história (Os títulos entre parêntesis são
de capítulos que não chegaram a ser elaborados: Nota do trad.)
“Há guerras em que qualquer um tem de
participar. Quem acredita que pode arranjar
desculpas já está do lado errado. Pois o
relativizar é bem claramente uma
especialidade do diabo.”
“Deus abomina os que não se decidem… E
abomina os que procuram precaver-se de
qualquer orientação.”
Heinrich Steinfest (Ein dickes Fell)
O que é a verdade? A pergunta de Pilatos pode ser considerada como sempre presente.
Por isso a busca da certeza continua a ser uma motivação fundamental do pensamento.
Uma certeza absoluta seria de facto mortalmente aborrecida, mas a pura incerteza
também não é boa. Em primeiro lugar, o pensamento não começa num ponto zero,
excepto no caso de extremamente ignorantes e, “na verdade”, nem sequer no caso
destes. Encontra-se sempre algo já pensado juntamente com as pretensões de validade
intentadas. Em segundo lugar, no entanto, estas pretensões de validade nunca são
incontestáveis. Não existe um processo de pura descoberta da verdade que se tenha
desenvolvido em perfeito sossego com critérios seguros, pelo contrário, os argumentos
para a determinação conceptual e analítica são atravessados por pressupostos,
condicionamentos e motivações mais ou menos conscientes, que por sua vez se tornam
eles próprios um problema da verdade à segunda potência, num metaplano.
E em lado nenhum a questão da verdade parece ser mais penetrante de colocar que na
crítica social radical que duma maneira ou doutra se baseia na teoria de Marx. Não se
deve confundir este problema com a relação a montante com questões singulares ou da
3
ordem do dia, com a participação em movimentos “monotemáticos” mais amplos (por
exemplo, o movimento antinuclear), ou com diferenças no interior da economia dos
grupos de esquerda, as quais, se não são habituais por natureza, se referem às chamadas
avaliações políticas ou modos de proceder tácticos que se expressam nos meios
concorrentes de agrupamentos ou de activistas. Todavia por detrás está a questão da
legitimação teórica, mais ou menos consciente e em regra pelo menos meio
reconhecida. Claro que a referência à teoria se limita frequentemente a legitimar apenas
aquilo que duma maneira ou doutra se faz, ou seja, com menosprezo grotesco pela
célebre Tese sobre Feuerbach de Marx, não a determinar a acção a partir do ponto de
vista teórico, mas sim, inversamente, a amarrar o pretenso ponto de vista teórico à acção
desenvolvida independentemente dele. O que, naturalmente, é a via mais segura para se
adaptar de forma oportunista às relações dominantes.
Contudo, a longo prazo, não é possível afastar a questão do esclarecimento teórico e da
análise das relações, o que não deixa de passar pela referência à teoria de Marx, pelo
menos no caso de haver pretensão de crítica radical. Neste plano, no entanto, já há
muito que se desenvolveram correntes ou “escolas” de interpretação e/ou continuação
do desenvolvimento da teoria que se situam transversalmente ao “negócio quotidiano”
do activismo e têm a sua importância própria; mesmo sendo por vezes ignoradas pelos
carolas da práxis. Em última instância, no entanto, qualquer activismo, com base nas
suas experiências, esbarra repetidamente na indispensabilidade da reflexão teórica, que
nunca resulta por si de um processo positivista de tentativa e erro justamente dessas
experiências.
Contudo não há aqui qualquer recurso de conhecimento seguro, havendo pelo contrário
uma história e um presente das chamadas leituras frequentemente contraditórias.
Diferentes gerações da referência aberta ou envergonhada à crítica da economia política
têm diferentes interpretações, acentuações ou reinterpretações por si mais ou menos
interiorizadas. Há convertidos e ex-marxistas, marxistas da idade da pedra ou
“dinossauros” e pós-marxistas, marxistas de partido, do movimento, dos seminários e de
salão, ortodoxos, revisionistas e não-dogmáticos. Para as pessoas jovens ou que pelo
menos por enquanto não percebem patavina deste ideário o campo da crítica do
capitalismo de esquerda legitimado pelas ideias de Marx apresenta-se frequentemente
quase como um labirinto. A pergunta pela verdade sobre o capitalismo e os seus
opositores, pré-teoricamente resultante das manifestações e experiências negativas,
exige um critério que não é evidente sem mais. O problema geral da verdade é assim
também um problema especificamente “de esquerda” ou “marxista”.
Conflitos sobre a verdade
Assim não há uma descoberta neutra da verdade, como a que as ciências naturais
gostariam de supor (com isso apontando apenas para a inconsciência que têm dos seus
próprios pressupostos histórico-sociais), mas sim uma luta pela verdade, que parece não
4
ter fim. Como se orientar nestes conflitos permanentes? Tem de haver critérios com os
quais se possa reconhecer e avaliar pelo menos aproximadamente a natureza do conflito.
Desde logo é preciso distinguir fundamentalmente a afirmação da crítica. Algo
estabelecido (uma ordem, um modo de pensar, um recurso de saber) é afirmado e
defendido, ou criticado e atacado. Isto aplica-se não apenas ao capitalismo ou às suas
instituições em si e às forças que lutam pelo seu desenvolvimento a todos os níveis, mas
também à teoria crítica e aos seus fraccionamentos como campo próprio. A luta pela
verdade é por isso também sempre uma luta do novo contra o velho, sendo que a
verdade de modo nenhum terá de estar sempre automaticamente do lado daquilo que se
apresenta como novo. Mas com este critério é possível pelo menos demarcar
aproximadamente o terreno do conflito a fim de perceber do que se trata em geral.
Obviamente que com isto ainda não se adianta muito. Pois a luta pela verdade também
prossegue no interior da crítica e do novo. A crítica é por sua vez criticada como
insuficiente na sua forma, na sua fundamentação, na sua amplitude ou na sua
profundidade; e o novo é por sua vez declarado como velho do novo, para criar um
ainda mais novo que pretende estar para além do anterior novo. Frequentemente, no
entanto, é também o antigo velho que se mascara de novo, para enganar a história e
voltar a afirmar-se astutamente na sua obsolescência no campo de batalha.
Mas mesmo quando não se trata de um conflito no eixo vertical do tempo, mas sim da
interpretação no plano horizontal de um recurso de saber reconhecido, de um paradigma
ou de uma interpretação, mesmo então as argumentações se ramificam e bifurcam,
muitas vezes de forma conflituosa. Isto de modo nenhum se deve apenas a vaidades
pessoais, a idiossincrasias ou à dinâmica dos grupos (ainda que tudo isto desempenhe o
seu papel), mas sim à coisa em si, ou seja, ao carácter da reflexão e dos seus objectos.
Na teoria e justamente na teoria crítica concorrem posições, correntes e escolas, porque
ela é mesmo a expressão teórica de uma sociedade em si contraditória, em que se
constituem desavenças e ocorrem conflitos a todos os níveis.
(O pretensamente novo: pós-modernidade, pós-modernização, peculiar deturpação do
problema da verdade, verdade será que não existe verdade etc.)
Da teorização da política à politização da teoria
Aqui muitas vezes não se distingue entre teoria e política, uma marca típica da
mentalidade de seita. Um conflito teórico não pode ser conduzido do mesmo modo que
um conflito político. Quando estão na ordem do dia conteúdos teóricos e processos de
esclarecimento não há compromisso possível. Isso contradiria a própria coisa, pois não
se trata aqui de um modo de proceder estratégico-táctico de forças sociais, nem de
negociações comerciais num mercado de opiniões, mas sim da verdade insusceptível de
negociação de uma coisa, em cuja verificação se aplicam critérios próprios. A política,
pelo contrário, como jogo de poder, na medida em que não foi deixada para trás pela
5
crítica prática da sociedade e continua portanto a mover-se nesta esfera burguesa, exige
justamente o compromisso das diferentes posições, o franco resultado da negociação das
forças em luta umas com as outras. Nos conflitos teóricos não se pode proceder com
táctica política e na chamada política (bem como na práxis dos movimentos sociais
autónomos) não se pode exigir como critério o esclarecimento teórico.
É característico da habitual estupidez da esquerda confundir e misturar
fundamentalmente estas duas esferas, ou seja, lidar com a teoria politicamente e lidar
com a política teoricamente. Daí resultam ambos os extremos. Um procedimento teórico
na política (ou, digamos, por causa da problemática deste conceito usado na esquerda de
modo inflacionário e impreciso: nas questões do movimento e da organização sociais)
implica o delírio de demarcação geral e recíproca, até à atomização de qualquer acção
político-social e social. A forma da polémica de demarcação pode ser carregada com
uma fúria identitária em toda e qualquer coisa, mesmo nas coisas secundárias não
essenciais. O tenso problema da verdade envenena o clima mesmo onde não se pode
tratar de fixar uma verdade conceptual e analiticamente. Aqui a forma do agir “teórico”
não deve ser entendida literalmente, mas sim como forma vazia do conflito sem
conteúdo teórico substancial: como mera intransigência superficial em relação a
questões do agir nem teóricas nem fundamentais, no horizonte do tratamento da
contradição social.
Por exemplo, só relutantemente se percebe que no caso de acções visando determinadas
manifestações ou relações de coerção capitalistas, por exemplo, contra as propinas ou
por um salário mínimo legal, o reconhecimento do programa geral do respectivo
agrupamento próprio (a maior parte das vezes politicista ou activista em bruto) pode
tornar-se clara ou secretamente pré-condição. Depois frequentemente o posicionamento
sobre outras questões parciais ou sobre contextos maiores, por exemplo eleições
parlamentares, o Tibete ou a “revolução bolivariana” na Venezuela, estão de tal maneira
ligadas ao respectivo objectivo que resultam daí limitações de participação
polemicamente exigidas. É justamente a amada “política de aliança” entre
agrupamentos heterogéneos que se desenvolve até tornar-se campo de batalha de
questões puramente tácticas, que são infladas polemicamente até à luta identitária; até
determinações já apenas absurdas, com as quais têm de ser levadas bandeirinhas. O
conteúdo polémico em geral reduz-se a uma espécie de “questão de bandeirinhas”.
Tais coisas rapidamente se tornam problemas de fundo quando se trata da interpretação
decisiva da teoria de Marx ou de uma cesura histórica na orientação prática. Pois
naturalmente há situações em que uma questão prática adquire importância fundamental
e em que as divergências têm de se elevar a polémicas. Assim o posicionamento face à
guerra em 1914 tornou-se uma decisão de alcance histórico; só a oposição
verdadeiramente radical à guerra fundamentou toda uma corrente de renovada crítica do
capitalismo (para as relações e possibilidades de conhecimento de então). Inversamente
só a correcta aprovação da coligação anti-Hitler contra a barbárie nacional-socialista na
II Guerra Mundial constituiu a base de uma orientação epocal do anti-fascismo.
6
Finalmente a oposição às guerras de ordenamento mundial capitalista após a queda do
socialismo de Estado restabelece hoje uma pedra de toque prática para a reorientação da
crítica radical no século XXI, mesmo que as frentes aqui ainda não estejam
diferenciadas e estejam tudo menos esclarecidas.
Mas em todos estes casos equiparáveis a completa oposição na questão da práxis epocal
foi (e é) também teoricamente mediada, porque de par com o culminar do
desenvolvimento da contradição social. Por isso depois e diferentemente de questões
tácticas, organizativas ou “de bandeirinhas”, pode e tem de se consumar uma decisão
longamente amadurecida, não apenas imediatamente prática, mas sim há muito
teoricamente reflectida, que se apresenta na polémica irreconciliável de posições
contrárias. Pois a esquerda já não está fora deste mundo do capital; ela é parte dele e a
disputa nela intumescente, se tem fundamento, reflecte esta imanência e a necessária
luta por uma transcendência que é sempre controversa e nunca se entende por si mesma.
A polémica frequentemente inflacionária desde 1968, focada em questões secundárias
ou questões parciais subordinadas, nas águas pouco profundas de um politicismo
superficial dos agrupamentos de esquerda da ideologia do movimento socialmente sem
influência, pelo contrário, em grande parte não foi nem é determinada em geral por uma
cesura objectivamente amadurecida no processo de práxis social e nem portanto
também teoricamente reflectida. Trata-se, portanto, não da reprodução de uma ruptura
histórica do desenvolvimento capitalista na esquerda, pela qual se deve absolutamente
combater até ao fim, ruptura que entretanto há muito deveria estar na ordem do dia, mas
sim de uma mera política identitária de contextos de organização não declarados, que
ameaçam tornar-se um fim em si, como também qualquer partido burguês.
No passado recente foram sobretudo os chamados grupos K (de Kommunist, comunista:
nota do trad.) a disputar uma tal luta de demarcação identitária em questões
completamente secundárias e a pretender inflar os seus círculos miniaturas em
organizações que abalariam o mundo com ampla competência. Esta “teorização” de
uma política de seita, no entanto, não tinha absolutamente nada a ver com as questões
teóricas fundamentais postas na ordem do dia pelo desenvolvimento capitalista. Pelo
contrário, foram ignoradas as verdadeiras tarefas teóricas, no sentido da continuação do
desenvolvimento e transformação da teoria de Marx à altura do tempo; em vez disso as
pessoas precipitaram-se numa teologia dogmática de citações sem fundamento cujos
protagonistas, fetichistas da organização, se equiparavam entre si em termos de
conteúdo e já quase fisionomicamente, como um ovo com outro ovo. Os mesmos
sintomas se podiam observar também noutras correntes de esquerda de tom mais
espontaneista ou anarquista que, tal como os grupos K, tinham resultado da nova
esquerda de 1968. Também aqui dominou a polémica com carga identitária sobre fúteis
problemas de organização.
Por outras palavras: não foi a política que foi tratada “teoricamente”, pelo contrário, a
teoria é que foi tratada “politicamente”, ou seja, deixou de ser levada a sério em termos
7
de conteúdo. O que também era muito mais adequado ao verdadeiro estado da esquerda.
Aquilo que foi designado com optimismo por teoria ou “trabalho teórico” etc. ou estava,
mesmo relativamente ao plano categorial da determinação conceptual de Marx,
imediatamente associado a directrizes “políticas”, as quais justamente não eram
fundamentadas teoricamente, ou movia-se mesmo antecipadamente num plano tão
imediato como superficial de avaliações políticas, que já não tinham nada a ver com as
determinações categoriais de O Capital de Marx (da “teoria dos três mundos”, no
sentido do ponto de vista dos movimentos de libertação nacional da periferia, passando
por um populismo nacional radical de pseudo-esquerda, até uma física política de
“relações de forças”). Nos posteriores movimentos monotemáticos (anti-nuclear, pela
paz etc.) perdeu-se ainda mais a referência a uma teoria social abrangente e a uma
determinação teórica da situação histórica. Perante este pano de fundo ocorreu então a
viragem da polémica sem conteúdo sobre políticas de organização para a feitoria
igualmente sem conteúdo da unidade e da comunidade.
Isso também teve algo a ver com a marginalização da esquerda após as saídas
precipitadamente previstas desde 1968. O gesto fanfarrão dos diversos mini-partidos,
seitas e simuladores de movimento, que correspondia à sua inconsistente polémica
recíproca e com o qual se imaginavam como pontas de lança de uma “revolução de
massas” esperada imediatamente, deu lugar a uma voz acanhada mais depressiva de
agitadores fracassados que, geração após geração, perderam sucessivamente o seu
pseudo-radicalismo pubertário para se tornarem “realistas”. Quanto menor a pretensão e
maior a disponibilidade de adaptação, tanto mais conceptualmente pacifista o discurso,
porque já não parecia tratar-se de nada de essencial.
Da politização do privado à privatização do político
Na ordem do dia estão a táctica, a estratégia, o mimetismo, a camuflagem
Também neste aspecto houve novamente diferentes situações. Em tempos de transição
tudo se torna confuso e inseguro. O que era supostamente comprovado deixa de existir.
As escolas de pensamento e instituições antes válidas enfraquecem, decompõem-se e
dissolvem-se. Mas ainda não se impôs algo de novo. A incerteza parece aumentar até ao
insuportável. Precisamente em tais situações desenvolvem-se muitas respostas e
pseudo-respostas concorrentes às mudanças ainda indeterminadas; surgem sobretudo
muitas facções e escolas que lutam entre si assanhadamente. Há por assim dizer um
pregador da mudança em cada esquina. As coisas são diferentes nos tempos que já
passaram pela mudança. Não que o conflito social tivesse desaparecido, mas entretanto
clarificou-se, assim que se constituíram grandes campos sociais e teóricos em que a
fragmentação transitória foi superada. Atingiu-se um estado aparentemente sólido de
novas certezas que se torna capaz para toda uma época.
8
Na crítica do capitalismo estamos hoje de novo obviamente confrontados com um
tempo de transição de de indeterminação. O velho paradigma do marxismo há muito
que entrou em decomposição, muitos dos seus anteriores representantes acomodaram-se
mais ou menos claramente ao “capitalismo como destino”. Os conceitos tradicionais de
crítica parecem já não atingir a realidade modificada, que no entanto continua
extremamente criticável. Já nos anos de 1980 o filósofo doméstico democrático alemão
Jürgen Habermas tinha proclamado a “nova falta de transparência”. Simultaneamente,
tomaram o lugar da crítica da economia política “materialista” as chamadas teorias pós-
modernas “culturalistas” que também submergiram a crítica social de esquerda. Desde
então fazem furor o pós-estruturalismo, o desconstrutivismo, a teoria queer.
No entanto desde os anos de 1970 também foram empreendidas tentativas de
transformar ou reformular o marxismo, que em parte se amalgamaram explicita ou
implicitamente com momentos do pensamento pós-moderno. Na teoria saída desde
1968 da anterior Nova Esquerda encontram-se diferentes correntes que todas erguem
pretensões de validade umas contra as outras. Pelo menos desde a passagem do século,
não podem deixar de ser vistos os novos desabamentos profundos da crise do
capitalismo supostamente tornado incontestável. A “dimensão material”, na percepção
do problema formulada no jargão da teoria social já pós-modernamente contaminada,
impõe-se embaraçosamente. Nesta situação, a luta aparentemente esotérica e lunática
das posições, correntes e escolas neomarxistas ou pós-marxistas adquire uma inesperada
relevância. Agora por maioria de razão se impõe a questão dos critérios de orientação
no campo dos conflitos teóricos.
O dogma "anti-dogmático" da pós-modernidade
“Não é certo que tudo seja incerto”
Blaise Pascal
Na incerteza grandemente generalizada, a reorientação é tanto mais difícil quanto a
teoria pós-moderna se procura imunizar contra uma possível crítica à sua espécie de
crítica do pensamento anterior (não em último lugar marxista), de modo que ela não
promete porventura superar a incerteza transitória através de uma nova certeza histórica,
pelo contrário, ergue como dogma a “perda de todas as certezas”. Esta “perda” não é
sentida como problemática, mas sim como uma espécie de sucesso, em que francamente
se rejubila. Tudo é incerto, excepto o facto de que já não pode haver mais certezas.
Declara-se como verdade eterna que já não há qualquer verdade, nem sequer uma
verdade historicamente limitada. Só o relativismo deve ser agora absoluto. Nesta
determinação formal de que a verdade será produzida e uma pura questão de poder, tal a
solícita afirmação no sentido de uma “questão negociável” liberal, o conteúdo parece
tornar-se arbitrário, ou pelo menos com vários sentidos. Já não é claro que justamente
este paradigma constitui ou corresponde ele próprio a um determinado conteúdo que se
pretende que seja inatacável na luta pela verdade.
9
Se em anteriores tempos de transição as pessoas que procuravam orientação teórica
frequentemente caíam com facilidade na falsa promessa de uma certeza salvadora,
agora, na “hegemonia do discurso” pós-moderno, é precisamente a rejeição de qualquer
certeza salvadora que se tornou paradoxalmente a nova certeza salvadora. Naturalmente
que isto não é o suplantar das promessas de salvação, mas apenas o seu reverso. A
salvação é agora vista no facto de já não ter de se agarrar a nada e deixar tudo em
aberto. É uma forma específica de alívio que assenta numa ignorância específica e que
subjectivamente consiste justamente em se aconchegar e ajustar mimeticamente à
objectividade, em processo cego, tal como um camaleão muda de cor de acordo com o
meio envolvente. O sujeito pós-moderno ora é verde, ora azul, ora rosa e por vezes
sarapintado, malhado ou tigrado, ou seja, queer em alto grau, sem que com a sua
mudança de cor chegue a ser seja o que for, nem sequer um camaleão. Ele não passa,
por assim dizer, de um palhaço, ou bobo da corte do capitalismo de crise.
A partir desta posição de fundo teórica “desconstrutivista”, os seus representantes dão-
se por fundamentalmente avessos ao conflito no debate das posições antagónicas na
crítica social, o que apenas significa que eles resolvem os conflitos de outra maneira.
Pretende-se que a luta pela verdade seja fundamentalmente negada, que todas as
posições teóricas desistam das suas rígidas pretensões de validade, se amaciem e
mostrem as suas fraquezas humanas lado a lado em coexistência pacífica, se relativizem
até à morte e neste sentido “aprendam umas com as outras” de tal maneira que
garantidamente nunca daí surja nada de determinado.
Com isto surge inequivocamente uma clara imagem do inimigo no aparente pacifismo
do discurso: é declarada guerra a qualquer determinação teórica e a qualquer pretensão
de validade fundamental. O bonzinho pós-moderno é um partido beligerante que faz que
não o é. Assim se assemelha ele ao democrata patenteado, o seu alter ego, que pretende
conceder a todos a liberdade de exprimir livremente a sua opinião de acordo com a sua
solvência, excepto aos inimigos da liberdade. Que nem sequer lhes é permitida, depois
de o democrata patenteado a ter definido como ela é. Afinal em algum lado a
indeterminação tem de acabar de vez.
O bonzinho pós-moderno está assim aberto a tudo e a cada coisa. Ele tem não só uma
pele de camaleão, mas também um estômago de avestruz, onde tudo se deve acumular e
por via natural ser de novo eliminado sem consequências. Ele gostaria de conceder a
tudo um momento de verdade, mas também de algum modo pôr tudo em questão. Por
isso ele também considera tudo de qualquer modo conciliável com tudo. A tónica está
em “de qualquer modo”, pois qualquer determinação de conteúdo já é o diabo; e por
isso os fundamentos da recepção e da crítica desviam sempre para o formal. O que é
criticado é menos a coisa em si do que o respectivo grau de pretensão de validade, de
que deve ser tomado conhecimento tanto mais amigavelmente quanto menor ele for.
Não são as notas do conteúdo, mas sim as notas do estilo que se pretende que sejam
decisivas. Ganha quem conseguir rebaixar a própria posição até à irreconhecibilidade. A
10
única posição válida verdadeiramente deve ser não ter posição nenhuma, pelo menos
nenhuma posição determinada e não aberta. Mas esta posição de não assumir nenhuma
posição em sentido estrito, a que se poderia ser obrigado, é afirmada com unhas e
dentes, pois por alguma coisa uma pessoa tem de se guiar.
O bonzinho pós-moderno gostaria justamente neste sentido de obter alguma coisa da
crítica radical das formas fundamentais do capitalismo, como igualmente de todas as
outras posições teóricas. Ela não deve ir muito longe, nem demarcar as suas
determinações teóricas ou analíticas abruptamente das outras. Sempre seria mesmo
possível que o caso fosse outro. A granada de mão desencavilhada também poderia ser
um ovo de Páscoa, uma jarra de flores ou um Pai Natal enfeitiçado. Talvez uma pessoa
se devesse posicionar mais ou menos ao centro, ou todas as percepções e interpretações
devessem misturar-se um pouco e talvez todas fossem um pouco satisfeitas, pois todas
têm um pouco de razão, mas também um pouco de falta dela. Negociemos.
Por isso o bonzinho pós-moderno se vê obrigado a criticar energicamente qualquer
posição quando ela se torna tendenciosa demais nesse sentido e não reconhece já
sempre também o seu contrário. Esta crítica é a simpatia em si e as regras do jogo dizem
que ela também tem de ser recebida amavelmente. Mas se ela for respondida com uma
anti-crítica com conteúdo, então está assente que os criticados não conseguem suportar
uma crítica, são dogmáticos e não querem ter abertura para uma opinião diferente. Por
isso, infelizmente, têm de ser excluídos. Mas o pior é quando a partir de uma posição
são criticadas outras de modo ofensivo e polémico (horribile dictu!). Isso é que não
pode ser. Assim se revelam os críticos como pessoas que no fundo são totalitárias e
pretendem estabelecer uma ditadura na teoria. Naturalmente que por maioria de razão
terão de ser excluídos.
Assim se define em primeiro lugar o que é a crítica e quem pode ser crítico. Assim fica
o bonzinho pós-moderno como árbitro de tudo, mesmo das suas próprias referências
teóricas. O desconstrutivismo deixa-se desconstruir alegremente, sorrindo de orelha a
orelha, de acordo com as suas próprias directrizes, pois o resultado é sempre o
desconstrutivismo. Esta teoria legitima a ausência de teoria e mesmo a inimizade à
teoria, que se pode encontrar ao longo de toda a sua recepção e que corresponde ao
carácter social produzido pelo capitalismo de crise nas metrópoles. No fim de contas o
bonzinho pós-moderno não pode ser considerado como representante de um modo de
pensar, de uma posição ou de um programa, mas sim como titular de uma situação. É-se
pós-moderno como se fica com soluços, se tem medo dos cães ou se é incontinente.
O apertar do parafuso
O escritor moscovita de literatura policial Boris Akunin aproxima-se talvez da descrição
da situação pós-moderna quando explica o significado da palavra neo-russa
nedowintschennost: "Estado como o dum parafuso não apertado até ao fim; usado no
11
sentido de: incompleto, imaturo, indeciso, instável, não ser equilibrado; é de algum
modo nedowintschenny é o que se diz de uma pessoa que não tem personalidade..." (A
Biblioteca do Czar, 2001). Na sua inabalável clarividência o bonzinho pós-moderno é
claramente nedowintschenny.
Se colocarmos este estado mental em relação com a condicionalidade do problema da
verdade e com a situação histórica dada de um tempo de transição, torna-se claro em
que consiste o sentido e a finalidade do dogma da incerteza. O jogo, como ele é
mencionado de forma banalizadora na dicção pós-moderna, se possível não deve ser
nunca decidido. Tudo deve permanecer como está, ou seja, no estado de incerteza, do
ser não fixo. Gostar-se-ia de fazer desaparecer, para além do que é antigo, a
modernidade do patriarcado produtor de mercadorias e simultaneamente impedir que
algo de novo possa ter uma chance. Nem sequer deve ser certo que o capitalismo existe.
Também no que respeita ao objecto da crítica radical o comportamento é de modo a
evitar o conflito. O pós-modernismo é uma embalagem enganadora e simultaneamente
um pacote de resgate daquilo que afirma ter deixado para trás. A sua ideologia da
indeterminação defende as determinações vigentes na sua última linha de defesa e para
o efeito são enviados para o combate os soldados infantis de uma polícia queer.
Daí também o vazio de conteúdo do próprio conceito de “pós-modernidade”. Tal como
a divisão habitual da história em Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna (a que
ninguém se pode furtar por razões de entendimento) é puramente formal e plenamente
arbitrária, pois também já a Antiguidade e a Idade Média tiveram sua própria
Antiguidade ou a sua própria Idade Média e foram a sua própria Modernidade, assim
também a nova indeterminação tem agora um auto-entendimento meramente formal,
numa volta conceptual adicional e todavia supérflua. É como se designássemos a pré-
história como “pós-animal”, a Antiguidade como “pós-pré-histórica”, a Idade Média
como “pós-antiga” e a Modernidade como “pós-medieval”. Com isto se torna claro que
a pós-modernidade não constitui nada de próprio e não passa de um fantasma histórico
da modernidade, do seu estado morto-vivo ou do seu espírito regressado do outro
mundo; em todo o caso não constitui qualquer formação histórica autónoma nem
qualquer continuação de um desenvolvimento, mas sim uma espécie de processo de
decomposição da antiga modernidade num corpo vivo, porque o capitalismo não pode
mesmo morrer com dignidade. Ele só morrerá quando for espetada a estaca no coração
da pós-modernidade. Assim se explica talvez também a módica simpatia pela simpática
vampira jovem, com cuja situação o inconsciente pós-moderno se identifica, porque ele
gostaria de não largar a sua própria existência intermédia, qual cadáver imortal.
Obviamente que nem sequer o estado do eterno morto-vivo deve ser certo, como quer a
publicidade da caixa de poupança, pois onde ficaria então a pensão de reforma para que
se descontou?
Mas o parafuso não pode continuar eternamente desapertado, a indeterminação e a falta
de clareza não podem ser mantidas por tempo ilimitado. É a própria gravidade das
relações de crise que obriga a uma determinação. De uma maneira ou de outra a
12
transição tem de chegar ao fim. O parafuso será inexoravelmente apertado ou, para usar
outra imagem, a esfera da roleta giratória pós-moderna cairá no buraco de uma
determinação de conteúdo. E será o pior que se possa imaginar, justamente porque o
pensamento pós-moderno recusa uma nova clareza ou evidência do conteúdo e pretende
ver justamente neste bloqueio o novo em geral. Com isto ele apela apenas ao potencial
de barbárie nele adormecido, sendo apanhado de surpresa pela sua própria decisão
infundamentada. Com este conhecimento das consequências da incerteza dogmática, no
entanto, ainda não se ganhou muito. Ergue-se ainda mais a questão dos critérios para
uma verdade efectivamente nova e diferentemente histórica, para acabar com o
capitalismo juntamente com o seu flexível zombie pós-moderno.
O lugar na história como campo de batalha das ideias
A relação entre crítica e afirmação, entre o novo e o velho sempre existiu, tendo
portanto uma história. A partir dela se pode aprender que a verdade (ou o que como tal é
considerado) se modifica sucessivamente. Precisamente, diz o zombie bonzinho pós-
moderno, e por isso ela também é absolutamente relativa e todos têm sempre apenas a
respectiva parte da verdade; por isso qualquer agudização é perfeitamente supérflua.
Conclusão diferente retira o medievalista Kurt Flasch, no livro Kampfplätze der
Philosophy. Große Controversen von Augustin bis Voltaire [Campos de batalha da
filosofia. Grandes controvérsias de Agostinho a Voltaire] (2008). Para ele a questão é,
em primeiro lugar, a necessidade de tornar claro o carácter fundamentalmente
conflitual de toda a anterior história das ideias e mantê-lo contra todas as tentativas de
eliminação: “Muitas pessoas, incluindo também alguns filósofos, encaram a filosofia
como sabedoria calma, acima das facções. A filosofia, dizem, seriam os grandes temas
imutáveis: a verdade e a vida boa, Deus e o Homem, o particular e o geral. Este livro
convida a uma abordagem diferente: mostra a filosofia como uma série de conflitos. Ele
parte de disputas bem documentadas, não de conceitos ou sistemas. A filosofia como
polémica – isto soa desagradável, mas está mais próximo da realidade histórica do que a
expectativa de um sentido profundo harmonizador.” (ibidem, p. 7)
A conversa sobre a “vida boa” (referindo-se naturalmente a uma vida verdadeira a
extorquir de algum modo da falsa), sobre o trato diverso com as eternas questões
fundamentais, que se podem percorrer na praia, na passarela ou na revista do bar, para a
partir daí se combinar uma apropriada versão diversificada ou um menu para uso
doméstico pessoal: este rebaixar e remisturar de ideias controversas da história e do
presente, para exercícios de organização de tempos livres ou de melhor êxito individual
na vida, é de facto um marca da mentalidade pós-moderna. E, mesmo onde as teorias
pós-modernas não querem sem mais estar de acordo com esta mentalidade, fornecem-
lhe alimento. Aqui nem se negará tanto o conteúdo contraditório, só que este, no
relativismo absoluto, já não deve desempenhar qualquer papel ou, melhor dizendo, ele
apenas ainda deve “desempenhar um papel” como no teatro ou no baile de Carnaval, ou
seja, ser justamente parte de um “jogo” que se suporta para depois ir até ao bar. Assim,
13
toda a história das ideias surge como uma espécie de câmara reservada para a festa
travesti pós-histórica, onde podem ser pedidos de empréstimo todos os vestuários
imagináveis e combinados entre si com humor. Aqui as regras exigem que cada um tem
de “reconhecer” o disfarce do outro e só deve adivinhar o que ele pretende representar
Flasch, pelo contrário, pretende demonstrar que o conflito teórico não é nem nunca foi
um jogo, mas sempre justamente uma amarga luta pela verdade, em que não se trata de
qualquer esforço barato, mas sim da existência histórica: “Eu mostro situações de luta.
Oponho-me à anterior práxis de pesquisa e de exposição focada na 'síntese'. O seu
tratamento da imagem tinha método, mas era a-histórico” (ibidem, p. 8). O “carácter
processual e conflitual da história” (ibidem) produz “lutas pela verdade”, “litígios de
alto nível. Eles sintetizaram as tensões subterrâneas das suas décadas” (ibidem, p. 7).
Aqui temos uma indicação decisiva e num duplo sentido: “Tensões subterrâneas” de
“décadas”, ou seja, de uma época são sintetizadas em controvérsia. E estas tensões
nunca mexem apenas com o “jogo” de ideias opostas, que também se poderiam “de
algum modo” harmonizar com boa vontade, mas sim com o correspondente objecto
social do próprio problema da verdade. É o desenvolvimento social que cria conflitos
reais sociais e institucionais, crises e processos transformadores a que as teorias têm de
dar respostas. E estas respostas são necessariamente controversas porque exprimem
conflitos sociais reais já caducos ou amadurecidos e dão ideias correspondentemente
contraditórias para a situação histórica concreta.
Por isso mesmo não se trata de problemas intemporais da humanidade, nem de meras
conjunturas da história intelectual, mas sim da assinatura intelectual de um determinado
lugar histórico que também levanta problemas teóricos determinados e inconfundíveis.
As ideias formuladas neste contexto podem depois, por vezes mesmo muito depois,
ressurgir num contexto completamente diferente e voltar a ser configuradas ou
alimentadas, reinterpretadas etc. de modo completamente diferente; mas o essencial
para o seu entendimento continua a ser, também então, o encaixe na situação histórica
específica: “Procuremos… numa filosofia anterior não a simples precursora de outra
posterior, mas a função que preencheu no seu tempo” (ibidem, p. 57). Tanto para as
ideias como para os/as seus/suas portadores/as e criadores/as se aplica igualmente que:
“Pertencem no seu conjunto… ao seu tempo. A sua grandeza não se mede pelo número
de respostas 'correctas' a um catálogo de temas fixado definitivamente. A sua grandeza
reside na força com que penetraram as condições reais da vida humana, analisando-as”
(ibidem). Uma posição teórica não é parte de uma história intelectual constituída
filologicamente, nem sequer “marxista”, que pudesse ser considerada por si, mas
“corresponde às condições intelectuais e intervém nelas modificando-as” (ibidem).
Mesmo a teoria do conhecimento aparentemente mais abstracta não pode ser percebida
simplesmente como questão da capacidade de conhecimento humana em geral, mas
sempre como expressão de um tempo, de uma determinada situação histórica, que
penetra todos os conteúdos e leva a que um problema só possa ser resolvido em
14
determinadas controvérsias. Isto nem sequer é contra que se levantem, por exemplo,
questões de teoria da história ou filosóficas; mas também e justamente estas têm de co-
reflectir no debate a condicionalidade temporal em geral e o seu próprio lugar histórico
em particular para poderem ter validade nas respectivas relações ou na sua crítica. Se
todas as teorias têm o célebre “núcleo temporal” (Adorno) não se pode portanto partir
de questões “existenciais” supra-históricas. Por isso Flasch se vira contra a
“autonomização” dos chamados “problemas” (filosóficos). Um tal modo de proceder
“não tem em consideração que são os seres humanos que numa dada situação histórica
procuram orientar-se pensando” (ibidem, p. 70). Isto conduziria a um “toque de vitória
eternista” no sentido de uma “posição a-histórica ou mesmo anti-histórica” (ibidem, p.
71) cujo fundamento seria “o medo do relativismo” (ibidem, p. 72).
Ora o zombie bonzinho pós-moderno tem medo de quase tudo, só não tem medo do
relativismo, que constitui a sua alma, a sua pátria e o seu reino celestial. Mas o truque
aqui é que até mesmo o lugar histórico específico é deixado indeterminado – e com isso
a própria posição de obstinada indecisão já não precisa de ser subordinada a uma
situação histórica. A esta versão “forte” junta-se uma “fraca” que concede de facto uma
vaga indicação de mudanças históricas, mas esforça-se por amaciar e equiparar as
determinações contraditórias que aí surgem não por acaso, diluindo-as, para deixar a
coisa em estado de meias medidas e incerteza. Em todo o caso, o lugar histórico no
início do século XXI, por amor de Deus, não pode nem deve ser um lugar de combate
de uma decisiva batalha teórica. A própria determinação do lugar ou o seu carácter
controverso é relativizada, de modo que o “toque de vitória eternista” volta a entrar pela
porta das traseiras e justamente com trajes relativistas. A maneira pós-moderna de fazer
valer uma em si correcta condicionalidade histórica das posições teóricas desmente-se a
si mesma quando ela simultaneamente relativiza outra vez o carácter específico desta
condicionalidade, tornando-se assim a própria pseudo-historicização numa “posição a-
histórica ou mesmo anti-histórica”.
A verdadeira diferença entre os diversos lugares históricos mostra, porém, uma
relatividade que não é válida para cada um dos lugares históricos em si. Tal visão leva a
uma consequência completamente diferente da dos pós-modernos: a verdade não é
absolutamente relativa, mas sim relativamente absoluta. Relativa é apenas a relação das
situações históricas específicas entre si, mas de certa maneira é absoluta a descoberta da
verdade no interior de uma tal situação. A situação concreta, em todo o caso, não pode
ficar por decidir, mas tem de conduzir a uma determinação, um esclarecimento e um
objectivo históricos novos através da decisão do conflito. Com isto se atinge
obviamente a mentalidade pós-moderna relativamente às discussões actuais, mas não
suficientemente a sua legitimação epistémica, que não quer registar uma verdade
própria da época, antes pretende dissolvê-la no momento relativista simultâneo.
Linguistic turn
15
A episteme pós-moderna de fanática indecisão, pseudo-abertura e contingência é
geralmente reconduzida a uma viragem para a linguagem, análise da linguagem ou
crítica da linguagem (linguistic turn) que nos seus destacados representantes teóricos
data já do início do século XX. O termo em si foi de facto tornado conhecido apenas por
Richard Rorty no fim dos anos de 1960; e foi ainda depois que teve uma recepção mais
ampla, como common sense intelectual até ao milieu estudantil zombie bonzinho de
esquerda, nomeadamente com o desfile triunfal do pensamento pós-moderno na era
neoliberal desde os anos de 1980. Como de costume o topos, uma vez posto em
movimento, paira como palavra-chave, frequentemente conhecida apenas de ouvir dizer,
através da comunidade académica, do pró-seminário ao colégio de graduação, através
dos suplementos culturais, das comunidades de bloggers e das redes ou dos colóquios
em encontros.
Abstraindo do facto de os teóricos fundadores, como Saussure ou de outro modo
Wittgenstein, que nem sequer souberam da sua sorte pós-moderna, terem fornecido ao
linguistic turn fundamentos completamente diferentes, e de o debate com eles também
ter de levar a exposições teóricas particulares específicas e estritamente determinadas,
aqui vai interessar sobretudo o posterior campo de recepção e de interpretação que se
amalgamou com a mentalidade pós-moderna. Apesar de todas as tentativas de negar
aqui uma ligação que é preciso apanhar, para se esconder na “multiplicidade” total
supostamente não generalizável, justamente o retirar do conteúdo predominante é que
tornou possível em primeiro lugar conceitos como pós-modernidade ou linguistic turn”.
Ora soa um pouco estranho designar a reflexão sobre o significado da linguagem como
uma “viragem” na história da teoria. A questão de saber o que é verdadeiramente a
linguagem e a relação que tem com a realidade pode ser remontada até aos tempos mais
remotos. Mesmo se se reconhece que não é uma mera trivialidade dizer-se que a
percepção da realidade e o entendimento entre as pessoas ou a luta por ele são sempre
filtrados pela expressão da linguagem, isso dificilmente pode ser designado como uma
nova descoberta pioneira. Tratando-se do significado da linguagem simplesmente,
apenas daí não resulta nenhum objecto verdadeiro e autónomo, que pudesse constituir
uma posição própria na filosofia e na teoria social.
Não levando em conta os problemas metafísicos a isso associados, pode ser reconhecida
a importância específica da linguagem no debate sobre teoria social e crítica social. Está
à vista que a linguagem não é um meio neutro, mas sim um momento do ser social e da
sua historicidade. Nisso ela já é sempre “relativa”, uma vez que não apenas exprime as
relações, mas também é um momento da sua constituição, estando aqui ela própria
submetida à mudança que ocorre em conflitos. Uma ordem dominante das relações
sociais, do relacionamento com a natureza e da ciência, tanto quanto se pode aqui seguir
inteiramente Foucault, cria também a sua forma de linguagem e a sua específica
colocação de conceitos e significados, que ela afirma e defende. Inversamente, a crítica
às diversas ordens e à sua auto-legitimação é obrigada, juntamente com a sua
articulação necessariamente linguística, a dar-se também conceitos modificados, a
16
descodificar e desacreditar os velhos regulamentos linguísticos, ou seja, juntamente com
a crítica dos conteúdos teóricos e com a crítica prática, a combater também na expressão
linguística a partir das relações existentes. Isto aplica-se mais uma vez não só ao
conflito com a ordem capitalista em si e como tal, mas também ao conflito no interior
da teoria crítica e na sua própria historicidade, que corresponde à do seu objecto.
Em tudo isto ainda não há nada que de certa maneira não pudesse ser subscrito por
qualquer posição teórica, sem com isso já entrar em conflito com os seus próprios
fundamentos; até aí também não se trata de qualquer modo de proceder subversivo que
repudiasse todo o pensamento anterior na teoria social. Em todo o caso poder-se-á dizer
que se faz valer aqui mais fortemente um momento que na história da teoria na maior
parte das vezes fica mais na penumbra. Mas não é esse o caso. O linguistc turn, ou
melhor dizendo, uma determinada linha de interpretação das teorias correspondentes só
fez época única e exclusivamente porque e na medida em que com ele estava associada
uma hipostasiação elementar da linguagem como tal. O ponto de vista de que a
linguagem não é um meio neutro para descrever uma realidade dele independente foi
demasiado distendido até à afirmação de que a linguagem é o único constituinte da
realidade, verdadeiramente a única realidade em si.
A linguagem transformou-se assim, de um momento co-constituinte das relações
históricas com a natureza e com a sociedade, numa objectualidade total que dissolveu
em si todos os outros objectos. Mais ainda: não existe qualquer natureza, mas apenas as
respectivas afirmações linguísticas e o seu modus de comunicação; não há qualquer
formação social histórica, mas apenas campos linguísticos nos quais se comunica sobre
algo; não existe uma verdadeira realidade dos conflitos sociais, mas apenas um modus
linguístico de oposições sociais. A linguagem não descreve algo que simultaneamente
influencia, mas é em última instância a sua própria matéria, que só a partir de si mesma
pode ser determinada. Todos os objectos são em primeiro lugar objectos linguísticos;
todas as relações são em primeiro lugar relações linguísticas. Apesar de ser óbvio o
absurdo desta afirmação ela tornou-se o fundamento epistémico do pensamento pós-
moderno no sentido mais lato.
Se a linguagem pode ser entendida em primeiro lugar como fenómeno cultural, a
dissolução do mundo na linguagem teria de desembocar também num reducionismo
culturalista da teoria social. Esta interpretação visava naturalmente sobretudo a teoria de
Marx das relações de dominação, cujo aguilhão se pretendia retirar. A desmaterialização
do capitalismo correspondia à sua culturalização (linguística). Se o capital não passa de
um fenómeno linguístico e portanto cultural, então a coisa não tem assim tanta
importância. Sendo suposto que a linguagem constitui simplesmente a realidade, o
objecto cultural-linguístico também tem de ser descodificado apenas do ponto de vista
cultural-linguístico. Com isto amacia-se o conceito de crítica, nivelando-se
simultaneamente a tensão entre negação teórica e negação prática da ordem dominante.
17
Aqui se encontra também a raiz das técnicas de simulação pós-modernas na crítica
social prática e no conceito de “lutas” sociais, pois dada a identidade geral e imediata
entre linguagem e realidade já não pode haver verdadeiramente qualquer diferença
qualitativa entre greves ou outras formas de intervenção real na reprodução do capital
até à luta armada, por um lado, e acções meramente simbólicas, por outro.
Inversamente, mesmo um conflito resolvido com armas de fogo é banalizado como
“fenómeno cultural”, o que, no entanto, aponta para uma certa limitação geográfica ou
social do sentido da vida pós-moderno. Para esta consciência de zombie bonzinho o que
é preciso é falarmos sobre o assunto e organizarmos as respectivas “práticas culturais”,
essa é a única realidade. É a apoteose já quase cosmológica da tagarelice da mesa
reservada na tasca da esquerda. E, uma vez que a linguagem é socialmente mediada no
essencial através dos média, a “presença mediática” representa a determinação central
da acção. Neste sentido a Nova Esquerda de 1968, entretanto envelhecida, apresentava
já traços obviamente pós-modernos, apesar do revivalismo ideológico temporário da
ortodoxia do marxismo do movimento operário.
É fácil de ver porque o que se entende por linguistic turn constitui simultaneamente o
terreno ideológico em que pode florescer alegremente o dogma pós-moderno do fim de
todas as certezas e a cultura da indeterminação ou ambiguidade teórica. Se o mundo
tiver uma existência independente da sua interpretação, se a natureza constituir um
condição material da existência humana e a sociedade representar uma constituição
histórica rígida, então a reflexão teórica e mais ainda a crítica prática têm de visar
determinações claras, uma vez que pretendem realmente atingir e revolucionar o seu
objecto. Mas, se a linguagem é o seu objecto próprio e todos os outros objectos têm nela
a sua única realidade acessível, então também o mundo é idêntico à sua interpretação.
Assim, naturalmente que a tese de Marx sobre Feuerbach é erguida de um modo
absurdo: pois não apenas o “ser prático” determina exteriormente a teoria, sendo assim
o “modificar” confinado à ordem dominante, mas há muito mais, pois o “modificar” em
geral só pode ocorrer como uma simples interpretação, visto já não haver qualquer
diferença ontológica entre realidade e interpretação.
Uma vez atingido este estado ideológico, então também se torna possível o eterno
estado intermédio ou estado de suspensão, como uma espécie de proeza. No plano
nivelado e pouco claro das relações puramente linguísticas todas as diferenças de
conteúdo podem ser absolutamente relativizadas, porque todas as afirmações
estabelecem elas próprias a realidade imediata, já não existindo assim qualquer critério
para a sua verdade ou inverdade. Com isto a contingência, de uma sequência de
realização ou não realização de possibilidades, transforma-se numa identidade
simultânea entre possibilidades (múltiplas) e realidade, identidade por conseguinte
também absolutizada. Um objecto é tão “múltiplo” como as suas interpretações,
incluindo aquelas que afirmam a sua não-existência. O capitalismo existe um pouco,
mas também não existe um pouco. Deveríamos um pouco seja o que for, mas também
seria melhor não devermos um pouco. Discutamos o assunto e o objecto modifica-se
para nós na sua realidade linguística incessantemente e como um caleidoscópio.
18
Tudo é assim e simultaneamente o seu contrário, tudo pode ser reinterpretado e
“definido diferentemente”, basta haver suficientes participantes linguísticos para o
efeito. Com isto, no entanto, a crítica de um objecto, de uma posição, de um modo de
pensar não apenas é deslocada para o indeterminado, mas é tornada verdadeiramente
impossível em sentido estrito. Só a crítica pode ainda ser criticada, porque pressupõe
uma determinação clara. Se linguagem e realidade são idênticas, a crítica da ideologia
particularmente já nem sequer é pensável, pois qualquer expressão linguística firmada
entre sujeitos constitui a sua própria realidade válida. Assim se desmorona a diferença
entre afirmação e crítica, entre dominação e emancipação, entre esquerda e direita.
Porque não poderão também os racistas e anti-semitas ter um pouco de razão nalgum
ponto? No mínimo já não se pode estabelecer qualquer critério para um julgamento
claro. O linguistic turn, como metafísica pós-moderna, tornou isso possível e só neste
ponto não há qualquer contingência, pois caso contrário já não haveria contingência
total. A completa paralisia do pensar e do agir pode assim surgir como abertura
“libertadora” para a multiplicidade multicolor das indeterminações e indecisões, que
justamente deste modo são historicamente determinadas e decididas. Mas isso já não se
pode dizer.
Totalitarismo da linguagem e coisa em si
Naturalmente que as teorias pós-modernas não são tão estúpidas como a sua recepção
mainstream sem sentido; e também se podem encontrar passagens álibi, em que é
desmentida a completa dissolução do mundo na linguagem, embora as mesmas teorias
alimentem justamente essa tendência. Isso constitui a sua força de atracção para a
mentalidade do carácter social pós-moderno. É justamente a obscuridade que é sentida
como força e pertence à astúcia discursiva não se deixar comprometer com a própria
essência, porque não há qualquer essência, consistindo a essência própria justamente
nesta afirmação. Assim o mundo, com todos os seus objectos, é afinal apenas linguagem
e, quando se pretende confrontar o zombie bonzinho pós-moderno com o conteúdo
absurdo desta afirmação, deixa logo de o ser. Em todo o caso não directamente. Como é
que a coisa é mediada, isso os da recepção mainstream não querem saber com certeza,
porque eles verdadeiramente não querem saber nada com certeza.
Os representantes reflectidos do linguistic turn, pelo contrário, procuram fugir da
ratoeira argumentativamente. O historiador Hans-Jürgen Goertz, por exemplo, no seu
texto Unsichere Geschischte [História incerta] (2001), defende o paradigma,
relativizando-o aparentemente um pouco. É próprio do negócio relativizar o relativismo,
como medida flanqueadora, quando se procede à maneira da corporação. Goertz,
nascido em 1937, é aqui de certo modo o exemplo vivo de que não se trata de um
simples problema geracional, mas de um espírito do tempo que se sobrepõe a gerações
como miséria intelectual. Assim, começa pela constatação: “O conceito de linguistic
turn não é claro...” (ibid., p. 12). Pertence de facto ao seu conceito que nada à claro,
19
nem sequer ele próprio, de modo que uma pessoa se possa sempre desculpar. A viragem
para a linguagem como momento constituinte, segundo Goertz, poderia “ser entendida
ontologicamente”, ou seja, no sentido “de que a linguagem é identificada com o ser”
(ibid., p. 13); mas também poderia “balançar” entre esta afirmação estrita e “um acesso
à realidade que repetidamente opta entre a realidade e a linguagem” (ibid.).
Este “balançar” é agora erguido de forma a tornar o modo de proceder ontológico-
linguístico supostamente inatacável, uma vez que ele é relativizado exactamente de
forma que com isso mesmo possa triunfar: “Ninguém conseguirá atravessar a figura da
linguagem… e penetrar naquilo que existe em si ou verdadeiramente” (ibid., p. 13,
destaques do autor). A linguagem, portanto, poderá não ser a única ou verdadeira
realidade; mas não se pode atingir o que os objectos talvez sejam em si, porque a
linguagem se atravessa sempre no meio, de modo que “para nós” apenas existe a “figura
da linguagem”. Só podemos manejar esta, sendo que o resultado é como se a linguagem
fosse a última realidade.
Não é preciso ser particularmente versado em filosofia para se reconhecer nesta
argumentação um bem velho conhecido, ou seja, a célebre “coisa em si” de Kant. Na
crítica do conhecimento de Kant, a percepção admite de facto a existência independente
dos seus objectos, mas as “coisas em si” permanecem inacessíveis ao conhecimento,
porque este é filtrado pelas categorias a priori do entendimento humano. A grelha de
percepção a-histórica de Kant é imposta aos objectos, de modo que estes só entram no
pensamento e na acção determinados por ela e não como são possivelmente “na
realidade” ou “em si”. Por esta via também podemos lidar praticamente com eles (Kant
pensa nas ciências da natureza), mas justamente apenas enquanto naquela forma de
conhecimento a priori.
Será de contrapor a Kant bem basicamente de três maneiras. Primeiro, a forma de
conhecer e de agir humana é ela própria um momento da natureza que encara a
natureza, e não portanto um “sujeito” puramente exterior. A principal possibilidade de
conhecimento da natureza resulta deste momento idêntico entre conhecimento e objecto.
Só se os seres humanos fossem absolutamente não-natureza haveria também para eles a
“coisa em si” insusceptível de ser conhecida como tal. Em segundo lugar, há objectos a
que o conhecimento e a acção se dirigem que até são feitos eles próprios directamente
em relação com a própria socialidade. Estes, muito menos que os objectos da natureza,
poderiam ser “coisas em si” não cognoscíveis, pois não só já pressupõem o próprio
conhecimento e acção, mas consistem decididamente neles. Estes dois argumentos, no
entanto, ainda são eles próprios gerais-abstractos e a-históricos. Decisivo é, portanto,
em terceiro lugar, que a crítica do conhecimento de Kant nem de longe está consciente
da sua própria condicionalidade histórico-social. É nisso que consiste justamente o
contexto do problema aqui tematizado. Pressupor um “sujeito” realmente abstracto,
puramente exterior a todos os objectos naturais e sociais, isso já constitui uma marca
essencial da constituição capitalista histórica e das suas “formas objectivas de
pensamento”. A suposta impossibilidade de conhecer as “coisas em si” é devida única e
20
exclusivamente à forma social do suporte do conhecimento, ou seja, do sujeito do valor
androcentricamente universalista, como funcionário do capital ou do “sujeito
automático”. Este “sujeito” desumanizado e coisificado, um conceito específico da
modernidade androcentricamente universalista, capitalista, produtora de mercadorias,
tem todo o mundo como seu objecto de valorização abstracta, cuja qualidade própria
tem de ser indiferente e “em si” nula; incluindo, aliás, o próprio corpo, os próprios
sentimentos e necessidades.
Para uma crítica da crítica do conhecimento kantiana é decisivo pôr a descoberto
justamente esta condicionalidade especificamente histórica da constelação do
conhecimento que nela é imposta. Aqui se inclui também ligar a “validade” histórica
desta forma de conhecimento à história da imposição e ascensão do fetiche do capital,
que hoje atingiu o seu próprio limite interno. É neste local histórico actual que se torna
necessário esclarecer este contexto e suplantar a razão iluminista capitalista. A crítica da
crítica do conhecimento kantiana constitui um momento desse processo.
O que resulta daqui? Não resulta seguramente que assim fosse atingido finalmente o
conhecimento e auto-conhecimento absolutos. Isso seria pressupor que apenas os
suportes individuais do conhecimento teriam historicidade, enquanto os objectos do
conhecimento como “coisas em si” (agora conhecíveis) teriam estatuto ontológico. Na
realidade ambos os lados ou momentos do conhecimento são históricos. Isto aplica-se
não apenas à existência humana, mas também à natureza como tal e particularmente na
sua percepção humana. Não há, portanto, qualquer “coisa em si” ontológica em geral,
mas sim uma história do mundo e dos seres humanos que é simultaneamente uma
história do conhecimento ou do problema do conhecimento. A relatividade do
conhecimento a isto associada não é absoluta, mas sim histórica, cujo carácter inclui
também uma verdade imprescindível historicamente determinada. Isto não significa que
a formulação kantiana do problema do conhecimento tivesse sido verdadeira “para o seu
tempo” e apenas hoje deixasse de o ser, mas sim que a sua inverdade só hoje pode ser
conhecida em toda a sua amplitude, ou pelo menos só hoje se torna necessário este
reconhecimento, cujo falhanço teria de conduzir a uma incondicional capitulação
espiritual perante o movimento cego das coisas.
É justamente essa capitulação que representam o linguistic turn e a história da sua
recepção. O totalitarismo da linguagem é o mero regresso da teoria do conhecimento
kantiana afirmativa por outros meios. Assim se mostra que também e justamente no
aspecto epistémico o pensamento pós-moderno é um simples apêndice do iluminismo
burguês.
Anti-essencialismo
A atitude existencial
21
(Em vez da totalidade histórica concreta e do seu conceito surge a abstração
mistificatória da vida, da existência etc.)
Subjectivismo estrutural
A falta de fundamentos da narrativa, construção/desconstrução e discurso
Crítica da objectividade negativa ou positivismo do discurso?
Relativismo histórico e pós-história
Esclarecer o adversário e esclarecer-se si mesmo
Negar a objectividade da verdade
(Positivismo, “metapositivismo”, problema do fetiche)
Do positivismo dos factos ao positivismo da narrativa, da construção e do discurso
História da formação e história interna
Relativismo estrutural, sem conceito da totalidade
A história como campo de batalha das ideias, as ideias como armas da história
Em lado nenhum o problema da verdade salta à vista tanto como no domínio da história
que já é sempre também uma história das ideias. O passado concluído pode servir muito
melhor como pedra de toque do conhecimento do que o presente ainda em curso ou o
futuro de qualquer modo não cognoscível. Por isso também a ciência da história em
geral e a história da filosofia ou das ideias em particular constituem um precedente para
as concepções da verdade.
22
A historiografia tradicional, que há muito se entende como ciência positivista, vê o seu
objecto em “factos objectivos” que poderiam ser apurados com métodos apropriados.
Isto também se aplica às ideias. Controvérsias históricas são percebidas do ponto de
vista do seu ser decidido concluído, ou seja, da perspectiva do vencedor. As ideias
surgem em grande parte como reflexão de determinações ontológicas e assim como um
continuum no fundo a-histórico de “questões espirituais fundamentais”; quer se constate
agora neste aspecto um “progresso” bem na ideologia do iluminismo ou uma mera
mudança de perguntas e respostas. O carácter da história das ideias como história de
conflitos passa aqui para segundo plano ou permanece como mero revestimento exterior
dos acontecimentos.
O pensamento histórico pós-moderno, pelo contrário, afasta-se do postulado da pura
objectividade e do ontológico apenas no sentido de que pretende que também o passado
fique por decidir. O eterno empate torna-se ele próprio a verdadeira determinação
ontológica. A percepção positivista permanece, só que agora já não deve haver mais
“factos” claros. E o mesmo se aplica mais uma vez às ideias e à sua história. Também o
entendimento das “questões espirituais fundamentais” se mantém, só que estas são
agora “contextualizadas”, no sentido de “relativas ao local da fala” com a respectiva
coloração cultural diferente. O diferente contexto e a relatividade daí resultante também
são percebidos de forma “culturalistamente” reduzida. Com isto o carácter da história
das ideias como história de conflitos passa para segundo plano tal como no pensamento
tradicional. O conflito não é levado a sério, pelo contrário, é absolutamente relativizado,
tanto para o passado como para o presente. Também dantes já todos tinham sempre um
pouco de razão e um pouco de falta dela: tinham apenas diferentes padrões culturais
como grelha de percepção. Só é pena que a verdade não tenha sido sempre “discutida”
com correcção.
Ora naturalmente é mesmo um conflito e por vezes muito violento que ocorre entre o
pensamento histórico tradicional e o pós-moderno. No entanto nenhum dos dois lados
consegue determinar o campo comum do debate por causa da sua percepção deficitária
dos conflitos em geral e do seu em particular.
O que é válido para a história e para a sociedade (moderna) como um todo reproduz-se
na crítica e oposição. Como o capitalismo se desenvolveu até uma certa dominância,
maturidade e com isso cognoscibilidade, ficou por assim dizer na ordem do dia a
determinação do seu conceito e a sua crítica. No campo de tensão entre a filosofia
iluminista afirmativa, com os seus produtos da “economia política” ou economia
nacional e as múltiplas revoltas sociais contra as novas relações impostas, desenvolveu-
se uma luta pela verdade com múltiplas seitas, correntes e escolas; da “ala esquerda” do
pensamento iluminista e da economia política até aos diversos socialismos utópicos. Na
Alemanha lutaram as posições e escolas do hegelianismo de esquerda, enquanto a
“questão social” ainda era sobreposta pela “questão liberal” e pela luta contra os
absolutismos sobreviventes. Na crítica impôs-se finalmente em grande medida a teoria
de Marx que na interpretação do movimento operário clássico se tornou o paradigma de
23
uma época. Também nesta base de uma nova certeza houve novamente controvérsias e
facções, mas já apenas no campo de referência comum do “marxismo” como expressão
de uma formação epocal.
Hoje, pelo contrário, estamos novamente confrontados com um tempo de transição.
Após a II Guerra Mundial o movimento operário perdeu o seu impulso histórico,
justamente porque de certa maneira foi bem sucedido e se institucionalizou como
capitalista.
Original DER KAMPF UM DIE WAHRHEIT. Anmerkungen zum postmodernen
Relativismusgebot in der gesaellschaftskritischen Theorie. Publicado na revista EXIT!
Krise und Kritik der Warengesellschaft, nº 12 (11/2014), pag. 53/76, [EXIT! Crise e
Crítica da Sociedade da Mercadoria, nº 12 (11/2014)], ISBN 978-3-89502-374-3, 192
p., 13 Euro, Editora: Horlemann Verlag, Heynstr. 28, 13187 Berlin, Deutschland, Tel
+49-(0)30 49307639, E-mail: [email protected], http://www.horlemann.info/.
Tradução de Boaventura Antunes (03/2015)
http://obeco.planetaclix.pt/
http://www.exit-online.org/