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A terceira invenção da democracia
Augusto de Franco, 2013
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
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distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
A terceira invenção da democracia / Augusto de Franco. – São Paulo: 2013
133 p. A4 – (Escola de Redes; 15)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving. http://escoladeredes.net
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"¿Qué sucedió con los gobiernos? Según la tradición fueron cayendo
gradualmente en desuso. Llamaban a elecciones, declaraban
guerras, imponían tarifas, confiscaban fortunas, ordenaban arrestos
y pretendían imponer la censura y nadie en el planeta los acataba.
La prensa dejó de publicar sus colaboraciones y sus efigies. Los
políticos tuvieron que buscar oficios honestos; algunos fueron
buenos cómicos o buenos curanderos. La realidad sin duda habrá
sido más completa que este resumen.“
Personagem Eudoro Acevedo no conto “Utopia de un hombre que
está cansado” de Jorge Luis Borges (1975) que integra El libro de
arena.
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PREFÁCIO
Parece evidente que a democracia representativa - a democracia
reinventada pelos modernos - vem sendo questionada em muitos lugares
neste dealbar do século 21. O aumento do descontentamento com os
sistemas políticos representativos vem abrindo possibilidades para uma
nova reinvenção da democracia, uma terceira invenção da democracia.
Não é de hoje que se apontam vários problemas na democracia inventada
pela segunda vez pelos modernos. Ficou tão célebre quanto batida a frase
de Winston Churchill, pronunciada em 11 de novembro de 1947, na House
of Commons: "Democracy is the worst form of government, except for all
those other forms that have been tried from time to time."
A questão é saber quais são esses problemas, se eles podem ser
resolvidos, se eles podem ser resolvidos com a abolição da democracia
representativa ou se eles podem ser resolvidos nos marcos da própria
democracia representativa.
Dentre os vários problemas detectados na democracia representativa,
pelo menos dois - talvez os dois problemas principais - são de difícil
solução nos marcos da própria democracia representativa, mas também
não podem ser solucionados com a abolição da democracia
representativa.
Esses problemas são:
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a) a democracia representativa acaba sendo confundida pelos seus atores
- para todos os efeitos práticos - com sistema eleitoral, não tendo
proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições)
contra a própria democracia; e
b) a democracia representativa, ao virar um modo político de
administração de uma estrutura desenhada para a guerra (o Estado-
nação), adotou, ela própria, uma dinâmica adversarial (dita competitiva)
que dificulta a constituição de um sentido público.
Remanesce ainda um terceiro problema, herdado da primeira invenção da
democracia pelos atenienses: a democracia não tem proteção eficaz
contra o discurso inverídico, sobretudo contra o populismo, o que
realimenta o primeiro problema mencionado (o do uso das eleições contra
a democracia).
Como esses problemas refletem falhas estruturais (vale dizer, "genéticas")
e se constituem como erros de projeto, não é possível resolvê-los
aperfeiçoando os mecanismos da democracia representativa. São limites
ao processo de democratização entendido como movimento constante ou
intermitente de democratização da democracia ou de desconstituição de
autocracia.
Se os problemas apontados acima não podem ser resolvidos
satisfatoriamente nos marcos da própria democracia representativa,
então é sinal de que sua solução só poderá ser alcançada nos marcos de
uma nova democracia; ou melhor: de novas experimentações - no plural -
de democracia.
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A julgar pelos questionamentos que vêm sendo feitos nas duas últimas
décadas, espera-se experiências de democracia que sejam: mais
distribuídas, mais interativas, mais diretas, com mandatos revogáveis,
regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais
vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais responsivas aos
projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e plurais (não
admitindo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas
experimentações glocais).
Este livro é sobre isso. E a isso se chamou de terceira invenção da
democracia. Mas não se trata de um novo modelo, de uma fórmula
aplicável à várias circunstâncias: a terceira invenção da democracia é
apenas a continuidade do processo de democratização nas condições da
sociedade em rede. E isso exige a desinvenção das fórmulas de
democracia.
São Paulo, 18 de dezembro de 2013
Augusto de Franco
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ÍNDICE
PREFÁCIO
APRESENTAÇÃO
Sobre a presente abordagem
Do que se trata
As evidências
Questionamentos à democracia realmente existente
O fim das massas arrebanhadas e o início das multidões consteladas
A democracia nunca nasce da violência
INTRODUÇÃO
É possível reinventar a democracia?
A primeira invenção da democracia
Depois da primeira invenção da democracia
A segunda invenção da democracia
As diferenças entre a primeira e a segunda invenções da democracia
A democracia dos modernos não pode ser mais democratizada
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A confusão da segunda democracia com regime eleitoral
A terceira invenção da democracia
Inventando a terceira democracia
CAPÍTULOS
1 - Democracia distribuída
2 - Democracia interativa
3 -Democracia direta
4 - Democracia com revocabilidade
5 - Democracia com lógica da abundância
6 - Democracia de multidões e comunidades
7 - Democracia cooperativa
8 - Democracias glocais
9 - Zilhões de sociosferas democráticas
10 - Ilhas democráticas na rede
NOTAS E REFERÊNCIAS
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APRESENTAÇÃO
Sobre a presente abordagem
Por que e como foi inventada a democracia? Até hoje os estudiosos têm
imensa dificuldade de decifrar o que ocorreu. Não estabelecem as
conexões necessárias e não reconhecem os padrões sem os quais não se
pode desvendar o sentido das configurações coletivas que se constelaram.
Não há, portanto, uma compreensão propriamente social do surgimento
da democracia. Ou, quando há, é uma lástima: tomam por social aquilo
que diz respeito às condições de vida (em geral de sobrevivência) das
populações e não à fenomenologia da interação, quer dizer, o fluxo da
convivência social.
Alguns pensadores do século passado conseguiram captar o "gene" (ou o
meme) original democrático - como John Dewey, Hannah Arendt e
Humberto Maturana (entre outros; poder-se-ia citar também Claude
Lefort, Cornelius Castoriadis e Amartya Sen) - mas a maioria dos teóricos
da política ficaram presos aos esquemas explicativos da modernidade que
replicavam visões em que o social era uma espécie de epifenômeno (na
verdade, para a maioria deles só existiam os indivíduos, o mercado e o
Estado) e, assim, não conseguiram perceber os condicionamentos
recíprocos entre o padrão (social) de organização e modo (político) de
regulação.
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Ora, do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix.
Não se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado
de qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de
alguma corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que
nela se conformou um espaço público.
Os teóricos políticos do século passado, porém, não podiam se conformar
com isso. Viciados na ideia (ou no esquema explicativo) de determinação
de uma superestrutura por uma estrutura (um velho vício de raiz
iluminista difundido pelo marxismo), queriam sempre surpreender o que
está debaixo do pano, queriam desvendar a máquina que estaria por trás
do que acontece na vida fenomênica. Dessarte, por não encontrar o
mecanismo oculto (em geral econômico, como acreditam) que estaria
determinando uma nova criação política, suas análises não foram (e ainda
não são, posto que esses teóricos remanescem no século atual) capazes
de revelar que estamos diante de um esgotamento da democracia dos
modernos e da possibilidade de emergência de uma nova democracia. Há,
ademais, um problema de pressupostos.
Os analistas políticos, em sua maioria, pensam a partir de um conjunto de
pressupostos, raramente discutidos porquanto tomados como verdades
evidentes por si mesmas: o primeiro deles é que o ser humano é
inerentemente competitivo (postulado largamente falsificado pelas
evidências e, portanto, impossível de ser sustentado pela ciência, tendo
status semelhante ao de uma crença de natureza religiosa) e faz escolhas
racionais tentando maximizar a satisfação de seus interesses egotistas
(quando todas as evidências apontam que na raiz da ação dos humanos - e
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até dos mamíferos em geral - está mais uma emotional motivation do que
uma rational choice); o segundo é que sem líderes destacados não se pode
mobilizar e organizar a ação coletiva (o que vem sendo refutado
fartamente pelos fatos: sobretudo pelos aglomeramentos,
enxameamentos e amassamentos que vêm ocorrendo com cada vez mais
frequência em sociedades altamente conectadas); e o terceiro é que nada
pode funcionar sem um mínimo de hierarquia (idem, do contrário não
estaríamos assistindo a profusão de redes mais distribuídas do que
centralizadas).
Além disso, os analistas políticos, de maneira geral, baseiam suas análises
no suposto de que o conteúdo (do que flui) é relevante para explicar a
"realidade" (o que acontece), confundindo informação (mensagem
transmitida-recebida) com comunicação (acoplamento estrutural), longe
de perceber que o comportamento coletivo é função da fenomenologia da
interação (estando os fenômenos interativos, por sua vez, na dependência
não de conteúdos e sim do padrão de organização: basicamente, dos
graus de distribuição e conectividade da rede social).
Quando é que tudo muda nas análises da democracia? Quando
descobrimos que movimentos de desconstituição de autocracia são
acompanhados por movimentos de desconstituição de hierarquia. A
democracia pode se democratizar (ou se radicalizar, a ponto de ser
considerada uma pluriarquia) em redes com alto grau de distribuição (e,
consequentemente, com altos graus de conectividade e interatividade).
Dizendo de modo mais preciso: os processos de democratização tenderão
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a ter continuidade na medida em que as sociosferas onde ocorrem forem
adquirindo uma topologia mais distribuída do que centralizada.
Porque a democracia é uma espécie de "metabolismo" da rede social, cujo
"corpo", a estrutura, o hardware, é dado pelo padrão de organização. Mas
esse "metabolismo", essa dinâmica do modo de regulação, não é uma
imanência, não emerge automaticamente da estrutura, em função do seu
padrão de organização. Democratização (do modo de regulação) e
distribuição (da rede) acontecem ao mesmo tempo, ou melhor, são
fenômenos acompanhantes, sinergicamente acompanhados um do outro,
mas não causados um pelo outro.
O padrão de organização condiciona possibilidades. Quanto mais
centralizada for a topologia da rede, menos chance terá o processo de
democratização de prosseguir. Mas mesmo em padrões mais distribuídos
do que centralizados, ainda assim é necessário que haja ação política para
instaurar modos de regulação crescentemente democráticos. Ações
políticas democratizantes, entretanto - eis o ponto - ou serão
acompanhadas por mudanças estruturais que tornem a rede mais
distribuída ou terão menos chances de prosseguir (e de perdurar). Ora,
tornar a rede mais distribuída significa, exatamente, desconstituir
hierarquia. Assim como a democracia pode ser tomada, no sentido "forte"
do conceito, como movimento de desconstituição de autocracia, as redes
distribuídas podem ser tomadas como movimentos de desconstituição de
hierarquia, sendo que esses processos estão ligados, não por causalidade
direta nem automática e sim por condicionamentos recíprocos.
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Pode-se dizer que tanto a expansão da liberdade quanto a incidência da
cooperação (que ocorre na medida em que a rede se torna mais
distribuída) são atributos do modo como os seres humanos se organizam
(e nada mais). Mas não há uma fórmula organizativa capaz de produzir
automaticamente liberdade sem política. É o processo político de
desconstituir autocracia que amplia os graus de liberdade. E é o processo
de netweaving, de desconstituir hierarquia, que amplia a cooperação.
Dito isto, podemos passar aos resultados da minha reflexão sobre a
terceira invenção da democracia.
Do que se trata
Da democracia, como se sabe, houve uma primeira invenção (dos antigos)
e uma segunda invenção (dos modernos). A segunda democracia
reinventou a primeira, não apenas a reformou. Era mesmo impossível
fazer uma reforma da democracia ateniense de sorte a adaptá-la ao
Estado-nação europeu moderno. Nas condições da modernidade era
impossível fazer isso, quer dizer, manter a democracia como modo de
regulação de uma comunidade política (local), porque o Estado-nação era
uma unidade política que agregava diversas comunidades poucos
conectadas entre si.
E não somente em razão - como se alega frequentemente - do grande
número de pessoas envolvidas (a população de um país), que habitavam
comunidades subordinadas a uma nova unidade nacional e sim em virtude
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das características da clusterização havida: sem atalhos e sem meios de
comunicação suficientes e adequados para permitir interação em tempo
real ou sem distância entre os vários clusters de parentesco e vizinhança,
de trabalho e de lazer, de aprendizagem, de prática e de projeto (que
continuaram existindo, sim, mas perderam grande parte da sua condição
de sujeitos políticos, players coletivos válidos e necessários do jogo
democrático). As condições de conectividade e interatividade das novas
unidades nacionais impediam procedimentos diretos de regulação como
os adotados pelos antigos.
Nasceu assim uma democracia indireta, chamada democracia
representativa, nas quais as unidades passaram a ser os indivíduos
arrebanhados no Estado-nação e não mais as comunidades ou os clusters
convivenciais emergentes da interação social. Tendo como sujeito o
indivíduo, a democracia dos modernos só conseguiu se instalar a partir de
um conjunto de proteções instituídas para os indivíduos contra a sua
própria unidade política, quer dizer, contra o seu próprio Estado. Como
instituição desenhada para a guerra, o Estado também se armou contra o
cidadão e era necessário que os cidadãos se "armassem" igualmente
contra o Estado.
Eis a razão pela qual a democracia dos modernos surgiu nos marcos do
liberalismo e não pode vicejar a não ser onde se constituiu, com alguma
legitimidade, um Estado que não invadia a esfera dos direitos dos
cidadãos: o chamado Estado de direito. Ora, tal construção não teria sido
possível a partir de uma reforma da primeira democracia. Os modernos
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tiveram, portanto, que reinventar a democracia e por isso pode-se dizer
que a democracia representativa foi a segunda invenção da democracia.
Fala-se agora em terceira invenção da democracia porque o que está em
curso não é, igualmente, uma reforma, em termos clássicos, da segunda
democracia (a democracia dos modernos) e nem, muito menos, da
primeira democracia (a democracia dos antigos). É ainda democracia, sim,
porque a natureza da democracia como movimento de desconstituição de
autocracia permanece, mas as formas pelas quais o processo de
democratização pode avançar (ou pelas quais a democracia pode se
democratizar mais) - alargando a brecha democrática - vão muito além de
uma reforma, apontando para uma reinvenção mesmo da política.
Pode-se dizer que estamos na antessala de uma nova reinvenção da
democracia - e, portanto, diante da possibilidade concreta de uma terceira
invenção da democracia - porque o sistema representativo instituído pela
democracia dos modernos não pode mais ser reformado, conquanto
continue oferecendo as condições necessárias (ainda que não suficientes)
para o avanço do processo de democratização (ou de alargamento da
brecha democrática).
Os sintomas mais visíveis de que isso está ocorrendo são as manifestações
que constelam multidões convocadas peer-to-peer (ou seja, em rede
distribuída, por fora do broadcasting das instituições centralizadas), como
os swarmings civis que ocorrem com cada vez mais frequência no mundo
contemporâneo. Mas esses são apenas sintomas e não os únicos
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processos pelos quais a democracia poderá ser reinventada uma segunda
vez.
Depois das primaveras e dos breves verões de alta efervescência popular,
poderemos ainda caminhar para invernos mais ou menos obscuros. O
processo não é linear e não acontece da mesma maneira em todo lugar.
Em muitas localidades poderemos assistir a volta do domínio de
organizações autocráticas ou o retorno ao poder de velhos atores estatais
que foram apenas temporariamente desalojados. Mas isso também não
durará muito em uma sociedade cada vez mais conectada e interativa.
O importante é perceber que uma nova democracia não nascerá apenas
de manifestações. Tudo indica que serão necessárias muitas experiências
glocais, de ensaios cooperativos de democracia como modo-de-vida, na
base da sociedade e no cotidiano das pessoas.
As evidências
Várias evidências de mudanças profundas (e até certo ponto
subterrâneas) que estão se processando na sociedade, com inevitáveis
repercussões na esfera da política, começaram a surgir na primeira década
deste século, com a emersão de fenômenos interativos – swarmings civis
– como o 11M (aquela extraordinária manifestação, em várias cidades
espanholas, a propósito da tentativa de falsificação, pelo governo de
Aznar, da autoria dos atentados da Al Qaeda em março de 2004 em Madri,
atribuindo-a falsamente ao separatismo basco). Nos anos seguintes,
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movimentações mais ou menos semelhantes começaram a surgir, quase
sempre gestadas de forma subterrânea na sociedade, destoando dos
padrões clássicos das mobilizações organizadas centralizadamente por
hierarquias políticas e sindicais.
Em 2011 esses movimentos eclodiram no que ficou conhecido como
"revolução árabe", começando pelo 14 de janeiro na Tunísia, passando
pelo 2 de fevereiro no Iêmen, pelo 11 de fevereiro no Egito (dia decisivo
para a queda do ditador Mubarak), pelo 14 de fevereiro do Bahrein, pelo
17 de fevereiro na Líbia, pelo 9 de março em Marrocos e pelo 18 de março
na Síria.
Outra incidência importante foi o 15M espanhol (que ficou conhecido
como a manifestação dos indignados com a velha política, em maio de
2011 em Madrid, espalhando-se por outras cidade). Vieram também em
seguida uma série de movimentos do tipo Occupy inspirados pelo 17S (o
Occupy Wall Street no Zuccotti Park, em Nova York, em 17 de setembro de
2011).
Em 2013 tivemos outra eclosão, com o #DirenGezi na Turquia e as
manifestações de junho de 2013 no Brasil (sobretudo as que ocorreram
nos dias 17 e 18 de junho). Em 30 de junho de 2013 tivemos a maior
manifestação da história, com 20 milhões (ou mais) de pessoas nas ruas e
praças de várias cidades do Egito.
Em tudo isso a grande novidade não está nos protestos em si (eventos
populares massivos, aparentemente semelhantes, já ocorrem há muito no
mundo), mas na manifestação de uma até então desconhecida
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fenomenologia da interação. Uma parte dessas manifestações, sobretudo
o 11M e o 15M espanhol, o 11F egípcio, o 17S americano, o 17-18J
brasileiro não foi convocada e organizada de modo centralizado por algum
líder ou entidade hierárquica. Foram processos P2P (peer-to-peer),
emergentes, surgidos a partir de um alto grau de conectividade da rede
social e da disponibilidade de mídias interativas em tempo real (o telefone
celular, a internet e as incorretamente chamadas “redes sociais”, como o
Twitter e o Facebook).
O caso brasileiro merece atenção especial pelo seu caráter, dimensão,
capilaridade e abrangência. O que ocorreu naqueles dois dias de junho de
2013 (o 17-18J) no Brasil não foi uma dinâmica de luta contra um inimigo
concreto, objetivo (como no 30 de junho no Egito, em que dezenas de
milhões saíram as ruas para derrubar o hierarca da Irmandade
Muçulmana): não havia um poderoso para tirar do poder (como ocorreu
nas manifestações pelo impeachment do presidente Collor de Mello em
1992), não havia uma lei para ser aprovada (como nas manifestações das
Diretas Já em 1984).
O que ocorreu foi a expressão molecular de um incômodo, de uma
insatisfação difusa com o sistema (as pessoas sentiram que há algo muito
errado com o sistema, embora não soubessem explicar o que é
exatamente "o sistema"). Mas a vibe não era guerreira. As emoções
predominantes não eram adversariais. As multidões não procuravam um
inimigo para destruir. Simplesmente diziam: nós existimos, nós agora
acordamos, nós queremos enfim declarar que não estamos satisfeitas com
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o que está acontecendo e nós não nos sentimos representados por vocês
(os que estão no poder).
Tudo indica que os processos das grandes manifestações vão continuar a
despeito de um refluxo no segundo semestre de 2013. Em 8 de dezembro
a Ucrânia explodiu (com 1 milhão de pessoas na Praça da Independência,
em Kiev, contra a subordinação do país ao governo de assassinos da FSB -
ex-KGB - chefiado por Putin, que pretende recriar uma espécie de União
Soviética para reeditar a guerra fria). Mas milhares de outras
manifestações menores também ocorrem neste exato momento em
numerosas localidades do mundo. E milhares de experimentos glocais de
novos modos de vida e convivência social estão sendo ensaiados.
O que se está vendo são as manifestações que constelam multidões
imensas (maiores do que em qualquer outra época da história) em praças
e ruas e são televisionadas e transmitidas por outros meios (sobretudo
pela Internet). Mas há também o que não se está vendo.
Do que não se está vendo há uma mudança molecular, profunda,
comportamental, em curso agora na intimidade do multiverso de
conexões ocultas que chamamos de social. As correntes interativas nas
timelines estão ficando caudalosas como nunca - e não apenas no Twitter,
no Facebook e nas demais plataformas interativas, mas no espaço-tempo
dos fluxos (que é o que conta). Trilhões de novas sinapses estão
ocorrendo e, para usar uma belíssima frase de Pierre Levy (1998), estão se
configurando como um "imenso ato de inteligência coletiva sincronizado,
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convergindo para o presente, clarão silencioso... explodindo como uma
ramada de neurônios" (1).
Sim, o processo continua e se tornará mais visível em breve. Com o
aumento da interatividade, fenômenos como clustering, swarming,
cloning e crunching podem se contrair no tempo a ponto de ser
percebidos. Processos típicos de redes distribuídas foram detectados na
esfera da política, ainda que não tenham sido compreendidos pelos
analistas que permanecem ignorando a nova fenomenologia da interação.
Esses analistas – mesmo percebendo o fenômeno – se recusam a acreditar
que seja possível mobilizar e organizar a ação coletiva sem líderes
destacados e sem um mínimo de hierarquia responsável pela promoção e
condução dos eventos de massa.
Questionamentos à democracia realmente existente
Os novos movimentos emergentes vêm questionando, em alguma
medida, o velho sistema representativo, independentemente da
consciência de seus participantes ou interagentes. Em alguns casos –
como o 15M – os manifestantes chegaram a expressar elementos de um
programa de reinvenção da política ao declarar que seus sonhos não mais
cabiam nas urnas dos velhos representantes, agitando palavras de ordem
como "Democracia real já! Não somos mercadorias em mãos de políticos e
banqueiros", "Outra política é possível", "A revolução estava em nossos
corações e agora enche as ruas" e "Não sou contra o sistema, o sistema é
que é contra mim".
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Tudo isso surgiu misturado com questionamentos à democracia. E não
poderia ser de outro modo de vez que a democracia representativa, a
democracia no sentido “fraco” do conceito, como modo político de
administração do Estado ou sistema de governo, é a democracia
realmente existente nos países (quer dizer, nos países que a adotam com
a maior parte dos seus requisitos, o que corresponde, na verdade, a
menos de 50% dos países do globo). Tal contingência tem dificultado que
esses novos atores entendam quais são os problemas da democracia que
temos.
No plano teórico não conseguiram ainda ver que uma democracia
realizada como modo de administração política do Estado-nação carrega
uma contradição fundamental que limita o processo de democratização.
Pensam que a democracia realmente existente (a democracia
representativa, formal e política que vigora nos países que a adotam) não
é direta, participativa e social para satisfazer interesses das elites (o tal
1%, o alvo identificado por alguns manifestantes). Não percebem que a
estrutura centralizada onde se aplica a democracia realmente existente
não pode se deixar pervadir continuamente por uma dinâmica distribuída
(mesmo que tal estrutura estivesse a serviço dos 99%).
Ora, o Estado-nação tem uma morfologia hierárquica porque é um fruto
da guerra, foi desenhado para a guerra, foi gerado para um mundo em
que a coexistência só podia se dar nos marcos do equilíbrio competitivo.
Mas a democracia é um "metabolismo" de redes com graus de
distribuição maiores do que aqueles que podem ser alcançados pelo
Estado-nação. Esta é a razão - incompreendida - dos limites que a
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democracia dos modernos impõe à continuidade do processo de
democratização.
No plano político, alguns atores das novas manifestações democráticas
não perceberam ainda que o problema não é o que há de democrático nas
democracias realmente existentes e sim o que não há. Ou seja, não
perceberam que o problema não é a democracia e sim a sua
autocratização (promovida pelas protoditaduras ou pelas democracias
formais em processo de autocratização) e a sua manipulação (promovida
pelos governos neopopulistas que parasitam regimes democrático-
formais, usando as eleições contra a democracia para degenerar as
instituições e permanecer indefinidamente no poder).
Nessas circunstâncias eles não podem compreender que a democracia
que temos – com todas as suas imperfeições – é condição necessária para
a democracia que queremos. E não chegam sequer a se perguntar por que
movimentos como esses (como os Occupy, por exemplo) não acontecem
na Coréia do Norte, em Cuba ou na China, ou em Teerã, na Guiné
Equatorial, em Angola, no Zimbabwe, em Camarões, no Sudão, no Chade,
na Etiópia, em Gâmbia, no Uzbequistão, no Cazaquistão, no Tadjiquistão...
para não falar de regimes como o que vige na Rússia de Putin, onde os
movimentos de contestação são duramente reprimidos e seus
participantes são perseguidos, encarcerados e mortos por um governo de
assassinos (da FSB, ex-KGB).
Por essas e por outras razões, os novos atores têm dificuldade de
perceber que “o inimigo” não é a democracia (a democracia política,
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formal e representativa ou qualquer forma imperfeita e limitada de
democracia) e sim tudo que impede ou enfreia o processo de
democratização, ou seja, tudo que tenta fechar a brecha democrática por
meio da autocratização dos modos de regulação de conflitos e da restrição
das liberdades.
Não deixa de ser curioso o fato de que existam movimentos como esses
que, a julgar pelas declarações de alguns de seus manifestantes, às vezes
dão a impressão de querer detonar as pouquíssimas 25 democracias
representativo-formais plenas que existem no mundo e não existam
movimentos semelhantes para abolir as mais de 50 ditaduras (e
assemelhadas) e os 70 regimes restritivos à liberdade que ainda
remanescem nesta segunda década século 21...
A despeito, porém, da consciência de seus atores sobre o que está
realmente em jogo, o sentido geral desses movimentos é o da reinvenção
da política. O sentido é correto, pois da evidência de que a democracia
representativa (estabelecida sob um Estado de direito) seja condição
necessária para o ensaio de formas políticas mais democráticas capazes de
superá-la, não se pode inferir que isso acontecerá por uma reforma do
velho sistema representativo. Em suma, o juízo de que a democracia que
temos é condição necessária para a democracia que queremos não
significa que a democracia que queremos será gerada a partir (ou como
um desenvolvimento interno) da democracia que temos.
Nos últimos anos, a partir das descobertas da nova ciência das redes,
pode-se chegar à conclusão de que o velho sistema político não poderá
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ser reformado, nem por dentro (por uma progressiva democratização
capaz de “aperfeiçoá-lo”, como julgam tolamente os liberais), nem por
fora (por uma espécie de revolução global capaz de substituí-lo de modo
abrupto por outro sistema, supostamente mais democrático, com a
adoção de novos procedimentos mais diretos, participativos e
deliberativos, como advogam alguns dos novos teóricos da democracia
que são, sem o saber, teóricos da autocracia). E isso, simplesmente,
porque, ao que tudo indica, não haverá mais um sistema.
O fim das massas arrebanhadas e o início das multidões
consteladas
Multidões de pessoas conectadas - e formadas a partir de miríades de
micromotivos diferentes (compondo uma grande murmuration) - não são
massas arrebanhadas. Bem... é aqui que começa uma (nova) conversa
logo após o fim do (velho) mundo (único).
Uma multidão de milhões não pode ser convocada centralizadamente,
nem mesmo descentralizadamente. Ela acontece por um mecanismo
distribuído próprio da rede. Ela é a manifestação de uma fenomenologia
da interação, um swarming (enxameamento). Felizmente, swarmings -
como os que aconteceram em Madri (2004 e 2011), no Egito (2011) e no
Brasil (2013) - não podem ser planejados por um grupo centralizado, não
podem ser urdidos por um comitê central e nem podem ser convocados
por meios broadcasting. Só ocorrem quando se trafega pelos canais
próprios das redes, por meios P2P, ou seja, quando o fluxo percorre os
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múltiplos caminhos de topologias distribuídas. São necessários muitos
feedbacks, muitos laços de retroalimentação de reforço, muitas
reverberações, para que pequenos estímulos provenientes da periferia
dos sistemas estáveis afastados do estado de equilíbrio, possam se
amplificar de modo a modificar o comportamento dos agentes do sistema
como um todo. Só quem pode fazer isso é a rede, não hierarquias.
Pode-se, no máximo, tentar clonar as estruturas distribuídas das redes
sociais realmente existentes (e é bom não confundir as redes sociais, quer
dizer, as pessoas interagindo segundo determinado padrão mais
distribuído do que centralizado, com as mídias sociais, as ferramentas
interativas - como o Facebook e o Twitter) e procurar atuar de modo
coerente com elas. Atuar de modo coerente com a estrutura e a dinâmica
de mundos distribuídos significa fazer netweaving: mais do que cortar e
quebrar (to hack e to crack), tecer, alinhavar. Ou seja, ser mais
interativista do que ativista (militante).
Nada de organizar destacamentos. Interagir para clusterizar (sim, tudo
que interage clusteriza). Distribuir para enxamear (sim, tudo que interage,
a partir de certo grau de distribuição, conectividade e interatividade, pode
enxamear). Conectar para contrair o tamanho social do mundo, quer
dizer, para ensejar e acelerar o crunching (o amassamento que ocorre em
Small Worlds Networks) que está mudando não apenas a estrutura e a
dinâmica, mas a natureza daquilo que chamamos de sociedade humana.
Mesmo assim, não se sabe - e é bom que não se saiba de antemão - se os
fenômenos mencionados vão acontecer. Eles podem acontecer e podem
30
não acontecer. O importante é não tentar instrumentalizar os outros,
mobilizá-los para o confronto, insuflar um ânimo adversarial, construir e
demonizar inimigos. Os recentes eventos no Brasil mostraram que o
importante é não iniciar uma espiral de violência. O importante é construir
a paz e não a guerra.
A democracia nunca nasce da violência
Não há um caso, um único caso na história. A primeira democracia, a
democracia dos antigos gregos, não nasceu assim: os atenienses
frequentadores da Ágora não organizaram um atentado ao tirano
Psístrato ou ao seu filho Hipias, nem, muito menos, insuflaram uma
rebelião popular. O protagonismo daquela nascente dinastia autocrática
foi interrompido, sim, mas por ação pacífica. Os democratas simplesmente
proclamaram um édito em que dispensavam os serviços do autocrata.
Clístenes, Efialtes e Péricles não tomaram o poder tirânico para exercê-lo
da sua maneira, simplesmente dispensaram esse poder (quer dizer,
recusaram-se a reproduzi-lo do modo como estava estruturado: e é a isso,
precisamente, que chamamos de primeira invenção da democracia).
A democracia dos modernos também não se estabeleceu a partir de
nenhuma guerra, ainda que tenha ficado constrangida a se transformar
em (e a se rebaixar a) um modo de administração política do Estado-
nação, este sim, uma estrutura desenhada pela guerra e para a guerra.
Esta, aliás, é a principal razão dos limites que a democracia atualmente
existente impõe ao processo de democratização e, inclusive, mais do que
31
isso, a razão da sua falência, agora anunciada pelos novos movimentos da
sociedade-em-rede.
A terceira democracia, quando vier, também não virá por meio de uma
guerra. Por que? Ora, porque a democracia é um modo pazeante das
relações. Ela é o contrário da autocracia, que só pode se manter com base
na guerra. Ela não é um lugar para se chegar e sim um modo de caminhar
que desconstitui autocracia na medida em que recusa combater e vencer
para derrotar inimigos (reais ou construídos como pretexto para justificar
uma estratégia de poder).
As democracias não nascem de rebeliões, nem de revoluções entendidas
como atos violentos de remoção dos antigos ocupantes dos cargos de
poder e sua substituição por novos ocupantes. Todos os processos que
foram assim desencadeados produziram mais autocracia, não mais
democracia. Estreitaram a brecha democrática que foi aberta, uma ou
outra vez na antiguidade e na modernidade, na civilização patriarcal e
guerreira. Restringiram em vez de ampliar as liberdades.
As primeira medidas dos governos revolucionários que chegaram ao poder
pela violência foram, via de regra, a abolição da liberdade de imprensa e
da liberdade de organização, a instalação de polícias políticas e a ereção
de monstruosos aparelhos estatais de espionagem interna e repressão.
Ademais, provocaram verdadeiros genocídios, os maiores de que se tem
notícia na história.
As democracias não são originadas em eventos épicos, em grandes
batalhas, mas são resultados de processos moleculares, de dinâmicas de
32
rede (sim, se não houvesse uma rede social em Atenas, com significativo
grau de distribuição, a conversação na praça do mercado que deu origem
à primeira democracia não teria acontecido). As democracias não são
regimes de heróis, de visionários desvairados que querem conduzir
rebanhos, de líderes manipuladores, de utopistas vidrados em suas
fórmulas para redimir a humanidade e salvar a espécie humana por meio
de grandes confrontos épicos, de batalhas titânicas. A democracia é lírica,
é um modo de convivência pacífico e pacificante, voltado para
transformar inimizade em amizade política e - para lembrar John Dewey
(1939) - praticado pelas pessoas comuns (2).
Atribui-se ao Mahatma Gandhi o dito - na verdade proferido por Abraham
Johannes Muste (1885-1967) - de que não existe um caminho para a paz, a
paz é o caminho. O mesmo pode ser dito da liberdade, da materialização
do ideal de liberdade como autonomia e da democracia como modo
pazeante de regulação de conflitos. Não existe caminho para a
democracia: a democracia é o caminho. Se queremos uma nova
democracia, mais democratizada ou radicalizada, não há outro caminho
senão a democratização.
A terceira invenção da democracia trata disso: da continuidade do
processo de democratização nas condições de uma sociedade-em-rede.
33
INTRODUÇÃO
É possível reinventar a democracia?
Sim, é possível reinventar a democracia. Se a democracia não pudesse ser
reinventada, ela não poderia ter sido inventada. Ao dizer que a política é o
que é, não havendo condições de mudar sua natureza (a relação amigo-
inimigo), o realismo político está, na verdade, inoculando uma vacina
contra as mudanças políticas democratizantes: está dizendo que a política
será sempre o que foi e sempre como foi; ou como se avalia que sempre
foi. Ora, na maior parte do tempo a política não foi democratizante:
apesar da onda democrática mundial do último século, nos últimos seis
milênios a democracia não passou de uma experiência localizada, frágil e
fugaz. Depois da sua invenção pelos gregos, a tendência que vigorou
amplamente foi a da autocratização e não a da democratização. Por isso
teve razão Amartya Sen (1999) quando, perguntado sobre qual teria sido o
acontecimento mais importante do século 20, respondeu de pronto: a
emergência da democracia (3).
Em virtude de uma conjunção particularíssima – provavelmente fortuita –
de variados fatores, sociedades humanas na antiguidade lograram abrir
uma brecha na cultura autocrática (patriarcal, hierárquica e guerreira),
ensaiando pactos de convivência estabelecidos em redes de conversações
entre iguais, que aceitavam a legitimidade do outro e valorizavam sua
opinião e não apenas o seu conhecimento técnico ou o seu saber
34
científico ou filosófico. Registros históricos apontam que isso aconteceu
em cidades gregas, a partir de 509 antes da Era Comum, mas não é
improvável que tenha ocorrido também, de modo mais fugaz, em outras
ocasiões e lugares (o relato profético da chamada Assembleia de Siquém,
ocorrida na Palestina entre os séculos 12 e 11 (?) a. E. C., talvez constitua
um indício importante nesse sentido). Assim surgiu a democracia como
uma experiência de conversação em um espaço público, quer dizer, no
caso de Atenas, não privatizado pelo autocrata.
Circunstâncias históricas peculiares – que possibilitaram as reformas de
Clístenes, de Efialtes e o início do protagonismo Péricles – geraram uma
configuração singular, uma constelação particularíssima de fatores que
permitiu a abertura da brecha democrática. O fato é que, do ponto de
vista do padrão de organização, a democracia não teria surgido sem a
formação de uma rede local com significativo grau de distribuição em
Atenas. Em Atenas, as instituições democráticas foram criadas para
afastar qualquer risco de retorno do poder exercido pelo tirano Pisístrato
e seus filhos a partir da experimentação de redes de conversações em um
espaço (que se tornou) público.
A primeira invenção da democracia
A primeira invenção da democracia durou de 509 a 322 a. E. C. A
democracia foi uma invenção coletiva, uma espécie de "metabolismo" da
rede social (com significativo grau de distribuição) que se formou na
Agora, em Atenas. Foi um movimento de desconstituição de autocracia.
35
Mas os historiadores não captaram isso e sim os feitos dos indivíduos: as
guerras que travaram, os assassinatos que cometeram ou de que foram
vítimas, os golpes que tramaram ou dos quais se defenderam, os cargos
de poder que conquistaram ou dos quais foram apeados e as reformas
que impulsionaram ou tentaram evitar.
Diz-se que tudo começou com as reformas de Sólon (638-558), sobretudo
a instituição da Ecclesia (assembléia) e da Boulé (conselho) por volta de
590. Mas, na verdade, do ponto de vista da democracia como
desconstituição de autocracia, tudo começou em consequência da
intervenção de Psístrato, que deu um golpe militar e introduziu a tirania
em Atenas em 546, governou até 527 e foi substituído por seus filhos
Hipias e Hiparco. Hiparco foi assassinado em 514. Hípias ficou no poder
até 510 e foi destituído por Clístenes.
Clístenes (565-492) fez uma reforma da constituição (508) e abriu caminho
para Efialtes (que fez uma reforma do Areópago). Efialtes foi assassinado
em 461 ensejando a ascensão de Péricles, que exerceu seu protagonismo
político de 461 a 429. A democracia ateniense floresceu neste período. E o
século 5 foi também chamado de século de Péricles.
Em 338 Atenas foi derrotada pela Macedônia e ficou sob o domínio de
Filipe e de seu filho Alexandre. Escolhe-se o ano de 509 para marcar o
início da democracia porque foi a época do fim da tirania dos psistrátidas.
Escolhe-se o ano de 322 para marcar o fim da democracia ateniense
porque foi o ano em que a oligarquia foi imposta em Atenas por Antipatro,
36
regente do império de Alexandre. Foi também o ano da morte de
Demóstenes (384-322).
É claro que todos esses registros são sofríveis. Escritos sob o influxo de
culturas autocráticas milenares, os relatos históricos não podiam mesmo
revelar o que estava acontecendo do ponto de vista social.
A democracia foi a mais formidável antecipação de uma era interativa que
já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma
invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no
firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no
abismo (ou não mergulhássemos no fluxo da convivência social).
Mas na verdade as pessoas que inventaram a primeira democracia não
tinham a menor consciência das implicações e consequências do que
estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem,
simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em
consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar,
sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de
senhores).
Não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos
atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido
apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um
senhor.
37
Depois da primeira invenção da democracia
É surpreendente que, depois da experiência dos gregos, a democracia
tenha retrocedido, não avançado. E que isso tenha ocorrido tanto na
prática quanto na teoria.
Sobre o tema há, por certo, muitas controvérsias. Alguns, como Dahl
(1998), tentam interpretar a República romana como uma versão (latina)
da democracia (grega) (4). Mas, ao que tudo indica, não se trata
exatamente da mesma coisa, visto que o sistema de governo com
participação popular dos romanos não reunia aqueles três atributos – de
isonomia, isologia e isegoria – que caracterizavam o funcionamento da
comunidade (koinonia) política de Atenas e de outras cidades gregas do
período democrático (509-322).
Se encararmos a democracia, no seu sentido “fraco”, apenas como
sistema de governo (popular) – e não, em seu sentido “forte”, como
sistema de convivência ou modo de vida comunitária que, por meio da
política praticada ex parte populis, regula a estrutura e a dinâmica de uma
rede social – perceberemos que várias outras experiências surgiram
concomitante e posteriormente à experiência dos gregos: Roma (do final
do século 6 até meados do século 2), governos locais em cidades italianas
(como Florença e Veneza, por exemplo, do início do século 12 até meados
do século 14), bem como outras experiências endógenas de governo que
admitiam alguma forma de assembleia com participação mais ou menos
popular (na Inglaterra, na Escandinávia, nos Países Baixos, na Suíça e em
38
outros pontos ao norte do Mediterrâneo). De qualquer modo, foram
experiências insuficientes diante da tendência autocrática predominante.
A rigor tivemos um interregno autocrático de dois mil anos (de 322 a. E. C.
até o século 18; ou, com alguma boa vontade, até o século 17).
A segunda invenção da democracia
Depois da experiência fundante da democracia grega, ou seja, da primeira
invenção da democracia, os modernos reinventaram a democracia e
tentaram ensaiá-la no Estado-nação europeu: um fruto da guerra, da paz
de Westfália (1648-1659). O Pacto do Livre Povo Inglês (1649) é as vezes
tomado como um marco do início da extensão dos direitos políticos a
todos os cidadãos. Mas existiram muitos antecedentes e consequentes.
A segunda invenção da democracia foi logo influenciada pela concepção
do Estado liberal. Mas se tomarmos a democracia como movimento de
desconstituição de autocracia e não como forma de governo, então as
tentativas dos modernos de limitar as atividades do Estado, como queria
von Humbolt (1792), inserem-se no mesmo movimento iniciado pelos
atenienses contra a tirania (5). O sentido desse movimento é a liberdade e
esse movimento é o que podemos chamar propriamente de política na
acepção democrática original do termo.
Não importa se a primeira democracia foi inventada contra o poder
tirânico de Psístrato e seus filhos em Atenas ou se a segunda democracia
foi, em parte, inventada contra a monarquia absolutista de Carlo I na
39
Inglaterra. A despeito das teorias liberais do Estado, que tentaram
interpretar a reinvenção da democracia pelos modernos do ponto de vista
da liberdade do indivíduo perante o Estado, a democracia continuou
sendo um movimento de desconstituição de autocracia.
Do ponto de vista dos sistemas autocráticos, amplamente predominantes,
a democracia – para usar uma expressão de Saint-Exupery (1929),
empregada em outro contexto (no livro “Correio Sul”) – foi “um erro no
cálculo, uma falha na armadura...” devidamente corrigida nos dois mil
anos seguintes à experiência dos gregos (6). Quando os modernos
tentaram reinventá-la, só então se pôde perceber toda a força da tradição
autocrática. Nos dois séculos posteriores às ousadias teóricas de Althusius
(1603), Spinoza (1670) e Rousseau (1762) – que lançaram os fundamentos
para a reinvenção da democracia pelos modernos: a ideia de política como
vida simbiótica da comunidade, a ideia de liberdade como sentido da
política e a ideia de democracia como regime político capaz de
materializar o ideal de liberdade como autonomia –, os pensadores
políticos posicionaram-se, em sua imensa maioria, francamente contra a
democracia.
O juízo de Burke (1790), segundo o qual “a democracia é a coisa mais
vergonhosa do mundo”, é emblemático desse ânimo autocratizante que
vigorou nos dois milênios anteriores à época em que a democracia foi
reinventada pela primeira vez (7).
40
As diferenças entre a primeira e a segunda invenções da
democracia
A democracia surgiu como um projeto local, não nacional. O grupo de
Péricles (às vezes chamado indevidamente de “partido democrático”) não
foi constituído para tentar converter os espartanos ou qualquer povo da
liga ateniense à democracia (e nem para empalmar e reter
indefinidamente o poder em suas mãos, como grupo privado) e sim para
realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano do
cidadão enquanto integrante da comunidade (koinonia) política.
Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um
projeto inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-
Estado). Mas na sua forma originária ela só poderia se materializar
plenamente – como percebeu com toda a clareza John Dewey (1927) – no
local: é um projeto vicinal, comunitário, que tem a ver com um modo-de-
vida compartilhado (8). E é mais o “metabolismo” de uma comunidade de
projeto do que o projeto de alguns interessados em conduzir uma
comunidade para algum lugar segundo seus pontos de vista particulares
ou para satisfazer seus interesses (uma definição nua e crua de partido).
A polis grega do período democrático não era a cidade-Estado e sim a
koinonia (comunidade) política. Como percebeu a argúcia de Hannah
Arendt (1958), "a polis não era Atenas e sim os atenienses" (9). Isso, é
claro, faz toda a diferença.
O Estado liberal ideal sintetizado por von Humbolt (1792) era o Estado-
nação europeu moderno, um fruto da guerra, da paz de Westfália (1648-
41
1659). Ocorre que guerra é sempre, em qualquer circunstância, um
movimento de autocratização. Os gregos democráticos também se
comportavam de forma apolítica (não-democrática) quando guerreavam,
por certo, mas isso não era constitutivo do seu modo de vida democrático.
Há uma diferença, tão sutil quanto crucial, aqui: enquanto a democracia,
para os gregos, era um modo de regulação da comunidade política (a polis
democrática), os modernos transformaram a democracia numa forma de
administração política de uma entidade estruturada pela e para a guerra
(o Estado-nação). É claro que ambos os movimentos são de
democratização, mas o primeiro era contra a instalação (ou melhor, a
reinstalação) de um Estado como entidade privada (privatizada pelo
autocrata) enquanto que o segundo era uma espécie de tentativa de
convivência com uma entidade que não poderia se publicizar
suficientemente pelo processo de democratização que os modernos
experimentaram.
Mesmo democratizado, o Estado-nação moderno não poderia adquirir
uma estrutura e uma dinâmica comunitária semelhante à da polis
democrática. Essa "falha genética" da segunda invenção da democracia
impediu que ela realizasse a democracia no seu sentido "forte", como
modo de vida, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. De sorte
que o arcabouço institucional das sociedades democráticas modernas
decalcou sempre, em alguma medida (e em grande medida), o modelo de
uma estrutura desenhada para a guerra e, por isso, inevitavelmente,
autocrática. É assim que as instituições políticas (como os governos e os
partidos) e, também, muitas outras instituições da democracia dos
42
modernos, continuaram, em grande parte, apresentando uma estrutura
hierárquica e uma dinâmica autocrática.
A democracia dos modernos não pode ser mais democratizada
O que não se percebe é que autocracia e guerra estão coimplicadas. E
que, portanto, movimentos de desconstituição de autocracia (isto é,
movimentos de democratização), são movimentos de instalação de modos
de regulação de conflitos que desconstituem a guerra por meio do
pazeamento das relações. Nenhuma autocracia se sustenta sem guerra:
seja a guerra propriamente dita, contra um inimigo externo ou interno
configurado como grupo (organizado top down), seja a estado de guerra
interno instituído a pretexto de combater um inimigo externo ou interno
(ou dele se defender), seja a política praticada como arte da guerra (a
política como continuação da guerra por outros meios, na formule inverse
de Clausewitz-Lenin).
Ora, se o contrário da guerra não é a paz, mas a política (democrática),
então nenhuma democracia pode continuar sendo democratizada
enquanto prevalecer a construção de inimigos e a luta contra eles. Esta é a
razão pela qual a segunda democracia (a democracia dos modernos) não
pode ser mais democratizada na medida em que se instala em (e se
circunscreve às) estruturas desenhadas para a guerra (lato sensu, ou seja,
a guerra "quente", fria, o estado de guerra ou a política pervertida como
arte da guerra) e fortemente influenciadas por sua dinâmica.
43
Os modernos nunca chegaram a entender plenamente que o processo de
democratização é limitado pela sua convivência com a guerra. Talvez
porque, condenados a administrar estruturas desenhadas pela guerra (o
Estado-nação moderno) não tenham conseguido captar, no plano
conceitual, a contradição fundamental entre democracia e guerra.
Na verdade, nem os antigos democratas tiveram um entendimento
adequado dessa contradição ou incompatibilidade original entre guerra e
democracia. Sua compreensão de que a guerra era uma realidade apolítica
se deu mais no plano factual do que conceitual.
Muito antes dos gregos, o principal movimento autocratizante foi a
guerra. E depois dos gregos, a guerra foi o meio universal de acabar com a
política (democrática) ou de estreitar a brecha por ela aberta nos sistemas
de dominação. Guerra como modo de regular conflitos e de alterar a
morfologia e a dinâmica da rede social para se preparar para o conflito
externo (por meio do chamado “estado de guerra”, instalado
internamente) foi o meio pelo qual a tradicionalidade política pôde se
prorrogar, não apenas derrotando inimigos de modo violento, mas
também construindo continuamente tais inimigos com o intuito de
preservar uma morfologia e uma dinâmica social que, erigida em função
da guerra, constituiu-se como um complexo cultural. Usando-se uma
metáfora contemporânea, trata-se de um programa (software) que foi
instalado na rede social e adquiriu capacidade de modificar essa rede
(hardware) para se auto-replicar.
44
Quando reinventaram a democracia os modernos não perceberam que o
grande problema para a política democrática não é prioritariamente a
guerra propriamente dita, a guerra "quente" – conquanto ela continue
sendo promovida por quistos autocráticos instalados em países
democráticos contra países não-democráticos, por países não-
democráticos contra países democráticos e por países não-democráticos
entre si – mas o exercício da política como “arte da guerra” (esta sim,
praticada universalmente como realpolitik). O que os modernos não
entenderam? Os limites ao processo de democratização colocados pela
sua convivência com a guerra, no caso, com a política praticada como uma
espécie de continuação da guerra.
A questão de fundo é que a regulação da esfera pública (sem a qual não
pode haver qualquer tipo de democracia) não pode se dar por meio de
uma guerra (ou da política praticada como arte da guerra) entre grupos
privados, como imaginaram os modernos. Os processos de competição
política legalizados e institucionalizados pela democracia representativa
não dão conta de construir uma governança democrática. Na falta desta,
as suas instituições conseguem, no máximo, estabelecer uma
governabilidade (em grande parte autocrática), dedicando-se a manter as
regras de uma luta , de um combate permanente entre grupos privados,
assegurando que o vencedor tenha o direito de privatizar a esfera pública
de modo a prorrogar o seu poder sobre a sociedade (no fundo há sempre
uma disputa pelo butim, na base do spoil system).
A principal instituição política não estatal da democracia dos modernos -
senão a única - é o partido. Mas tal como o Estado-nação, partidos são
45
instituições guerreiras: ainda quando não se dediquem ao conflito
violento, operam a política como arte da guerra, como uma continuação
da guerra por outros meios. Nesta exata medida, são organizações
antidemocráticas. É difícil acreditar que o resultado desse embate
constante, dessa interação adversarial permanente entre organizações
privadas, conseguirá constituir um sentido público. Mas os modernos
acreditaram nisso, talvez porque tenham se deixado influenciar pela
autorregulação mercantil, que se dá por meio da competição entre atores
privados. Mas a lógica e a racionalidade do mercado não são as mesmas
da esfera pública. Sociedades competitivas, aliás, não constituem bons
ambientes para mercados competitivos. Quem tem que ser competitivo é
o mercado, não a sociedade.
Se não havia derramamento de sangue, pensaram os modernos: tudo
bem. Mas não, não estava tudo bem para a continuidade do processo de
democratização.
A confusão da segunda democracia com regime eleitoral
O processo de democratização é sempre um processo de publicização. Os
modernos tiveram imensa dificuldade de entender isso, talvez porque
vivessem em mundos fracamente conectados. Em mundos de alta
interatividade, nos quais já estamos vivendo, outras categorias são
necessárias (por exemplo, os conceitos de emergência ou complexidade)
para entender o público (cujo processo de formação é cognato ao
46
processo de democratização). O resultado é que os modernos acabaram
maltratando o conceito de público (e de opinião pública).
Para a democracia representativa (sobretudo quando confundida com um
processo meramente eleitoral, o que não é raro) opinião pública
confunde-se com a soma das opiniões privadas da maioria da população.
Ora, se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a
opinião pública, não haveria necessidade do processo político. Na maioria
dos países do mundo, se fôssemos organizar a sociedade com base nas
opiniões da maioria da população, viveríamos provavelmente em uma
ditadura ou em um tipo de regime excludente, preconceituoso,
intolerante, corrupto e avesso a quaisquer dos elevados valores
anunciados pelos defensores da democracia.
A democracia depende de uma chamada opinião pública, que não é o
mesmo que a soma das opiniões dos habitantes que compõem a
população de um país, mas que é composta a partir dos inputs fornecidos
por aqueles que proferem opiniões no espaço público. Ou seja, a opinião
pública não é a opinião da maioria da população, como somos induzidos a
acreditar depois que apareceram os institutos de pesquisa de opinião. A
opinião pública é aquela que se forma quando as opiniões são
voluntariamente proferidas no espaço público e não quando são
arrancadas por um entrevistador que bate à nossa porta, nos telefona ou
corta o nosso caminho na via pública e depois totaliza as respostas que
arrancou porque perguntou, mas que nós não estávamos dispostos a
submeter ao debate público. Se existissem tais institutos na Atenas dos
séculos 6 a 4, a democracia certamente não seria escolhida como forma
47
preferível de governo. No entanto, a opinião pública em Atenas era
favorável à democracia. Da mesma forma, no Brasil do auge do regime
militar, os que se posicionavam contra o governo eram franca minoria e,
ainda assim, expressavam a opinião pública da época.
Diz-se, com razão, que a opinião pública é um ator (ou um fator) que não
pode ser desconsiderado nas sociedades contemporâneas. Ela não é
exatamente o mesmo que chamamos de sociedade civil (sobretudo não é
nada que se possa reduzir ao conjunto de organizações da sociedade civil).
Ela é algo que se forma, por certo, a partir das opiniões privadas, porém
quando tais opiniões interagem coletivamente formando configurações
complexas que brotam por emergência. Nesse sentido o mecanismo de
construção ou formação da opinião pública é o mesmo mecanismo de
formação do que chamamos de público, como, aliás, já havia percebido
John Dewey, em 1927, no seu clássico “O público e seus problemas” (10).
Dewey, é claro, não podia conceber, àquela altura, a emergência e outros
processos acompanhantes da complexidade social, mas anteviu certos
conceitos dos quais agora somos obrigados a lançar mão para tentar
descrever a formação do público. Hoje podemos dizer que a diversidade
das iniciativas da sociedade civil é capaz de gerar uma ordem bottom up. E
que a partir de certo grau de complexidade, a pulverização de iniciativas
privadas acaba gerando um tipo de regulação emergente. Quando
milhares de micromotivos diferentes entram em interação, é possível se
constituir um sentido coletivo comum que não está mais vinculado aos
motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua
constituição.
48
No entanto, isso não é possível quando o número de agentes privados é
muito pequeno. O que indica que o público propriamente dito só pode,
portanto, se constituir por emergência. Pode até haver, provisória e
intencionalmente, um pacto que reconheça alguns processos de
constituição do público, assim como há, por exemplo, um pacto que
reconhece como receita pública o resultado do montante de impostos
pagos por agentes privados (com dinheiro privado). Não há uma mágica
que transforma nossos recursos privados em recursos públicos quando
pagamos impostos: há um assentimento social, que reconhece como
válida a operação política pela qual esses recursos privados, pagos pelos
chamados contribuintes, quando arrecadados compulsoriamente pelo
Estado, passam a ser considerados como recursos públicos.
Mas há limites impostos pela racionalidade do tipo de agenciamento que
estamos considerando. Querer transformar o interesse privado de um
grupo em interesse público é magia negra. Seria, mal comparando, como
querer chamar de receita pública os impostos pagos apenas por uma dúzia
de contribuintes.
Não é um problema de quantidade. É uma questão de complexidade, em
que, evidentemente, a quantidade é uma variável, mas não a única. Se
somente uma dúzia de pessoas pagasse impostos, dificilmente haveria
base para um pacto na sociedade reconhecendo como válido o direito de
taxar esses contribuintes. Se houvesse tal pacto, ele seria um pacto
privatizante e os tais contribuintes seriam considerados (e se
comportariam como) donos do Estado (que, então, não poderia mais ser
considerado um ente público). Por outro lado, há uma razão eloquente
49
para afirmar que a quantidade não é a única variável nesse processo. Pois
também não fica assegurada a formação do público pela simples soma –
ou a totalização ex post e inorgânica – de inputs privados, mesmo que as
parcelas dessa soma expressem quantitativamente a maioria de uma
população.
No caso da chamada opinião pública, não basta somar (ou juntar e
totalizar) as opiniões privadas. É necessário que essas opiniões se
combinem, se polinizem mutuamente e se transformem nesse processo
de emersão para que possamos ter uma opinião pública. Assim, poderá
ocorrer que a maioria das opiniões privadas esteja em contradição com a
opinião pública, mesmo quando as vertentes originalmente formadoras
dessa opinião pública sejam minoritárias ou, até mesmo, francamente
minoritárias (por exemplo, a opinião pública no Brasil de meados do
século 19, quando, segundo algumas estimativas, apenas 1% da nossa
população sabia ler e escrever – e os 99% analfabetos nem mesmo
podiam usar os jornais como papel higiênico – era formada por opiniões
privadas que, em sua origem, eram francamente minoritárias).
Não é que a posse de um conhecimento – como o conhecimento da língua
falada e escrita, a alfabetização ou o letramento – qualifique a opinião por
fora do processo político (sim, não estamos falando aqui de outra coisa
senão do processo político), o que seria uma violação do pressuposto
democrático básico de liberdade e valorização da opinião. É que os
processos pelos quais as opiniões transitam na sociedade, basearam-se, a
partir da modernidade, na palavra escrita e na interpretação do texto,
escrito ou falado, criando assim uma condição de interação política que
50
impede a participação dos que não possuem tais recursos cognitivos (ou
de comunicação).
Em países em que as condições de interação política estão mais bem
distribuídas, há uma tendência clara de convergência entre a opinião
pública e a soma das opiniões privadas, até que ponto não se sabe. Mas
isso explica por que a vitalidade da segunda democracia está sempre
associada à existência de uma sociedade civil ativa ou de uma “classe
média” vigorosa. Não, não é porque a posição de classe em termos
clássicos, quer dizer, a posição em relação ao processo de produção ou de
acumulação do capital seja determinante, como julgaram todas as
vertentes economicistas do pensamento sociológico (inclusive porque a
determinação de classe da chamada “classe média” é uma operação
impossível para as teorias de classes sociais fundamentadas em alguma
racionalidade econômica), e sim porque há um acesso diferencial ao
campo onde se dá a interação das opiniões por parte dessa “classe” em
relação às classes ditas subalternas (em virtude do analfabetismo estrito
ou funcional destas últimas ou, hoje, de seu “analfabetismo” digital e,
ainda, do seu exíguo tempo livre para poder se preocupar com assuntos
que não digam respeito diretamente à sobrevivência e ao lazer
terapêutico).
Tudo ou quase tudo que se diz sobre o público que não leva em conta o
processo emergente pelo qual o público se constitui a partir da
complexidade social não é capaz de explicar a natureza do público, nem
de compreender a fenomenologia a ele associada.
51
De modo geral confundimos o público com o estatal, quando,
originalmente, trata-se do contrário. A formação do Estado – em todas as
suas formas pretéritas, desde o Estado-Palácio-Templo sumeriano,
passando pelas Cidades-Estados monárquicas da antiguidade e pelos
Estados reais e principescos – é o resultado de uma privatização dos
assuntos comuns operada pelo autocrata. O surgimento da democracia foi
o resultado de uma desprivatização, quando os assuntos privatizados pelo
autocrata passaram a ser discutidos por todos (os iguais que quisessem
discuti-los) na polis. Por isso tinha razão Aristóteles ao sugerir que público
é o que é visível indistintamente para todos na comunidade (koinonia)
política. Democracia e esfera pública são realidades coevas. Apenas ao
Estado democrático pode-se atribuir um caráter público, mesmo assim
dentro de certos limites bem estritos (ou estreitos).
Por exemplo, vejamos o que ocorre em relação às chamadas políticas
públicas. Em geral, as políticas governamentais chamadas de políticas
públicas não estão imunes à privatização (que é sempre uma
desconstituição do sentido público). Um partido pode, por exemplo,
alcançar o comando de um governo e, como organização privada que é,
ao assumir o controle administrativo, direcionar uma determinada política
segundo seus próprios interesses que não são públicos.
O fato de estar escrito em uma Constituição que uma coisa é pública, não
significa que ela o seja realmente. Uma empresa dita pública tem suas
contas, sua folha de pessoal e seus planos estratégicos visíveis a todos
indistintamente? Nesse sentido ela seria realmente pública segundo um
critério decorrente da sugestiva definição aristotélica? Tudo que é
52
declaradamente público pode ser privatizado, quer por interesses
privados econômicos, quer por interesses corporativos ou, ainda, por
interesses políticos (como, por exemplo, os interesses partidários e
clientelistas). É por isso que não deveríamos nos preocupar tanto em
saber se uma política é formal ou nominalmente pública e sim em saber se
ela é uma política democratizante. Só pode ser publicizante o que é
democratizante. E isso vale também para a chamada opinião pública.
A rigor uma opinião só pode ser pública se for resultado de um processo
de publicização de opiniões privadas. Esse processo de publicização é um
processo de democratização, ou seja, de liberdade de proferimento e de
interação de opiniões. Em uma ditadura é muito difícil falar em opinião
pública a não ser quando a liberdade de proferir opiniões é exercida como
um ato disruptivo, contra aquela ordem estabelecida para impedir o
exercício dessa liberdade e para desvalorizá-la privatizando a esfera
pública das opiniões.
A autocratização é sempre uma privatização. Em Cuba há uma
privatização clara das opiniões nas mãos do autocrata: o ditador, por meio
de seu partido-Estado e das instituições que lhe servem de correia de
transmissão. Na Rússia de Putin e na Venezuela herdeira do chavismo
estão em marcha processos de privatização das opiniões, com o objetivo
de impedir que se forme uma opinião pública (e esse é o motivo da
perseguição aos meios de comunicação nesses países). Em outros países
da América Latina estão em curso processos de desvalorização da opinião
pública em nome da opinião privada da maioria da população. Tal
totalização das opiniões privadas majoritárias da população que não são
53
proferidas no espaço público por seus atores, só pode ser feita, ex post e
inorganicamente, por meio das pesquisas de opinião e das eleições.
Ora, se as opiniões privadas da imensa maioria de uma população –
aquelas opiniões que são aferidas, por exemplo, por pesquisas de opinião
ou pelas urnas – não indicam nenhum grau significativo de conversão à
democracia, então isso coloca um enorme problema para a segunda
democracia. A ponto de, em certos países, levar alguns indignados a
reclamar, em termos um tanto grosseiros, que o problema é que “quem
decide as eleições não é quem lê jornal, mas sim quem limpa a bunda com
ele”. Antes de reprovar o chulo dístico, devemos entender a perplexidade
que o motivou. Esse problema tem a ver com as relações entre o processo
de formação da vontade política coletiva e o processo de composição da
chamada opinião pública. Em uma democracia esses dois processos
deveriam andar juntos ou, pelo menos, tender a isso.
Enfim, o que parece ser mesmo fatal para a segunda democracia é a
confusão entre o processo de formação da vontade política coletiva e
alguns mecanismos utilizados para captar tendências de opinião (como as
pesquisas de opinião) e para escolher representantes (como as eleições).
Embora guardem relações entre si, são coisas distintas. Já se disse aqui,
mas não custa repetir: se a soma das opiniões privadas pudesse ser a
mesma coisa que a opinião pública, não haveria necessidade do processo
político. Ninguém deveria proferir opiniões na esfera pública e nem
submetê-las ao debate político. Bastaria segredar no ouvido do
entrevistador de um instituto de pesquisa a sua opinião. Bastaria, de
tempos em tempos, depositar secretamente seu voto na urna. Mas - já
54
havia percebido o jovem-Dewey (1888), no texto “Ética da democracia” - a
democracia não é só uma mera forma organizacional de governo de
Estado submetida à regra da maioria (11). Como observou Axel Honneth
(1998), esse conceito instrumental de democracia reduz a idéia de
formação democrática da vontade política ao princípio numérico da regra
de maioria... Ora, fazer isso significa assumir o fato de a sociedade ser
uma massa desorganizada de indivíduos isolados cujos fins são tão
incongruentes que a intenção ou opinião adotada pela maioria deve ser
descoberta aritmeticamente (12).
A segunda democracia nunca conseguiu reparar essa incompreensão do
sentido de público, permitindo que a confusão entre democracia e
eleições (como forma de pesquisa de opinião) conspirasse contra a
essência da democracia como movimento de desconstituição de
autocracia. Isso revelou outra falha "genética" da segunda democracia: a
democracia representativa, ao se confundir, via de regra, com um
processo meramente eleitoral, fica sem proteção eficaz contra o uso das
eleições contra a democracia. Os populismos, por exemplo, se aproveitam
dessa falha, usando a democracia contra a democracia.
A terceira invenção da democracia
Quando a democracia começou a ser reensaiada para valer pelos
modernos, a política tornou-se palco de uma tensão permanente entre
tendências de autocratização e de democratização da democracia. Nada
indica que essa tensão tenha desaparecido na contemporaneidade. Ainda
55
que este seja um esquema explicativo, pode-se escrever a história da
democracia como a história de um confronto, em que, de um lado,
remanesciam as atitudes míticas, sacerdotais e hierárquicas que
mantinham a tradicionalidade e, de outro, surgiam atitudes utópicas,
proféticas e autônomas que fundaram a modernidade.
Toda vez que a rede social é obstruída, toda vez que se introduzem
centralizações na teia de conexões ou de caminhos que ligam os nodos
dessa rede distribuída, gera-se uma configuração mais favorável ao
crescimento e a manifestação do poder vertical que está no “DNA” da
civilização patriarcal e guerreira.
A democracia, como percebeu Humberto Maturana (1993), é uma brecha
nesse paradigma civilizatório (13). Mas a brecha é a rede. Toda vez que
uma rede distribuída se forma surge uma brecha, introduzindo um erro no
programa de controle. Portanto, independentemente de se querer chamá-
la simplesmente de democracia, de democracia radical, de democracia
democratizada, de holarquia ou de pluriarquia, o fundamental é que a
brecha está lá.
A brecha democrática não foi aberta de uma só vez. Ela foi aberta e
fechada várias vezes. E continua, nos últimos dois ou três séculos, sendo
alargada e estreitada de modo intermitente. Desse ponto de vista, o que
chamamos de democratização nada mais é do que o processo de
alargamento dessa brecha. Mas percebe-se que há um limite estrutural ao
alargamento da brecha nos marcos da segunda invenção da democracia.
56
É a impossibilidade de continuar democratizando a democracia dos
modernos que coloca na ordem do dia a possibilidade de reinventar, pela
segunda vez, a democracia. A terceira invenção da democracia nada mais
é, portanto, do que a continuidade do processo de democratização nas
condições da contemporaneidade.
Mas é preciso entender bem o que são as condições da
contemporaneidade. Não é mais conviver em um mundo único: agora
serão Highly Connected Worlds (no plural mesmo); ou seja, em termos
sociais, à medida que aumentam os graus de distribuição, de
conectividade e de interatividade, a ilusão do mundo único criada pelo
broadcasting (pela transmissão centralizada um-muitos das estruturas
hierárquicas) vai se desfazendo e miríades de mundos sociais vão
surgindo, sociosferas cada vez mais tramadas por dentro e conectadas
para fora, porém peculiares. Assim, não teremos um tipo ou uma forma
de democracia (como fizeram os antigos em Atenas ou como pretenderam
fazer os modernos: exportando-a para todo o mundo na esteira da
exportação do modelo europeu de Estado-nação).
A primeira democracia foi local. A segunda democracia tentou ser global
(mas mal conseguiu se realizar plenamente em três dezenas de países e
nunca logrou vigorar no plano internacional - onde impera a realpolitik do
equilíbrio competitivo - a despeito da promissora evidência de que países
democráticos não guerreiam entre si). A terceira democracia será glocal e
isso significa dizer que não será "uma" democracia, não será "a"
democracia. Não teremos uma fórmula aplicável a várias circunstâncias e,
portanto, não será possível exportá-la, como tentaram os modernos.
57
Somente será possível reinventá-la em cada glocalidade. E mesmo assim
será possível chamar todas essas invenções de democracia (ou de
democracia radicalizada, de democracia democratizada, de democracia
cooperativa, de democracia interativa, de holarquia ou de pluriarquia) a
não ser enquanto - e na medida em que - estiver em curso algum
movimento de democratização ou de desconstituição de autocracia como
elemento essencial da constituição das formas políticas concretas que
cada glocalidade inventou.
Surpreendentemente a terceira invenção da democracia é a desinvenção
das formulas de democracia.
Inventando a terceira democracia
Não se trata de adivinhar como será a terceira democracia. Trata-se de
inventá-la.
É claro que tal invenção se dará dentro dos horizontes de possibilidades
dos novos mundos altamente conectados que estão emergindo no dealbar
deste terceiro milênio.
Observando as tendências contemporâneas, alguns fenômenos, eventos,
experimentos e configurações emergentes (novas formas de organização
e convivência que começam a surgir em profusão por toda parte) podem
estar indicando o seguinte sobre a terceira democracia:
58
I - Que a organização de suas instituições espelhará mais um padrão
de rede (estruturas mais distribuídas do que centralizadas) do que
de hierarquia (estruturas mais centralizadas do que distribuídas).
II - Que sua dinâmica será mais interativa do que participativa ou
adesiva.
III - Que ela adotará procedimentos diretos mais interativistas
(abertos à interação fortuita, em tempo real) do que assembleístas-
participacionistas (seguindo pautas previamente estabelecidas por
alguma coordenação centralizada).
IV - Que ela poderá combinar procedimentos diretos interativos
com procedimentos representativos (porém transitórios, com
representações revogáveis a qualquer momento).
V - Que ela se guiará mais pela lógica da abundância do que pela
lógica da escassez (ou seja, utilizará cada vez menos modos de
regulação de conflitos que introduzam artificialmente escassez:
como a votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e
o sorteio).
VI - Que seus atores serão mais pessoas interagindo em multidões
consteladas e em comunidades configuradas para a convivência do
que indivíduos figurando em massas arrebanhadas ou sendo
chamados periodicamente a influir na vida política como eleitores
solitários.
59
VII - Que a formação democrática da vontade política terá mais
como fonte originária a cooperação voluntária, com a convergência
comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou
realizar um projeto, do que a liberdade individual de opinar
protegida da interferência do Estado (segundo a visão liberal) ou do
que o reino público constituído pela argumentação discursiva
(segundo as visões do republicanismo político e do
procedimentalismo democrático).
VIII - Que ela terá diversas "fórmulas" glocais e não mais uma única
fórmula pretensamente global (ou internacional, como ocorreu com
a segunda democracia).
IX - Que ela será realizada em miríades de sociosferas e não em
apenas menos de duas centenas das unidades político-territoriais
centralizadas (chamadas de países ou Estados-nações).
X - Que ela coexistirá marginalmente e por tempo indeterminado
com as democracias realmente existentes (incluindo as democracias
plenas, as democracias parasitadas por regimes manipuladores e as
democracias em processo de autocratização) e também com
protoditaduras florescentes e ditaduras remanescentes.
Para teorizar sobre essas tendências e experimentá-las em ensaios
concretos de novos modos de convivência social, vários campos de livre-
invenção - ou de cocriação - estão sendo abertos neste momento. Ora,
isso já faz parte da terceira invenção da democracia.
60
61
CAPÍTULO 1
DEMOCRACIA DISTRIBUÍDA
Que a organização de suas instituições espelhará mais um padrão de rede
(estruturas mais distribuídas do que centralizadas) do que de hierarquia
(estruturas mais centralizadas do que distribuídas).
Ninguém pode entender o que é rede se não entender a diferença entre
descentralização e distribuição. O melhor caminho para entender tal
diferença é ler o velho artigo On distributed communications, de Paul
Baran (Santa Mônica: Rand Corporation, 1964) (14). No mencionado paper
sugiro espiar diretamente a figura abaixo:
62
Entre a monocentralização (o grau máximo de centralização, que no
diagrama de Baran aparece como rede centralizada) e a distribuição
máxima (todos os caminhos possíveis, correspondendo ao número
máximo de conexões para um dado número de nodos - que não aparece
no terceiro grafo do diagrama de Paul Baran, por razões de clareza de
visualização), existem muitos graus de distribuição. É entre esses dois
limites que se realiza a maioria das redes realmente existentes.
Os diagramas de Baran são autoexplicativos. Mas as consequências que
podemos deles tirar não são. O primeiro corolário relevante é que a
conectividade acompanha a distribuição. Inversamente, quanto mais
centralizada for uma rede, menos conectividade ela possui. O segundo
corolário relevante é que a interatividade acompanha a conectividade e a
distributividade. Inversamente, quanto mais centralizada é uma rede,
menos interatividade ela possui.
Pois bem. Ainda que o modo de regulação não seja uma consequência
automática do padrão de organização e sim fruto de invenção política,
pode-se afirmar que a democracia expressa um metabolismo de redes
mais distribuídas do que centralizadas. Na Atenas do século 5 tal
aconteceu: configurou-se uma rede de conversações na praça do mercado
com significativo grau de distribuição: sem isso a democracia não poderia
ter sido inventada e não teria perdurado por dois séculos (entre 509 e 322
a. E. C., conquanto que só por isso ela não surgiria, já que foi uma
invenção mesmo, uma "obra de arte" como observou Humberto
Maturana em 1993) (15).
63
No entanto, após a experiência fundante dos atenienses tivemos um
interregno autocrático de praticamente dois milênios. Quando a
democracia começa a ser reinventada pelos modernos, a partir de meados
do século 17, o ambiente social estava configurado de forma muito
diferente. A Europa vinha de séculos de guerra contínua ou intermitente e
os fluxos da convivência social tinham sido obstruídos, capturados,
deformados e verticalizados a tal ponto que os graus de distribuição da
rede social eram baixíssimos em quase todo lugar. O movimento de
desconstituição de autocracia que pode florescer teve que se conformar
às estruturas fortemente centralizadas de então, sobretudo à estrutura
que já era, há milênios, o principal tronco de programas verticalizadores: o
Estado. A nova forma do Estado-nação, que surgiu na Europa como fruto
da paz de Westfália (1648-1659), não pode escapar dessa contingência
genética: era um Estado, mais uma forma de Estado que sucedia às formas
pretéritas homólogas do ponto de vista do padrão de organização e dos
modos de regulação (o Estado-Palácio-Templo mesopotâmico, proto-
Estados e Estados erigidos por hordas de predadores e senhores e por
impérios do chamado despotismo oriental, as cidades-Estado monárquicas
da antiguidade, os Estados feudais antigos e modernos, os Estados reais e
principescos).
Mais do que isso, porem: toda a realidade política era o Estado, a tal
ponto que política era praticamente sinônimo de Estado e quando Spinoza
quis falar propriamente da política, no final do seu célebre Tratado
Teológico-Político (1670), ou seja quando quis afirmar que o fim (ou o
sentido) da política não é a ordem, mas a liberdade (ao contrário do que
64
pensava Hobbes), teve que falar de Estado para se fazer entender (só com
o tempo surgiria uma politics relativamente independente da policy na
percepção dos atores políticos) (16).
Não havia algo como uma koinonia política (como na Atenas do século 5),
composta por pessoas livres (ainda que só algumas pessoas o fossem) e
livres o suficiente para estabelecer relacionamentos horizontais e
conversar num espaço público quando lhes desse na telha (e... para fazer
politics). A política não era o metabolismo de uma comunidade e sim
apenas o catabolismo e a exsudação de uma estrutura que extraía sua
energia das pessoas nela inseridas como peças de uma máquina e em
seguida as descartava.
A máquina que funcionava para a guerra foi (parcialmente) domesticada,
por certo, quando se tentou regular seu funcionamento para proteger os
"de dentro" (os arrebanhados no Estado-nação) dos seus próprios chefes
(a realeza e a nobreza e, depois, os príncipes plebeus: presidentes e
primeiros-ministros). A essa proteção se chamou direitos (dos "de
dentro"), preservando-se entretanto a sua capacidade letal (para a guerra
contra os "de fora": os outros Estados-nações).
Parece óbvio que num ambiente assim configurado a democracia não
poderia fazer muito mais do que fez. E ela fez muito, se considerarmos
que, nos séculos 18, 19 e 20, aumentou consideravelmente o número de
países que adotaram a democracia reinventada pelos modernos. Um de
seus principais feitos, além do chamado Estado democrático de direito, foi
desativar as guerras, ao menos entre os países que a adotaram. Ora,
65
desativar guerras é desconstituir autocracia, ou seja, é fazer democracia
no sentido forte do conceito, ainda que - na ausência de guerras
"quentes" ou "frias" - modos de regulação autocráticos (e compatíveis
padrões de organização hierárquicos) tenham remanescido na política
praticada como "arte da guerra" (a política como continuação da guerra
por outros meios, na formule-inverse de Clausewitz-Lenin) entre os "de
dentro".
Aqui então chegamos ao ponto. Em virtude dos condicionamentos
presentes em sua origem, a democracia reinventada pelos modernos
baseou-se em instituições com estrutura mais centralizada do que
distribuída. O Estado, mesmo a nova forma Estado-nação mitigada por
todos as normas e procedimentos que a habilitam a ser reconhecida como
Estado democrático de direito, continuou sendo uma pirâmide, um tipo de
estrutura que não se pode regular a não ser com o auxílio de modelos de
gestão baseados em comando-e-controle. Mas como o novo modo de
regulação (a democracia) deveria se exercer na "comunidade política"
válida na época (o Estado-nação), ela virou um modo de administração
política dessa nova forma de Estado emergente (em grande parte,
remanescente e persistente).
Poder-se-ia retrucar que com os gregos deu-se a mesma coisa. Após a
primeira invenção da democracia, a cidade-Estado de Atenas continuou
sendo um Estado e se comportando autocraticamente em relação aos
outros Estados ao travar guerras contra eles, mas a diferença está no fato
de que - como percebeu Hannah Arendt (c. 1950) (17) - os gregos sabiam
que se comportavam de forma apolítica (ou não-democrática) quando
66
guerreavam e, talvez por saberem disso, estabeleciam uma separação
mais ou menos clara entre - para evocar dois conceitos de Platão em As
Leis - o governo para dentro (a "arte do tecelão") e a conquista de
hegemonia para fora (a "ciência do estrategista"). A comunidade política
ateniense (uma comunidade concreta) podia zelar por tal distinção de
modo mais efetivo do que as instituições inauguradas pela democracia
dos modernos.
O governo na democracia dos modernos adotou, em relação aos próprios
cidadãos, uma postura autocrática, quer dizer, não se armou apenas para
se proteger dos "de fora", mas também contra os "de dentro" (não raro
em nome da ordem e da paz social). Porque não havia e não podia haver,
na grande "comunidade política" do século 17, uma regulação efetiva do
poder para dentro capaz de alterar a forma vertical como ele se exercia. A
grande comunidade política dos modernos era uma comunidade abstrata,
um arrebanhamento - não raro artificial, quer dizer, demarcado manu
militari e não socialmente configurado - de diversas comunidades
concretas, clusters sem muitos atalhos entre si e, portanto, com baixos
graus de interatividade. A relação política do Estado com a nação passou a
ser feita com os (ou através dos) indivíduos (eleitores) e essa atomização
do ator político social retirou parte da sua capacidade de interferir a
qualquer tempo na vida do ator político institucional (que, por sua vez,
exacerbou o seu papel de "estrategista" em detrimento do seu papel de
"tecelão").
Há diferenças, portanto. A democracia inventada pela primeira vez pelos
atenienses surgiu, de certo modo, contra a privatização dos assuntos
67
comuns pelo autocrata; isto é, surgiu contra o Estado (a cidade-Estado
monárquica de então); embora fosse obrigada a conviver com ele, alterou
radicalmente a estrutura e o funcionamento de suas instituições (a partir
da reformas de Clístenes e Efialtes). A democracia reinventada pelos
modernos surgiu para mitigar o poder do Estado para dentro (protegendo
os cidadãos do seu Leviatã: o Estado-nação) mas não questionou
fundamentalmente a estrutura e a dinâmica das instituições que exerciam
esse poder. Eis o ponto!
Em consequência, as instituições da democracia dos modernos foram
estruturadas hierarquicamente e continuaram apresentando padrões de
organização bem semelhantes às instituições pré-democráticas (e não-
democráticas). Para citar os exemplos mais óbvios: os tribunais
continuaram muito parecidos com o que eram antes (e prosseguiram
sendo chamados de "cortes" até hoje), os exércitos sobreviveram
intocáveis e os órgãos executivos de governo também (escapando da
reprodução quase que apenas os parlamentos).
Novas experiências de democracia deverão se exercer em ambientes mais
distribuídos do que centralizados. Acompanhando a transição da
sociedade hierárquica para a sociedade em rede, as instituições de uma
nova política também deverão ser cada vez mais em rede. Ou seja, mais
democratização do modo de regulação (o que se chama hodiernamente
de radicalização ou democratização da democracia) deve significar mais
distribuição do padrão de organização. Não porque o modo de regulação
seja função (ou dependa) do padrão de organização (no sentido de ser por
este último determinado), mas porque modos de regulação não
68
compatíveis com padrões de organização não podem perdurar. É como
uma relação entre software e hardware: programas de rede não podem
rodar bem em hierarquias: mais cedo do que mais tarde a máquina acaba
travando.
Não se pode saber como serão as instituições de uma terceira invenção da
democracia. Como serão múltiplas as experimentações na transição -
muitos modelos emergentes de democracia - surgirão também miríades
de instituições diferentes. Transição não é substituição. Não há um
formato novo para colocar no lugar do velho. Não se trata de substituição
de um modelo de gestão por outro, de um modo político de administração
do Estado ou de regime político por outro. Trata-se de um processo de...
democratização!
O que se pode afirmar é que a democratização dos modos de regulação
será acompanhada da distribuição dos padrões de organização (de
qualquer estrutura ou instituição, seja ela qual for). E que, portanto, a
organização das instituições da terceira democracia espelhará mais um
padrão de rede (estruturas mais distribuídas do que centralizadas) do que
de hierarquia (estruturas mais centralizadas do que distribuídas).
É meio inútil - e até certo ponto prejudicial, na medida em que a previsão
de caminhos reduz a imaginação de caminhos - encontrar exemplos
viáveis ou factíveis de instituições mais distribuídas do que centralizadas
acordes a modos de regulação mais democratizados. Mas bastaria
examinar algumas tendências emergentes nas diversas propostas que têm
surgido de democracia digital por meio de mídias sociais (transitivas e em
69
tempo real) que se deslocam de dinâmicas adesivas e participativas para
dinâmicas mais interativas, como veremos nos próximos capítulos.
70
CAPÍTULO 2
DEMOCRACIA INTERATIVA
Que sua dinâmica será mais interativa do que participativa ou adesiva.
Interação é um gradiente: adesão-participação-interação. Na verdade,
tudo é interação, mas quando predominam a adesão ou a participação a
livre-interação diminui. Tanto a adesão quanto a participação impõem
restrições à interação (obstruindo, condicionando, direcionando ou
capturando fluxos). Redes sociais acontecem quando as pessoas
interagem, mas quanto mais distribuídas forem as redes mais livre-
interação haverá (18).
Autocracias apresentam pouca interatividade em razão dos altos graus de
centralização de suas instituições (e procedimentos, entendidos como
metabolismos acordes à estrutura ou ao corpo dessas instituições).
Democracias são sempre mais interativas pela razão inversa (suas
instituições e procedimentos são mais distribuídos). Mas mesmo nas
democracias a interatividade varia. A democracia dos atenienses era mais
participativa do que a dos modernos. O sistema representativo funciona
por adesão, não raro compulsória (por exemplo, quando o voto passa de
direito à dever).
Não houve nada como uma evolução na passagem da democracia dos
antigos para a democracia dos modernos. Aliás, não houve nem uma
71
passagem. A democracia foi simplesmente reinventada em outro mundo.
Reapareceu, sob outra forma, dois milênios depois.
Sim, foram mundos diferentes (em termos sociais). A experiência da
democracia grega, ensaiada entre 509 e 322 a. E. C., foi um mundo que se
abriu e fechou e só a análise posterior pode encontrar um liame entre
aquela experiência e a da sua reinvenção pelos modernos, dois mil anos
depois. Não houve continuidade, não houve qualquer evolução; pelo
contrário, o que tivemos depois do ensaio fundante da democracia foi
retrocesso. Por dois mil anos foi – para todos os efeitos – como se aquele
mundo que atingiu seu apogeu no chamado “século de Péricles” não
tivesse existido. No entanto... após milênios, eis que surge um modo de
regulação de conflitos baseado no mesmo fundamento básico: a liberdade
de opinião. Só podemos chamar as duas invenções com o mesmo nome
(democracia) porque foram ambas movimentos de desconstituição de
autocracia (não importa se representada pelo filho restante de Psístrato
ou por Carlos I).
Da mesma forma, não haverá propriamente uma passagem (que expresse
continuidade) entre a segunda democracia e a terceira. A terceira
invenção da democracia não será um aperfeiçoamento da democracia dos
modernos. Antes de qualquer coisa porque ela só existirá se for inventada
(não há qualquer imanência histórica nos levando à ela). Mas se não
quisermos viver um longo interregno autocrático (que se imporá com a
falência da segunda democracia) é melhor reinventá-la dentro do
ambiente de relativa liberdade por ela oferecido. Em democracias em
processo de autocratização, protoditaduras e ditaduras, será muito mais
72
difícil reunir as condições favoráveis à uma nova reinvenção da
democracia (inclusive porque a experimentação de novas formas de
democracia será proibida ou restringida nesses regimes).
O ambiente social da sociedade-em-rede é favorável à uma nova invenção
da democracia. Mas isso não significa que ela ocorrerá de qualquer modo,
por força dos graus maiores de distribuição das redes que estão se
configurando. Significa apenas que ela pode ocorrer: se for
experimentada!
Novas experiências de democracia, nas circunstâncias de uma sociedade
em rede, poderão ser mais interativas do que as experiências anteriores.
Por isso se diz que a dinâmica de uma terceira invenção da democracia
será mais interativa do que participativa ou adesiva.
Quanto mais livre for a interação, mais fortuita ela será e menos baseada
em coletivos conformados antes da interação ela será (ou seja, com base
na exigência de pertencimento a um cluster configurado por razões extra-
políticas, que tenha poderes regulatórios aumentativos em relação aos
demais; por exemplo, com direitos exclusivos ou mais direitos de decidir
do que os que não pertencem ao coletivo). Portanto, uma democracia
interativa não poderá ser assembleísta. De uma democracia interativa não
poderão participar apenas os que se tornarem partícipes de uma estrutura
já erigida e que aceitarem se submeter a um modo de funcionamento pré-
estabelecido (ou estabelecido antes da interação).
A terceira invenção da democracia não pode ser uma volta ao caráter
participativo da primeira invenção da democracia. Não podemos - e não
73
devemos, se não quisermos retrogradar em termos de interatividade -
reeditar as instituições da velha Grécia do século 5, simulando a Ecclesia
(assembléia) ateniense, muito menos a Boulé (uma espécie de conselho
que pautava a assembléia) ou o sistema de Prutaneis (comissões de
administradores ou executivos de governo). Várias propostas de
democracia que têm surgido nos últimos vinte anos tentam fazer isso ao
mostrar que podemos voltar a uma democracia tão direta quanto a dos
gregos com o auxílio das ferramentas digitais que, agora afinal,
viabilizariam a participação geral (antes impedida pela falta de
instrumentos eficazes para reunir grandes contingentes de pessoas - o que
é, note-se, uma falsa razão). A questão não é o número de pessoas a
reunir: a questão é que não precisamos re-unir o que já está conectado:
como escreveu Frank Herbert (1969) em O Messias de Duna, "não reunir é
a derradeira ordenação" (19). Pois não se trata de voltar ao
participacionismo (ou nele estacionar, como se fosse a maior maravilha do
mundo) e sim de caminhar para o interativismo.
As experiências ocorridas na segunda metade do século 20, consideradas
de radicalização ou democratização da democracia, foram mais
participativas do que interativas. Foram - quase todas - experiências
assembleístas, baseadas em estruturas e procedimentos mais
descentralizados do que distribuídos (e, portanto, hierárquicas). Alguém
(os bouleutas modernos) fazia previamente (quer dizer, antes da
interação) a pauta das assembléias. Alguém (os oradores conhecidos
como "os políticos", os hoi politeuomenoi modernos) monopolizava a
palavra nas reuniões. Formavam-se, em todas elas, oligarquias
74
participativas compostas pelos profissionais de reunião, muitas vezes por
"pescadores de aquário" ("fishers in the barrel"): militantes cuja função
era recrutar nas assembléias populares novos membros para suas
organizações hierárquicas. Os procedimentos adotados nesses ensaios de
democracia participativa geravam artificialmente escassez - e, com isso,
verticalizavam o campo social limitando o processo de democratização -
como veremos no próximo capítulo.
75
CAPÍTULO 3
DEMOCRACIA DIRETA
Que ela adotará procedimentos diretos mais interativistas (abertos à
interação fortuita, em tempo real) do que assembleístas-participacionistas
(seguindo pautas previamente estabelecidas por alguma coordenação
centralizada).
Os defensores da democracia representativa argumentaram ad nauseam
nos últimos séculos sobre a impossibilidade da democracia direta nas
sociedades modernas. Sua justificativa era baseada na impossibilidade de
reunir presencialmente as pessoas em sociedades muito populosas para
compor uma instância deliberativa direta (numa espécie de assembléia,
como aquela dos antigos gregos). Dever-se-ia, portanto, eleger
representantes (em número factível) para poder caber em uma
assembléia presencial. É claro que apareceram também outras
justificativas mais sofisticadas, avançando para fora do âmbito da
democracia (por exemplo, aquelas baseadas em alguma teoria das elites,
de necessária especialização para tratar de assuntos complexos como a
administração do Estado - todas, porém, meritocráticas, de fundo
platônico e, portanto, anti-democrático).
Mas a justificativa principal mesmo, da qual se vem lançando mão há pelo
menos dois séculos, é de natureza técnica, não política; em uma
expressão: não cabe! Todavia, como já foi dito na Apresentação deste
76
livro, o problema não está no número de pessoas: as poleis gregas
também não eram tão pequenas assim. Segundo Finley (1981), “ao eclodir
a Guerra do Peloponeso, em 431, a população ateniense, então no seu
auge, era da ordem de 250 mil a 275 mil habitantes, incluindo-se livres e
escravos, homens, mulheres e crianças... Corinto talvez tenha atingido 90
mil; Tebas, Argos, Corcira (Corfu) e Acraga, na Sicília, 40 mil a 60 mil cada
uma, seguindo-se de perto o resto, em escala decrescente...” (20) – ou
seja, o tamanho dos nossos atuais municípios. O problema está nas
características da clusterização havida, que têm a ver com a unidade
política escolhida: o Estado-nação, que aglomerou vários clusters de modo
apolítico, em geral em razão de guerras que demarcaram fronteiras
artificiais (no sentido de não resultantes de processos sociais). Em
consequência, não haviam atalhos e meios de comunicação suficientes e
adequados para permitir a interação em tempo real ou sem distância
entre esses vários clusters (de parentesco, vizinhança, trabalho, lazer,
aprendizagem, prática, projeto etc.). Parece óbvio que essas condições
precárias de conectividade e interatividade impediam procedimentos
diretos de regulação como os adotados pelos antigos gregos.
A primeira democracia era um projeto local, comunitário. A segunda
democracia foi um projeto nacional (quer dizer, estatal, posto que é o
Estado que representa a nação e fala por ela: ele é o sujeito político
válido, em grande medida porque invalidou todos os demais). Ora, como o
Estado era autocrático, tudo continuaria como antes se ele fosse
representado apenas pelo príncipe ou pela aristocracia. Então foi preciso
eleger a nova aristocracia (política) a partir do povo. Mas quem é o povo
77
(um conceito, ademais, muito problemático do ponto de vista da
democracia, já que a palavra populus, no contexto europeu onde foi
inventada a segunda democracia, designava originalmente "contingente
de tropas")? Ora, o povo é a soma dos indivíduos que compõem a
população do país, ou melhor, a parte desses indivíduos que, segundo
critérios que foram sendo modificados ao longo do tempo, poderia ter o
direito de escolha pelo voto (inicialmente e por muito tempo - tal como
em Atenas - excluía-se desse contingente os estrangeiros e as mulheres e
os escravos; e depois, no lugar dos antigos escravos, os que não tinham
posses suficientes).
Quando o povo arrebanhado no Estado-nação deixou de ser as
comunidades ou os clusters convivenciais emergentes da interação social
e passou a ser a soma dos (de alguns dos) indivíduos, a única maneira de
regular politicamente a sua soberania para se governar (já que democracia
é o governo do povo) foi lançar mão de meios indiretos: através de seus
representantes. O resultado foi que o indivíduo ficou indefeso diante do
Estado e então foi necessário instituir um conjunto de proteções
destinadas a salvaguardar seus direitos contra seu próprio Estado. É assim
que o instituído virou constituído e surgiram as constituições e o chamado
Estado democrático de direito na democracia indireta, representativa, dos
modernos.
Mas indivíduos isolados, chamados periodicamente a opinar, tiveram
alguma dificuldade de constituir um sentido público (por várias razões,
dentre as quais a mais óbvia é que a opinião pública não é a soma das
opiniões privadas da maioria da população). Encarar o indivíduo como
78
átomo do processo democrático, como o player em primeira instância do
jogo democrático, é problemático porquanto o indivíduo é uma abstração:
os seres humanos concretos são pessoas, quer dizer, são entroncamentos
de fluxos, emaranhados de relacionamentos. E somente nesses
relacionamentos pode ser construído o commons (que consubstancia a
esfera pública). Como não pode existir democracia sem esfera pública (são
realidades coetâneas e emergiram coevamente), o player da democracia é
sempre molecular, não atômico.
Com tudo isso, agora já se sabe que a justificativa (técnica) dos defensores
da democracia representativa para a impossibilidade de uma democracia
direta não se aplica mais às sociedades contemporâneas, nas quais estão
disponíveis meios (técnicos) de interação em tempo real ou sem distância.
Se não se pode fazer uma assembléia presencial de milhões, porque não
cabe nem no maior estádio de futebol do mundo, isso não importa mais:
pode-se fazer tal assembléia virtualmente.
Entretanto, novamente, a questão não é a tecnologia (a mídia), nem a
tecnologia social (assembléia). A questão é o padrão de interação.
Uma terceira invenção da democracia, se não quiser ser uma reforma da
segunda ou uma tentativa de volta à primeira (com mais tecnologia), não
poderá adotar procedimentos assembleístas-participacionistas. Ela poderá
sim, adotar procedimentos diretos, porém mais interavistas do que
participacionistas, ou seja, abertos à interação fortuita em tempo real.
Não há uma relação necessária entre procedimentos diretos e
participação em assembléias: nem em termos presenciais, nem em termos
79
virtuais. Procedimento direto é, simplesmente, o que não é indireto,
aquele em que não há delegação de "poder" a outrem (o que é sempre
uma denegação do próprio "poder"). Qualquer pessoa pode opinar em
tempo real sobre os assuntos que lhe dizem respeito ou dizem respeito às
comunidades às quais está conectada: quando não for possível
presencialmente, então virtualmente, mas sem que se conforme uma
instância válida antes da interação (que invalide as demais instâncias
formadas na interação). Opina ou não opina se quiser (o que refuga
qualquer obrigatoriedade). Opina quando lhe aprouver (o que dispensa os
calendários político-jurídicos fechados, estabelecidos antes da interação
pelos bouletas modernos). E opina de onde puder (o que dinamita a
exigência de base territorial fixa).
Como um sistema assim poderá admitir governança? Não sabemos,
sobretudo porque não haverá um sistema assim que exija governança
entendida como governabilidade estatal (diga-se o que se quiser dizer, a
governabilidade é sempre uma remanescência autocrática nas
democracias). Enquanto as novas experiências da terceira democracia se
realizarem no âmbito de Estados-nações elas não poderão ter a pretensão
de servir como modo político substituto para a administração do Estado
ou para o regime de governo (do Estado).
O governo na polis ateniense era a Ecclesia. Não que houvesse um
governo exterior à assembléia, um governo que usasse a assembléia. Não:
ele, o governo (kibernesis) era um atributo da assembléia, os fluxos
interativos - embora de média intensidade - que a percorriam, o seu
"humor" variável, as tendências que a conversação apontava e as decisões
80
que reverberavam (ou não), cujas consequências retroagiam gerando não
raro novas decisões, inclusive opostas às anteriores, o comportamento
adaptativo que era obrigada a desempenhar nessas circunstâncias fluidas,
um pouco semelhante mesmo ao metabolismo de um organismo. A
assembléia detinha todos os poderes de governação: relativos à
legislação, às questões judiciais e executivas, inclusive no que tange à
política externa. Podia destituir magistrados e fiscalizar todos os cargos
que nomeasse. E tudo isso não era feito por pouca gente: estima-se que,
no século 5, 43 mil pessoas participavam da Ecclesia que, em alguns
períodos, chegou a se reunir semanalmente.
O governo no Estado-nação europeu moderno, após a segunda invenção
da democracia, já não era nada disso e sim uma delegação, uma espécie
de Boulé estável com muito mais autonomia em relação aos seus
constituintes, que não existiam mais como organização social, como
instância concreta e sim apenas como derivação - e totalização aritmética
- das opiniões dos cidadãos e que não podia, portanto, captar o fluxo da
convivência social, quer dizer, a rede = o que estava entre-eles. A
democracia dos modernos perdeu substância social em comparação com
a dos antigos.
Entraram em cena então os representantes, que se comportavam, para
todos os efeitos práticos, como uma espécie de aristocracia política. Em
alguns casos, quando não cabia a tais representantes (legislativos) eleger
os chefes (executivos) do Estado ou do governo - quando estes passaram a
receber a delegação diretamente dos indivíduos (eleitores) - a figura do
81
príncipe (não dinástico, com mandato temporário e submetido às leis) foi
re-entronizada. O que trouxe um sem-número de novos problemas.
De qualquer modo, já havia problemas semelhantes com a assembléia dos
gregos. O primeiro deles é que a Ecclesia era vulnerável ao discurso
inverídico. Um orador jactante, por exemplo, podia levá-la a tomar
medidas inconsistentes com as possibilidades reais de ação da polis.
Ademais, os próprios oradores - os hoi politeuomenoi - eram um problema
quando se perpetuavam, adquirindo a condição de políticos profissionais.
A retórica, neste caso, para além da lógica discursiva e de qualquer razão
comunicativa, influenciava decisivamente a formação da vontade política
coletiva: os que possuíam o "dom" (como se acreditava e, em parte, ainda
se acredita) ou os que estavam mais treinados na arte de conduzir
assembléias, acabavam tendo um papel desproporcional em relação aos
demais. Foi em parte por isso, pode-se presumir, que Péricles conseguiu
manter seu protagonismo por tanto tempo. Tudo isso, porém, não pode
ser explicado adequadamente pela vontade deliberada de alguns agentes
de praticar a demagogia ou de conduzir a assembléia. Pois nada disso
poderia acontecer se... não houvesse a assembléia e os seus
procedimentos participativos dirigistas. Como se sabe, a pauta da Ecclesia
era feita pela Boulé (um conselho menor, mais facilmente controlável, que
acabava tendo grande influência nos resultados da assembléia).
O processo era bem parecido com o das assembléias ensaiadas
hodiernamente sob o nome de democracia participativa, no qual direções
de instituições centralizadas elaboram a ordem do dia dos debates que
ocorrerão, estabelecem as regras desse debate, concedem e cassam a
82
palavra, abrem e fecham os trabalhos e privilegiam os participantes
alinhados à sua orientação política. Tais procedimentos manipuladores
acabam se transformando em estratégias de conquista de hegemonia, de
"ganhar" a assembléia, de impedir que outros participantes alinhados a
orientações políticas concorrentes adquiram notoriedade ou sejam
escolhidos para as direções. Toda assembléia é manipulável porque a
participação reflete graus baixos de interação: na participação a interação
não é livre o suficiente para evitar o controle de uma oligarquia (ainda que
seja uma oligarquia participativa e, no caso, trata-se disso mesmo). Como
na Wikipedia, quem participa mais, tem mais chances de conduzir (porque
tem poderes ou privilégios regulatórios aumentativos em relação aos
demais).
A terceira democracia pode ser mais direta sem ser assembleísta. Basta
que os sistemas admitam a interação fortuita, ou seja, que não
conformem colégios decisórios válidos antes da interação; ou melhor:
basta que o colégio válido seja composto por todos aqueles que se
conectam e interagem e sejam validados pela interação. Ferramentas
virtuais com funcionalidades semelhantes às do BetterMeans podem ser
desenvolvidas. Não há uma fórmula, porém. Até porque a terceira
democracia não é um modelo de democracia, como já foi mencionado e
ainda veremos mais adiante e sim miríades de experimentações.
Em uma democracia interativa mais direta, nada impede, entretanto, que
se combinem procedimentos diretos e procedimentos indiretos, não
sendo necessário que a instância que delega (em alguns casos o colégio
eleitoral) seja conformado previamente com base em critérios extra-
83
políticos (como, por exemplo, as bases territoriais ou setoriais fixas), como
veremos no próximo capítulo.
84
CAPÍTULO 4
DEMOCRACIA COM REVOCABILIDADE
Que ela poderá combinar procedimentos diretos interativos com
procedimentos representativos (porém transitórios, com representações
revogáveis a qualquer momento).
A questão é saber o peso da renúncia ou até que ponto a alienação do
próprio "poder" - nos processos indiretos de democracia - predominará
em relação ao exercício direto desse "poder".
Antes de qualquer coisa é bom assinalar que a palavra poder (empregada
entre aspas acima) pode levar a graves equívocos. Do ponto de vista social
- que caracteriza a presente abordagem (como foi assinalado na
Apresentação deste livro) - poder é uma relação, não uma coisa que se
possa possuir e transferir. Neste sentido só há poder na medida em que
há centralização e todo poder é uma medida de não-rede (distribuída).
Uma relação de poder (stricto sensu) se realiza quando há obstrução
(seleção ou filtragem, direcionamento ou captura) de fluxos (o que
corresponde à eliminação de conexões ou caminhos), separação (ou
desatalhamento) de clusters ou exclusão (desconectação) de nodos. Isso
só pode ser feito em função da centralização da rede.
A questão da chamada "alienação do poder" foi um problema maior para
a democracia dos modernos do que para a democracia dos antigos. Como
85
a fórmula dos modernos baseou-se no indivíduo, ao não exercer
diretamente seu "poder" o indivíduo alienava esse "poder" a terceiros: os
representantes. Para os antigos, o problema era menor porque a fonte
originária do governo confundia-se de certo modo com o próprio governo:
era a assembleia formada pela participação das pessoas livres. O lugar do
governo propriamente dito era a assembleia (de todos) e não um colégio
de (alguns) representantes ou uma instância formada por delegação pelo
representante eleito (no caso da eleição direta de chefes executivos de
governo ou de Estado). Em certa medida, como vimos, na primeira
democracia havia também delegação (ou alguma forma de
representação); por exemplo, para a formação da Boulé (o conselho que
pautava a assembleia), ou para a designação dos prítanes (os
administradores ou executivos, ainda que os presidentes das Pritanias
fossem escolhidos por sorteio e apenas formalmente nomeados pelo
Epistata).
Em redes distribuídas (mais distribuídas do que centralizadas) as pessoas
em geral assumem funções sem necessidade de delegação ou
representação. A questão é que nem todo processo direto é participativo.
Por exemplo, se um ator assume determinada função com o assentimento
(ou o não questionamento) dos demais membros da comunidade política,
isso também é um processo direto. Na assumpção as pessoas se oferecem
voluntariamente para desempenhar determinadas funções contando com
o assentimento dos demais sem a necessidade de uma designação
expressa (enquanto não houver questionamento). Não se poderia
qualificar a assumpção como um processo indireto (de vez que a pessoa
86
assume diretamente a função que pretende e, portanto, não delega nada
a ninguém), a menos se considerássemos que os que não assumem a
função, ao assentirem que ela seja exercida por outrem, estariam
conferindo uma espécie de delegação implícita ou representação passiva;
mas este é um sentido fraco dos conceitos de delegação e representação.
Em geral a assumpção reflete um processo emergente da rede, ainda
quando apareça como desejo de um indivíduo de assumir uma função. Tal
se dá, por exemplo, com o novo papel social - próprio de redes
distribuídas - do "guardião do kernel" (quando alguém assume a função de
zelar pela integridade do coração de um sistema operacional, sem
indicação de ninguém). Mas existem outros processos emergentes de
indicação informal de alguém para desempenhar determinado papel. Um
caso bem conhecido é quando o nome de uma pessoa surge como
candidato "natural" para realizar alguma atividade e há prontamente a
concordância de todos, sem a necessidade de administrar a construção do
consenso. Processos emergentes em redes mais distribuídas do que
centralizadas são mais interativos do que participativos.
Por outro lado, não há - do ponto de vista do sentido forte da democracia
(como desconstituição de autocracia) - nada de errado com processos
indiretos eventuais. A questão é saber se o kernel do modo de regulação
será predominantemente baseado em (ou constituído por) procedimentos
indiretos (como fizeram os modernos). Não há, nem mesmo, nenhum
problema com a representação (desde que ela não predomine no
conjunto de procedimentos; ou, é claro, não se torne o único
procedimento válido).
87
Em uma democracia interativa mais direta, nada impede que se
combinem procedimentos diretos e procedimentos indiretos, não sendo
necessário que o sujeito (o emaranhado que compõe a comunidade
política configurada pela interação, não o indivíduo) que delega (ou se faz
representar) seja conformado previamente com base em critérios extra-
políticos (como, por exemplo, as bases territoriais ou setoriais fixas). A
base é sempre a comunidade política que interage, não importa se
radicada em um mesmo território ou demarcada a partir das atividades
semelhantes de seus membros. Pessoas que habitam um mesmo território
não constituem necessariamente comunidades políticas. Moradores de
uma localidade e trabalhadores de um mesmo ramo ou categoria
profissional são redes tão abstratas quanto o conjunto de pensionistas da
previdência social. Este é um dos principais problemas da democracia dos
modernos: o Estado-nação é uma rede abstrata que, como tal, não pode
conformar uma comunidade política concreta. Redes sociais concretas
acontecem quando (ou enquanto) as pessoas interagem. O que faz a rede
é a interação e não o pertencimento a alguma classe (no sentido
matemático do termo, equivalente, no caso, ao de coleção) definida antes
ou independentemente da interação.
Uma democracia interativa privilegiará procedimentos diretos em relação
aos indiretos simplesmente porque a interação é direta. Uma democracia
mais interativa do que delegativa ou representativa, portanto, diminuirá o
peso dos processos de designação (nomeação) e de representação
(eleição). O que não significa que não possa haver também algum
processo indireto.
88
Para uma terceira invenção da democracia, o que realmente importa é
que, além de transitórias, todas as funções sejam revogáveis a qualquer
momento pela comunidade política, tanto as funções assumidas em
processos emergentes (ainda que apareçam como ato de vontade de
sujeitos individuais), quanto as funções delegadas por designação
(nomeação) ou constituídas por representação (eleição). E que isso não
seja feito, predominantemente, por processos que gerem artificialmente
escassez, como veremos no próximo capítulo.
89
CAPÍTULO 5
DEMOCRACIA COM LÓGICA DA ABUNDÂNCIA
Que ela se guiará mais pela lógica da abundância do que pela lógica da
escassez (ou seja, utilizará cada vez menos modos de regulação de
conflitos que introduzam artificialmente escassez: como a votação, a
construção administrada de consenso, o rodízio e o sorteio).
Redes (mais distribuídas do que centralizadas) podem ser definidas como
múltiplos caminhos. Em geral ambientes sociais são caracterizados por
abundância de caminhos (e, consequentemente, de opções) a menos
quando há obstrução ou eliminação de caminhos (conexões) introduzidas
de modo artificial. De modo artificial, sim, porque a obstrução (ou a
eliminação) não emerge da dinâmica própria da rede (distribuída): ela é
operada top down por alguma hierarquia que deforma (verticaliza) o
campo social. Essa é, aliás, a forma pela qual a hierarquia se reproduz,
transformando tudo que toca em ambiente hierárquico ou centralizando a
rede. Se não produzimos artificialmente escassez quando nos pomos a
regular qualquer conflito, "produzimos" rede (distribuída); do contrário,
"produzimos" hierarquia (centralização).
Todo processo delegativo ou participativo gera artificialmente escassez. A
designação (nomeação), assim como a votação, a construção administrada
de consenso, o rodízio e até mesmo o sorteio, não são procedimentos
adequados a ambientes onde há abundância de caminhos. Ou melhor,
90
quando aplicados, tais procedimentos reduzem o número de caminhos e
são, portanto, geradores de escassez.
Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se
estabelece pode ser pluriárquica. Maiorias que não aderem a uma
proposta não poderão evitar a sua realização (ao contrário do que prevê a
forma de verificação da formação da vontade política coletiva por meio de
processos aritméticos de contagem de votos, que obriga a coletividade a
escolher entre uma coisa e outra, entre uma proposta e outra, entre um
representante e outro, entre um delegado e outro).
Na pluriarquia (que é apenas um nome para a democracia democratizada
em redes distribuídas), o que está em jogo é a funcionalidade do
organismo coletivo e não o poder de mandar nos outros (a capacidade de
exigir obediência ou de comandar e controlar os semelhantes) a partir da
regulação majoritária da inimizade política. Assim, se uma pessoa propõe
alguma coisa, aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. Os
que não concordarem não devem aderir e podem sempre propor outra
coisa; os que concordarem com a nova proposta aderirão a ela e assim por
diante.
Tanto os antigos quanto os modernos democratas adotaram modos de
regulação de conflitos geradores de escassez. Mas os que questionam a
democracia representativa porque querem que ela seja mais participativa,
podem introduzir ainda mais escassez do que os adeptos do liberalismo
político.
91
O participacionismo dos contemporâneos é tão vulnerável à manipulação
quanto o representacionismo dos modernos e o assembleísmo dos
antigos. Quando tudo termina no voto, é tão fácil manipular assembléias
quanto manipular eleições para obter decisões favoráveis a uma instância
centralizada (e não há como evitar o empobrecimento político pela
redução da abundância de caminhos e opções). O que há de comum a
todos esses procedimentos é a regulação majoritária da inimizade política.
Ou seja, a votação para tomada de decisões e a capacidade de maiorias
verificadas aritmeticamente de impedir a realização de propostas
minoritárias (ou invalidá-las) - o que é um absurdo.
Na participação em assembléia, por certo, pode haver mais discussão ou
debate, mas nem todo debate é democratizante, nem sempre ele é capaz
de facilitar a consumação do commons ou a constituição de um sentido
público. Quando o debate vira uma guerra entre lados, tendências ou
facções, por exemplo, dificilmente o seu resultado contemplará a
diversidade dos desejos, dos projetos, das ênfases dos atores políticos
arrebanhados (na assembleia). Além disso, o debate, em geral, não é
criativo: convoca das pessoas o passado, não o futuro. Então aparece
sempre alguém levantando a mão (como já acontecia na Ecclesia) para
dizer que concorda ou discorda de alguma opinião proferida por outro
(com base em suas convicções pretéritas), mas não para polinizar a ideia
do outro ensejando a construção de novas propostas.
Todavia, nem mesmo os demais procedimentos introduzidos já pelos
antigos (como o rodízio e o sorteio) ou acrescentados pelos
contemporâneos (como a construção administrada de consenso)
92
conseguiram evitar a produção artificial de escassez. O centro da questão
é que, em todos eles, obriga-se sempre alguns (via de regra, as minorias) a
aceitar o resultado de um processo cujas regras já foram determinadas
antes da interação (e são melhor usadas por alguns, a seu favor).
Ademais, em alguns desses procedimentos - como a busca do consenso -
exige-se a condução centralizada: há sempre uma oligarquia que
administra a construção do consenso, impondo a todos uma metodologia,
um conjunto de passos obrigatórios para se alcançar determinado
resultado esperado. E o consenso administrado - a não ser quando haja
espontânea unanimidade (o que dispensa administração) - é sempre um
consenso majoritário (quem não concorda com o consenso produzido
deve acatar o resultado obtido pela... maioria!). Ao fim e ao cabo, mesmo
quando todos pareçam dedicados à construção do consenso, o ethos é
competitivo. Compete-se, quando menos, pela maior habilidade de extrair
o consenso, pela capacidade de melhor expressar os desejos da maioria,
pelo domínio de uma técnica mais aperfeiçoada de prorrogar determinada
liderança (como ocorreu com Péricles, como ocorreu com Lula). Grande
parte das pessoas ainda pensa que a isso se reduz o fazer político
(politics).
Os modernos resolveram achar que a competição - em si - é uma boa
coisa: em parte com razão, pois em autocracias não há competição,
prevalecendo a vontade do soberano (ou da oligarquia) e a democracia é
mesmo um movimento de desconstituição de autocracia; mas em parte
não, pois os modernos se deixaram seduzir pela competição do mercado
como modo de autorregulação de um sistema complexo, operando um
93
deslizamento indevido de procedimentos adotados em âmbitos de
diferente natureza e confundindo racionalidades distintas. Como os
liberais não acreditavam que pudesse existir qualquer coisa como uma
sociedade (a rede social) - a qual seria, para eles, no máximo, um
epifenômeno - e sim apenas conjuntos de indivíduos, então, pensaram:
por que não aplicar também à política um modo de regulação que
funciona tão bem quando se trata de coordenar (sem autoritarismo) o
entrechoque de uma multiplicidade de interesses de agentes (ofertantes e
demandantes) privados de produtos e serviços?
É claro que não é a mesma coisa. O funcionamento do mercado a partir da
interação de agentes privados (e existe de fato autorregulação mercantil,
a ponto de causar terrível incômodo nos estatistas) não pretende
constituir um sentido público, nem quer estabelecer resultados gerais
para os que entram (ou não entram) no jogo. Uma sociedade não é uma
economia (e, como já se disse, é a economia que tem que ser de mercado,
não a sociedade).
O rodízio (para a ocupação de cargos ou para delegação de
representações) e o sorteio (para os mesmos fins ou para tomada de
decisões sobre a implementação de qualquer proposta) são melhores do
que a votação e o consenso pois não admitem manipulação (a não ser em
caso de fraude) ou condução por uma instância centralizada (ou
oligarquia). De todos os procedimentos introduzidos pelos antigos e pelos
modernos, o sorteio é o que melhor respeita a natureza da comunidade
política democrática (isológica, isegórica e isonômica). Se o player
(molecular) é a própria comunidade política, então é irrelevante (e, a
94
rigor, antidemocrático) decidir quem é o melhor: todos os membros da
comunidade política têm, em princípio, o mesmo valor; ou - como iguais
que são, como seres igualmente capazes de conceber e proferir uma
opinião (doxa) e não de deter ou saber aplicar um conhecimento
específico (techné ou episteme) - devem ser (todos) igualmente
valorizados (em princípio) para qualquer função coletiva.
De qualquer modo, ambos (rodízio e sorteio) introduzem escassez onde
não seria necessário. Quando se remove um sujeito político de
determinado lugar ou função para obedecer a regra do rodízio obrigatório
ou quando se pretere alguém que queria ocupar um lugar ou
desempenhar uma função porque não foi sorteado, estamos reduzindo a
abundância. Mais atores no jogo significa mais possibilidades de realização
de novas realidades políticas.
Em todo caso, o procedimento padrão na democracia realmente existente
é o votação: a imposição da vontade da maioria às minorias (a tal ponto
que a democracia acabou sendo definida como o regime da maioria
quando deveria ser o regime das múltiplas minorias). E a votação
estabelece como estado natural a concorrência quando a competição pelo
voto (e pela formação da maioria) acaba se tornando o centro do fazer
político (inclusive nos modelos de democracia participativa propostos
pelos novos teóricos contemporâneos da autocracia, tudo sempre começa
e acaba em alguma votação para escolha de direções ou delegações
(sendo que os eleitos são, a despeito de qualquer justificativa,
representantes - o que, curiosamente, é um processo indireto e não mais-
direto como proclamam).
95
Em vez de regular majoritariamente a inimizade política, procedimentos
democratizantes deveriam ensejar a conversão de inimizade em amizade
política. Isso não pode ser feito pela disputa baseada na força, nem pela
disputa oratória, nem pela disputa pelo voto (que são formas de guerra:
quente, fria ou de política praticada como continuação da guerra por
outros meios) e sim na conversação amistosa (e toda conversação só se
realiza a partir de uma emoção amistosa e pressupõe cooperação). De
qualquer modo, somente a livre interação pode constituir (por
emergência) um sentido comum à todos os envolvidos, como veremos nos
próximos capítulos.
96
CAPÍTULO 6
DEMOCRACIA DE MULTIDÕES E COMUNIDADES
Que seus atores serão mais pessoas interagindo em multidões consteladas
e em comunidades configuradas para a convivência do que indivíduos
figurando em massas arrebanhadas ou sendo chamados periodicamente a
influir na vida política como eleitores solitários.
Nos sistemas representativos dos modernos os atores (informais)
coletivos da democracia eram as massas arrebanhadas em comícios e
concentrações pré-eleitorais. Depois que esses coletivos se desfaziam,
entrava então em cena o ator (formal) individual - o eleitor solitário - com
a cabeça feita pelo magnetismo dos líderes que do alto dos seus
palanques mesmerizavam as massas (além, é claro, pelos contatos
pessoais dos cabos eleitorais locais ou setoriais e pela propaganda política
massiva e intrusiva via broadcasting). Era massa e indivíduo.
É claro que havia a mediação das instituições hierárquicas, como as
instâncias do Estado e os partidos (organizações privadas, formadas na
sociedade mas com padrões organizativos decalcados do Estado e
finalidades proto-estatais). Neste texto, porém, pelas razões que já foram
expostas na Apresentação, na Introdução e no Capítulo 1, estamos
considerando apenas aquelas conformações sociais compatíveis com a
democracia (no seu sentido "forte" de desconstituição de autocracia) -
seja na antiga Grécia, seja na Europa moderna, seja no mundo
97
contemporâneo - e não as remanescências ou revivescências autocráticas
que interpõem obstáculos ao processo de democratização. Neste sentido
social, stricto sensu, atores coletivos cuja topologia é mais centralizada do
que distribuída (como as instituições hierárquicas) não são, a rigor, atores
democráticos (porque a dinâmica ou o "metabolismo" compatíveis com
sua estrutura ou "corpo" não são democratizantes). Este é um
pressuposto conceitual sem o qual tornar-se-ia inútil a presente
abordagem.
Sim, havia atores coletivos hierárquicos mas, no que concerne aos atores
em rede (mais distribuída do que centralizada), não contava para quase
nada a convivência política das pessoas em suas diversas comunidades de
vizinhança, de prática, de aprendizagem, de projeto. E também não
contava para quase nada - inclusive porque não eram percebidos - os
fenômenos que se manifestavam espontaneamente quando essas pessoas
interagiam em multidões que se constelavam por emergência.
Todavia, nos grandes swarmings deste século percebemos a diferença
entre multidões (consteladas) e massas (arrebanhadas). O indivíduo que
comparece a um comício convocado pelo seu candidato ou pelo seu
partido não está na mesma condição daquela pessoa que resolve ser, ela
mesma, a sua própria manifestação numa multidão sem palanque, sem
líder e sem coordenação centralizada. A multidão, embora possa juntar
muita gente, não é um rebanho: podem ser milhões de pessoas, porém
não acarreadas e sim convergidas uma-a-uma, cada qual caminhando no
seu próprio passo e com seus próprios pés. Como disse James Hillman
(1993) - no insight talvez de todos o mais luminoso, como jamais surgiu na
98
história da chamada ciência política - cada pessoa acha a si mesma "ao
entrar na multidão — o que é o significado básico da palavra polis: fluxo e
muitos" (21).
As maiores multidões já reunidas em toda a história humana constelaram-
se no dia 30 de junho de 2013 no Egito. É claro que havia um objetivo
geral (conter a marcha fundamentalista para uma insensata subordinação
do país à Sharia, sob o comando da Irmandade Muçulmana), mas os
motivos pelos quais as pessoas não queriam a continuidade do governo de
Morsi eram muito diversos. Foram milhares de micromotivos diferentes
que, de repente, se combinaram e não um único motivo diretor que se
difundiu a partir de um centro. Assim ocorreu com todos os grandes
swarmings do terceiro milênio.
Também estamos percebendo nos últimos anos a proliferação de
comunidades de muitos tipos. Na democracia dos modernos só se levava
em conta a "comunidade" desenhada pela geografia política (a região
eleitoral), baseada, ao fim e ao cabo, na velha comunidade territorial de
herança. Também era assim na democracia dos atenienses, mas porque a
primeira democracia era um projeto local mesmo e, naquele caso, a
comunidade política - a polis - confundia-se com o território (conquanto a
polis não fosse Atenas e sim os atenienses).
No dealbar de uma sociedade em rede, entretanto, surgem múltiplas
comunidades (de aprendizagem, de prática, de projeto etc.) que não têm
necessariamente uma base territorial previamente delimitada. O local
99
passa a ser o cluster, produto de uma fenomenologia da interação
(clustering): tudo que interage clusteriza. E agora?
Ah! Agora se constata que democracia dos modernos não tem
mecanismos para incorporar os novos atores políticos compostos por
pessoas interagindo em multidões ou convivendo em comunidades. Os
participantes e organizadores de comícios (e de outros atos pró ou proto-
eleitorais assemelhados) assim como os integrantes de qualquer audiência
(expectadores de palestras, leitores de folhetos e panfletos, ouvintes e
telespectadores de propaganda eleitoral em rádio e televisão) eram pré-
atores: os candidatos e os eleitores propriamente ditos eram os atores
válidos. E nem podiam ser mesmo válidos esses outros participantes ou
interferentes, de vez que tais eventos, ocorridos em torno do fugaz e
assistêmico processo eleitoral, não constituíam qualquer tipo de ator
coletivo com organicidade suficiente para ser um player do jogo dentro
das regras adotadas (que exigiam alguma estabilidade ou duração do
sujeito, identidade inequívoca para evitar fraudes et coetera).
Na democracia dos antigos o problema estava resolvido pela presença
física das pessoas em um local e tempo determinados, ainda que o ator
propriamente dito fosse coletivo (a Ecclesia) e não individual, de vez que o
processo participativo - abrindo um campo para a argumentação
discursiva - fazia parte organicamente do resultado, que não se resumia à
contagem de votos, à liturgia formal dos rodízios ou à loteria dos sorteios.
Numa terceira invenção da democracia, entretanto, deverão ser
incorporados os novos atores compostos por pessoas interagindo em
100
multidões consteladas e em comunidades configuradas para a
convivência. E esses atores deverão ser incorporados simplesmente
porque passaram a existir como tais, com organicidade suficiente para
tanto, conferida pelos altos níveis de interatividade alcançados por suas
performances. Não se trata de especular como seria. Eles já existem, só
não são levados em conta.
Mas como não levar em conta as vontades expressas pelas multidões? É
necessário notar que isso nada tem a ver com reivindicações de massas
arrebanhadas ou arregimentadas para defender uma pauta de propostas e
nem com a chamada democracia plebiscitária e sim com a combinação
emergente ou a composição fractal - e não unitária, verificada por
qualquer mecanismo de referendo ou plebiscito - de miríades de desejos.
E como não levar em conta os resultados das cocriações de uma variedade
de comunidades configuradas para a convivência? Desprezada essa parte -
da democracia criativa, prenunciada por John Dewey (1939), já no ocaso
da vida, como a principal "tarefa diante de nós" (22) - não poderá ter
continuidade o processo de democratização nas condições de uma
sociedade em rede: a democracia na base da sociedade e no cotidiano dos
cidadãos, a democracia como expressão da vida comunitária. Para quem
quer democratizar a democracia, eis o ponto.
Poderá uma nova democracia (uma democracia mais democratizada) não
ser mais responsiva às manifestações das multidões e aos projetos
comunitários?
101
Parece que não, assim como também parece óbvio que isso exigirá novas
regras e, mais do que isso, novos procedimentos de verificação das
vontades políticas coletivas (no plural).
É inútil tentar estabelecer de antemão qualquer conjunto de regras e
procedimentos capazes de dar conta desse enorme desafio de captação -
de modo mais criativo (como queria Dewey) - de vontades políticas
coletivas. A terceira democracia não é um modelo para colocar no lugar da
segunda. É apenas - não custa repetir - a continuidade do processo de
democratização nas condições da sociedade em rede. Os novos desenhos
(no plural) de democracia surgirão a partir da cocriatividade dos seus
reinventores. Em rede.
De qualquer modo, uma democracia mais criativa será, necessariamente,
uma democracia mais cooperativa, como veremos no próximo capítulo.
102
CAPÍTULO 7
DEMOCRACIA COOPERATIVA
Que a formação democrática da vontade política terá mais como fonte
originária a cooperação voluntária, com a convergência comunal de
desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto,
do que a liberdade individual de opinar protegida da interferência do
Estado (segundo a visão liberal) ou do que o reino público constituído pela
argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político e
do procedimentalismo democrático).
A segunda democracia (reinventada pelos modernos) só pode ser
chamada de democracia porque se constituiu para desconstituir
autocracia. Surgida a forma Estado-nação (como qualquer outra forma de
Estado: uma formidável estrutura desenhada para a guerra, um tronco
gerador de programas verticalizadores da rede social, com terrível
capacidade coercitiva e cujo poder não podia ser contrabalançado por
nenhum outro tipo de organização) era preciso proteger as pessoas desse
monstro (o "seu" Leviatã). A visão liberal que visava proteger um conjunto
básico de direitos dos cidadãos - em especial a sua liberdade de opinar -
da interferência desse Estado foi o modo pelo qual o processo de
democratização pode ter continuidade nas condições da modernidade.
O liberalismo político não deve ser desvalorizado porque, uma vez
existindo o Estado-nação, a democracia liberal torna-se condição
103
necessária (e indispensável) para a continuidade do processo de
democratização e, inclusive, para qualquer reinvenção da democracia;
embora ela mesma - eis um quase-paradoxo - seja incapaz de levar a isso
(quer dizer, continuamente à mais-democracia nos seus próprios marcos
ou à uma outra-democracia mais-democratizada) e, a partir de certo
momento - como o que já vivemos agora - torne-se um obstáculo à
democratização.
De qualquer modo, a liberdade de opinar protegida (modus in rebus) do
poder estatal que foi instituída - e depois constituída - como fonte
originária da formação da vontade política na democracia dos modernos,
representou toda democracia possível nas condições em que surgiu.
Logo se viu, porém, que tal fundamento não era suficiente no que tange
às condições para a formação da vontade política coletiva, dado o
mecanismo de verificação que foi acoplado pelo sistema representativo.
Se se tratasse apenas de recolher e totalizar opiniões individuais o
processo político poderia ser substituído por uma pesquisa de opinião (ou
por qualquer consulta censitária). E não se constituiria a esfera pública
sem a qual, como se sabe, não pode haver democracia.
Teóricos como Hannah Arendt e Jurgen Habermas evidenciaram que esse
reino público só poderia ser constituído pela argumentação discursiva,
evocando talvez o velho processo da Ecclesia ateniense. Lá havia de fato
um campo da argumentação discursiva (conquanto de baixa intensidade
porque a interação foi limitada pelo participacionismo assembleísta). Na
democracia representativa, porém, a república propriamente dita (em
104
termos políticos) ou os processos intersubjetivos envolvidos ou refratados
pelos procedimentos políticos (presididos por uma razão comunicativa)
garantiriam que a formação da vontade política coletiva se desse sob um
modo de regulação que fosse mais ex parte populis (tudo que não é
Estado) do que ex parte principis (tudo que é Estado).
Havia porém um outro problema que não poderia ser resolvido pelo tal
reino público constituído pela argumentação discursiva, quer na visão do
republicanismo político de Arendt, quer na visão do procedimentalismo
democrático de Habermas: será realmente possível constituir um reino
público a partir da competição entre organizações privadas?
Para responder essa questão é preciso, antes de qualquer coisa,
reconhecer que as formas de democracia liberal, que tentam materializar
a democracia no sentido “fraco” do conceito (como modo político de
administração do Estado ou regime de governo), não estimulam a
cooperatividade e sim a competitividade. Talvez se encontre aqui uma
razão para explicar por que a democracia (representativa) foi
frequentemente associada ao capitalismo ou, pelo menos, a uma visão
mercadocêntrica do mundo.
No sistema representativo moderno, constituído com base na competição
entre partidos, imagina-se que a esfera pública possa ser regulada pela
competição entre organizações privadas (como os partidos). É difícil
engolir todos os pressupostos dessa convicção, que vêm juntos no pacote.
Quando explicitados, tais pressupostos revelam certa confusão entre tipos
diferentes de agenciamento.
105
É possível conceber formas de autorregulação econômica a partir da
concorrência entre empresas ou, mais genericamente, entre agentes
econômicos, porquanto a racionalidade do mercado é constituída com
base na competição entre entes privados e não há aqui nenhuma
pretensão de gerar um sentido público. Também é possível admitir que a
diversidade das iniciativas da sociedade civil acabe gerando uma ordem
bottom up. A partir de certo grau de complexidade, a pulverização de
iniciativas privadas acabará gerando um tipo de regulação emergente.
Quando milhares de micromotivos diferentes entram em interação, pode
se constituir um sentido coletivo comum que não está mais vinculado aos
motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua
constituição. No entanto, isso não é possível quando o número de agentes
privados é muito pequeno e, menos ainda, quando eles detêm em suas
mãos – como ocorre no caso dos partidos – o monopólio legal das vias de
acesso à esfera pública (no caso, confundida com o Estado). Nestas
circunstâncias, não há como concluir – em sã consciência – que a
competição entre uma dúzia de organizações privadas possa ter o condão
de gerar um sentido público.
Estabelece-se então, na democracia dos modernos, um dilema que
poderia ser descrito assim:
Não podemos ajudar um governo dirigido por um partido adversário
a melhorar seu desempenho porque se assim fizermos
diminuiremos nossas chances de conquistar o governo para o nosso
partido. Logo (mesmo declarando publicamente o contrário), temos
106
que torcer e até contribuir para piorar o desempenho do governo
dirigido pelo partido adversário. Porque quanto pior for o
desempenho desse governo “dos outros”, maiores serão as chances
de substituí-lo por um governo “nosso”. Ocorre que um governo,
seja ele qual for, é uma instituição pública e seus problemas,
portanto, dizem respeito a todos nós. Como um bem comum da
nação, o governo, de certo modo, nos pertence. Se o seu
desempenho for ruim, as consequências serão ruins para todos.
Contribuir para o seu fracasso significa, em alguma medida,
prejudicar o país. Por outro lado, contribuir para o seu sucesso pode
significar mantê-lo no poder e, ao fazermos isso, estaremos
trabalhando, portanto, objetivamente, para o insucesso do nosso
partido.
Para sair desse dilema seria preciso desconstituir a lógica competitiva
entre os partidos – ou, pelo menos, não conferir a essa lógica um papel
tão central e exclusivo na regulação da política institucional – ou seja,
seria preciso desconstruir o sistema de partidos tal como se conforma na
atualidade (inclusive desfazendo a confusão entre democracia e
partidocracia). Ao que tudo indica essa proposta, se quiséssemos
incorporá-la em um programa de reforma da democracia representativa,
para usar uma expressão de Bobbio, ainda estaria “na categoria dos
futuríveis” (23).
Uma alternativa seria aumentar a participação política dos cidadãos,
incluindo novos atores no sistema político em uma quantidade tal que os
liames entre seus motivos privados originais e o resultado final da
107
interação de todos os motivos acabassem se perdendo ou não podendo
mais se constituir. De um modo ou de outro, isso vai acabar acontecendo
na medida em que a sociedade adquire a morfologia e a dinâmica de rede
cada vez mais distribuída. Mas, quando acontecer, será sinal de que nosso
sistema representativo, tal como existe hoje, também já terá sido
aposentado por obsolescência e o será pela dinâmica social e não em
virtude de uma reforma política feita pelos próprios interessados (que não
a farão, com a profundidade desejada, pois sabem exatamente o que está
em jogo e o que têm a perder). Ainda estamos aqui na categoria dos
futuríveis, mas de um futuro que está chegando bem depressa. E que,
quando chegar, será surpreendente (e até certo ponto decepcionante)
para seus promotores, uma vez que a participação estimulada a tal grau
não é mais participação e sim interação (já que o público propriamente
dito só pode ser constituído a partir da emergência e não como plano ou
desiderato de qualquer grupo participativo).
O fato, muitas vezes pouco percebido, é que o sistema concorrencial de
partidos não é essencial para a democracia, nem mesmo no seu pleno
sentido “fraco”. No entanto, como as coisas funcionam assim na
totalidade das democracias realmente existentes, tem-se a impressão de
que tal mecanismo é, de alguma forma, necessário para realizar a
democracia como sistema de governo nos países contemporâneos.
Todavia, quanto mais competitiva for a democracia, menos democratizada
(ou mais autocratizada) ela estará (inclusive na base da sociedade e no
cotidiano do cidadão). Mais uma vez (é quase impossível não repetir):
quem tem de ser competitivo é o mercado (e a economia é que deve ser
108
de mercado), não a sociedade. Mercados competitivos, ao que tudo
indica, exigem como base uma sociedade cooperativa (por razões
econômicas mesmo, como a diminuição das incertezas no tocante aos
investimentos produtivos de longo prazo, com a redução dos custos de
transação e, inclusive, da insegurança jurídica).
Associado à visão mercadocêntrica de uma sociedade competitiva parece
estar um novo tipo de fundamentalismo de mercado, que pode até ser
democratizante em relação ao estadocentrismo que, em geral,
acompanha as autocracias, mas, se for, manifesta-se apenas no tocante à
democracia como sistema de governo e não à democracia na sociedade. É
claro que é melhor ter vários partidos – legal e legitimamente –
disputando o poder de Estado do que apenas um partido (em geral
confundido com o Estado) autorizado a empalmá-lo (em uma espécie de
regime de monopólio político). No entanto, vários partidos também
podem constituir um oligopólio político, como, aliás, ocorre
frequentemente, expropriando a cidadania política, sendo que, nesse
caso, não há nenhuma instância “acima” capaz de regular a competição
(de vez que o Estado, nessas circunstâncias, já teria sido ocupado e
dividido ou loteado pelo oligopólio partidário).
Por outro lado, o Estado autocrático também não pratica uma democracia
cooperativa, mas se organiza, de certo modo, contra a sociedade para
controlá-la. O seu padrão de relação com a sociedade é competitivo
(mesmo na ausência de concorrentes políticos autorizados) e adversarial.
É um Estado que compete com a sociedade pela regulação das atividades
e que, assim, não permite, sequer, a autonomia associativa.
109
Tal como ainda se estrutura e funciona, o Estado, autocrático ou
declaradamente democrático, não é capaz de assumir uma democracia
cooperativa. A razão básica é que uma democracia cooperativa não pode
mesmo funcionar em estruturas piramidais, verdadeiros mainframes,
como são o Estado, suas instituições hierárquicas e seus procedimentos
verticais, baseados no fluxo comando-execução. Do ponto de vista da
democracia no sentido “forte” do conceito, a diferença está em que um
Estado democrático de direito permite ou enseja o processo de
democratização da sociedade, enquanto que o Estado autocrático não.
Essa é a razão pela qual a democracia no sentido “forte” do conceito, a
democracia radicalizada (no sentido de mais democratizada) na base da
sociedade e no cotidiano do cidadão, depende da democracia no sentido
“fraco” do conceito, da democracia como sistema de governo ou modo
político de administração do Estado.
Uma democracia cooperativa (que é sempre uma democracia radicalizada)
exige um padrão de organização em rede. E poderá ser tão mais
cooperativa quanto maior for a interatividade, quer dizer, quanto maior
for a conectividade dessa rede e quanto mais ela apresentar uma
topologia distribuída (ou quanto menos centralizada ela for).
Isso significa que a democracia em seu sentido “forte” não é um projeto
destinado ao Estado-nação, às suas formas de administração política (tal
como até hoje as conhecemos), e sim à sociedade mesmo, ou melhor, às
comunidades que se formam por livre pactuação entre iguais,
caracterizadas por múltiplas relações horizontais entre seus membros. E
que, portanto, não se pode pretender simplesmente substituir os
110
procedimentos e as regras dos sistemas políticos democráticos
representativos formais pelas inovações políticas inspiradas por
concepções democráticas radicais.
Por outro lado, a emergência de inovações políticas na base da sociedade
e no cotidiano dos cidadãos, inspiradas por concepções radicais de
democracia cooperativa, pode exercer uma influência no sistema político,
de fora para dentro e de baixo para cima, capaz de mudar a estrutura e o
funcionamento dos regimes democráticos formais. Ou seja, por essa via, a
democracia no sentido “forte” acaba democratizando a democracia no
sentido “fraco”, mas não exatamente para tomar seu lugar e sim para
democratizar cada vez mais a política que se pratica no âmbito do Estado
e das suas relações com a sociedade. Parece claro que isso implica uma
nova reinvenção da democracia (e não apenas uma reforma da
democracia atual). Não podemos saber – e seria inútil tentar adivinhar
agora – como serão os novos regimes políticos mais democratizados aos
quais caberá administrar as novas formas de Estado que surgirão no
futuro (quem sabe o “Estado-rede”, como Castells propôs em 1999) (24).
Mas já podemos saber o que fazer, a partir da sociedade, para
democratizar mais tais regimes, sejam eles quais forem ou vierem a ser.
O caminho é mais democracia na sociedade, mais interação cooperativa
dos cidadãos, o que, obviamente, só é viável na dimensão local (entendido
o local como cluster) e sob regimes políticos que não proíbam nem
restrinjam seriamente tal experimentação inovadora: daí a necessidade da
democracia liberal.
111
É bom ver o que os pioneiros da democracia cooperativa, como John
Dewey, pensavam sobre isso. Comecemos resgatando a sua percepção de
que toda democracia é local, no sentido de que a democracia é um
projeto comunitário; ou, como ele próprio escreveu, de que “a
democracia há de começar em casa, e sua casa é a comunidade vicinal”
(25).
A formação democrática da vontade política não pode se dar apenas por
meio da afirmação da liberdade do indivíduo perante o Estado, mas
envolve um processo social. A atividade política dos cidadãos não pode se
restringir ao controle regular sobre o aparato estatal (com o fito de
assegurar que o Estado garanta as liberdades individuais).
A liberdade do indivíduo depende de relações comunicativas (cada
cidadão só pode atingir autonomia pessoal em associação com outros),
mas o indivíduo só atinge liberdade quando atua comunitariamente para
resolver um problema coletivo, o que exige – necessariamente –
cooperação voluntária. Há, portanto, uma conexão interna entre
liberdade, democracia e cooperação. Isso evoca outro conceito
(deweyano) de esfera pública, como instância em que a sociedade tenta,
experimentalmente, explorar, processar e resolver seus problemas de
coordenação da ação social. Assim, é somente a experiência de interagir
voluntária e cooperativamente em grupos para resolver problemas e
aproveitar oportunidades, que pode apontar para o indivíduo a
necessidade de um espaço público democrático. A pessoa como
interagente ativo em empreendimentos comunitários – tendo ou não
112
consciência da responsabilidade compartilhada e da cooperação – é o
agente político democrático (no sentido “forte” do conceito).
A concepção de esfera pública democrática como meio pelo qual a
sociedade tenta processar e resolver seus problemas (como Dewey já
havia proposto no final da década de 1920) permite a descoberta de uma
conexão intrínseca entre democracia e cooperação.
Dewey elabora uma idéia normativa de democracia como um ideal social.
Se quisermos inferir consequências dessa concepção, devemos explorar a
conexão entre esse seu conceito de democrático-social e o papel
regulador da rede social.
Rede social (distribuída) é um meio pelo qual (ou no qual) a cooperação
pode se ampliar socialmente (inclusive, em certas circunstâncias especiais,
convertendo competição em cooperação). A democracia que casa com a
idéia de rede social é a democracia cooperativa ou comunitária. Logo, a
democracia pode então ser vista como uma espécie de “metabolismo”
próprio de redes sociais (e será uma democracia democratizada na razão
direta do grau de distribuição dessas redes). Pelo que se pode inferir das
tendências atuais, essa é a democracia radical – desejável e possível – e
não o retorno às concepções assembleístas, sovietistas, conselhistas,
praticadas como “arte da guerra”, segundo as quais caberia a um
destacamento organizado, um partido de intervenção, “acarrear” gente
para vencer os inimigos de classe e para “acumular forças” em prol da
tomada (legal ou ilegal) do poder e instaurar o paraíso na Terra depois de
ter conquistado hegemonia sobre (ou destruído) as elites supostamente
113
responsáveis por todo o mal que assola a humanidade. É à isso -
infelizmente - que tem nos levado as reflexões dos chamados novos
teóricos da democracia que são, na verdade, novos teóricos da autocracia.
Deixando de lado, porém, esses teóricos contemporâneos da autocracia, a
terceira invenção da democracia, assim como não poderá se basear em
von Humbolt (para não ficar aprisionada na fórmula dos modernos),
também deverá se apoiar menos em Arendt ou Habermas e mais em
Dewey. Porque para Dewey uma prática democrática radicalizada –
tomando-se a democracia no sentido “forte” do conceito – deveria ser,
necessariamente, cooperativa (26).
Aqui se diz que uma terceira invenção da democracia caminhará
necessariamente para uma democracia mais cooperativa, na qual a
formação democrática da vontade política terá mais como fonte originária
a cooperação voluntária, com a convergência comunal de desejos pessoais
para contender com um problema ou realizar um projeto, do que a
liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado
(segundo a visão liberal) ou do que o reino público constituído pela
argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político e
do procedimentalismo democrático).
Cabe notar que o esforço de Dewey para buscar uma nova noção de
público desemboca no comunitário. Não importa o que se diga para tentar
reinterpretar as ideias deweyanas à luz de qualquer visão particular
hodierna centrada na legitimação ou na negação dos sistemas
representativos açambarcados pelo Estado. Acrescente-se que não se
114
trata daquele grande e talvez demasiadamente vago conceito de
comunidade dos alemães (com o qual, aliás, já trabalhava Althusius, desde
o dealbar do século 17) (27) – da grande comunidade – e sim da pequena
comunidade mesmo (em termos sociais e não necessariamente
geográfico-populacionais).
Sim, Dewey percebeu que toda democracia é local, no sentido de que a
democracia é um projeto comunitário (28). Ele não tinha, como é óbvio, as
palavras atuais para descrever o que pensava, mas farejou os conceitos –
como se ouvisse ecos do futuro – de rede comunitária e de rede social
distribuída, antevendo talvez os processos de disseminação viral que só
podem se efetivar pelos meios próprios de redes P2P (peer-to-peer). E
não poderia ter também, como é óbvio, a visão do glocal, como veremos
no próximo capítulo.
115
CAPÍTULO 8
DEMOCRACIAS GLOCAIS
Que ela terá diversas "fórmulas" glocais e não mais uma única fórmula
pretensamente global (ou internacional, como ocorreu com a segunda
democracia).
A democracia dos antigos foi um projeto local (no sentido de ter sido uma
realidade configurada por um comunidade local: a polis). Os outros locais
não estavam nem aí para a inusitada experiência dos atenienses (que foi
uma espécie de ilha num mar de cidades-Estado autocráticas). Dois mil
anos depois os modernos pretenderam chegar a uma fórmula global de
democracia, tendo conseguido, entretanto, apenas ensaiar algumas
experiências nacionais. Não conseguiram nem fazer valer a democracia no
plano internacional (que continuou sendo regido pelo realismo político e,
como se sabe, toda realpolitik é autocrática). Não podia mesmo haver - e
nunca haverá - uma única fórmula global de democracia (até porque o
global não existe a não ser como abstração para designar o que não é
local). Agora porém abre-se a possibilidade de reinventar a democracia
novamente em localidades (no plural) do mundo globalizado (ou melhor:
glocalizado). Nos novos mundos altamente conectados que estão
emergindo o local conectado é o mundo todo e pode passar então a se
chamar glocal. O glocal se constela quando a globalização do local
encontra a localização do global, como está ocorrendo.
116
Tal reinvenção dará origem a várias "fórmulas" de democracia. Tantas
quantas forem as experimentações. Chama-se reinvenção (no singular)
porque todas elas - as novas "fórmulas" de democracia - tendem a
apresentar certas características comuns: serão mais distribuídas, mais
interativas, mais diretas, com mandatos revogáveis (quando for o caso,
quer dizer, quando houver representação ou delegação - porque em
muitos casos não haverá), regidas mais pela lógica da abundância do que
da escassez, mais vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais
responsivas aos projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e
plurais (não admitindo apenas uma única fórmula internacional mas
múltiplas experimentações glocais). E chama-se ainda de democracia
porque todas elas poderão ser olhadas como fazendo parte de uma
mesma corrente ou movimento de desconstituição de autocracia (ou
então não serão democracias).
Assim, a terceira invenção da democracia é uma desinvenção da fórmula
(única) ou uma abertura para múltiplas experimentações. Por isso se diz
que ela terá diversas "fórmulas" glocais e não mais uma única fórmula
pretensamente global (ou internacional, como ocorreu com a segunda
democracia).
Isso significa que teremos zilhões de sociosferas democráticas, como
veremos no próximo capítulo.
117
CAPÍTULO 9
ZILHÕES DE SOCIOSFERAS DEMOCRÁTICAS
Que ela será realizada em miríades de sociosferas e não em apenas menos
de duas centenas das unidades político-territoriais centralizadas
(chamadas de países ou Estados-nações).
A democracia inventada pela segunda vez pelos modernos, conquanto
tivesse sua origem na desconstituição das monarquias absolutistas (a
autocracia européia do século 17), acabou virando um modo político de
administração da nascente estrutura do Estado-nação e de mitigação de
seu poder em defesa do cidadão (impedindo que esse poder avançasse
sobre ele de modo a restringir sua liberdade individual básica, daí o seu
caráter liberal). Surgiram então os Estados democráticos de direito. Mas a
estrutura desses Estados não se deixou alterar, ela mesma, por padrões de
organização mais distribuídos do que centralizados e, como resultado
dessa resiliência hierárquica, tivemos modos de regulação democráticos
de baixa intensidade (porque de baixa interatividade).
Ora, a forma Estado-nação se reproduziu em quase duas centenas de
nações, constituindo os 193 países atuais e foi tentada (ainda que sem
sucesso em muitos casos) a carregar consigo o seu modo de regulação
democrático formal. Mas a democracia não tem a ver com as exigências
de governança desse novo modelo de dominação sobre as sociedades que
se espalhou pelo mundo (o Estado-nação). As unidades político-territoriais
118
centralizadas chamadas de países continuaram, não obstante as tentativas
de democratização ensaiadas no seu interior, em grande parte infensas (e
avessas) à democracia. Além disso a segunda democracia não conseguiu
atingir, ao final da primeira década do século 21, cerca de 57 países, que
remanescem como autocracias (ou ditaduras, regimes autoritários ou
países não-livres, como Cuba, China ou Coréia do Norte). Além disso,
remanescem também: regimes em transição autocratizante ou
protoditaduras (como Venezuela e Rússia); regimes em transição
democratizante ou protodemocracias (como a Tunísia e, quem sabe, o
Egito e outros países atingidos pela chamada Primavera Árabe, mas tudo
isso ainda é muito incerto); democracias formais parasitadas por governos
manipuladores (como Argentina ou Brasil); democracias formais
representativas não-plenas ou flaweds (como Grécia ou Índia); e
democracias formais representativas plenas (como Noruega, Finlândia ou
Japão). No grupo destas últimas - que representaria a democracia dos
modernos em sua plenitude - não temos mais do que 30 países (se tanto).
O fato é que, mais de três séculos depois de ter sido reinventada, a
democracia - em todas as suas formas (plenas e não plenas, aperfeiçoadas
ou defeituosas) - não atinge a maior parte da população do planeta: 3,9
bilhões de pessoas que vivem sob cerca de 60 regimes não-livres. As
tentativas de democratização dos regimes políticos não foram assim tão
bem-sucedidas como se propaga e o número de regimes democráticos
não está crescendo no mundo: em dados de 2011, entre 51 e 57% da
população mundial não vivem em regimes livres e esta porcentagem já foi
menor!
119
Isso para não falar de democracias mais substantivas e interativas. Não há
nenhum país que apresente essas formas de democracia democratizada
porque elas não se aplicam às estruturas centralizadas do Estado-nação,
conquanto já possam ser ensaiadas em comunidades que apresentem
topologia mais distribuída do que centralizada, desde - é claro - que as
pessoas que compõem tais comunidades queiram experimentá-las.
Mas essa democracia na sociedade também não poderá ser
experimentada se imaginarmos a sociedade como dominium do Estado.
Sociedades nacionais, além de serem redes abstratas (compostas pela
população de um país), são campos conformados artificialmente (inclusive
cercados por fronteiras) pelo poder estatal.
Concretamente não existe "a sociedade", nem "as sociedades"
configuradas pelo Estado e sim uma diversidade de sociosferas. As novas
formas democráticas emergentes (as novas Atenas do terceiro milênio)
serão zilhões de comunidades políticas. Por isso se diz, sobre à terceira
invenção da democracia, que ela se realizará em miríades de sociosferas e
não em apenas menos de duas centenas das unidades político-territoriais
centralizadas (chamadas de países ou Estados-nações). Essas sociosferas
serão glocais, ou seja, locais (no sentido de cluster) altamente tramados
por dentro e conectados para fora. E não serão exclusivamente de base
territorial. Serão comunidades de vizinhança, sim, mas também de
aprendizagem, de prática, de projeto etc.
As diversas formas da terceira democracia serão experimentadas - já estão
sendo, aliás - nesses diversos mundos glocais em rede, que tendem a
120
surgir em profusão com o estilhaçamento do mundo único hierárquico.
Serão modos de regulação (mais democráticos) compatíveis com padrões
de organização em rede (mais distribuída). Não poderão vicejar em
hierarquias (ou redes mais centralizadas do que distribuídas) de nenhum
tipo: estatais, mercantis ou sociais. E não serão, portanto, substitutos para
a democracia realmente existente nos países (a democracia
representativa dos modernos) nem para qualquer outro tipo de regime.
Elas coexistirão com o amplo espectro de regimes democráticos ou não-
democráticos que existem hoje e que tendem a perdurar ainda por tempo
indeterminado, como veremos no próximo capítulo.
121
CAPÍTULO 10
ILHAS DEMOCRÁTICAS NA REDE
Que ela coexistirá marginalmente e por tempo indeterminado com as
democracias realmente existentes (incluindo as democracias plenas, as
democracias parasitadas por regimes manipuladores e as democracias em
processo de autocratização) e também com protoditaduras florescentes e
ditaduras remanescentes.
Todo esforço para gerar um novo modelo de democracia é inútil. Em
primeiro lugar porque democracia é uma dinâmica, um modo de
regulação e não um modelo de gestão, uma fórmula de regime político
(apesar das tentativas dos modernos de exportar o sistema representativo
no plano internacional dos Estados-nações). Em segundo lugar porque,
com a emergência de uma sociedade em rede, os lugares onde se pode
experimentar processos de democratização vão se multiplicando
rapidamente e inumeravelmente.
A terceira invenção da democracia não é a substituição da segunda
democracia por outra fórmula qualquer, nem uma volta à democracia
participativo-assembleísta dos atenienses, nem a aplicação de um novo
arranjo urdido por alguém antes da interação. Porque não há nada para
colocar no lugar da democracia dos modernos (assim como os modernos
não colocaram nada no lugar da democracia dos antigos). Ela continuará aí
por algum tempo e esse tempo é indeterminável nas circunstâncias atuais.
122
Só não terá mais o poder de impedir que aconteçam novos processos de
democratização que passem ao largo de suas regras. E, ao que tudo indica,
não terá mais a relevância que teve nos últimos dois séculos.
Novas experimentações democráticas acontecerão por três motivos
básicos: porque a democracia representativa não atende mais a variedade
sociopolítica e ao metabolismo interativo das sociedades contemporâneas
(como vêm revelando todas as pesquisas sobre a credibilidade das
instituições políticas e as manifestações deste século, nas quais as
pessoas, invariavelmente, declaram que o sistema político não mais as
representa); porque ela não pode mais ser reformada nos seus próprios
termos ou dentro do âmbito conformado por suas regras (e começou a
obstruir a continuidade do processo de democratização); e porque,
simplesmente, elas já podem acontecer (desde que existam pessoas -
novos atores políticos emergentes - dispostas a fazer-acontecer tais
experiências).
Não é, portanto, de substituição que se fala aqui e sim de esgotamento da
segunda democracia e de superação (da segunda democracia e, inclusive,
da primeira). Fala-se de abundância de processos e ensaios de democracia
mais democratizada. Uma nova fórmula, mesmo que fosse possível
concebê-la antes da interação, geraria artificialmente escassez. E por que
precisaríamos disso?
É claro que os Estados-nações continuarão com suas velhas fórmulas (de
democracia e autocracia). Mas o mundo não é feito de Estados-nações,
como os governos querem que acreditemos.
123
Com o estilhaçamento do mundo único hierárquico tendem também a se
pulverizar os padrões de organização e os modos políticos de regulação
congruentes com esses padrões. Teremos muitos mundos sociopolíticos,
não apenas os atuais, que não chegam a duas centenas de Estados-nações
onde cerca de 140 sistemas representativos (dos quais 25 ou, num juízo
menos rigoroso, não mais do que 30, podem ser considerados
democracias formais plenas) coexistem com mais de 50 regimes
francamente autoritários (29).
Qualquer pessoa inteligente pode perceber que não é mais possível
manter por muito tempo a situação atual, na qual 7 bilhões de pessoas,
crescentemente conectadas entre si, continuem arrebanhadas e
dominadas por apenas 193 unidades políticas centralizadas
remanescentes, com fundamentos que ainda permanecem em algum
lugar do passado.
Essas formas pretéritas – que são, todas, sem exceção, sistemas de
privatização da política – cujas estruturas e dinâmicas seguem princípios
organizativos fundeados no velho mundo hierárquico, persistirão por
muito tempo ainda, mas acabarão se tornando obsoletas diante das
infinitas possibilidades de interação – e, por conseguinte, de regulação –
que estão emergindo. Ocorrerá simplesmente que as pessoas se
importarão cada vez menos com elas. Porque cada vez menos precisarão
delas para viver sua vida, regular sua convivência social, tocar seus
negócios e desenvolver seus projetos.
124
Os novos caminhos, porém, serão os da inovação, os da emersão e
multiplicação de novos mundos políticos glocais e não o da abolição dos
poucos regimes democrático-formais que remanescem nos Estados-
nações por efeito de uma mega-explosão das massas, de um evento épico
universal ou uma de revolução global.
Quem está acreditando nisso, pode esperar sentado. Não vai acontecer. E,
se acontecesse, seria ruim, regressivo, tenebroso, tão tenebroso quanto
seria um governo mundial (já pensaram o que seria viver sob uma
burocracia global única?) e outras fantasias autoritárias arcaicas, heranças
de uma tradição hierárquica que, como um pesadelo, continua oprimindo
nossas mentes e assombrando nossas consciências.
Teremos, portanto, cada vez mais ilhas democráticas na rede. Os
resultados da terceira invenção da democracia coexistirão - em princípio
marginalmente - por tempo indeterminado com as democracias
realmente existentes (incluindo as democracias plenas, as democracias
parasitadas por regimes manipuladores e as democracias em processo de
autocratização) e também com protoditaduras florescentes e ditaduras
remanescentes.
Essas ilhas não serão países (a não ser, talvez, em alguns casos
especialíssimos). Poderão ser cidades inovadoras que se libertam do jugo
do poder central dos Estados-nações que as satelizam (retirando-lhes a
governança dos seus processos de desenvolvimento), subordinam (como
instâncias subnacionais) e espoliam (devolvendo a elas apenas migalhas
dos impostos arrecadados), mas isso também deve ser raro. Serão,
125
outrossim, comunidades de todo tipo, inclusive territoriais, mas não
somente. Onde houver rede (mais distribuída do que centralizada) pode
haver democracia (mais democratizada do que autocratizada), desde que
haja ação política nessa direção. Teremos, assim, muitas experimentações
democráticas: em comunidades de vizinhança, em ambientes de livre-
aprendizagem, em empresas não-hierárquicas ou em empreendimentos
em rede; enfim, onde houver pessoas interagindo na ausência de
obstruções significativas de fluxos que verticalizem o tecido social, poderá
acontecer a terceira invenção da democracia. Isto é disrupção por
irrupção. Isto é revolução, quer dizer, não a substituição de uma ordem
por outra ordem (top down) e sim abertura para novas ordens emergentes
(bottom up).
É claro que muitos chamados revolucionários, ensinados e dirigidos por
organizações hierárquicas e autocráticas, não concordarão com isso. Mas
apenas porque - a despeito do que declaram sobre si e sobre o mundo -
eles não são realmente revolucionários e sim o oposto. Os que acham que
revolução significa instaurar uma nova ordem análoga (em termos de
estrutura e dinâmica) à velha ordem, substituindo os ocupantes dos
velhos cargos (que sempre são mantidos, às vezes com outros nomes) por
novos ocupantes; ou seja, competindo para tomar o lugar de quem está
no poder (mas não querendo mexer na topologia centralizada que
permite que esse poder se exerça verticalmente, nem no modo de
regulação autocrático que viabiliza sua reprodução) constituem forças da
manutenção da ordem, não da mudança e são, portanto, reacionários,
não revolucionários.
126
Pessoas possuídas por aquilo que se chama de "espírito prático" ficarão
decepcionadas com a conclusão de que uma nova invenção da democracia
não terá um novo modelo para colocar no lugar do antigo. Elas querem
saber como vão salvar as estruturas que atualmente são mal-geridas
politicamente pelos arranjos da democracia realmente existente. Elas
estão buscando uma resposta para dar às multidões que não acreditam
mais no sistema representativo. Elas estão preocupadas com a
governabilidade das estruturas e não com a governança das novas
configurações sociais emergentes. Mas o fato é que essas estruturas
envelheceram e o sistema político que permitia o seu controle apodreceu,
vítima das consequencias acumuladas das falhas "genéticas" da segunda
democracia.
Novas estruturas surgirão e novos modos de regulação compatíveis com
tais estruturas se multiplicarão. Se essas novas estruturas forem
organizadas segundo um padrão de rede (mais distribuída do que
centralizada) os modos de regulação serão mais democráticos (em várias
experiências de democracia mais distribuída, mais interativa, mais direta,
regida mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulnerável
ao metabolismo das multidões e mais responsiva aos projetos
comunitários, mais cooperativa, mais diversa e plural).
Enquanto isso, porém, a tarefa fundamental dos democratas é impedir
retrocessos na democracia realmente existente nos países que a adotam:
conquanto limitada, essa democracia é o único tipo de regime político que
permite que surjam na sociedade experiências publicizantes e
democratizantes. Em ditaduras, protoditaduras e regimes democráticos
127
em franco processo de autocratização isso não pode acontecer. Portanto,
o obstáculo a ser removido não é a democracia representativa e sim a
não-democracia. Ademais, tais experiências - a despeito de não ser este
seu objetivo - serão capazes de exercer uma pressão ambiental sobre a
própria democracia representativa de sorte a permitir o surgimento de
mais experiências semelhantes, multiplicando ambientes favoráveis à
continuidade do processo de democratização.
É isso, nada mais do que isso. Pois aqui se disse, o tempo todo, que a
terceira invenção da democracia nada mais era do que a continuidade do
processo de democratização nas condições da contemporaneidade.
128
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) LÉVY, Pierre (1998). “Uma ramada de neurônios” in Folha de São Paulo:
15/11/1998. Cf. ainda Caderno Mais da Folha de S. Paulo: 15/11/2002 (p. 5-3). O
texto está disponível em:
http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/uma-ramada-de-neuronios
(2) Cf. John Dewey: “Democracia criativa: a tarefa diante de nós” (1939) que
pode ser encontrado no original “Creative Democracy: the task before us” in The
Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy (existe edição em
espanhol in Liberalismo y Acción Social y otros ensayos. Valência: Alfons El
Magnànim, 1996); e existe também tradução brasileira com o título
“Democracia criativa: a tarefa diante de nós”, no livro de FRANCO, Augusto e
POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos
escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: ediPUCRS, 2008.
(3) Cf. SEN, Amartya (1999). A democracia como um valor universal. Disponível
em:
http://pt.slideshare.net/augustodefranco/democracia-como-um-valor-universal
(4) DAHL, Robert (1998). Sobre a democracia. Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 2001.
(5) von HUMBOLT, Alexander (1792). Ensaio sobre os limites da atividade do
Estado.
129
(6) SAINT-EXUPERY, Antoine (1929). Correio Sul. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1981.
(7) Cf. ALTHUSIUS (1603). Política; SPINOZA (1670). Tratado Teológico-Político; e
ROUSSEAU (1762). O Contrato Social. Cf. ainda: BURKE (1790). Reflexões sobre a
Revolução Francesa.
(8) DEWEY, John (1927). The Public and its Problems. Chicago: Gataway Books,
1946 (existe edição em espanhol: La opinión pública y sus problemas. Madrid:
Morata, 2004). Existem alguns excertos traduzidos deste livro no livro de
FRANCO, Augusto e POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia
cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre:
ediPUCRS, 2008.
(9) ARENDT, Hannah (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
(10) DEWEY; op. cit.
(11) DEWEY, John (1888). Ética da Democracia; apud Honneth, Axel
(1998).“Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria
democrática hoje”, (publicado originalmente em “Political Theory”, v. 26,
dezembro 1998) traduzido na coletânea: Souza, Jessé (org.) (2001). Democracia
hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.
(12) Idem.
(13) MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y Juego:
fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia.
Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997. Cf. também
130
MATURANA, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte. Bogotá:
Cooperativa Editorial Magistério, 1993.
(14) BARAN, Paul (1964). “On distributed communications: I. Introduction to
distributed communications networks” (Memorandum RM-3420-PR August
1964). Santa Monica: The Rand Corporation, 1964.
(15) MATURANA; op. cit.
(16) SPINOZA; op. cit.
(17) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política?
(Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
(18) Cf. FRANCO, Augusto (2011). É o social, estúpido: três confusões que
dificultam o entendimento das redes sociais. Disponível em:
http://pt.slideshare.net/augustodefranco/o-social-estpido
(19) HERBERT, Frank (1976). Os filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.
(20) FINLEY, M. I (org.) (1998). O Legado da Grécia. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1998.
(21) HILLMAN, James (1993). Psicologia, Self e Comunidade. Discurso proferido
durante o jantar do Prêmio Cambridge em 17 de novembro de 1993. Disponível
em:
http://pt.slideshare.net/augustodefranco/psicologia-self-e-comunidade
(22) DEWEY; op. cit.
131
(23) BOBBIO, Norberto (1985). Estado, governo, sociedade: para uma teoria
geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
(24) CASTELLS, Manuel (1999). “Para o Estado-rede: globalização econômica e
instituições políticas na era da informação” in Bresser Pereira, L. C., Wilheim, J. e
Sola, L. Sociedade e Estado em transformação. Brasília: ENAP, 1999.
(25) DEWEY, John (1927). The Public and its Problems; ed. cit.
(26) De John Dewey pode-se talvez inferir uma democracia cooperativa; ou uma
“democracia como cooperação reflexiva”, como sugeriu Axel Honneth (1998) -
ed. cit - , professor da Universidade de Frankfurt; ou, ainda, uma democracia
valorizada em seu aspecto comunitário, como já havia proposto Hans Joas
(1994) em “O comunitarismo: uma perspectiva alemã”, traduzido na coletânea:
Souza, Jessé (org.) (2001). Democracia hoje: novos desafios para a teoria
democrática contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
(27) ALTHUSIUS; op. cit.
(28) DEWEY, John (1937). “Democracy is radical” in The Essential Dewey: Vol. 1 –
Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press,
1998. Com o título “A democracia é radical”, há uma tradução desse texto no
livro de FRANCO, Augusto e POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia
cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre:
ediPUCRS, 2008.
(29) Em dados de 2011: entre 51% (Democracy Index 2011 Economist
Intelligence Unit) e 57% (Freedom in the World 2012) da população mundial
(quase 4 bilhões de pessoas) não vivem em regimes free. O que é mais
assustador? Esta porcentagem já foi menor! Segundo o Democracy index 2011:
a report from the Economist Intelligence Unit, temos: 25 full democracies - 15%
132
dos países - 11,3% da população mundial; 53 flawed democracies - 31,7% dos
países - 37,1% da população mundial; 37 hybrid regimes - 22,2% dos países -
14,0% da população mundial; 52 authoritarian regimes - 31,1% dos países -
37,6% da população mundial. Segundo o Freedom in the World 2012 da
Freedom House, temos: 87 Free Countries - 45% dos países; 60 Partly Free
Countries - 31% dos países; 48 Not Free Countries - 24% dos países. Os critérios
são diferentes, mas os resultados são semelhantes. O mais assustador é que se
observa um declínio da democracia. Segundo dados da Freedom House,
comparando 2006 com 2011 temos: Países Livres: 2006 = 90 - 47% / 2011 = 87 -
45%. Países Parcialmente Livres: 2006 = 58 - 30% / 2011 = 60 - 31%; Países Não
Livres: 2006 = 45 - 23% / 2011 = 48 - 24%; Democracias Eleitorais: 2006 = 123 -
64% / 2011 = 117 - 60%. Segundo dados da Economist Intelligence Unit ,
comparando 2008 com 2011 temos (para o mesmo total de 167 países e, assim,
as porcentagens são as mesmas): Full Democracies: 2008 = 30 / 2011 = 25 - 15%
dos países - 11,3% da população mundial; Flawed Democracies: 2008 = 50 /
2011 = 53 - 31,7% dos países - 37,1% (Idem); Hybrid Regimes: 2008 = 36 / 2011 =
37 - 22,2% - 14,0%; Authoritarian Regimes: 2008 = 51 / 2011 = 52 - 31,1% -
37,6%. O fato é que - em 2011 - segundo dados da Economist Intelligence Unit,
51% da população mundial não vive em democracias (nem full, nem flawed); e
segundo dados da Freedom House 57% da população mundial não vive em
regimes free (o que perfaz um total de 3,95 bilhões de pessoas). Os dados da
Freedom House para 2008 (universo de 193 países) mostram também a queda
(comparada com 2011): Free Countries = 89 - 46% / Partly Free Countries = 62 -
32% / Not Free Countries = 42 - 22%. Cf. Democracy índex 2011. Democracy
under stress. A report from The Economist Intelligence Unit http://goo.gl/11FjX.
Cf. também Freedom in the World 2012. Freedom House http://goo.gl/Pd4MY.
Em suma, quase quatro milhões de seres humanos (a maioria da humanidade)
não têm plena liberdade para criar, para inventar, para inovar, para se
133
desenvolver e para promover, com alguma autonomia, o desenvolvimento das
localidades onde vivem e trabalham. E não há qualquer processo “natural”, de
“evolução”, sempre ‘para frente e para o alto’, como imaginam alguns crédulos.
Em 1975, 30 nações tinham governos eleitos pela população. Em 2005, esse
número tinha subido para 119. Mas nos últimos anos o crescimento da
democracia e da liberdade política está sofrendo forte desaceleração e isso não
tem a ver somente com o requisito democrático da eletividade, mas, sobretudo,
com o da rotatividade (ou alternância), para não falar dos outros princípios
(como a liberdade, a publicidade, a legalidade e a institucionalidade e, como
consequência de todos esses, a legitimidade).
134