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A PROPOSITURA DE JUSTIÇA SOCIAL RAWLSIANA E SEUS LIMITES ÀS
REALIDADES LATINOAMERICANAS
Ariston Azevêdo
Renata Ovenhausen Albernaz
Guilherme Dornelas Camara
RESUMO
O presente texto analisa, em um exercício de redução sociológica, a ideia de “justiça como
equidade” de John Rawls, à luz da singularidade latino-americana, em dois eixos: (1) o do
multiculturalismo e pós-colonialismo latino-americanos, estes que podem nos sugerir um
questionamento acerca da elasticidade do modelo de justiça rawlseniano para considerar, de
forma adequada, os perfis do pluralismo social e das desigualdades históricas latino-
americanas; (2) o da crítica da hegemonia da economia de mercado em sociedades do
capitalismo periférico como as latino-americanas, diante da consideração, por Rawls, da
adequação da economia de mercado na produção de bens a seres distribuídos conforme seu
sistema de “justiça como equidade”.
INTRODUÇÃO
O presente texto parte da noção de redução sociológica de Guerreiro Ramos para
proceder à análise da propositura da “Justiça como Equidade” de John Rawls, no que se refere
à sua pertinência referencial e aplicativa às sociedades latino-americanas, sociedades essas
marcadas pelo multiculturalismo e, por conseguinte, pelo pluralismo de modos de vida e
ordenação política e econômica, diferentes, portanto, da realidade social na qual aquele
modelo de justiça foi inspirado. Essas diferenças, como se fará destaque logo abaixo, põem
sérios obstáculos a qualquer tentativa de transplantação literal desse modelo, sem o necessário
exercício de redução sociológica.
Tal como foi definida pelo referido sociólogo brasileiro, a redução sociológica
consiste em um procedimento natural a todo e qualquer cientista social que adote, de fato,
uma postura de “engajamento ou de compromisso consciente com o seu contexto”, o que o
faz tratar com “toda a produção científica estrangeira” de modo “subsidiário”, e não
preponderante, em termos de exame da realidade concreta com a qual se encontra vinculado e
comprometido (GUERREIRO RAMOS, 1965), ou seja, a redução é uma postura crítico-
assimilativa da “ciência e da cultura importadas” (GUERREIRO RAMOS, 1981, p. XVI),
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uma espécie de autodefesa à produção de um saber alienado e diante de um saber alienante. É
exatamente o exercício de tal postura que procuraremos fazer ao longo do presente texto.
Essa análise crítica-assimilativa problematiza a teoria da “justiça como equidade” de
Rawls em dois eixos: (1) o do multiculturalismo e pós-colonialismo latino-americanos, estes
que podem nos sugerir um questionamento acerca da elasticidade do modelo de justiça
rawlseniano para considerar, de forma adequada, os perfis do pluralismo social e das
desigualdades históricas latino-americanas; (2) o da crítica da hegemonia da economia de
mercado em sociedades do capitalismo periférico como as latino-americanas, diante da
consideração, por Rawls, da adequação da economia de mercado na produção de bens a seres
distribuídos conforme seu sistema de “justiça como equidade”.
A base teórica para tal crítica, além desse exercício metodológico de redução
sociológica, consiste nos estudos do multiculturalismo e do pós-colonialismo pertinentes ao
cenário latino-americano e em estudos sobre bases alternativas de produção econômica
observadas neste continente.
A crítica assumida neste texto não pretende desconstruir o modelo de teoria de
justiça rawseniano, modelo ao qual identificamos inúmeras potencialidades; trata-se mais de
um posicionamento de tradução dessa importante teoria da justiça contemporânea para que ela
possa dar conta, de uma maneira ajustada, aos problemas de injustiça social e de
desigualdades históricas tão latentes e urgentes na América Latina. É, ao ver destes autores,
uma forma de enriquecer as discussões dessa teoria de justiça a partir da perspectiva de
pessoas situadas em condições bem diferentes daquelas nas quais Rawls tinha em vista
quando a elaborou.
1. JUSTIÇA COMO EQUIDADE: CONSENSO E RACIONALIDADE EM UMA
SOCIEDADE MULTICULTURAL E PÓS-COLONIAL LATINO AMERICANA
Uma das primeiras questões a serem discutidas na “redução sociológica” do modelo de
“justiça como equidade” rawlseniano ao cenário latino americano é a elasticidade deste
modelo para abarcar, com o devido respeito, a pluralidade e a multiculturalidade
substantivas presentes neste continente. A questão surge a partir da percepção de que, se na
sua obra “Uma Teoria da Justiça”, o objetivo de Rawls (2000, p. 5) é o de propor uma teoria
de justiça como equidade de cunho normativo, considerando, aliás, que a “justiça é a virtude
de práticas nas quais há interesses concorrentes e as pessoas se sentem habilitadas a impor
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seus direitos umas às outras”, sem concordar com um ideal comum (sociedades pluralistas)
(RAWLS, 2001, p. 140), este pluralismo social parece ter um certo limite de admissibilidade,
haja vista que, para Rawls, os princípios de justiça seriam obtidos a partir de um consenso na
sociedade (recurso ao contratualismo clássico) e que este consenso pressupõe a prevalência de
concepções comuns.1 Os movimentos do multiculturalismo e do pós-colonialismo das
sociedades latino americanas tendem a desconfiar desses processos de prevalência e consenso,
sustentados em generalizações e abstrações, pois, historicamente, estes processos têm gerado
a subalternização e a invisibilidade social das diferenças e particularidades coletivas
(notadamente, daqueles grupos que não se aderem ao modelo moderno-europeu).
Nessa questão da elasticidade do pluralismo admitido por Rawls, duas análises
podem ser feitas. Uma, com tons de uma crítica desconstrutiva, é a que acusa a
pasteurização social das diferenças geradas pela proposta de “Justiça como Equidade”
rawlseniana, principalmente considerando os seus termos operatórios-procedimentais. Outra,
com tons de uma crítica adaptativa deste modelo de “Justiça como Equidade” ao cenário
Latino Americano, visa discutir o pressuposto e a prioridade da ideia de igualdade nesse
modelo de justiça em sua necessidade e sua adaptação ao contexto social deste continente.
Na crítica desconstrutiva, acusa-se, não o modelo da proposta de “Justiça como
Equidade” rawlseniana em si, mas seus postulados operatórios. A crítica é feita no sentido de
que, para admitir as condições em que um consenso, sobremaneira geral, sobre princípios
primários de justiça possam ser elaborados, Rawls exagera nos processos de generalização (na
abstração dos sujeitos, das concepções substantivas de bem e dos processos de discussão).
Aliás, Rawls afirma que a justiça social tem por seu objeto primário a estrutura básica
da sociedade, ou seja, as instituições sociais mais importantes na distribuição de deveres e
1 Na obra “Liberalismo Político”, conforme explica Sérgio Sérvulo da Cunha, em sua
“Apresentação à Edição Brasileira” da obra “O Direito dos Povos”, a preocupação de Rawls tangencia este
ponto, buscando “compreender como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa
de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosó ficas e morais razoáveis,
embora incompatíveis”, levando-o a acrescentar e renovar conceitos como doutrinas abrangentes, consenso
sobreposto e razão pública, sendo, assim, tal obra, um acréscimo à “Uma Teoria da Justiça”, neste aspectos
de firmá-lo em sociedades pluralistas. Na obra “O Direito dos Povos”, Rawls pretende elaborar, no plano
de uma “Sociedade dos Povos”, um consenso similar ao que procede no modelo de “Justiça como
Equidade” para as sociedades em particular, envolvendo diferentes tipos de sociedade que ele denomina
como “povos democráticos, liberais e constitucionais” e “governos não liberais, mas decentes” (decentes no
sentido de serem “sociedades cujas instituições cumprem certas condições especificadas de direito e justiça
política (...) e levam seus cidadãos a honrar um direito razoavelmente justo para a Sociedade dos Povos”
[RAWLS, 2004, p. 3]). A base contratualista desse “consenso sobreposto” de doutrinas abrangentes (bases
religiosos, filosóficas e morais como fora da política [RAWLS, 2004, p. 24]), a afirmação da necessidade
de um “véu da ignorância denso” (RAWLS, 2004, p. 40), ainda mais abstrato, porém, assemelham a
procedimentalidade de “O Direito dos Povos” à de “Justiça como Equidade” para cada sociedade, podendo
receber as mesmas críticas.
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direitos fundamentais decorrentes da cooperação social2. Afirma, ainda, que esta estrutura
básica precisa ser criada em uma condição inicial de consenso que seja equitativa. Mas quem
seriam os sujeitos participantes deste consenso? E como ele seria obtido em termos de firmar
esses seus conteúdos básicos?
Em primeira instância, para tal consenso originário, Rawls elege um modelo de
homem – a figura das “pessoas éticas, racionais e razoáveis” – os cidadãos com esse perfil
envolvidos na cooperação – como seus sujeitos/atores. Pessoas que, seguindo Rawls (2000),
poderiam ser definidas como aquelas: (a) que têm capacidade de formular sua concepção
própria de bem; (b) dotadas de sensibilidade moral e de juízos ponderados para se reger,
prioritariamente, por princípios no seu dia-a-dia; (c) pessoas que, entre si, veem-se como
mutuamente livres; (d) que são racionais, no sentido de serem capazes de firmar e aceitar
consensualmente regras sobre a cooperação social; (e) que pretendem ter uma quantidade
maior de bens primários do que menor; (f) que atuam de forma mutuamente desinteressadas
(não estão dispostas a sacrificar seus interesses em prol dos outros, nem são movidas por
interesse de impor prejuízos a outrem – não agem por amor ou por ódio); e que (g) são
capazes de compatibilizar suas noções de bem com a situação social total. Assim, essa seria a
noção de sujeito/ator do processo político na posição original, pressuposta no modelo de
justiça rawlseniano.
Ocorre que, em sua “Justiça como Equidade. Uma reformulação”, Rawls reforça a
diferença entre racionalidade e razoabilidade (noções aparentemente misturadas na definição
de pessoa racional e ética acima) e aponta a racionalidade, supreendentemente, segundo o
sentido corriqueiro em economia, ou seja, seriam pessoas racionais aquelas que: 1)
“conseguem classificar de forma coerente seus fins últimos”; 2) conseguem deliberar guiadas
por certos princípios, como “adotar os meios mais eficazes para atingir os próprios fins;
escolher a alternativa mais propícia à promoção de tais fins; e organizar as atividades de modo
que, ceteris paribus, a maioria desses fins seja satisfeita“ (Rawls, 2003, p. 123).
2 Rawls (2003, p. 7-17) parte da premissa central, ou mesmo, intuição basilar, de que a sociedade
é um sistema equitativo de cooperação social, sociedade essa constituída por cidadãos (os que cooperam
nesta ordem) livres e iguais, e que é bem ordenada se sua estrutura básica (indicação e interação entre as
principais instituições políticas e sociais em suas distribuições de cargos, posições, direitos e deveres) é
organizada por uma concepção pública de justiça. Tal cooperação não é qualquer ordem de
comportamentos em conjunto, mas aquela que envolve termos equitativos de cooperação, ou seja, (1)
“guia-se por regras e procedimentos publicamente reconhecidos” e aceitos; (2) inclui a ideia de
reciprocidade e mutualidade, ou seja, quem cumpre sua parte nessa colaboração ao bem comum deve se
beneficiar conforme o critério público e consensual especificado para tal colaboração; (3) nesses benefícios
especificados, o participante pode obter seu próprio bem (individual) de forma legitimada (“vantagem
racional”).
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Em “O Direito dos Povos”, Rawls (2004, p. 19) exalta o teor político da razoabilidade
quando define “sociedades razoáveis”, como sendo aquelas: (1) em que se “enumeram os
direitos e liberdades básicas a partir de um regime constitucional; (2) onde se “(...) atribui a
esses direitos, liberdades e oportunidades uma prioridade especial”; (3) onde se “assegura a
todos os cidadãos os bens primários necessários para capacitá-los a fazer uso inteligente e
eficaz de suas liberdades”; (4) que “devem satisfazer o critério da reciprocidade”; (5) onde se
exigem, ainda, condutas virtuosas dos cidadãos, em termos políticos, tais como “um senso de
imparcialidade e tolerância e disposição para soluções de compromisso com os outros”
(RALWS, 2004, p. 21).
Além dessa noção de sujeito/ator, o filósofo político americano (2000, p. 101)
acrescenta que, como em uma sociedade há várias posições sociais, e cada qual poderia
formular seu leque de expectativas, é necessário um primeiro processo de generalização das
fontes de expectativas, processo que faria uma triagem dentre a pluralidade de posições,
atingindo algo que Rawls denomina como “posições sociais relevantes”. Essa denominação
visa classificar, na estrutura social, certas posições como sendo as mais básicas dentre todas
as demais, tidas como lugares de partida para outras posições, estas secundárias. Rawls (2000,
p. 102) supõe, então, que cada pessoa ocupe duas posições básicas relevantes: a da cidadania
igual e a posição definida pelo seu lugar na distribuição da riqueza e da renda; essas são,
ambas, posições gerais, ou seja, independentes de qualquer elemento de particularidade
histórica, filosófica, psicológica, cultural, ou contingência social.
Tal artifício classificatório se faz presente dado à necessidade de generalização que
está pressuposta na teoria da justiça de Rawls, haja vista que perspectivas mais particulares,
muito possivelmente, anulariam considerações obtidas na posição mais geral, e as pessoas que
se vissem nas particularidades nem sempre se beneficiariam na consideração geral, acaso ela
fosse enviesada por uma ou outra particularidade. Além disso, Rawls considera que mesmo as
particularidades são contingências, e a teoria da justiça rawlseniana busca anular a influência
de tais contingências (por força ou por conveniência) nos acordos políticos da posição
original, e por isso, elas não poderiam ser parâmetros para decisões equitativas de escopo
geral, o que está logicamente correto.
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Além disso, a própria ideia do “véu da ignorância”, apesar de muitos louvores, tem
este ímpeto de generalização e abstração, e pode deixar de atentar para situações históricas e
contingências relevantes, na América Latina, dos “absurdamente menos favorecidos”.3
A situação do “véu da ignorância”, segundo Rawls (2000, p. 149), é aquela em que “as
pessoas não sabem como as várias alternativas irão afetar o seu caso particular, e são
obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas suas considerações gerais”. Nesta
situação, as pessoas são induzidas a desconhecerem (ou desconsiderarem?) qual a sua posição
atual na sociedade, qual a sua sorte na distribuição de dotes naturais e familiares, qual a sua
noção de bem, seus apegos e medos psicológicos, as contingências de sua sociedade e a
geração a que pertence. Prostram-se, no acordo, como seres vazios destas contingências, para
que o consenso possa ser generalizado. Apesar de que o impor uma restrição dos
conhecimentos situacionais poderia prejudicar uma solução ótima da estrutura social que
levasse em conta todas as contingências, esta solução complexiva de conhecimento esgotado
de circunstâncias não é vista como possível por Rawls (2001, p. 150): a única possibilidade
que ele vislumbra é uma noção de justiça bem geral, porque só assim seria possível se chegar
a um acordo sobre vantagens equilibradas a todos.
Do mesmo modo do que ocorre nesta generalização dos sujeitos da “posição original”
e das posições sociais consideradas, as alternativas possíveis à escolha neste consenso
original rawlseniano, também, não estão todas abertas, e, neste sentido, podem ser
questionadas em seus critérios de seletividade. Rawls (2001, p. 140-145), aliás, considera
várias restrições ao conceito de justo, a fim de torná-lo passível da generalização necessária
à equidade e à imparcialidade; são elas: (1) os princípios devem ser gerais, aplicarem-se
indistintamente e incondicionalmente a todos, inclusive, às gerações futuras; (2) devem ser
universais em sua aplicação, pois todos são considerados em sua característica universal de
pessoas éticas; (3) devem ser públicos, ou seja, ser aceitos por todos como conhecidos e
desejáveis para apoiar a cooperação social; (4) devem impor às reivindicações conflitantes
uma ordenação pacífica, para, justamente, evitar o apelo à força, e, assim, o irracional “dar a
cada um de acordo com o seu poder de ameaçar”; e (5) devem ser os princípios que
representem a última instância de apelação do raciocínio prático.
Além dessa generalidade na escolha das alternativas, Rawls (2001, p. 165-167)
acrescenta, para que esta escolha de alternativas seja ainda mais equilibrada, a adoção da
3 Em estudo anterior, fez-se (ALBERNAZ, MARQUES, 2012) uma pesquisa sobre esta condição
desses “absurdamente menos favorecidos”, na qual esta condição foi configurada, no Brasil, com a
denominação de “grupos juridicamente vulneráveis”.
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regra maximin, ou seja: (a) aquela segundo a qual se classifique as alternativas em termos de
seus piores resultados, de modo a se pode escolher a alternativa cujos piores resultados sejam
melhores que os resultados das demais (de modo a escolher sempre as alternativas cujas
restrições às liberdades sejam as “menos piores”); (b) aquela em que a pessoa que escolhe não
se preocupa em ganhar acima do estipêndio mínimo, pois considera que este ganho pode
arriscar perdas outras e (c) que as alternativas rejeitadas dificilmente seriam aceitáveis, pois
esta regra tende a nivelar os ganhos e perdas.
Em termos substantivos, Rawls (2001, p. 5) até reconhece que há várias concepções de
justo, conforme as diferentes noções de bem, mas admite que entre elas, em termos materiais,
dificilmente seria alcançado um consenso. Por isso, sua proposta é a de uma concepção
primária de justiça – a justiça como equidade, onde o elemento justiça tem precedência às
noções de bem.
A “justiça como equidade”, então, seguindo Rawls, seria a formação de um consenso
original por pessoas éticas, na situação de um “véu da ignorância”, pessoas que, mesmo
preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam tais princípios como
definidores de sua estrutura básica, na distribuição de benefícios e encargos da vida social,
estando em uma posição inicial de igualdade de poder e de posição (situação hipotética de
“liberdade equitativa”). Tal justiça, segundo Rawls, seria orientada por dois princípios,
também bastante gerais e abstratos4:
(a) Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente
adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema
de liberdade para todos; e
(b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições:
primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em
condições de igualdade equitativa de oportunidades; e segundo lugar, (elas) têm de
4 Para uma Justiça entre os Povos, Rawls (2004, p. 47-48) afirma haver, na primeira posição
original, os seguintes princípios tradicionais de justiça: “1.Os povos são livres e independentes, e a sua
liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos; 2. Os povos devem observar tratados e
compromissos; 3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam. 4. Os povos sujeitam-se ao
dever de não intervenção 5. Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra
por outras razões que não a autodefesa; 6. Os povos devem honrar os direitos humanos; 7. Os povos devem
observar certas restrições específicas na conduta da guerra; 8. Os povos têm o dever de assistir a outros
povos vivendo sob condições desfavioráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo e
decente”. Na segunda posição original (RAWLS, 2004, p. 52), especificam-se os ideais, princípios e
padrões que regerão as relações entre os povos.
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beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (princípio da
diferença) (RAWLS, 2003, p. 60)5
A partir desses princípios, bastante gerais, todos os demais acordos substantivos
tenderiam a ser equitativos; mas, segundo Rawls (2001, p. 628), uma vez acordados, todos
deveriam acomodar suas reivindicações mútuas a tais princípios, pois eles se tornariam a
estrutura a partir da qual cada pessoa poderia ou não formular a sua noção de bem. E, por fim,
estabelecidos estes princípios materiais, a “Justiça Procedimental Pura”6 garantiria a
manutenção dessa justiça equitativa na prática.
Esse processo serviria para sociedades que Rawls (2004, p. 30) denomina como
“sociedade democrática constitucional razoavelmente justa (ou, sociedade liberal)”, como
sendo aquelas sociedades que têm um “governo constitucional razoavelmente justo, que serve
aos seus interesses fundamentais; cidadãos unidos pelo que Mill denominou ‘afinidades
comuns’; e finalmente, uma natureza moral” e cidadãos razoáveis (recíprocos e dispostos a
cooperar de forma imparcial).
Em termos de adaptação dessas ideias ao contexto latino-americano, algumas críticas
já aventadas na doutrina podem dar indícios interessantes para essa redução sociológica.
Primeiramente, quanto à configuração do tipo de sujeito racional aventado por Rawls,
percebe-se que a noção de racionalidade por ele adotada, notadamente na sua Reformulação,
de certa forma, parece similar a do utilitarismo que Rawls tanto critica. Ou seja, continua
sendo a mesma “Razão Indolente” (Santos, 2001, 2007, 2008) utilitária, de índole
exclusivista, pretensamente indemonstrável, cega às demais lógicas racionais, monológica,
formalista e não substantiva, que tanto tem, historicamente, violentado as razões comunitárias,
nativas, solidaristas dos grupos excluídos latino-americanos. Além disso, tal razão é
imunizadora à crítica do sujeito, crítica esta tão premente a estes povos explorados do
capitalismo periférico e de saber colonizado pelo eurocentrismo. O próprio ajustamento das
noções de bem aos princípios de justiça, uma vez estabelecidos, apesar de garantir
5 Esses princípios foram retirados da obra “Justiça como Equidade. Uma reformulação”, pois nesta
obra Rawls reconfigura sua teoria, delineada em “Uma teoria da Justiça” e em “Liberalismo Político”, a partir
das críticas recebidas, reconfiguração feita nos seguintes pontos: (1) numa reformulação desses dois princípios
de justiça; (2) nos argumentos favoráveis a tais princípios a partir de sua concepção de posição original; (3) na
afirmação, de modo mais categórico, da justiça como equidade como uma concepção política de justiça.
6 Tal “Justiça Procedimental Pura” seria: (1) um sistema em que “há um critério independente para
uma divisão justa, um critério definido em separado e antes de o processo acontecer”; (2) um sistema no qual “é
possível criar um procedimento que com certeza trará o resultado desejado”; (3) um processo onde ocorra (a) o
acesso igualitário de todos aos seus processos e meios e (b) a administração imparcial e consistente destas leis e
instituições (RAWLS, 200, p. 94).
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estabilidade7, também não pode ser visto como inquestionável. Guerreiro Ramos (1981), neste
sentido, já percebia a necessidade de restauração da razão substantiva, enquanto “força ativa
na psique humana que habilita o indivíduo a distinguir entre o bem e o mal, entre o
conhecimento falso e o verdadeiro, e, assim, a ordenar sua vida pessoal e social” (p. 2-3), para
romper uma razão instrumental hegemônica. Neste sentido, a vida na razão substantiva,
melhor dizendo, o exercício da razão é o que efetivamente confere aos sujeitos a capacidade
necessária de resistirem à sua total absorção pelos fenômenos histórico e institucional, que os
faz transcender “a condição de um ser puramente natural e socialmente determinado, e se
transformar num ator político” (Ramos, 1981, p. 28). Embora Rawls faça menção a esse
sujeito político capaz, inclusive, de formular e aderir a uma concepção politica de justiça,
quando se investiga sua noção de razão, nota-se esta contradição, uma vez que esse sujeito de
razão por ele definido é reduzido a um ser racional instrumental, até mesmo incapaz de
formular juízos morais e políticos com autonomia.
No que tange ao pluralismo possível neste modelo de Rawls, Mouffe (2001) também
faz uma séria crítica a Rawls, em vários sentidos. Primeiro, ela (2001, p. 423) observa que, ao
afirmar um consenso pluralista entre “pessoas sensatas” (racionais), o pressuposto dessa
sensatez é o de as pessoas envolvidas admitirem os fundamentos do liberalismo, do qual parte
Rawls. Além disso, Mouffe observa que este abstracionismo de Rawls, no impulso de criar
uma solução não arbitrária possível, acaba criando é uma utopia, pois não é empiricamente
observável que homens e mulheres se imunizem, de modo tão absoluto, de suas condições,
valores, princípios, amores e ódios para atuar na esfera pública; além de que se Rawls observa
que não é possível um acordo racional entre morais compreensivas, doutrinas religiosas e
filosóficas, como este acordo seria possível em termos de valores políticos? Como estes
valores políticos podem se desprender dessas outras condições sociais, morais e concepções
de vida? Mouffe, aliás, em seu “modelo agonístico de democracia”, pressupõe que a política
é, justamente, a esfera desses embates substantivos e contingenciais, considerando esses
dissensos, este pluralismo social, inafastáveis do campo político. A não se tomar desta forma,
ter-se-ia que admitir, ao seguir Rawls, “que não pode haver pluralismo no que se refere a
princípios de associação política e que conceitos que recusam os princípios do liberalismo não
podem ser aceitos como legítimos em uma democracia liberal” (MOUFFE, 2001, p. 423).
7 Rawls (2004, p. 17) prioriza esta estabilidade social e este certo grau de ajustamento pessoal ao
coletivo quando considera ser a “estabilidade pelas razões certas” quando “atuarem os cidadãos corretamente, de
acordo com os princípios adequados de seu senso de justiça, que adquiriram por crescer sob instituições justas e
participar delas”
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Assim, para Rawls, na visão de Mouffe, a sociedade ideal é aquela em que a política foi
eliminada. E no cenário de um pluralismo social latejante como o Latino Americano,
desconsiderá-lo em prol de uma abstração contratual possível (ou mais fácil) é fechar os olhos
aos principais problemas que precisam ser levados, e com urgência, para a esfera pública.
Outra crítica a esta generalização dos sujeitos pressuposta na teoria da justiça de
Rawls, em termos da viabilidade de sua manutenção ao longo do tempo, é feita por Walzer
(2003), em sua abordagem pluralista e comunitarista de justiça, talvez mais próxima do modus
vivendi latino americano que o liberalismo de Rawls. Walzer advoga, em sua “Esferas da
Justiça”, um “Regime da Igualdade Complexa”8 norteado pela equalização dos bens sociais,
de modo que certos bens não prevaleçam sobre os demais, dando mais poder aos seus
detentores. Pautar-se pelo princípio da igualdade, mas implicando esta, não uma
homogeneização de pessoas (como quer Rawls), mas uma equalização do valor dos bens que
dá poder às pessoas de subordinar outras é, para Walzer, uma solução para articular
Pluralismo e Igualdade, questão mal resolvida em Rawls. Tal “Justiça Pluralista” forma,
assim, um compromisso com uma “política abolicionista”, ou seja, aquela que busque
suprimir o que dá capacidade a um grupo de pessoas ou de sociedades de dominar aos seus
semelhantes; seu objetivo é estabelecer uma ordem social total livre da superioridade, mas
forte em pluralidade individual e coletiva.
Em outro sentido, nesta generalização e abstração há mais um ponto problemático da
“Justiça como Equidade” quando esta é analisada na perspectiva de sociedades como as latino
8 Walzer fala de “igualdade complexa” justamente para se opor ao modelo de “igualdade simples” no
qual, ao que parece, poderia ser encaixada a teoria de Rawls. Segundo Walzer, no sistema de igualdade simples o
que se combate é a condição do monopólio, ou seja, ao fato de algumas pessoas dominarem os bens
predominantes em uma esfera de bens e de estenderem esta predominância às demais esferas, dominância esta
que gera subordinação das demais pessoas. O regime da igualdade simples se explica na reivindicação de
estender-se, igualmente, a todos, o bem social predominante (dinheiro, por exemplo). Mas tal processo acaba
tornando este bem elemento de conversão de todos os demais bens, ampliando o seu predomínio. Além do que,
para mantê-lo em condição de igualdade, é preciso um poder estatal forte que garanta o constante retorno à
condição original de igualdade, haja vista que as escolhas pessoais tendem a gerar situações diferenciadas após a
distribuição igual. O sistema de igualdade complexa pressupõe uma pluralidade de bens sociais (várias esferas de
distribuição, cada qual com seu conjunto de bens e suas hierarquias), e, consequentemente, de critérios
distributivos, e enfatiza que a justiça distributiva deva se concentrar na redução do predomínio, não do
monopólio. “Devemos analisar o que significa estreitar o âmbito dentro do qual determinados bens são
conversíveis e defender a autonomia das esferas distributivas” (WALZER, 2003, p. 20). Significa viver a
complexidade das distribuições, as várias esferas de bens. Nela, os bens são monopolizados, como naturalmente
o tendem a ser, mas nenhum bem, em especial, é geralmente, ou constantemente, de conversão universal. Essa é
uma sociedade igualitária complexa, onde, apesar de haver muitas desigualdades, elas não são multiplicadas pelo
processo de conversão, pois a autonomia das distribuições tenderá a produzir uma diversidade de monopólios,
abrindo caminhos para formas mais difusas e particularizadas de conflitos sociais. “A igualdade é uma relação
complexa de pessoas, mediadas por bens que criamos, compartilhamos e dividimos entre nós; não é uma
identidade de posses. Requer uma diversidade de critérios que expresse a diversidade de bens sociais”.
(WALZER, 2003, p. 21).
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americanas, pois estas são marcadas por um multiculturalismo colonizado (ou
monoculturalismo colonizador) – ou seja, aquele que tende a sempre tirar da pauta, como
“menos básicos”, os modelos de sociedade e humanidade não modernos-europeus. Isto
porque, a luta do multiculturalismo e pós-colonialismo latino-americanos9 contemporâneos
tendem a ver com muitas reservas esta visão universalizante de “ser humano” e de “posições
básicas” liberais que Rawls precisa pressupor em seu modelo.
Além dessa crítica desconstrutiva na análise da elasticidade do Pluralismo Social
admitido por Rawls, na crítica adaptativa, o primado da igualdade, firmado na “justiça
como equidade”, é defendido em sua premência no cenário latino-americano, mas
discutido em sua viabilidade operatória em termos históricos.
Na questão da igualdade, Rawls é incisivo em sua defesa, afirmando-a, tal como a
liberdade equitativa, como o postulado de sua teoria da justiça. Esta prioridade, inclusive, o
leva a criticar a doutrina utilitarista que admitiria, em prol de um maior saldo médio de
satisfações, o sacrifício das liberdades de cidadania igual, estas que Rawls entende como
inafastáveis, inegociáveis, indisponíveis ao cálculo de interesses sociais.
O postulado da igualdade se manifesta em Rawls em sua defesa da distribuição igual
de “liberdades básicas”, estando, entre elas, a liberdade política (de votar e de ser votado) e a
liberdade de expressão e reunião, a liberdade de consciência e de pensamento, a liberdade de
integridade física e psicológica individual, o direito à propriedade privada e a proteção contra
prisões arbitrárias. A distribuição, pelo “princípio da diferença”, dos “bens primários”, ou
seja, daqueles que todo homem presumivelmente quer, envolvendo direitos, liberdades,
oportunidades, renda, riqueza e autoestima, também seriam distribuídos equitativamente
(RAWLS, 2000, p. 79-80), mas, apesar de não iguais, esta distribuição diferenciada deveria
ter como critério o fato de ser vantajosa para todos, principalmente para os menos
favorecidos, além das posições de autoridade e responsabilidade que garantam esta
distribuição diferenciada deverem ser acessíveis a todos (“princípio da igualdade
democrática”).
Além disso, Rawls é categórico em afirmar que um esquema é injusto quando uma ou
mais das expectativas são excessivas, e em acusar que as diferenças extremas entre as classes
violam o princípio de vantagens mútuas e o da igualdade democrática de acesso aos espaços
9 Nas lutas pós-colonialistas e multiculturalistas latino-americanas destacam-se nomes como
Alejandro Moreno, Alejandro Serrano Caldera, Anibal Quijano, Antonio Carlos Wolkmer, Antonio Sidekum,
Arturo Escobar, Edgardo Lander, Enrique Dussel, Fernando Coronil, Illeana Rodriguez, Javier Sanjines,
John Beverley, Jose Rabasa, Paulo Freire, Robert Carr, Renata O. Albernaz, Walter Mignolo entre outros.
12
de autoridade e responsabilidade. Também, estas discrepâncias de expectativas ferem o bem
primário essencial da autoestima, pelo fato de levar sujeitos em posições substancialmente
piores a sentirem-se inferiores aos sujeitos das posições melhores. A eficiência, ou seja, a
condição na qual se pode melhorar a condição de um sujeito sem piorar a de outro, também é
aplicável, desde que estas diferenças gritantes não estejam envolvidas. Rawls (2000, p. 88)
chega a sugerir que, em casos graves de desigualdades nestas expectativas, situação onde o
princípio da diferença, em sua forma mais simples, falha, a justiça equitativa exigiria a
atuação do “princípio do intervalo lexical”, ou seja:
Em uma estrutura com n representantes relevantes, primeiro maximizar o bem-estar
do homem representativo em pior condição; segundo, para obter o igual bem-estar
do representante em igual condição, maximizar o bem-estar do homem
representativo cuja posição desfavorecida vem logo após a do primeiro; e assim por
diante até o último estágio que é, para obter igual bem estar de todos os
representantes que precedem n-1, maximizar o bem estar do homem representativo
na melhor situação.
E, ainda, a igualdade é fortemente demarcada na ideia do “princípio da reparação”.
Segundo Rawls, a posição original é a de igualdade, ou seja, aquela em que nenhuma pessoa é
favorecida ou desfavorecida por fatores arbitrários (da sorte natural) tais como origem
familiar, dotes naturais, sorte ao longo da vida (RAWLS, 2000, p. 103). Aliás, a interferência
destes fatores é que determina os mais ou menos favorecidos no sistema de Rawls, nos termos
de mais ou menos acesso aos bens sociais primários em virtude dessas eventualidades. E esta
interferência abre ensejo ao “princípio da reparação”, segundo o qual as desigualdades
imerecidas precisam ser reparadas pelo social, no sentido da igualdade. (RAWLS, 2000, p.
107), além de as distinções criadas por estas condições arbitrárias deverem ser usadas a favor
da sociedade, em prol dos menos favorecidos. Rawls parte do pressuposto de que as
distribuições naturais não são justas ou injustas, o que é justo ou injusto é o modo como as
instituições lidam com estes fatos. E esta lida deve ter em conta uma concepção de
reciprocidade, de benefício mútuo e de fraternidade (sentimento de igual estima social e de
solidariedade) o que, assim, mesmo aproveitando diferentes habilidades e até mesmo
aprimorando-as e acentuando-as (pela busca de cada um por um plano de vida preferido), isto
conduz, não a uma sociedade meritocrática, mas ao seu oposto, ou seja, a uma sociedade
solidária e igualitária.
Estas considerações da “Justiça como Equidade” têm importantes potenciais
transruptivos, mas também falhas quando em questão a realidade social latino americana. Em
termos transruptivos, a primazia da igualdade pública e social afirmada por Rawls seria
13
indispensável neste continente, haja vista que se verifica ser o perfil da pluralidade social
Latino Americana manifestado, não apenas em sua diversidade, mas também, e de maneira
mais notória, na desigualdade, marginalidade e na exclusão da diferença, fato que segrega
certos grupos e pessoas do gozo dos bens sociais e da participação nas principais instituições
nacionais. O sentido normativo do modelo de “justiça como equidade” de Rawls, aliás, deve
ser exaltado como alternativa contra um processo histórico em que a igualdade, a estima
social e as liberdades equitativas nunca foram reais. E apesar das ideias de “posição original”,
“véu da ignorância” e “liberdade equitativa” serem meramente hipotéticas (RAWLS, 2000, p.
24), isto não retira seu importante potencial normativo na condução de decisões públicas,
notadamente na América Latina, onde os países são carentes desta imparcialidade, primado da
igualdade e da democracia nos juízos públicos.
Em termos explicativos, porém, esta primazia da igualdade é falha para o cenário
latino americano, pois as raízes desta exclusão são explicadas tendo em conta, justamente, o
padrão de modernidade (contratualista, generalizante, legal-racional) ao qual Rawls está
aderido. Para evidenciar esta falha, aqui, serão ressaltadas, neste padrão de modernidade, as
críticas ao processo de modernização no novo mundo e a falta da base moral da
igualdade e dignidade humanas pressuposta neste padrão, na história da formação das
relações sociais neste continente.
A relação entre o processo de modernização latino-americano e o resultado de
exclusão e desigualdade social no novo mundo, aliás, é explicada por inúmeras teorias
sociológicas latino americanas, dentre as quais é possível sintetizar duas posições teóricas
bem demarcadas: (i) aquelas teorias que advogam que a desigualdade no continente latino-
americano é o reflexo de uma modernização10
precária e mal sucedida na região, haja vista ter
sido ela dificultada por aspectos pré-modernos próprios da cultura ibérica – como o
paternalismo, o familialirismo, o personalismo, o patrimonialismo, o Estado centralizador, a
corrupção – aspectos que acabaram por desvirtuar o imanente potencial igualitário e libertário
da modernização e, assim, configuraram uma modernização discriminatória e excludente11
;
(ii) aquelas que, assumindo uma perspectiva crítica latino-americana,12
acusam que a
10
Por modernização e seus processos entende-se, aqui, tanto as medidas para a instalação do Estado-
Nação e suas respectivas instituições, geralmente a partir da independência dos países coloniais, como também a
consolidação do capitalismo comercial e industrial nestes países.
11 Uma destas teorias é a de Faoro (2001).
12 Para a composição deste novo pensamento social latino-americano, importante destacar várias
teorias, movimentos e autores. No mapeamento realizado por Wolkmer (2001. p. 269), encontram-se: a Teoria
da Dependência (Rui Marini, Theotônio dos Santos, Celso Furtado, Franz Hinkelammert), a Teoria Teológica
para a Libertação (Gustavo Gutierrez, Hugo Assmann, Clodovis e Leonardo Boff), as Filosofias da Libertação
14
desigualdade foi agravada, justamente, por uma transplantação cega dos processos e dos
princípios de modernização europeus, o que tornou esta modernização artificial e inadequada
aos problemas e às condições dos povos latino-americanos. Para esta segunda corrente teórica
crítica, o projeto de modernização pensado para a América Latina acabou se estabelecendo
por sobre condições de um espaço subalterno deste continente no cenário de modernização
global, condições estas que envolviam: (1) um modo de exploração colonial feito pela e para a
metrópole; (2) uma relação de trabalho de tipo escravocrata, vigente em muitos dos países
latino-americanos por longos séculos, apesar de, no velho mundo, ver-se predominar relações
de trabalho assalariado.
Aliás, Dussel (2005, p. 66) chega a acusar que o padrão de modernidade europeu, ao
contrário do que arroga em seu “Mito de neutralidade”, tal como o tem por base, também,
Rawls, é devedor da violência sobre o mundo colonial. O Ego cogito moderno foi antecedido
pelo ego conquiro (eu conquisto) prático do luso-espânico que impôs sua vontade ao índio
americano. Logo, estes países ibéricos (intencionalmente esquecidos do roteiro dos heróis da
modernidade), com sua superioridade de armas e navegação em relação aos demais países
europeus da época (sec. XV), foram também construtores do moderno, haja vista que a
Europa usará das conquistas ultramarinas para afirmar sua superioridade sobre as demais
culturas hegemônicas da época (árabe, indiana, chinesa), consolidar seu capitalismo
mercantilista, e firmar-se como o centro da história mundial (padrão mundial de dominação,
antes inexistente). A modernidade, assim, para Dussel, enquanto novo paradigma de vida
cotidiana, de compreensão da história, da ciência e da religião surge no final do século XV,
com as conquistas do atlântico. E assim começa o roteiro moderno: a civilização moderna
autodescreve-se como a civilizada; por conta disto, obriga-se a desenvolver os povos
primitivos; este desenvolvimento segue o processo determinado pela Europa; e justifica a
violência contra o bárbaro que resiste a este desenvolvimento; o bárbaro era tido como
culpado de sua barbárie e a modernidade foi elevada como uma emancipação desta situação;
os custos da modernização, em termos dos que são por ela sacrificados, são tidos como
inevitáveis e heroicos (messiânicos, quase).
(Enrique Dussel, Augusto Salazar Bondy, Leopoldo Zea) e Latino-Americana (Alejandro Serrano Caldeira, Raul
Fornet-Betancourte), a Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire), a Teoria Social baseada em uma Redução
Sociológica (Guerreiro Ramos), a Ética da Alteridade (Enrique Dussel), as proposições de uma filosofia crítica
para a política e para o direito (Torre Rangel, David Sanches Rubio, Celso Ludwig). Especificamente na
discussão epistemológica, estariam, segundo Lander (2005, p. 24), as propostas de Orlando Fals Borda, de
Alejandro Moreno, e, de modo recente, as produções de Michel-Rolph Trouillot, Arturo Escobar, Aníbal Quijano
e Fernando Corosil.
15
Este é o Mito da modernidade, segundo Dussel, mas que tende a ser negado enquanto
mito e afirmado como verdade; logo “se se pretende a superação da “Modernidade”, será
necessário negar a negação do mito da Modernidade, e, para isto, a outra face, a negada e
violada da modernidade, deve afirmar-se inocente”, julgando culpada a modernidade que a
violou; A face violada deve ser percebida, pois longe dela, sem ouvir os seus relatos, os seus
gemidos de dor, a modernidade europeia não a consegue perceber e considerar, e tende a
sustentar seu mito de neutralidade e benevolência. Trata-se, segundo Dussel (2005, p. 65), de
sustentar a “Transmodernidade’ como projeto mundial de libertação em que a Alteridade, que
era co-essencial à Modernidade, igualmente se realize” por mútua fecundidade criadora. O
projeto transmoderno é uma co-realização de solidariedade analéptica (entre Centro/Periferia,
Homem/Mulher, diversas raças, diversas etnias, diversas classes), não por pura negação, mas
por incorporação, partindo da alteridade, algo que é impossível para o moderno.
Esta dualidade do moderno (a sua face colonial e violenta) e sua necessária alteridade
(a perspectiva do colonizado, do negado, do violentado em seu processo) não são atentadas
por Rawls em seu modelo justiça; sua base, assim, é eurocêntrica, ou seja, parte da
perspectiva da realidade europeia, mas pressupondo-a universalizável (LANDER, 2005, pp.
21-22), e, buscando firmar a neutralidade histórica do liberalismo moderno, tal modelo de
justiça não auxilia na luta transmodernizante e descolonial, tão prementes à América Latina,
deixando em abertas questões pertinentes às situações do novo mundo, tais como: como
recompor a “racionalidade” necessária ao consenso de justiça original em se tratando de
povos historicamente tidos como “irracionais” (semelhantes aos debilitados mentais) e
sujeitos a processos de violenta e irracional colonização (a face irracional da modernidade)?
Como justificar a estes grupos a premência de tal racionalidade, se foi com base nela que eles
foram violados e dizimados? Seria tal processo racional adequado a um consenso de justiça
entre povos culturalmente diferentes dos liberais modernos ou povos de democracia
constitucional, aos quais Rawls aplica seu conceito de Justiça como Equidade?
Já no que diz respeito à base moral pressuposta para o consenso dos princípios de
“justiça como equidade” rawlseniano (base de igual respeito e estima social), esta base
também não têm respaldo histórico na maioria dos países latino-americanos. No caso
brasileiro13
, por exemplo, Souza (2006, pp. 120-121) observa que, por aqui, a relação
13
Apesar de tratar especificamente do caso brasileiro, a experiência escravocrata foi marcante,
em sentido similar, também em vários outros países da América Latina, dado o mesmo padrão de
colonização ibérico (PRADO, 1994). Algumas adaptações, talvez, possam ser exigidas em países como o
Chile, a Argentina e o Uruguai, em que grupos negros foram minoritários, em termos numéricos, aos
16
escravocrata envolvia uma díade problemática entre a absoluta dependência do escravo ao
senhor e a quase ausência de regras morais, religiosas, jurídicas ou tradicionais, a regular tal
relação – ausência que se verificava no fato de que as regras de dignidade humana, já
aventadas na Modernidade Europeia (Pré e Pós Revolucionária) e na forte moral católica, não
chegaram a interferir significativamente nos padrões morais e jurídicos de regulação da
relação escravocrata no país, o que a deixava a cargo do próprio arbítrio dos senhores de
escravos. O dever natural de justiça (pressuposto por Rawls), e que levaria as pessoas a
formarem este consenso de justiça como equidade, não foi observado nas relações sociais
originárias no Brasil, muito pelo contrário14
grupos brancos, restando experiências mais particularizadas. Inclusive nesses Estados, porém, houve a
escravidão e o extermínio dos nativos indígenas.
14 Aliás, uma possível justificativa para o descumprimento desse dever natural de justiça, ou direito
natural, segundo Rawls (2001) foi a consideração dos escravos (índios, e depois negros vindos da África) como
não sendo seres humanos ou a sua classificação como seres humanos, mas de raças inferiores, por isso
colonizáveis. A primeira dessas hipóteses (a consideração de índios e negros como não humanos) pode ser
demostrado na solução que se deu a um leque de discussões aventadas à época (sec. XVI), e que, segundo
historia Rangel (1991), envolvia o problema do direito da coroa Portuguesa-Espanhola de: a) impor seu modo
social (ou de sociabilidade) sobre os índios, no sentido de ocupar e explorar as terras e as riquezas do novo
mundo como legítimos possuidores; b) exigir desses povos a subserviência política aos reis dessas coroas; c)
submeter esses nativos à conversão cristã, ou à religião oficial do Estado, inclusive mediante o recurso da
“guerra santa” acaso resistissem a isto, e também; d) o direito de punir práticas tradicionais e costumeiras
consideradas criminosas na Europa, como eram os atos relativos aos rituais antropofágicos, impondo uma
hierarquização do direito do estado europeu sobre esse direito costumeiro dos nativos. Nessas discussões,
afirmando a humanidade dos índios e recusando tais direitos à coroa portuguesa espanhola ergueram-se as vozes
de Frei Pedro de Córdoba, Antonio Montesinos, Bartolomé de Las Casas, Francisco de Vitória e Padre Antônio
Vieira. Esses autores defendiam o direito desses povos nativos de: a) sendo seres humanos (e não espécies
animais), deverem ser considerados como os legítimos donos das terras, pelo princípio da primeira ocupação (na
época, já primado do direito internacional); b) sendo povos, terem o direito de auto-governo e, assim, de
resistirem subserviência às autoridades (no caso, aos reis europeus) que não considerassem legítimas; e c) sendo
inocentes, terem o direito de não conhecer a Cristo e a continuar seguindo as leis da natureza e suas práticas
tradicionais. Apesar dessas defesas, predominou a solução que afirmava a “não humanidade” dos índios e a
onipotência do Poder da Coroa Portuguesa-Espanhola sobre as terras do novo mundo, nas vozes, entre outros, de
um Juan Ginés de Sepúlveda. Quanto à ideia de inferioridade criada com a classificação racial dos humanos
como subsídio de dominação, Quijano (2005, p. 229) observa que a ideia de raça não tem história conhecida
antes da América, e que essa classificação foi imposta para justificar a ocupação de lugares e papéis sociais
subalternos e escravizados aos índios e negros no novo mundo, justamente no momento em que a Europa erguia
as bases da modernidade (liberdade e igualdade) e do capitalismo (trabalho assalariado). Com o tempo, para esta
classificação, os colonizadores passaram a usar o critério “cor” para diferenciar seus tipos superiores e inferiores
de humanos, e, assim, justificar, a dominação natural dos brancos (superiores) aos negros (inferiores). “Deste
modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis e
papéis na estrutura de poder da nova sociedade” (QUIJANO, 2005, p. 230). Além disso, tal escravidão, segundo
Quijano, não pode ser considerada um acontecimento a parte do sistema mundial, um retrocesso histórico
verificado na atrasada América, pois ela estava devidamente inserida no mercado mundial constituído a partir
das descobertas ultramarinas conduzidas pelos europeus. Era um escravismo novo, que: 1. foi deliberadamente
organizado para produzir mercadorias para o mercado mundial; 2. Foi simultâneo e articulado a outras formas
capitalistas de controle do trabalho (a escravidão na América, com o trabalho assalariado na Europa); 3. Para
preencher estas funções, cada uma destas formas desenvolveu novos traços, entre eles essa classificação racial
que admitia trabalho sem salário.
17
Neste sentido, a modernização de países como o Brasil, que Souza chama de “nova
periferia”– ou seja, aqueles países tomados “por assalto” por este processo modernizante, sem
que, para tanto, tivessem já consolidado uma base consensual e simbólica própria para
esquematizá-lo – começou falha, pois, desconsiderando o enraizamento cultural e social de
séculos de regime escravocrata, ela não conseguia sustentar sobre a base social brasileira suas
principais raízes simbólicas, quais sejam, as raízes da dignidade e da igualdade. Como
resultado, ao invés de libertária e igualitária, a modernização no Brasil consolidou-se
formando uma “ralé social”, isto é, “seres humanos a rigor dispensáveis, na medida em que
não exercem papéis fundamentais para as funções produtivas essenciais e que conseguem
sobreviver nos interstícios e nas ocupações marginais da ordem produtiva” (SOUZA, 2006,
p.122), ralé que, não participando ou sendo contemplada nas estruturações e nas instituições
societais modernas, acabava compondo uma “subcidadania” ou cidadania de segunda classe.
Critérios para o princípio da diferença, também, passaram longe de resolver este
problema da “ralé social”, de modo que, neste aspecto, na América Latina, um utilitarismo
ainda mais cruel do que o denunciado por Rawls foi hegemônico. Continuando com Souza, a
justificação e a naturalização posterior desta desigualdade gerada pelo mito da modernidade e
pela instituição da relação escravocrata também foram sustentadas por alguns dos ideários e
das teorias modernas mais recentes. Entre tais ideários, está aquele que Kreckel chama de
“ideologia do desempenho.”15
Esta ideologia, quando aplicada para conjuntos de pessoas com
posições iniciais muito díspares, legitimava a desigualdade já estabelecida e fazia-o aos olhos
de todos (dos beneficiados e também das vítimas deste critério); a culpa do “fracasso pessoal
e social” era atribuída à incompetência, ao menor mérito e à desqualificação do próprio agente
– e não a qualquer fator de exclusão estrutural – o que degradava sua autoestima e resistência.
Na consolidação desta ideologia está a própria teoria social instituída no continente latino-
americano que, em termos de modernização, mas não só nele, adotou um parâmetro
“eurocêntrico”, supostamente universalista, que acabou por erigir, segundo Guerreiro Ramos
(1983, pp. 28-29), uma “ideologia do desempenho das nações” e não propriamente uma
“teoria da modernização”.
2. A JUSTIÇA COMO EQUIDADE E A SOCIEDADE DE MERCADO
15
Segundo este autor, a “ideologia do desempenho” envolve a tríade – qualificação, posição e salário,
sendo que o primeiro determina os demais –, e denota o pano de fundo consensual moderno, tido como universal
e neutro, a partir de qual se pode atribuir valor diferencial aos seres humanos e esta diferenciação ser tida como
legítima. (apud Souza, 2006, p. 168)
18
Será que a justiça distributiva de Rawls, e seu modelo de cooperação social, seriam
compatíveis, apenas, com sociedades liberais de mercado? Esta questão faz sentido,
principalmente, a partir da perspectiva de países historicamente periféricos no sistema
econômico de mercado global, aos quais, se esta relação de Rawls com a economia de
mercado for afirmada, poderiam ter prejudicada a aplicação deste modelo, sem ajustes sérios,
em seu território.
Em termos econômico-políticos, no entanto, Rawls não tem uma posição muito clara
ao longo de sua bora. No “Prefácio à Edição Brasileira” (2000), da obra “Uma teoria da
Justiça”, Rawls afirma que sua preocupação é com uma “democracia da propriedade
privada”, ou um sistema “liberal-socialista”, este que permita a propriedade privada de
patrimônios produtivos e o sistema de mercados competitivos, mas que gere, a cada início do
período, a dispersão da posse de riqueza e de capital acumulados, evitando que uma pequena
parcela da sociedade acumule, historicamente, este controle da economia e, acabe, assim,
controlando, também, a própria vida política. Isto propiciaria a todos os cidadãos iguais
oportunidades de participar do sistema cooperativo atual, por meio desta dispersão econômica
em educação, treinamentos técnicos e coisas afins, pois esta dispersão se trataria “de um
princípio de reciprocidade, ou mutualidade, para a sociedade considerada como um sistema
equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais, de uma geração para outra” (RAWLS,
2000, p. XIX). Esta preocupação de equalização constante não ocorre, segundo o autor, no
Estado de Bem-Estar Social, este que admite acumulações históricas de bens para cima,
garantindo, apenas, um plano mínimo de existência abaixo do qual a sociedade não admitiria
que nenhum de seus membros vivesse16
. Como concepção política, Rawls também não inclui,
em seu modelo de justiça, nenhum direito natural de propriedade privada de bens da produção
(embora advogue a necessidade de um direito de propriedade pessoal), deixando isto para ser
resolvido em termos políticos.
Apesar disso, Rawls (2001, p. 298-99) assume o mercado como uma instituição
presente tanto em sistemas políticos liberais como socialistas, entendendo-o como o
mecanismo por excelência de distribuição dos “bens de consumo realmente produzidos”, pois,
segundo ele, as demais formas distributivas teriam dificuldades administrativas (em termos de
eficiência) ao lidar com tais bens. E assume (Rawls, 2001, p. 8), quando procede a uma
16
Segundo Álvaro de Vita (apud Silva Neto, 2006, p. 72), o revisor técnico da tradução da obra “Uma
teoria da Justiça” em português, Rawls tem em mente um sistema específico de mercado – o capitalismo do
Welfare State – apesar de tentar desvincular sua teoria de formas históricas de economia de mercado.
19
especificação exemplificativa de instituições da estrutura básica da sociedade, como
instituições primordiais, justamente, aquelas essenciais à economia de mercado, quais sejam:
“a liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a propriedade
particular no âmbito dos meios de produção e a família monogâmica”. Aliás, de forma
expressa, em seu esboço de instituições básicas da justiça distributiva, ele declara que se
orienta pelo funcionamento das leis de mercado (Rawls, 2001, p. 302), mesmo admitindo uma
função preservatória/regulatória/compensatória por parte do governo, pois Rawls (2001, p.
306) é consciente o mercado é um multiplicador da desigualdade pela geração inevitável de
pobreza nele pressuposta.
Em sua “Justiça como Equidade. Uma reformulação”, Rawls (2003, p. 192-98) é mais
firme em seu posicionamento, e afere que há cinco tipos de regimes “completos” em termos
de suas instituições políticas, econômicas e sociais: 1) o capitalismo de laissez-faire; b) o
capitalismo de bem-estar social; c) o socialismo de estado com economia centralizada; d) a
democracia de cidadãos proprietários; e) socialismo liberal (democrático), posicionando-se a
defender apenas os dois últimos como correspondentes ao seu sistema de justiça. Nesta obra,
ele também modifica a sua especificação exemplificativa de instituições da estrutura básica da
sociedade anterior, generalizando-as um pouco para escapar deste viés ideológico da
economia de mercado, incluindo, a independência do judiciário, as “formas legalmente
reconhecidas de propriedade e a estrutura da economia (na forma, por exemplo, de um
sistema de mercados competitivos, com propriedade privada dos meios de produção), bem
como, de certa forma, a família” (RAWLS, 2003, pp. 13-14).
Mas, na contramão do sistema de mercado, Rawls defende a prioridade da igualdade
em relação à vantagem econômica, em aspectos como: (1) na crítica ao utilitarismo – base da
economia de mercado – Rawls (2000, p. 15-16) afirma que seria absurdo que pessoas que se
vissem como iguais, com a possibilidade de fazer exigências mútuas, e que lutassem por seus
interesses, concordassem com um princípio que forneceria expectativas menores de seus
objetivos de vida para uns, a fim de garantir vantagens maiores para os objetivos dos demais;
e (2) quando afirma a “ordem serial ou lexical”, ele exemplifica o caso de que o princípio da
liberdade igual é o prioritário, de modo que os princípios que regulem as desigualdades e
diferenças só podem ser concebidos se consistentes com o primeiro, e, assim, as “violações
das liberdades básicas iguais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas
nem compensadas por maiores vantagens econômicas e sociais” (RAWLS, 2000, p. 65).
Apesar dessas críticas, e dessas mitigações que a “justiça como equidade” sugere ao
mercado, Rawls parece admitir o mercado como uma instituição básica da sociedade,
20
inclusive como a que regule a produção de bens a serem distribuídos, produção esta não isenta
de desigualdades de raiz e nem natural (básica) em termos históricos. Em verdade, o mercado,
considerado como o principal articulador dos negócios humanos, é algo muito recente na
historia da civilização humana (POLANYI, 1979; HIRSCHMAN, 1979), e sua ascensão à
condição de principal categoria alocativa de recursos na sociedade fez-se à custa de um
processo unidimensionalizador da vida humana individual e associada sem precedentes
(MARCUSE, 1964; RAMOS, 1982). Tomá-lo como princípio ordenador das atividades
produtivas de nações periféricas, como é o caso da maioria das nações latino-americanas,
onde parte considerável da riqueza nacional tem origem em sistemas produtivos não
totalmente inseridos, ou mesmo incompatíveis, com a lógica orientadora e com os requisitos
operativos dos sistemas produtivos voltados para o mercado, é cair no feiticismo do mercado.
Nessas sociedades latino americanas, por exemplo, observa-se a forte presença do que
Guerreiros Ramos (1980, p. 32) denominou de “Sistemas Quase Formais de Microprodução”,
onde alguns “aspectos da lógica inerente à teoria do mercado se aplicam, embora de forma
flexível, instável e episódica” (exemplos de empreiteiros, alguns profissionais liberais
prestadores de serviços específicos, os artesãos, os intermediários de negócios, etc.), além de
“Sistemas Conviviais e Comunitários de Produção”, que guardam vinculação restrita e
episódica com os mecanismos formais de mercado, tendo suas operações, via de regra, um
caráter não monetário. Esses e outros sistemas operam sob uma rede de relações que, se
submetidas aos critérios do mercado competitivo, solapam fortes laços sociais e,
consequentemente, os reais objetivos de vida dos indivíduos nessas atividades produtivas.
Modelos de Economia Solidária e Popular também não compartilham dos mesmos critérios da
economia de mercado, mas, no cenário latino americano, esses modelos têm se mostrado
como mecanismos produtivos muito mais inclusivos, emancipatórios e igualitários do que os
mecanismos de aprimoramentos da economia de mercado, ou mesmo de intervenções estatais
na economia forçando uma maior equidistância distributiva.
Também questionando essa naturalização do mercado, Lander (2005, p. 21-22) chega
a destacar a dificuldade para formular alternativas teóricas e políticas que façam frente à
primazia total do mercado, cujo modelo civilizatório (mais do que apenas uma teoria
econômica) tem sido assumido como discurso hegemônico, com sua consequente
naturalização das relações sociais em seu sentido. Daí o empenho, neste último século,
assevera o autor, de desconstruir estes discursos hegemônicos em seu caráter universal e
natural, esforço este que tem se apresentado de formas multifacetadas e distribuídas em várias
partes do mundo nos últimos anos – como se deu nas críticas feministas (Christiansen-
21
Ruffman, 1998), no questionamento da história Europeia como história universal (Bernal,
1987; Blaut, 1992), no descentramento da natureza do orientalismo (Said, 1979;1994), na
exigência de abrir as ciências sociais (Wallerstein, 1996), nas contribuições dos estudos
subalternos da Índia (Guha, 1998; Rivera Cusicanqui e Barragán, 1997), na produção dos
intelectuais africanos (Mudimbe, 1994; Mahmood Mamdani, 1996, Tsenay Serequeberham,
1991, Oyeka Owomoyela), no amplo espectro da perspectiva pós-colonial e nas perspectivas
de um saber não eurocêntrico da tradição Latino-Americana (Dussel, 1994;1998; Escobar,
1995, Quijano, 1990;1992;1998; Mignolol, 1995;1996; Coronil, 1996;1997; Lenkersdorf,
1996).
CONCLUSÕES
Na análise crítica tecida neste estudo pode-se fazer as seguintes considerações finais.
Quanto a elasticidade do modelo de “Justiça como Equidade” rawlseniano para abarcar, com
o devido respeito, a pluralidade e a multiculturalidade substantivas presentes neste continente,
constata-se que o pluralismo social admitido por Rawls parece ter um certo limite, dada sua
operacionalidade consensual, ao pluralismo e multiculturalismo latino americanos. Em tons
de uma crítica desconstrutiva, percebe-se que, para admitir as condições em que um consenso,
sobremaneira geral, sobre princípios primários de justiça pudessem ser elaborados, Rawls
acaba por exagerar nos processos de generalização (na abstração dos sujeitos, das posições
sociais relevantes, nas concepções substantivas de bem e dos processos de discussão),
generalização esta vista com desconfiança pelos movimentos multiculturalistas e pós-
colonialistas latino-americanos, haja vista que foi, justamente, essa lógica da prevalência e do
consenso, e estas abstrações supostamente neutras, mas faticamente eurocêntricas, são o que
tem gerado e sustentado a subalternização e a invisibilidade social das diferenças e
particularidades coletivas neste continente (notadamente, daqueles grupos que não se aderem
ao modelo moderno-europeu). Além disso, a base moral pressuposta para o consenso dos
princípios de justiça como equidade rawlseniano (base de igual respeito e estima social),
também não têm respaldo histórico na maioria dos países latino-americanos, e ainda depende
de esforços multidimensionais e interdisciplinares para ser construída.
A segunda análise, de cunho adaptativo, advoga que o primado da igualdade, firmado
na “justiça como equidade”, é uma premência no cenário latino-americano, mas que deve ser
discutido em sua viabilidade em dois sentidos:
22
(1) em termos transruptivos, a primazia da igualdade pública e social afirmada por
Rawls seria indispensável neste continente, haja vista que se verifica ser o perfil da
pluralidade social Latino-Americana manifestado, não apenas em sua diversidade, mas
também, e de maneira mais notória, na desigualdade, marginalidade e na exclusão da
diferença, fato que segrega certos grupos e pessoas do gozo dos bens sociais e da participação
nas principais instituições nacionais. Além disso, ideias como a “posição original”, o “véu da
ignorância” e a “liberdade equitativa”, apesar de serem meramente hipotéticas (RAWLS,
2000, p. 24), teriam um importante potencial normativo na condução de decisões públicas,
notadamente na América Latina, carente desse tipo de perfil democratizante e igualitário na
condução dos negócios públicos.
(2) em termos explicativos, porém, esta primazia da igualdade é falha para o cenário
latino-americado, pois as raízes da exclusão e desigualdade deste continente são explicadas
tendo em conta, justamente, o padrão de modernidade (contratualista, generalizante, legal-
racional) ao qual Rawls está aderido. O modelo de justiça como equidade de Rawls pressupõe
a existência de base social ainda não constituída na maioria dos países latino-americanos.
Logo, seu modelo distributivo não consegue ser apropriado pelos padrões sociais latino
americanos historicamente construídos. A face colonial da modernidade, só visível a partir da
perspectiva e dos relatos dos colonizados, e o reclamo por uma “transmodernidade” que
reconheça a alteridade do processo de modernização europeu, não são atentadas por Rawls em
seu modelo justiça; sua base, assim, é eurocêntrica, e Rawls tende a naturalizar e a
universalizar este liberalismo moderno europeu para o resto do globo, inclusive imunizando
importantes e significativas diferenças históricas quando pretende afastar as contingências da
operacionalidade de seu modelo.17
E dada esta imunização, tal modelo de justiça não contribui
17
Evidência de um caso em que essas diferenças históricas puderam inviabilizar um modelo de justiça
social aparentemente racional (segundo padrões europeus) pode ser dado quando na aplicação, na América
Latina, dos programas e projetos internacionais do The rule of law reform, a partir da década de 90, para a
reforma judicial neste continente. Estes programas e projetos tinham por base a ideia de que o desenvolvimento
de países periféricos passaria, necessariamente, pela organização de um sistema de justiça e de direitos que
funcionasse de modo racionalmente adequado (eficiente). Segundo Villegas (2002, p. 30-31), no entanto, estes
programas e projetos foram equivocados não só em seus pressupostos acerca do que deveria ser esta reforma do
direito na América Latina, como também em sua visão estreita acerca das principais falhas da juridicidade oficial
latino-americana – falhas como a eficácia apenas simbólica do direito estatal, sem compromisso com a sua
efetividade e o fato de o Estado deixar intactas as relações de poder social vigentes, manifestando um
autoritarismo e um pluralismo (soluções diferentes conforme a classe social do processado) ao proceder à
aplicação de suas normas. Também as debilidades democráticas fizeram com que as leis estatais não
contemplassem, de modo adequado, as principais necessidades de grupos marginalizados, resultando que as
questões que deveriam ser discutidas e resolvidas na esfera política desembocassem nos tribunais, e estes, com
leis manobradas por tais centros de poder, aplicavam a legalidade fielmente, atendendo à justiça formal, mas
violando a justiça social.
23
no processo de conscientização transmodernizante e descolonial, tão prementes à América
Latina, e não dá voz a povos e grupos violados e silenciados neste continente (índios, negros,
mulheres, crianças, idosos, pessoas de orientação sexual homoafetivas etc.). A tal ponto que
se pode questionar se seria tal processo racional adequado a um consenso de justiça entre
povos culturalmente diferentes dos liberais modernos ou povos de democracia constitucional,
aos quais Rawls aplica seu conceito de Justiça como Equidade.
No que tange à pressuposição de uma economia de mercado gerenciando a produção
de bens na sociedade, apesar do tom atenuado de Rawls, de cunho liberal-socializante (uma
mescla complicada de se operar na prática), tal pressuposto também deve ser discutido
quando olhado na perspectiva de países historicamente periféricos no sistema de mercado
global, e que pugnam, hoje, aliás, como modo emancipatório e inclusivo, não por uma
modernização com base na cartilha ditada pelas experiências das maiores economias do
mundo, mas por modelos alternativos de produção econômica (Economia Solidária e Popular,
Agricultura Familiar, Sistemas Coletivos de Produção e Trabalho) e por outros sistemas de
bens além daqueles disponíveis no modelo de economia competitiva de mercado.
Estas sintéticas considerações devem ser feitas para se grifar, aqui, o fato de que a
questão da (in)justiça social latino americana é fruto mais de um cenário moral e político,
construído por contingências históricas, que fundamenta e perpetra a subcidadania e a
desigualdade existente, do que fruto de atrasos sociais, políticos, econômicos e culturais das
nações latino americanas em relação ao padrão de desenvolvimento e cultura das nações
cêntricas. E que a questão de justiça social necessitaria de medidas públicas anteriores a
romper com este cenário moral e político, advindo de um modelo colonial historicamente
absorvido por várias razões, para criar as condições mínimas para se chegar à posição original
apregoada como necessária na justiça como equidade rawlseniana. Pugna-se, ainda, no
cenário de nações pluriétnicas, como as latino-americanas, que esta posição original, de
igualdade equitativa, seja redefinida para alcançar uma comunicabilidade (e não um
consenso) entre várias racionalidades culturais, retrocedendo, se isto for possível, ou
reparando, se não o for, o genocídio cultural verificado neste continente.
São necessárias, portanto, para um modelo de justiça social latino-americano, outras
medidas públicas que favoreçam, além da igualdade econômica: (1) o reforço da cidadania
plena e da participação popular de base para romper este cenário moral e político; e (2) a
adoção de medidas multidimensionais, interdisciplinares, plurais e complexas que
possibilitem o reconhecimento da diferença e da respectiva desigualdade social e de medidas
de justiça social que favoreçam uma estruturação e institucionalização da sociedade latino
24
americana mais adequada, mais plural e mais igualitária. E elas são medidas necessárias
porque suas estratégias vão à raiz do problema da exclusão – o fortalecimento e a pluralização
da cidadania como forma de romper com o ciclo reprodutivo da desigualdade no continente
latino-americano.
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