UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG) FACULDADE DE LETRAS (FALE)
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS: ESTUDOS LITERRIOS (PS-LIT)
A COBRA E OS POETAS: UMA MIRADA SELVAGEM NA LITERATURA BRASILEIRA
Mrio Geraldo Rocha da Fonseca
Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG
2013
Mrio Geraldo Rocha da Fonseca
A COBRA E OS POETAS: UMA MIRADA SELVAGEM NA LITERATURA BRASILEIRA
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Literatura Comparada.
rea de concentrao: Poticas da Modernidade
Orientadora: Professora doutora Maria Ins de Almeida
Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG
2013
Ficha catalogrfica elaborada pelos Bibliotecrios da Biblioteca FALE/UFMG
Fonseca, Mrio Geraldo Rocha da. F676c A cobra e os poetas [manuscrito] : uma mirada selvagem na
literatura brasileira / Mrio Geraldo Rocha da Fonseca. 2013. 334 f., enc.: il.
Orientadora: Maria Ins de Almeida.
rea de concentrao: Literatura Comparada.
Linha de pesquisa: Poticas da Modernidade.
Tese (doutorado) Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 315-334.
1. Indianismo (Literatura) Teses. 2. ndios Escrita Teses. 3. ndios Cashinawa Teses. 4. ndios da Amrica do Sul Acre Teses. 5. ndios da Amrica do Sul Amazonas Teses. 6. ndios Maue Teses. 7. Escritores indgenas Teses. 8. Literatura comparada Teses. 9. Literatura Histria e crtica Teses. I. Almeida, Maria Ins. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Ttulo.
CDD: 809
dedico:
Raimunda da Rocha Fonseca
minha me,
que h pouco nos deixou
e que jamais foi
porque jamais h de ir.
dela digo (c/ Drummond):
Mundo, mundo, vasto mundo
se tu te chamasses Raimunda
no terias uma rima nem uma soluo
mas, seria, mundo, vasto mundo
mais vasto teu corao!
dedico, tambm:
a Ornelis (meu pai) e Geraldo Magela (irmo)
s minhas irms:
Rita, ngela, Fil, Graa, Jacinta, Cssia e Lucy (em saudade!)
e suas famlias
Ana, Aline, Cnthia
a Glauber, Crasso, Saulo, Sanzio
meus amigos do TalQual
De corao, agradeo: Maria Ins de Almeida (orientao pra tese e pra vida!)
aos demais amados professores da Faculdade de Letras: Graciela Ravetti Reinaldo Marques Leda Martins Tereza Virgnia Barbosa Rmulo Monte Alto Snia Queiroz
a outros caros professores: Deise Lucy Montardo (de Manaus) Iraildes Caldas (de Manaus) Camila do Valle (do Rio de Janeiro) Ana Tettamanzy (de Porto Alegre)
a meus colegas (e amigos): Cludia (amore mio!) Vi (reviso do texto e amor ao contexto!) Luiz Carlos (de olhos ofdicos!) Eduardo (outros ofdicos, melanclicos e espertos!)
a meus outros amigos(as): Bernadete Biaggi Marco Aur Marco, ator Telma Lucas Max,xaM Felipe, da geo Nani Marcela NaPaula Camila Rose Kika Rosa Brabilla Marcelo Tadeu Susa Renato Slvio Everaldo pe. Vrgilio Resi d. Otvia
Um especial Letcia Magalhes, da secretaria do Ps-Lit/FALE
Agradeo Capes e ao CNPq pelas bolsas.
A Cobra e os poetas: uma mirada selvagem na literatura brasileira Mrio Geraldo Rocha da Fonseca
RESUMO:
Cobra o termo principal desta pesquisa, constituindo um conceito, um mapa e um personagem, para defender a ideia de que, na literatura brasileira, existe uma linhagem de escritores que praticam o que a tese chama de escrita ofdica. Os trs nveis mencionados (conceito, mapa, personagem) so articulados pela maneira de proceder da Cobra, que aqui recebe o nome de desvio. Dessa forma, a tese comea por definir o que esse desvio, cotejando-o com alguns conceitos contemporneos da teoria da literatura. Nos primeiros captulos, procura estabelecer os lugares desse desvio, notadamente, aquele de onde foi alojado o conceito de indigenismo literrio, ainda muito usado para estudar certa linhagem de escritores brasileiros que assumiram a figura do ndio como referncia fundamental para construir as suas literaturas. Prope, assim, outra maneira de trabalhar com a chamada literatura indigenista e com os dilogos que ela assume a partir da Semana de Arte Moderna, em 1922. Com tal procedimento, delineia tambm outra cartografia para a compreenso histrica dos chamados escritores indigenistas, e aplica o termo Cobra para sugerir um novo lugar que possa ser moldado no mais pelo referido conceito de indigenismo literrio, mas pelo olhar que est emergindo da chamada literatura indgena, ou seja, pelos livros que esto chegando das aldeias. A partir dos mitos compilados, estudados e difundidos por meio de livros produzidos pelos prprios indgenas, ou por eles juntamente com estudiosos da literatura e da antropologia, de modo particular dos ndios kaxinawa (Acre) e sater-maw ( Amazonas), a Cobra toma dimenso de um personagem que vai percorrer (mapa, histria), analisar (teoria, mtodo) e dialogar com o cnone literrio indigenista e com suas invenes contemporneas. Esse olhar da Cobra recebe tambm o nome de mirada selvagem, uma viso que se esfora para assumir um perspectivismo amerndio, assim como proposto por alguns estudiosos do campo da antropologia que se colocam nas sendas abertas pela filosofia selvagem de Nietzsche, Deleuze, Derrida, Agamben, alm de Freud e Benjamin, entre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Cobra, mirada selvagem, escrita ofdica, literatura brasileira, indigenismo literrio, literatura indgena.
The snake and the poets: a wild aim at Brazilian literature Mrio Geraldo Rocha da Fonseca
ABSTRACT:
Cobra (Snake) is the main term of this research. This is why it starts by proposing that the term refers to a concept, a map and a character, in order to defend the idea that, in Brazilian literature, there is a lineage of writers who practice what this thesis calls ophidian writing. The three mentioned levels (concept, map, character) are articulated by the Cobras own ways, which receives here the name of deviation. In this way, the thesis starts by defining what is this deviation, articulating it with some contemporary concepts of literary theory. In the first chapters, it seeks to establish the places of this deviation. The first deviation, therefore, is where was placed the notion of the literary representation of the indigenous, still very much used in the studies of a certain lineage of Brazilian writers who took to the Indian type as a fundamental reference to construct their literature. In this way, it proposes another way of working with the commonly called literary representation of the indigenous and with the related debates that issued from the Semana da Arte Moderna, in 1922. In this way, it proposes another cartography for the historic understanding of the commonly called writers of the indigenous. Thus it uses the term Cobra to articulate a new place that can be articulated not by the referred concept of literary representation of the indigenous, but by the look that is emerging from what is being called Indian literature, through the books that are arriving from the Indian settlements. From the compiled, studied and disseminated myths of the books produced by the Indians themselves, or by themselves with anthropology and literature researchers, particularly the Kaxinawa Indians (State of Acre) and the Sater-maw (State of Amazon), the Cobra assumes the condition of a character that will travel (map, history), analyze (theory, method) and enter in dialogue with the canon of the literary representation of the indigenous and with its contemporary inventions. This look of the Cobra also receives the name of wild reading, because it refers to a vision that attempts to assume the perspective of the perspectivismo amerndio as it is proposed by the researchers in anthropology who took to the openings of the wild philosophy of Nietzsche, Deleuze, Derrida, Agamben, as well as Freud and Benjamin, among others.
KEY-WORDS: Snake, wild reading, ophidian writing, Brazilian literature, literary representation of the indigenous, Indian literature.
SUMRIO A COBRA E OS POETAS: uma mirada selvagem na literatura brasileira
Parte I: O QUE A COBRA?........................................................................................................12
... PERSONAGEM, MAPA E CONCEITO ..................................................................................13
I - 1 Potica da Cobra ..................................................................................................................23
1.1 Cobra, ser perfeito .........................................................................................................24
1.2 Potencialidades criativas ofdicas ..................................................................................33
1.3 O mtodo da Cobra .......................................................................................................43
1.4 A lngua da Cobra .........................................................................................................49
1.4 Um livro-Cobra .............................................................................................................56
I - 2 Por uma mirada ofdica na histria da literatura brasileira: a escrita-em-trnsito do sculo XIX .................................................................................61
2.1 Histria como devir .......................................................................................................62
2.2 Audies do paraso.......................................................................................................64
2.3 Escrita-em-trnsito.........................................................................................................69
2.4 O co de Machado de Assis...........................................................................................76
I - 3 Escrita ofdica ......................................................................................................................81
3.1 Ex-naturabilis ................................................................................................................83
3.2 Ex-culturabilis ...............................................................................................................86
3.3 Ex-centricus ...................................................................................................................92
3.4 Ex-tradicionabilis ..........................................................................................................96
3.5 Ex-mirabilis ...................................................................................................................99
3.6 Ex-ocidentabilis ...........................................................................................................106
3.7 Ex-orabilis (ou ex-literabilis) ......................................................................................109
3.8 Ex-indigenibilis............................................................................................................116
Intermeio: O CANTO DA COBRA: uma potica da Jiboia e da Tucandeira..........................119
Intermeio 1 - O Canto da Jiboia ...................................................................................................122
1a) Yube: mito, palavra, som....................................................................................................122
1b) Jiboia ba de encantos.....................................................................................................136
Intermeio 2 - O Canto da Tucandeira...........................................................................................146
2a) Errncia sater-maw .........................................................................................................146
2b) Moi: O canto do esperto .....................................................................................................158
Parte II: RASTROS DA COBRA NA LITERATURA BRASILEIRA.....................................172
II - 1 Macunama e a inveno literria do ndio brasileiro ........................................................173
1.1 Mrio de Andrade, copiador perfeito...........................................................................176
1.2 Da tradio macunamica ............................................................................................199
1.2.1 Um Anchieta macunamico ...............................................................................199
1.2.2 Um Alencar macunamico .................................................................................216
1.3 Da modernidade macunamica ....................................................................................226
1.3.1 Um Oswald de Andrade macunamico ..............................................................227
1.3.2 Um Guimares Rosa macunamico....................................................................140
1.4 Da contemporaneidade macunamica ..........................................................................246
1.4.1 Um Hatoum macunamico .................................................................................246
1.4.2 Uma Ana Miranda macunamica .......................................................................255
II - 2 Escrita ofdica na poesia brasileira contempornea ...........................................................262
2.1 Manoel de Barros, inventor (e traidor) de natureza .....................................................264
2.2 A paulicia ofdica de Roberto Piva ............................................................................274
2.2.1 Primeiro movimento ..........................................................................................275
2.2.2 Segundo movimento ..........................................................................................279
2.3 A cidade/animal de Aldisio Filgueiras.........................................................................285
2.4 A palavra-cobra de Jos de Jesus Paes Loureiro ........................................................294
CONCLUSO: Enfim, a dana... ..................................................................................................306
REFERNCIAS..............................................................................................................................315
PARTE 1
O QUE A COBRA?
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Mrio Geraldo Rocha da Fonseca
13
... PERSONAGEM, MAPA E CONCEITO
O animal nos olha e estamos nus diante dele. E comear a pensar comea talvez a.
Jacques Derrida
Por entre as vicissitudes pelas quais passou o presente estudo, possvel buscar
elementos para oferecer uma espcie de guia para a leitura e avaliao do texto que ora se
inicia. Farei isso a partir de algumas palavras que foram incorporadas e algumas, depois,
suprimidas dos diversos ttulos que recebeu no perodo em que esteve sendo formulado.
A primeira delas, indigenismo, constava no subttulo do projeto quando da sua
apreciao inicial no Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais.1 Pretendia, por isso, verificar o que chamei de indigenismo
errante na produo literria de alguns poetas contemporneos. Considerava, naquele
momento, que certa linhagem de escritores continuava puxando o fio da meada indigenista
da literatura brasileira, mas vinha se desviando de alguns procedimentos que haviam
marcado, por exemplo, a releitura do cnone indigenista pelos modernistas da dcada de
1920.
De certa forma, aquela inteno inicial foi mantida, como mostra, de maneira
mais particularizada, o segundo captulo da segunda parte da tese. Mas, ao mesmo tempo,
ampliou-se o alcance, o que, de certa forma, comeou a colocar em cheque exatamente o
termo que, naquele momento, servia-me de guia. Aos poucos, fui entendendo a dificuldade
de manter o conceito de indigenismo literrio assim como, at ento, havia sido utilizado
pela crtica brasileira e latino-americana. No entanto, a presente pesquisa preferiu no
enveredar pelo caminho que levaria a apontar, de maneira mais contundente, os limites
daquela vertente, at porque, para alguns casos, a noo de indigenismo literrio ainda
mostra a sua pertinncia, notadamente nas abordagens de vis histrico.
Outra direo foi tomada, de modo que pudesse oferecer condies para uma
leitura dos textos indigenistas sem que fosse necessrio ter aquela noo como nico
critrio. Foi, ento, que apareceu o primeiro grande desvio que esta pesquisa pretende
salientar. Sem negar a validade dos estudos que ainda perseguem as marcas de uma
1 Chamava-se O xam e os poetas: indigenismo errante na poesia brasileira contempornea.
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figurao indgena na literatura brasileira, a pesquisa preferiu assumir um outro lugar,
desta feita, moldado por alguns textos que esto marcando presena na constituio do que
se pode chamar de literatura indgena, mesmo que esse termo ainda no esteja
consolidado para definir as textualidades indgenas que, cada vez mais, esto cavando
posio nos estudos literrios brasileiros.
Pela mudana de foco, apareceu uma nova palavra, que foi incorporada ao ttulo
da pesquisa, quando essa entrava em uma segunda fase de avaliao. Por ter tido um pouco
mais de clareza quanto pertinncia de ir buscar nos livros produzidos pelos ndios uma
maneira de construir o lugar de onde mirar o cnone literrio indigenista brasileiro,
naquele momento, achei que o termo indgena poderia dar conta do que a pesquisa vinha
apontando.2 Contudo, tambm esse termo apresentou algumas das armadilhas que queria
ter evitado desde o comeo. No entanto, o rumo que passou a indicar era realmente aquele
que gostaria de seguir, uma vez que passou a sugerir que os livros que esto chegando das
aldeias oferecem uma grande oportunidade para que a literatura brasileira repense a sua
histria, especialmente no que diz respeito quelas obras nas quais a figura do ndio e o
mundo que o rodeia esto bastante presentes e, por isso, justamente chamadas de
indigenistas.
Logo, medida que fui avanando, os estudos mostraram que era necessrio
evitar o equvoco j assinalado pelos escritores indigenistas que, imbudos da boa inteno,
pensaram que, por meio de suas histrias, nas quais o ndio aparecia como protagonista, a
voz indgena poderia ser, de fato, preservada na sua forma mais genuna. Uma vez que j
havia cogitado retirar a palavra indgena do segundo ttulo, a mudana de outra palavra,
muito relacionada com essa, veio evidenciar a nova postura: xam (a justificativa para o
seu deslocamento ir, aos poucos, se fazer notar).
Com isso, ficou assinalado mais um desvio: mais do que dar a voz quele que,
por sua condio tnica, tinha dificuldade de ser ouvido, era necessrio ouvir a voz do
escritor que, ao querer assumir a voz do ndio, acabou por inventar-lhe uma voz, que
precisava sim, ser mais bem sintonizada pela crtica, e at mesmo pelos prprios escritores.
Essa nova voz, que passou a ser ouvida pela pesquisa, indicava tambm um novo
caminho: por um lado, no seria mais guiado por certa crtica, sempre preocupada, ao 2 A pesquisa passou, desse modo, a chamar-se O xam e os poetas: uma mirada indgena na literatura
brasileira.
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abordar o cnone indigenista brasileiro, com a forma como os escritores haviam construdo
a figura do ndio; nem mesmo, por outro lado, enveredaria pela trilha que tal leitura
indicava, que levava a crer que, pelas histrias indigenistas, seria possvel ouvir a to
sonhada voz indgena, aquela perseguida pelos escritores quando se colocaram o desafio
de formatar uma literatura nacional, de certo modo convictos de que se tratava da prpria
voz do Brasil.
Logo, nem indigenista, nem indgena seriam as palavras a guiar a pesquisa no
momento em que entrava em sua terceira fase. Da primeira palavra, porm, havia ficado
uma marca fundamental para se entender qual seria o objeto desta pesquisa. Esse giraria
em torno das obras que a crtica literria brasileira sempre considerou como parte do que
chama de indigenismo literrio, ou seja, aqueles livros nos quais o referente ndio
fundamental para a sua constituio e compreenso. Seria, portanto, um percurso que
marca boa parte da literatura brasileira, comeando, para muitos, com Jos de Anchieta, o
primeiro dos escritores indigenistas; passa por Mrio de Andrade, que volta aos escritos
coloniais para compor as suas histrias; at chegar aos autores contemporneos que vo
buscar material no mundo indgena para construir suas literaturas.
No que dizia respeito segunda palavra (indgena), dela retirei preciosas
indicaes metodolgicas, uma vez considerando o fato de que, nas histrias indigenistas,
o mito indgena, de alguma maneira, havia sido sim, levado a srio, apesar de saber que, ao
se apropriar dele, o escritor estaria caindo na armadilha mencionada anteriormente, a da
crena no autenticamente indgena.
Dessa forma, um termo que desse conta dos dois lugares, mas que no se colasse
a nenhum deles, tornou-se necessrio. O caminho ento indicava que a voz indgena que
se infiltrava nas histrias indigenistas, agora dispensando a obrigao de ser autntica,
era, no entanto, fundamental para que tal histria pudesse ser contada, lida e estudada.
Deslocando o foco moldado por certa obrigatoriedade crtica de mapear a figura concreta
do ndio nos livros indigenistas, tornou-se possvel ouvir aquela voz no mais na sua
condio, diria, antropolgica, e sim como uma marca realmente literria; ou seja, como
uma inveno que no podia ser ouvida, no entanto, sem que se levasse em conta que o
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referencial indgena com o qual ela claramente se identificava era um elemento necessrio
para que tal voz se traduzisse realmente em literatura.
Um termo que passou a ser incorporado pela pesquisa, mesmo que no tivesse
cogitado coloc-lo no ttulo, veio da reflexo a respeito da utilizao dos mitos indgenas
pelos escritores indigenistas, no apenas como uma espcie de moldura na qual o
objetivo de encontrar uma voz literria brasileira pudesse ser enquadrado. A voz
indgena que se ouvia no texto indigenista, portanto, era a sua prpria condio de
possibilidade (eis o termo) para quem quisesse trabalh-la literariamente. Tirada do
vocabulrio filosfico moderno e contemporneo, especialmente daquele ligado a
postulaes kantianas, tal noo vinha ajudar a sintonizar a leitura do cnone indigenista
brasileiro com as teorias filosficas, que, por sua vez, foram incorporadas aos estudos
literrios para que dessem conta dos desafios colocados pela literatura contempornea.
Dessa forma, os mitos indgenas passaram a assumir um papel relevante na
identificao daquela voz que emergia das obras literrias indigenistas, agora, na nova
postura que a pesquisa assumia. Para tanto, contou-se com um vasto material escrito pelos
prprios ndios, e que, aos poucos, vem assumindo a devida relevncia no cenrio literrio
brasileiro. Neles, os ndios que, at ento, eram vistos como alheios ao mundo da escrita
passaram a colocar no papel aquilo que, na verdade, sempre esteve escrito, mas da forma
que era possvel em um mundo no qual a oralidade portanto, a voz foi encontrando a
sua maneira especfica de se inscrever e criar, assim, uma vera e propria3 escrita.
Por esse novo foco, os dois mundos, muito bem representados pelo encontro dos
colonizadores europeus com os ndios americanos, ocorrido no sculo XVI, passam a
perceber que, mesmo que no deixassem de se ver como estranhos, mantiveram, ao longo
dos sculos, certa intimidade que no possvel ignorar se levarmos em conta que foi
dessa convivncia que realmente surgiu a vertente indigenista que marca indelevelmente a
literatura do continente. O modo de falar indgena, portanto, vai ser uma maneira muito
prpria para que os escritores latino-americanos pudessem ouvir aquela voz que sempre
perseguiram, pensando em traduzir em literatura o modo de viver do homem americano.
De maneira especial, os escritores que se colocaram a tarefa de ouvir a voz
nativa e de com ela construir uma lngua que desse conta de express-la foram buscar nos 3 Expresso que os italianos usam quando desejam enfatizar uma afirmao, sentido com o qual irei usar
neste texto.
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mitos indgenas os elementos para sustentar tal projeto. Alguns chegaram mesmo a ir
aonde tal voz estaria disponvel in loco, como foi o caso de alguns modernistas paulistas
que, na dcada 1920, se dirigiram para a Amaznia a fim de encontrar aquele Brasil
profundo que gostariam de retratar. Mesmo esses no dispensaram as pesquisas dos
antroplogos, uma vez que a tendncia que marcou os estudos antropolgicos do sculo
XIX, quando a antropologia, como matria acadmica, dava os seus primeiros passos no
pas, considerava as lnguas nativas o elemento mais esclarecedor da vida dos povos
indgenas, e a sua maneira particular de falar e de traduzir tal fala em mitos e histrias
como elementos fundamentais para se entender a cultura amerndia.
Porm, os escritores indigenistas, que no puderam contar com o material
antropolgico, se valeram de textos que, nos sculos anteriores, foram escritos por aqueles
que, de alguma forma, tiveram contato com a vida dos ndios. Portanto, j fica dada a
indicao de que, muitos dos livros produzidos por escritores indigenistas nasceram do
trabalho que eles tiveram de ler e pesquisar no material colhido por viajantes que passaram
pelo Brasil nos dois primeiros sculos de colonizao, deixando suas impresses e estudos
em vrios tipos de relatos. Como se ver no segundo captulo da primeira parte da tese, os
relatos de viagem so fundamentais para se entender a histria da literatura brasileira, de
modo especial, o momento em que se colocou o desafio de encontrar uma voz realmente
nacional, o que ocorreu no incio do sculo XIX.
Embora esse dado seja historicamente incontestvel, poucos estudos, porm, se
voltaram no sentido de aproveitar a pesquisa sobre os mitos indgenas para moldar um
novo olhar em relao s obras que pedem esse material para serem efetivamente
compreendidas e contextualizadas. Assim, para incorporar tais estudos, precisaramos ir
construindo um lugar que no dependesse nem do vis indigenista nem daquele que se
acreditou ser uma voz autorizada do mundo indgena, mas de como os escritores
brasileiros, ao se voltarem para o material indgena, fizeram uma apropriao que indicava
alguns dos procedimentos mais importantes para se entender a formao da literatura
brasileira como tal.
Foi na tentativa de me desviar daqueles dois lugares que nasceu o terceiro. Esse
custou a aparecer, porque vinha em forma de personagem mtico, que, no entanto,
deveria servir para um trabalho que pretendia criar parmetros de anlise, na inteno de
formar um novo mapeamento dos escritores indigenistas brasileiros. Estudando alguns dos
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mitos indgenas mais conhecidos, principalmente os de provenincia amaznica,
evidenciou-se uma vertente que no poderia ser ignorada, uma vez que no se tratava de
ficar em apenas um mito, mas em procedimentos mais gerais, que podiam sim, ser
aproximados das histrias indigenistas.
Como se sabe, existem vrios personagens fortes na mitologia amaznica, e
alguns deles foram incorporados no corpus deste estudo, como, por exemplo, a tucandeira
e o papagaio, que iro aparecer efetivamente no Intermeio da tese e na segunda parte.
Um, porm, parece catalisar as foras que nela se apresentam. O seu nome no deixa de ser
imediatamente invocado quando se pensa no imaginrio que o Brasil e o mundo tm da
regio Amaznica. Falo da Cobra-Grande, que, em alguns casos, tornou-se a prpria
indicao do imaginrio indgena e caboclo. Dela, a mais conhecida das histrias remete
sua apario na figura de um ser que s poderia mesmo emergir dos descomunais rios da
regio, com suas foras titnicas, assim como so apresentadas por alguns estudos
geogrficos. Por isso, para muitos, aquela figura se apresenta na sua dimenso monstruosa,
capaz de destruir tudo o que encontra pela frente. Ao se mover, a Cobra-Grande provoca
terremotos e, se noite, pode ser confundida com um imenso navio, com uma enorme boca
na proa.
No entanto, existe uma vertente que trabalha o mito da Cobra por outro caminho,
que, diria, transita mais perto do cotidiano daqueles que moram nas margens dos rios
amaznicos. Uma vertente menor, para usar um termo de Deleuze e Guattari para
especificar um tipo de literatura que nasce do desvio daquela que usa a lngua no sentido
padro, como veremos adiante.4
Na tese, vou apresentar dois exemplos daquele tipo de narrativa. Nesse caso,
tambm condio de possibilidade uma expresso que precisa ser levada em
considerao, uma vez que, mais do que os terrveis modos de proceder de um temido
monstro, a figura do animal vista como um elemento no qual se encontram articulaes
que ajudam a populao ribeirinha a desenvolver maneiras de expressar a sua forma
especfica de se relacionar com a natureza. Logo, nos mitos kaxinawa e sater-maw que
irei estudar no Intermeio, o que se busca observar como essas narrativas oferecem um
aporte de situaes que indicam as sadas que os homens da regio encontram para lidar
4 Cf.: DELEUZE; GUATTARI. Kafka: por uma literatura menor, 1997.
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com uma natureza que, de to exuberante e poderosa, chama constantemente aos desvios
(ou furos, como o caboclo chama alguns cursos dgua que encurtam as distncias entre,
por exemplo, dois rios maiores), para no serem tragados por ela.
Assim, a Cobra, mais do que o monstro que habita algumas histrias que a ela se
referem como um ser to poderosamente incontrolvel, como tende a ser vista a natureza
amaznica, , nesta tese, signo da esperteza, da qual esto recheados os mitos indgenas e a
leitura que deles fizeram alguns escritores brasileiros. A maneira como os ndios e
caboclos observam o animal se movimentando no seu habitat, diria, natural, diz do
movimento que gostaria de atribuir a ela na tese. Algo que, diante dos obstculos que se
apresentam no seu caminho, mais do que destru-los propriamente, procura deles desviar-
se, no os ignorando, mas tambm no se submetendo a seus caprichos.
Por isso, o conceito de desvio, inicialmente apresentado na maneira como foi
usado pelos formalistas, para refletirem a respeito das especificidades do texto literrio,
ser de grande valia. Lembrando, porm, que a relao desvio/norma, qual ficou muito
vinculada aquela noo formalista, vai ser problematizada por outros conceitos, como fora
(Blanchot), dobra (Deleuze), passagem (Benjamin), que podem ser situados no mesmo
campo semntico de desvio, mas ampliando o seu alcance. Isso indica que o que vou
chamar, mais adiante, de mtodo da Cobra, na verdade, apenas a maneira que encontrei
para dizer que, na compreenso da mitologia amaznica, a paisagem da regio no pode
ser um elemento dispensvel; assim, a Cobra, alm daquele personagem do qual falei
anteriormente, tambm quer traduzir uma viso de mundo que leva em considerao a
condio do lugar onde formulada.
De fato, quem j teve a oportunidade de navegar pelos rios amaznicos sabe o que
significa serpentear, uma das expresses que se usa para falar do espao ocupado pelos
rios, que vo mata adentro e, muitas vezes, encontram-se consigo mesmos, dando uma
volta na prpria floresta. Por isso algum disse: O rio comanda a vida ttulo, por sinal,
de um dos livros que melhor deu conta de observar como a prevalncia dos cursos dgua
determinam a vida (e a morte) na Amaznia. Na obra em questo, de 1973, o socilogo
acreano Leandro Tocantins mostra o contato muito estreito do homem que mora nas
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margens dos rios com o animal que melhor define a sua fora vital, a cobra. Um outro
atencioso observador da vida amaznica, o poeta Thiago de Melo, querendo definir a sua
regio, a chamou de ptria da gua.5
Assim, ser preciso falar em mapa, e, com isso, no estou apenas querendo
dizer de um recurso que traduziria em imagem um determinado lugar, geograficamente
estipulado. Falo tambm da cartografia que pretendo construir, ao assumir o imaginrio da
Cobra como meio para viajar pela histria da literatura brasileira. Isso ficar mais claro no
segundo captulo da primeira parte, mas j se torna necessrio deixar claro que, sem a
noo de viagem, como aquela que est muito presente nos mitos indgenas, no seria
possvel cogitar um novo lugar de onde observar a literatura indigenista e, por meio dela,
oferecer alguns elementos para se pensar a literatura brasileira de modo geral.
Por isso, no ser dispensvel todo material antropolgico no qual a figurao da
Cobra vista na tentativa de se encontrar alguns vetores que possam ajudar a compreender
no apenas os mitos em si, mas tambm a prpria viso de mundo que neles se apresenta.
Desse modo, a corrente de estudos antropolgicos que ficou conhecida por ter ido
procura de um pensamento selvagem necessria para a pesquisa. Isso se deve ao fato
de que os estudiosos alinhados a essa vertente reconheceram que os mitos indgenas, alm
da enorme carga de ficcionalidade que traduzem nas histrias a que do forma, carregam
em seu bojo um potencial muito grande para formular uma vera e propria filosofia na
perspectiva indgena.
Para os estudiosos do pensamento selvagem, os personagens que aparecem nas
narrativas mticas podem ser um referencial primoroso para elaborar conceitos que nos
ajudam a entender melhor o mundo indgena e a relao que estabeleceram com a literatura
brasileira, por meio de livros que a elas fazem referncia. Vou procurar incorporar essa
perspectiva na formulao que irei fazer, tendo como base o significante Cobra. Esse,
ento, ser, alm dos mencionados personagem e mapa, tambm um conceito, o qual irei
cotejar com alguns termos da filosofia contempornea que podem nos ajudar a selar a
parceria entre os estudos dos mitos e elementos da teoria literria contempornea.
Dessa parceria, nasceu o termo que, de fato, foi o que entrou para o ttulo da tese
depois das vicissitudes acima mencionadas. Como disse, nem indigenista, nem
5 Imagem muito frequente nos livros Mormao na floresta (1981) e Amazonas: ptria da gua (2006).
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indgena, mas Cobra, ou seja, o nome de um animal selvagem que, alm de remeter aos
mitos indgenas, tambm faz referncia ao mundo do qual eles provm, assim como
possvel de compreender atravs de estudos antropolgicos que sobre ele foram feitos. O
termo selvagem, usado por alguns antroplogos que foram procura de parmetros pelos
quais pudessem estudar o mundo indgena, na tese, utilizado em uma posio que est no
meio do caminho, entre aqueles dois termos que no podemos evitar, mas com os quais
precisamos sim, tomar cuidado.
Com o terceiro termo (selvagem), posso dizer do lugar que realmente o
enunciador desta pesquisa gostaria de ser identificado, j que no pretende fazer apologia
do indigenismo e, muito menos, se investir de uma voz indgena. Sendo um trabalho
com pretenses analticas e tericas, no esconde, no entanto, a sua profunda simpatia pelo
o modo dos ndios de fazer literatura. Mistura, portanto, a ficcionalidade que sugerida
pelos mitos com termos da filosofia e da teoria literria contemporneas.
Tal viagem tem como objetivo observar, a partir dos livros que marcaram a
histria do indigenismo na literatura brasileira, os processos criativos que tornaram tal
literatura possvel. Sendo um personagem tirado dos mitos, portanto, com forte carga de
inventividade, o proceder da Cobra a maneira com que irei pesquisar como, ao
incorporarem os mitos indgenas nas suas obras, os escritores indigenistas deixaram-se,
diria, contaminar pelo proceder que se pode observar nos prprios mitos. Alm disso,
foram mais longe: com base no mito do qual se haviam apropriado, criaram uma obra que
diz muito do proceder literrio brasileiro e latino-americano. Sem isso, no seria possvel
formular a hiptese de que tal literatura tem uma singularidade que a define e marca o seu
modo prprio de ser e estar no conjunto do que se chama literatura mundial.
A Cobra, por conseguinte, tem um objetivo bem especfico ao se movimentar pela
literatura brasileira: focar nos procedimentos literrios que tornaram possvel o dilogo
com os mitos indgenas, o que ficar mais bem esclarecido na segunda parte da tese. Por
isso, sero de grande valia alguns conceitos que, na reflexo a respeito da literatura
contempornea, procuram levar em conta os procedimentos especificamente literrios.
Para tanto, alguns filsofos contribuem de maneira fundamental. Falo de modo especial
daqueles que pensaram na forma de compreender o que chamam de ato criativo,
inclusive para se entender no apenas a literatura e a arte, mas tambm a maneira humana
de pensar. De maneira particular, tenho em mente a filosofia de Nietzsche, que observou
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de forma aguda como, nas palavras de um dos seus intrpretes, conhecer criar.6 Para
dar conta de considerar isso, o filsofo alemo tornou-se um daqueles que melhor refletiu a
respeito do que chama de potencialidades criativas do pensamento, tema que vou
aproveitar para aproximar certos procedimentos observveis na escrita nietzschiana, que
levou alguns comentadores a considerarem-na selvagem,7 logo, podendo, por sua vez,
ser aproximada de narrativas indgenas.
Considero que uma das potencialidades que viro embutidas no conceito Cobra
mostra como alguns escritores exploraram (e exploram) bem a fora criativa que est
presente nos mitos indgenas, em especial aqueles relacionados com o mundo aqutico. Por
isso, vou sustentar a tese de que, na literatura brasileira, existe uma linhagem de escritores
que podem ser considerados ofdicos. Logo, vai se falar em uma escrita ofdica,
exatamente para mostrar como o imaginrio da Cobra, assim como aparece nos mitos
indgenas amaznicos, ajuda a compreender procedimentos literrios que so muito
singulares da literatura produzida no Brasil e em alguns pases da Amrica Latina.
6 Cf.: FOGEL. Conhecer criar: um ensaio a partir de Friedrich Nietzsche, 2003. 7 Falo de alguns livros de Roberto Machado e de Oswaldo Giacoia Jnior, apenas para citar alguns que irei
comentar mais adiante.
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I - 1 POTICA DA COBRA
No farei guerra ao feio; no acusarei, nem mesmo acusadores. Desviar o olhar: seja esta a minha nica negao.
Friedrich Nietzsche
Gostaria de comear aprofundando alguns motivos para a escolha do termo Cobra
como vetor principal da rede conceitual que vai nos ajudar a compor as condies de
possibilidade para sustentar uma leitura ofdica da tradio literria indigenista brasileira e
das suas (re)invenes contemporneas. Para tanto, neste captulo, irei traar caminhos
para que possa articular o que chamo de potica da Cobra, de modo a oferecer elementos
para construir, mais adiante, o principal conceito enunciado nesta tese, o de escrita ofdica.
Sendo assim, o uso da figura da Cobra visa a utilizar as foras que esto em jogo
na fenomenologia desse animal e na corrente imaginria que ele cria, de modo particular,
para aqueles que vivem nas margens dos grandes rios amaznicos, como algumas tribos
indgenas e uma vasta populao ribeirinha, cujos mitos oferecem um exuberante material
para quem se dispe a aproximar a literatura indigenista do assim considerado
pensamento selvagem.
Logo, a primeira definio da Cobra tem como finalidade formular uma
perspectiva8 da qual se possa observar os livros que compem o cnone literrio
indigenista brasileiro e a obra de escritores que, de certa forma, seguem uma linhagem que
oferece razes para afirmar que o referente ndio continua sendo um dos mais fortes
definidores do que se pode chamar de literatura brasileira. a partir da obra desses
escritores, cotejada pelo enquadramento de um referencial terico que usa os estudos
antropolgicos como fundo, que se vai afirmar que o imaginrio da Cobra, assim como
manejado dentro da cultura indgena amaznica, ajuda a definir a escrita ofdica. Essa, por
ser uma escrita, , claro, um procedimento bem especfico, que diz respeito ao uso da
lngua com a finalidade de compor obras literrias; e, sendo ofdica, aponta para a
possibilidade de aproximaes com o modo de proceder literrio indgena, que se
apresenta na maneira como a figura do animal em questo usada na escrita dos mitos,
assim como eles aparecem sistematizados nos livros da floresta.
8 Uso o termo no sentido nietzschiano, o qual irei explicar adiante.
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O uso do termo Cobra para falar de um procedimento literrio permite, como
disse, associ-lo a uma determinada potica. O conceito de potica assim entendido, e que
deve muito s pesquisas promovidas pelos formalistas russos e franceses no incio do
sculo XX, pressupe a existncia de um determinado uso da lngua com a finalidade de
criar efeitos literrios que possam falar, mais do que a lngua capaz de dizer, do prprio
uso da lngua como ferramenta potica; o que Roman Jakobson chamou de poesia da
gramtica e gramtica da poesia, nome de um dos seus mais conhecidos ensaios sobre
potica e lingustica.9 Interessa pesquisa, portanto, observar tais efeitos, que, por serem
trabalhados artisticamente, exigem um procedimento literrio sistemtico, que traa um
caminho terico que gostaria de definir nesta primeira parte da tese. Logo, necessrio
construir a potica da Cobra, alinhavando-a por meio de elementos retirados de certa
filosofia contempornea, que usa o conceito de potncia para aproxim-lo do que alguns
estudiosos da cultura indgena definem como fora, ou seja, como o mito indgena
proporciona a criao de cenrios, personagens e enredos dos livros que podem ser lidos
como parte de uma literatura indgena.10
1.1 Cobra, ser perfeito
Por contar com um corpo malevel, entre outras qualidades, a Cobra vista por
alguns povos indgenas e ribeirinhos da Floresta Amaznica como a prpria imagem de um
ser perfeito.11 Tome-se, guisa de um simples exemplo, a sua capacidade de pertencer ao
mundo aqutico, de transitar com uma desenvoltura invejvel pela terra e conseguir atingir
os galhos mais altos das imensas rvores da floresta. Por isso, no descabido concluir que
ela frequenta todos os reinos da natureza, o da gua, o da terra, o do ar. No se pode
esquecer tambm o do fogo, uma vez que aquele animal, por possuir um elemento
anatmico a lngua que se movimenta em forma de chama, tem, alm disso, a
capacidade de injetar, por meio daquele rgo, um elemento ardente o veneno , que,
9 Cf.: JAKOBSON. Lingstica, potica e cinema, 1970. 10 Literatura indgena, expresso que alguns pesquisadores da cultura indgena entendem por um conjunto
de mitos escritos que compe boa parte dos chamados livros da floresta. Alguns preferem falar em textualidades indgenas, assim, evitam o termo literatura, problemtico para a compreenso de escritas extraocidentais, como bem demonstrou Antnio Risrio, em seu Textos e tribos: poticas extraocidentais nos trpicos brasileiros, que irei comentar mais adiante.
11 Na segunda parte da tese, irei oferecer mais elementos para definir melhor a noo de perfeito.
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literalmente, queima o corpo de quem tem a infelicidade de ser alvo da sua investida, s
vezes, fatal. Logo, a vocao natural da Cobra para a viagem deixa marcas profundas nas
culturas daqueles povos. Alis, entre os povos indgenas, a Cobra o prprio emblema da
viagem que melhor define a sua forma de estar no mundo. Tanto que, para alguns povos,
como, por exemplo, os kaxinawa, o nome da cobra jiboia em lngua nativa o mesmo
daquele que, na mitologia desse grupo, fez a viagem xamnica originria e descobriu os
segredos do rio que se tornaram a chave para a compreenso do mundo que os rodeia.
Yube, a jiboia primordial, batiza tambm o primeiro xam.
Os detalhes dessa histria iremos conhecer no Intermeio da tese, mas, aqui,
cabe adiantar que, na sua viagem, Yube, o ndio, conseguiu o maior tesouro que algum
poderia legar a outro algum: o conhecimento, na perspectiva kaxinawa, de como o
mundo funciona, ou seja, uma sabedoria que parte da observao de que, no mundo, tudo
se movimenta (ou tudo flui, para ficar em uma das mximas de Herclito),12 e que,
portanto, existe algo que movimenta esse movimento (tambm para concluir de maneira
heraclitiana). Para aquele grupo, portanto, a jiboia no a imagem de um simples
movimento, mas do movimento do prprio movimento e, se fossem gregos, chamariam a
esse movimento de logos, como o fizeram os pr-socrticos.13
Se quisermos aplicar os termos que aqueles ndios usam para explicar esse duplo
movimento, podemos recorrer a duas palavras-chaves da cultura deles yuxin e yuxibu
estudados por Els Lagrou.14 Alis, devido ao grande alcance que a explicao daquelas
palavras tem para podermos entender melhor as possibilidades imaginativas e cognitivas
que a figura da cobra jiboia traz para os kaxinawa, convm logo apresentar o trecho no
qual a antroploga tenta definir aqueles termos, avisando, porm, que s irei efetivamente
tentar desatar o n dessa explicao inexplicvel quando chegar a oportunidade de
comentar alguns cantos kaxinawa, no Intermeio.
12 Para os que entram no mesmo rio, outras e outras so as guas que correm por eles... Dispersam-se e...
renem-se... vm junto e junto fluem... aproximam-se e afastam-se. Herclito de Efeso, apud KIRK; RAVEN. Os filsofos pr-socrticos, p. 198.
13 Os homens deviam tentar compreender a coerncia subjacente das coisas: ela est expressa no Logos, frmula ou elemento de ordenao comum a todas elas. Herclito de Efeso, apud KIRK; RAVEN. Os filsofos pr-socrticos, p. 189.
14 LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa, Acre), 2007.
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Yuxin o mais extenso e o mais polissmico conceito-chave da ontologia kaxinawa e, por isso, impossvel de ser exaustivamente circunscrito [...]. Um dos significados de yuxin a qualidade ou energia que anima a matria. Neste sentido, todos os seres vivos tem yuxin, yuxin que faz a matria crescer, que lhe d conscincia e forma. Este o sentido da declarao [...]: Sem yuxin tudo vira p (Antnio Pinheiro). Assim como contm yuxin, todas as formas corporificadas contm uma quantidade de gua. gua, ou lquido, so veculos do yuxin: outro veculo o deslocamento de ar, o vento e a respirao. Yuxin uma qualidade ou movimento que liga todos os corpos inter-relacionados neste mundo.15
Assim, como diz Lagrou, toda a pessoa tem os seus yuxin. Os estudiosos dos
kaxinawa geralmente falam em quatro yuxin concernentes pessoa humana: os que dizem
respeito ao excremento, urina, ao olho e sombra. Deles, vale destacar a potncia
atribuda ao yuxin responsvel pela viso, que, no momento em que a pessoa est
sonhando, consegue se deslocar para os mais variados lugares sem que o seu dono saia de
onde est. No momento em que o bedu yuxin escapa, um som assobiado (xe! xe! xe!)
ouvido e a rede da pessoa que dorme balana.16
As plantas e rvores tambm tm os seus yuxin. A samaumeira no s
conhecida por ser a maior rvore da Amaznia, mas tambm por existir, na sua cumeeira,
uma verdadeira aldeia de yuxin, segundo o que Lagrou ouviu dos seus guias. Aldeia que
serve, inclusive de hospedagem temporria para os yuxin dos mortos enquanto esperam a
viagem definitiva para a aldeia celeste.17
J com os yuxin dos animais preciso tomar muito cuidado, pois eles se parecem
muito com aqueles dos humanos. O do jabuti e o do jacar, por exemplo, muito forte,
porque eles foram parentes prximos dos kaxinawa antes de se transformarem no animal
com cuja forma normalmente eles se apresentam aos olhos humanos. Nesse aspecto, existe
uma diferena entre os animais que tm mais ou tm menos yuxin. Os dotados de
maior potncia so aqueles que ocupam um lugar importante na cadeia predatria sim,
mas, sobretudo, possuem um grau mais elevado de possibilidades de comunicao com os
15 LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa,
Acre), p. 347. 16 LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa,
Acre), p. 315; 323. 17 LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa,
Acre), p. 349.
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humanos.18 Da ocorre a distino entre animais que so yuxin e aqueles que tm
yuxin. Os que so ativos durante a noite, como a coruja, por exemplo, esto na lista dos que
so yuxin, porque, quando deveriam estar dormindo, esto cantando, gritando,
movimentando-se. Dessa forma, so vistos como mediadores dos dois mundos, o da luz e o
da escurido, que habitualmente esto separados. Outro elemento que define essa
classificao a capacidade de alguns animais de mudarem de forma durante a vida, como
a lagarta, que se transforma em borboleta.19
Existe, ainda, uma outra e importante distino no mundo dos yuxin: a que os
separa de um mundo muito mais poderoso, aquele ligado aos do yuxibu. A distino, como
sugere Lagrou, no simples, mas a antroploga apresenta, na etnografia sobre o grupo, o
depoimento de um kaxinawa, Paulo Lopes Silva, que me parece dar uma noo mais ou
menos aproximada do que se est falando: Yuxin tem o poder de virar outra coisa [...]
Yuxibu um milagre. Voc est com fome e eu sou yuxibu. Eu te dou comida na hora.20
Outro guia da antroploga, Agostinho Manduca Mateus, acrescenta mais um
detalhe importante na complexa distino. Para ele, os yuxin so seres desse mesmo mundo
que os humanos habitam, j os yuxibu so sempre do outro mundo, ningum v.21 Logo,
para Manduca, segundo a pesquisadora, a diferena bsica entre o que visvel e o que
invisvel, sendo este ltimo o atributo principal dos yuxibu, o que os torna livres, leves
e rpidos; enfim (acrescento eu): errantes por excelncia. Por isso, os yuxibu gostam tanto
da gua, segundo o que a antroploga ouviu dos kaxinawa. No mundo aqutico, eles se
sentem bem vontade, e podem procriar com abundncia.22
Ora, tudo o que se disse sobre os yuxibu colabora para voltarmos a olhar para as
qualidades de Yube. De fato, mais do que um animal que tem yuxibu, a cobra jiboia ,
para os kaxinawa, a prpria personificao do yuxibu. Embora caminhe pelo mundo no
18 LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa,
Acre), p. 260. 19 Cf.: LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa,
Acre), p. 357. 20 LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa,
Acre), p. 359. 21 LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa,
Acre), p. 360. 22 Cf.: LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa,
Acre), p. 363.
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qual os humanos caminham, ela vai muito, muito alm dos caminhos conhecidos, percorre
o mundo do invisvel e, por isso, a mediadora, por excelncia, aquela que detm os
maiores poderes xamnicos. Els Lagrou conta que, vrias vezes, ouviu os kaxinawa usarem
a expresso Yube paj.23
No se pode esquecer, porm, que a viagem do paj ou xam aquela que tem
sim, ingresso de ida, mas vai com o compromisso de voltar. O xam, como Yube, caminha
pelo mundo que normalmente no se v e, ao mesmo tempo, capaz de sair dele e falar
do que viu, ouviu ou tocou no mundo de l para aqueles que esto no mundo de c. Logo, a
capacidade de falar com os seres que visita definidora na viagem do xam. Isso
tambm claro na sua ligao com os yuxin/yuxibu.
A tal fala pode se manifestar, por exemplo, no momento da caa. Entre os
kaxinawa, o bom caador aquele que consegue convencer a caa a se entregar. Existe,
porm, uma arma que pode ser ainda maior do que essa e que, de certa forma, at impede o
caador de caar, se este, de fato, estiver sendo chamado pelos yuxin/yuxibu atravs do
animal que se coloca sua frente. Nesse caso, mais do que pedir para ser abatido, o animal
pede para conversar, deseja entregar ao caador uma presa que muito mais preciosa do
que o seu prprio corpo: deseja entregar para ele o seu prprio yuxin, por isso, comea a
falar. O xam, portanto, aquele que dialoga com os yuxin e com os yuxibu de todos os
seres e torna a linguagem usada algo compreensvel para os que no so xam. Os cantos
que fazem parte dos rituais xamnicos so veculos privilegiados para que a lngua dos
yuxin seja compartilhada com os demais humanos.
Como vimos, so grandes as potencialidades da Cobra como vetor para designar
o funcionamento do mundo. Nesse aspecto, os kaxinawa esto em perfeita sintonia com
muitos povos que tomam a figura daquele animal como imagem do conhecimento. Alis, o
Ocidente, apesar de muitas vezes fazer questo de esquecer os seus mitos fundadores, tem
na serpente um dos seus emblemas, lembra Gilbert Durant.24 Lembra ainda que, segundo a
23 LAGROU. A fluidez da forma: arte, alteridade e agncia em uma sociedade amaznica (Kaxinawa, Acre),
p. 210. 24 DURAND. Estruturas antropolgicas do imaginrio, 2002.
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tradio judaico-crist, a serpente quem conduz os ancestrais da humanidade at a rvore
do conhecimento, cujo fruto os levaria perdio. Sobre os gregos, diz Augusto de
Campos: H quem afirme ser a serpente, desde a Antiguidade, um smbolo da sabedoria,
como o indicaria o nome grego ophis (serpente), um quase anagrama de Sophia
(sabedoria).25
Essa associao feita na introduo traduo de Campos de alguns poemas de
Paul Valry, entre os quais bauche dun Serpent (Esboo de uma Serpente). De fato,
no texto citado, emerge um Valry profundamente ocidental, uma espcie de cristo
atormentado pelas aporias do conhecimento, como os gregos. Um cristo-grego, que usa a
imagem da serpente para tematizar a nsia de levar at as ltimas consequncias o ato de
pensar. Por isso, a sua serpente aparece geralmente nos esboos traduzidos por Campos
com a cauda dentro da boca, personificando a famosa figura do oroboro. Em um dos
versos diz: ... Acostumar-se a pensar como Serpente que se come pela cauda.26 o
animal que tudo devora e, no tendo nada mais para comer, ela volve a si mesmo.27
Forma-se o crculo, fechado como as portas do paraso depois de o homem ter se deixado
seduzir pelo animal mais astuto daqueles criados por Jav. A essa porta, a do paraso, mais
adiante retornarei.
J para os ndios, o fascnio que a figura da serpente exerce por propiciar uma
viagem que, como toda viagem tem os seus riscos e perigos, sem os quais, porm, jamais se
poderia conhecer novos mundos e seres. Para eles, portanto, o conhecimento pode ser
encarado como uma abertura para o que a viagem do conhecimento tem de desconhecido.
Conhecimento e desconhecimento, no caso, no se separam. O dilogo com a Yube
kaxinawa confirma isso, ao traduzir um conceito fundamental para conhecer a cultura
daquele grupo indgena: transformao, qual a pessoa e os demais seres esto sujeitos
por viverem dentro do tempo e do espao. sua condio de errante, claramente
observada na mudana de pele que ocorre no animal, que sintetiza nela uma metfora
muito forte sobre o corpo que muda a cada lugar e a cada tempo. Perspectiva. Alm disso,
os ndios sabem que, quanto mais a jiboia vive, mais ela cresce. um animal que nunca
25 CAMPOS, A. de. Paul Valry: a serpente e o pensar, p. 11. 26 Paul Valry, apud CAMPOS, A. de. Paul Valry: a serpente e o pensar, p. 113. 27 CAMPOS, A. de. Paul Valry: a serpente e o pensar, p. 113.
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para de crescer, a no ser quando, com a morte, transforma-se em animal yuxin e a vive
para sempre, transformada em... mito!
Como primeiro exemplo do que se pode chamar de literatura indgena, vou
comentar alguns cantos dos ndios kaxinawa que foram traduzidos pela pesquisadora da
Universidade Federal Fluminense, Claudia Neiva de Matos, uma das primeiras a chamar a
ateno para, alm da evidente relevncia antropolgica do conhecimento dos cantos, a sua
pertinncia literria como parte de um novo olhar para a produo artstica verbal dos
ndios brasileiros.
Vou pegar a verso apresentada no Encontro Internacional de Etnomusicologia,
realizado em outubro de 2000, em Belo Horizonte, e compilado, seis anos depois, no livro
que resultou do evento.28 O que Claudia Neiva chama de traduo no apenas a
transposio de uma lngua para a outra, mas o que define como experincia. Por isso,
admite que, se no contasse com a ajuda direta dos ndios, inclusive daqueles que exerciam
a funo de xam ou equivalente, no seria capaz de finalizar a tarefa. Isso porque o seu
interesse no era apenas apresentar os cantos como material meramente informativo sobre
a vida e a cultura dos ndios em questo. Como objetivo principal da traduo, ela diz ter
optado pela primazia do efeito potico. Logo, a parceria da pesquisadora com os ndios
envolvia, evidentemente, o campo etnogrfico, poltico e pedaggico, mas, sobretudo uma
experincia esttica que eu desejava vivenciar e compartilhar. Portanto, o maior desafio
que se apresentou diante da tarefa tradutria foi encontrar, segundo ela, a maneira mais
adequada de traduzir para a escrita algo que tem sua origem e o seu sustento no mundo da
oralidade, ou seja, dar conta, em um texto destinado leitura, dos complexos efeitos
estticos logrados por uma poesia vocal, musicalizada e sobretudo construda num
amlgama expressivo que inclui a linguagem corporal e os gestos.29 Assim, ela procurou
manter o texto traduzido o mais prximo possvel das expressividades sonoras, das
28 Cf.: TUGNY; QUEIROZ. Msicas africanas e indgenas no Brasil, 2006. 29 MATOS. A traduo de cantos indgenas, p. 187-190.
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associaes metafricas, das rupturas sintticas e dos desvios do padro comunicacional
que caracterizam os cantos kaxinawa.30
A palavra fora (shunume)31 chama a ateno na traduo de Claudia Neiva. Ela
confirma que, para os kaxinawa, a jiboia, para aumentar ainda mais o seu poder, alia-se a
um outro bicho, o japiim, que detm, na tradio daquele grupo, a possibilidade de falar
outras lnguas, logo a condio de penetrar em mundos estrangeiros.32 Aliados, jiboia e
japiim, no canto abaixo, conversam com a fora:
Yube isku naw Yube shubu merabi Nenu bima tsaushu Nawa huni ju ki Pae yu shunume
(Jibia e povo Jap A Jibia na tocaia Espera longe daqui Eles esto fofocando Fofocando para a fora)33
Por possurem a fora que os personagens que aparecem no canto podem
transitar pelos mundos. No evento em que a viagem acontece, geralmente em rituais
importantes da tribo, jiboia e japiim assumem corporao na figura do cantor, o que
implica que a sua presena fundamental para que a viagem, de fato, acontea. Disso fala
o prprio nome que designa o papel do cantor em lngua kaxinawa, txana, o mesmo para
designar o pssaro japiim em lngua nativa. De fato, aquele que pretende embarcar na
viagem precisa do auxlio do cantor, para que o caminho seja feito de forma realmente
eficaz. O cantor, alm de ser aquele que invoca a fora que impulsiona a viagem, tambm
auxilia para que o viajante assuma a maneira correta para obter as vises sem que seja
vtima dos seus excessos. Disso, resulta a cadeia que forma a viagem, uma vez que o
cantor, ele mais ainda, deve buscar auxlio na fora. Alis, o prprio termo, fora, j uma
30 MATOS. A traduo de cantos indgenas, p. 184. Grifo meu. 31 Trata-se da presso da experincia alucingena, mas tambm do brilho, da cor e do movimento dessa
experincia, a que os ndios chamam de mirao, que imita o movimento de uma cobra quando vista nos rios ou nos caminhos abertos por ela na mata.
32 Para aprofundar esse assunto, conferir: Xamanismo e traduo, de Manuela Carneiro da Cunha, em: NOVAES (org.). A outra margem do Ocidente, 1999; ver ainda, da mesma autora: Pontos de vista sobre a Floresta Amaznica: xamanismo e traduo, 1998.
33 O trecho parte da traduo feita por Claudia Neiva, em parceria com Joaquim Man, de um Huni meka (canto do cip). Cf.: MATOS. A cano da serpente: poesia dos ndios kaxinawa, p. 195-198.
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espcie de trnsito, como mostra o estudo de Matos. Em lngua kaxinawa, existe o termo
equivalente pe, que, por sua vez, vem compor o nome nixi pe, dado bebida
alucingena preparada com um tipo de cip (Banisteriopsis caapi) e a folha chamada
rainha (kawa), tambm conhecida como ayahuasca, cuja ingesto est no centro do ritual
em que os cantos so entoados.
O termo cip, por sua vez, atravessado por tantas outras significaes,
inclusive aquela com a qual os prprios ndios se autodenominam: Huni kuim34 (gente
verdadeira). Huni, portanto, assume o significado de humano, que serve para designar o
prprio cip. Tanto que os cantos que se referem a ele chamam Huni meka (cantos do
cip). Como se percebe, h uma cadeia de relaes entre os nomes, que se pode
igualmente observar nos estudos de Neiva de Matos, que mostram o carter errante da
fora, que tambm, nos cantos, aparece com o nome de onda. Eis um exemplo:
E ix kapin, e Ix Kapin Pae yabi Munui
(anda, anda, meu Ix Dana na onda da fora)35
O verso mostra que a dana, ou o carter errante da fora, determina tambm a
postura do cantor. Esse, como diz Matos, canta por muito tempo, enunciando dezenas,
centenas de versos em ritmo, entonao meldica e uso da voz regular, repetitivos, com a
msica mantendo o rumo e os versos a danar em textos cclicos, desfiados e sem fim.36
A ttulo de exemplo, eis um outro trecho da traduo de Neiva de Matos:
Pae treni Tereana paeme H pae dibime Haira haira, haira haira e,e,e,e,e,e,e,e... Haira haira, haira haira e,e,e,e,e,e,e,e...
(Dobrando dobrando a fora Dobra mesmo e mais a fora Toda fora que ele tem Haira haira, haira haira e,e,e,e,e,e,e,e... Haira haira, haira haira e,e,e,e,e,e,e,e...)37
34 Essa expresso aparece grafada de vrias maneiras nos estudos sobre os kaxinawa. Neste momento, vou
optar pela forma como Claudia Neiva a escreveu. 35 MATOS. A traduo de cantos indgenas, p. 198. 36 MATOS. A cano da serpente: poesia dos ndios kaxinawa, p. 90. 37 MATOS. A traduo de cantos indgenas, p. 41.
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Para os dois ltimos versos, por exemplo, que comeam por Haira haira e
terminam por e,e,e..., no existe uma traduo porque o sentido deles apenas o que
os kaxinawa chamam de som, outro nome da fora. O som, nas palavras de Neiva de
Matos, so seqncias rtmicas de slabas no significantes, onde pululam sons voclicos
e aspirados, com efeitos hipnticos e encantatrios.38 o que ela chama tambm de
palavra cantada,39 termo importante para a pesquisa, que irei tratar no momento em que
apresentar a traduo e leitura de cantos realizadas por Daniel Guimares, em estudos
feitos sob a orientao de Claudia Neiva.
1.2 Potencialidades criativas ofdicas
Diante do que foi dito, a tarefa que se coloca oferecer alguns elementos para
sustentar a possibilidade de construir uma potica que tenha como referncia os mitos
indgenas de modo geral, e a figura da Cobra de maneira particular. Acredito ter oferecido
alguns desses elementos, quando tratei, na parte anterior, das noes de fora e viagem,
assim como abordadas por Matos (2006) e Lagrou (2007). Para que essa tarefa avance,
necessrio aproximar aquelas noes da linhagem de pensadores que, de alguma forma,
colocaram-se na aventura de entender o que chamam de pensamento selvagem.
O termo tornou-se mais conhecido a partir de um livro do antroplogo francs
Claude Lvi-Strauss, um dos mais importantes pensadores dessa linhagem.40 Publicado
originalmente em francs, em 1962, a referida obra pde dialogar com outros pensadores
que abriram as veredas para que se rompesse uma certa viso humanista que, de alguma
forma, se colocou como obstculo para o avano da pesquisa filosfica quando essa foi
chamada a tomar algumas posies diante dos impasses atuais, como o que diz respeito ao
uso da natureza pelas tecnologias inventadas pelo homem.
Farei, portanto, um breve comentrio do livro de Lvi-Strauss, cotejando-o com
outros dois livros O cru e o cozido (2004) e Tristes trpicos(1996) , de modo a preparar
o terreno para cercar melhor a noo de selvagem, que pode ser observada tambm na
obra do filsofo alemo Friedrich Nietzsche, seguramente um dos principais pensadores
38 MATOS. A cano da serpente: poesia dos ndios kaxinawa, p. 93. 39 MATOS. A traduo de cantos indgenas, p. 196. 40 Trata-se exatamente daquele que se chama O pensamento selvagem (1989).
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responsveis por uma, assim chamada, filosofia selvagem, exatamente por ter colocado a
noo de animal, alm do humano, na pauta das investigaes filosficas contemporneas.
Ao aproximar as categorias do pensamento ocidental s que observou nas ditas
comunidades primitivas, Lvi-Strauss preparou o terreno para desmontar uma consistente
(e preconceituosa) posio que associava (e ainda associa) o modo de vida dos ndios a
uma espcie de negativo, tendo em vista o padro de sociedade (essa tambm dita)
civilizada. Assim, ele colocou um dito tanto diante de uma, da primitiva, quanto de
outra, a civilizada. Tal dito quer dizer que, na viso do antroplogo francs, o que
separa uma da outra no tanto o fato de que a primeira tenha evoludo do seu estgio
primitivo, no qual a primeira permaneceu. O dito coloca em cheque no tanto o termo
civilizado, mas o primitivo, de modo que este passa a conter o foco que vai questionar
aquele.
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que o antroplogo, de certa forma, pratica, em
seus estudos, o que ele pretende estudar, ou seja, torna selvagem o seu pensamento para se
aproximar do pensamento amerndio.41 Mas, ento, o que seria o selvagem para um
pesquisador europeu, educado na mais fina escola que a civilizao ocidental produziu,
absorvendo largamente uma cultura clssica, como seria esperado de um francs nascido
no incio do sculo XX?
A faanha de Lvi-Strauss foi exatamente promover a aproximao entre o mundo
no qual tinha nascido e estudado e o (dito) mundo selvagem dos ndios que ele
encontrou, por exemplo, no perodo em que morou no Brasil, de 1934 a 1938, onde teve a
oportunidade de estabelecer um contato direto com algumas tribos amaznicas, como conta
no seu conhecido Tristes trpicos (1996). Ao chegar s terras tropicais, o educado francs
vem trazendo, claro, a viso que ele tinha do mundo que, at ento, melhor conhecia, e que
far colidir com esse que encontrou, como se fosse uma espcie de mata virgem, para
usar um termo que o colocaria diante dos livros de Jean-Jacques Rousseau, lido no tempo
dos estudos universitrios, como tambm relata em Tristes trpicos.
41 Dir sobre esse exerccio de aproximao: Assim, este livro sobre os mitos , a seu modo, um mito. Cf.:
LVI-STRAUSS. O cru e o cozido. Mitolgicas I, p. 24.
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A diferena entre a mata que encontrava em suas caminhadas, nas proximidades de
Paris, e aquela com a qual se deparou no Cerrado brasileiro pedia, por assim dizer, uma
questo de ordem; ou seja, havia um ordenamento na mata francesa que no era
percebido, de imediato, na brasileira, pois esta exigia um esforo muito maior, no
somente pelo fato de que, para ele, as matas brasileiras eram totalmente desconhecidas,
mas tambm porque, aqui, ele encontrou uma exuberncia e uma vastido h muito
sumidas da paisagem europeia.
Dessa forma, quando chega ao Brasil, o antroplogo vai colocar prova o que
chamou de mtodo geolgico. O que o gologo teria a ensinar a Lvi-Strauss, de modo
que ele visse, na maneira como aquele profissional observa a paisagem que deve estudar, a
maneira que iria assumir para observar a paisagem brasileira? No primeiro momento de
estudo, o gelogo reconhece que a paisagem se apresenta de maneira desordenadamente
complexa, s vezes at catica. Mas reconhece tambm que, se fizer um corte no solo, vai
comear a entender muitas dos aspectos que, a olho nu, no possvel observar,
exatamente porque eles s se do a entender em uma dimenso mais aprofundada do lugar
onde os elementos que compem a paisagem se encontram.
Quando se trata de colocar o elemento humano, a paisagem torna-se ainda mais
complexa, mas descortin-la a funo da antropologia, segundo o francs. Sendo assim, o
antroplogo que se depara com uma sociedade que to diferente da sua, a ponto de
sucitar-lhe um profundo estranhamento, ter como desafio exatamente entender que, para
os costumes e comportamentos que no entende em um primeiro contato, existe sim,
inteligibilidade, que a convivncia com o estranho pode tornar familiar. Mas esse familiar,
como veremos com mais cuidado quando abordarmos a noo freudiana de estranho, ao
contrrio de submeter o estranho s suas prprias leis, apenas o convoca para uma
convivncia na qual ele no deixa de permanecer estranho. Por isso, alguns comentadores
da obra de Lvi-Strauss sustentam que, para ele, a questo no substituir uma
complexidade por uma simplicidade, mas uma complexidade menos inteligvel por uma
complexidade mais inteligvel.42 Logo, o estruturalismo seria uma tentativa de mostrar
que a aparncia initeligvel, catica, desprovida de ordem de um fenmeno qualquer pode
42 GOLDMAN. Lvi-Strauss, a cincia e outras coisas, em: QUEIROZ; NOBRE (org.). Lvi-Strauss:
leituras brasileiras, p. 66.
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ser substituda por ligaes lgicas entre as diversas partes desse fenmeno, o que,
imediatamente, o torna inteligvel.43
Foi ento que, ao modo dos viajantes do sculo XIX, passou a recolher material
daquela paisagem humana para tentar descobrir o que lhe garantia a inteligibilidade.
Recolheu todo o tipo de artefatos, de relatos, de exemplares do ambiente e da vida dos
ndios que lhe garantiriam, por toda a sua longa trajetria acadmica, um vasto material de
estudo. A um deles, dedicou especial ateno, exatamente porque, nele, poderia testar o
maior alcance do seu mtodo geolgico, aquele que suspeitava da multiplicidade daquilo
que via, cogitando a ordem que, embora invisvel, era a que garantia a possibilidade da
prpria multiplicidade do fenmeno. Essa realidade ele via claramente se descortinar nos
mitos dos ndios brasileiros, de modo que, para ele, esses passaram a ser a maior fonte de
investigao, a que iria resultar na sua obra de maior flego e que lhe ocupou pelo menos
uns 20 anos de vida , publicada posteriormente em quatro volumes; ou, como dizem
alguns comentadores, as monumentais Mitolgicas (1964-1971).44
O nome da coleo j indica a filiao clara ao mtodo geolgico. Em um
terreno em que tudo possvel, que no existe limite para os acontecimentos, como caso
da maneira como os mitos indgenas so construdos, qual , ento, a lgica que guia
essa construo? Conforme j suspeitava, acabou por reconhecer que a mesma que guia
qualquer pessoa no seu trabalho de dar sentido para o que v, para o que experimenta,
enfim, para o que vive. Assim, sustentou que, de fato, o pensamento selvagem possua as
mesmas condies de possibilidade de qualquer outro tipo de pensamento, mesmo os mais
evoludos. Esclareceu, ento, que esse pensamento selvagem no era o pensamento dos
selvagens nem o de uma humanidade primitiva e arcaica mas o pensamento em estado
selvagem, diferente do pensamento cultivado ou domesticado com vistas a obter um
rendimento.45 Dessa forma, o termo pensamento selvagem, enfatiza Goldman, no se
ope a pensamento civilizado, mas a pensamento domesticado.46
43 GOLDMAN. Lvi-Strauss, a cincia e outras coisas, em: QUEIROZ; NOBRE (org.). Lvi-Strauss:
leituras brasileiras, p. 66. 44 A clebre tetralogia de Lvi-Strauss inclui, alm de O cru e o cozido (1964), Do mel s cinzas (1967), A
origem das maneiras mesa (1968), e, finalmente, O homem nu, de (1971). 45 LVI-STRAUSS. O pensamento selvagem, p. 245. 46 GOLDMAN. Lvi-Strauss, a cincia e outras coisas, em: QUEIROZ; NOBRE (org.). Lvi-Strauss:
leituras brasileiras, p. 71.
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Foi por essa ocasio que apareceu sua famosa tese a respeito do que chamou de
cincia do concreto, expresso que batiza um dos captulos-chave de O pensamento
selvagem. Uma das questes que nortearam sua investigao foi observar como o
pensamento se manifestava, por exemplo, nos mitos, nos quais a lei da metamorfose a
dominante (ora o agente est gua, ora pedra, ora animal, ora gente). Em poucas palavras, a
tese sustenta que a cincia colocada em prtica pelos amerndios, diferentemente do
modo de proceder do dito saber civilizado, no se desenvolve por meio de ferramentas
conceituais para dar conta das particularidades empricas de um determinado objeto,
situao ou atitude; se cogita a existncia de um, diria, conceito, no sentido filosfico
ocidental, ser pela via inversa do dito civilizado, posto que comea pelo concreto,
ou seja, com a criao de uma imagem ou, para se manter na lgica dos mitos, de um
personagem.47
Assim, os animais que aparecem em determinado mito, como aquele da origem do
fogo dos bororo,48 por exemplo, uma maneira de oferecer uma soluo concreta para
um determinado problema que se manifestava, porm, na sua forma abstrata; no caso, uma
reflexo a respeito no apenas do fenmeno fogo, mas do seu valor como signo e
smbolo, ou seja, como definir um elemento de vital importncia para o cotidiano e para
cosmologia indgenas. Logo, uma das sadas que tal pensamento encontra evitar (ou
desviar) fazer uma cadeia argumentativa, mas contar uma histria, geralmente partindo da
curiosidade a respeito da criao do fogo, portanto, de quem seria o seu dono.49
Aparece, ento, a ona, por algumas qualidades que podem ser atribudas ao fogo, como,
por exemplo, os seus olhos que brilham tanto no escuro que at chegam a iluminar a
paisagem, assim como ela aparece retratada em alguns mitos; logo, o uso de qualidades
sensveis para exprimir ideias abstratas. Ona, portanto, alm de personagem de uma
histria, tambm uma categoria do pensamento; ou, se preferirmos, um conceito.
47 Tanto que, na abertura de Mitolgicas, na introduo de O cru e o cozido, esclarece: O objetivo deste
livro mostrar de que modo categorias empricas, como as de cru e de cozido, de fresco e de podre, de molhado e de queimado etc., definveis com preciso pela mera observao etnogrfica, e sempre a partir do ponto de vista de uma cultura particular, podem servir como ferramentas conceituais para isolar noes abstratas e encande-las em proposies (LVI-STRAUSS. O cru e o cozido, p. 19).
48 Trata-se do primeiro mito de Mitolgicas, que aparece na primeira parte de O cru e o cozido (Mitolgicas I). 49 Entenda-se por dono no o sentido de posse de alguma coisa por algum; mas como intermediador
entre a coisa da qual dono e a vontade humana de tambm possuir tal coisa. Para essa discusso, conferir a introduo de Beatriz Perrone-Moiss s Mitolgicas I, O cru e o cozido.
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Dessa forma, Lvi-Strauss no deixa de prosseguir uma larga tradio do
pensamento ocidental. A pergunta dos pr-socrticos, que assume certo direcionamento
bem especfico a partir de Plato e Aristteles, constitui-se na mesma suspeita do
antroplogo francs, de que o que via acontecer na natureza, na sua mais completa
metamorfose, de que tudo estava em movimento, havia para tanto um princpio ou, como
vai chamar Herclito, um logos. Alis, tal princpio, para Herclito, podia se
manifestar na ona; quero dizer: no fogo. J para Tales de Mileto, para quem a natureza
estava cheia de deuses, ou seja, de mitos, o princpio ordenador da natureza podia ser
visto na gua, de onde, para ele, tudo provinha. Se colocado na boca de um ndio
amaznico, as palavras de Tales podiam soar assim: logo(s), tudo Cobra.
A Cobra de Nietzsche, no entanto, talvez seja ainda mais selvagem do que a de
Lvi-Strauss. Isso pode ser observado atravs da reflexo que ele empreende a respeito de
um problema central da filosofia: o que o conhecimento? Como j disse, para o filsofo
alemo, conhecer criar. Precisamos, portanto, melhor entender essa afirmao, pois nela
h preciosas indicaes para se ampliar o que anteriormente disse a respeito de Lvi-
Strauss, o antroplogo que se colocou a tarefa de entender como, por meio dos mitos
indgenas, poderia extrair uma vera e propria filosofia.
Nietzsche, claro, est em franco dilogo com a tradio filosfica, embora sempre
tenha feito questo de deixar claro que a ela sempre estaria aplicando um desvio.50 Tal
desvio se pode verificar atravs da relao estreita que manteve com dois pensadores que o
antecederam. A respeito do primeiro, conhecido o seu ferrenho antiplatonismo. Queria,
dessa forma, sair do que considerou a matriz do pensamento metafsico, aquele sustentado
na teoria dos dois mundos de Plato. Nessa, o que se mostrava acessvel aos olhos, diria, ao
mundo do visvel, teria que fazer referncia a um outro mundo, no qual estaria a
inteligibilidade do primeiro.
O outro pensador a que se deve fazer referncia para compreender a filosofia de
Nietzsche o seu compatriota, Immanuel Kant. Nietzsche considerava a filosofia de Kant
50 Aqui me sirvo do interessante estudo de Slvia Pimenta Vellloso Rocha, Os abismos da suspeita:
Nietzsche e o perspectivismo ( 2003).
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um marco, porque, embora no houvesse dado conta de escapar totalmente da postura
metafsica, a ela coloca um problema que iria contribuir muito para a sua desmontagem.
De fato, com Kant, entra explicitamente na pauta da filosofia o problema dos limites do
conhecimento. Partia-se, antes de Kant, de que tudo o que existe pode ser conhecido. O
filsofo alemo vai dar um acento novo quela postulao, defendendo que, tudo o que
existe de fato possvel de ser conhecido, desde que se tenha instrumentos para isso.
Logo, postulava que o conhecimento impunha algumas condies. Conhecer estaria restrito
ao que o aparelho corporal humano pode captar, portanto, no poderia fugir das categorias
de tempo e de espao s quais tudo que vive no mundo est submetido. Sendo assim, o
conhecimento s seria possvel dentro do que o filsofo alemo chamou de fenmeno,
logo ao mundo do visvel e do perceptvel pelos sentidos. Mesmo assim, no descarta a
possibilidade de que o outro mundo, o do em-si, possa existir. Se existe (e Kant
realmente acreditava que pudesse existir) no pode, porm, ser conhecido.51
Como, ento, podemos observar melhor o desvio, j que Nietzsche nunca
escondeu a dvida que tinha para com aqueles dois filsofos? Para encaminhar a questo,
farei meno a dois temas importantes para esta pesquisa e que, aos poucos, sero
esclarecidos.
O primeiro diz respeito relao original/cpia, da que lanarei mo para
entender como as teorias da traduo podem ajudar a esclarecer o pensamento que se
encontra nos mitos indgenas. Aquela relao, por sinal, assinala um lcus determinante
para se entender a filosofia ocidental, uma vez que ela j est presente naquele que, para
Nietzsche, o seu fundador, exatamente Plato. O conhecido mito da caverna, que
aparece no Livro VII, de A Repblica, oferece indicaes para aproximar a teoria dos dois
mundos quela relao mencionada.52 Portanto, o mundo inteligvel seria aquele que
equivaleria ao original, se levarmos em conta que, para Plato, nele estariam as condies
51 Essa reflexo, que permeia toda a obra de Kant, merece uma discusso a mais em Crtica da razo pura,
2012. 52 Para aprofundar a questo, remeto aos comentrios de Bernard Piettre ao referido dilogo de Plato, que
est na edio publicada pela editora da Universidade de Braslia, de 1985, exatamente intitulada Plato: A Repblica: Livro VII. Neles, aparece o jogo de luz e sombra que permeia todo o dilogo. Os raios de sol chegam a penetrar na caverna, mas no conseguem chegar ao fundo, onde esto os prisioneiros. L s chega um reflexo de um outro reflexo, aquele que se manifesta na entrada da caverna. desse duplo reflexo que as sombras se formam e que, no entanto, so encaradas como a verdadeira realidade pelos prisioneiros. Do original, que nesse caso o sol, s chega uma cpia da cpia para o homem da caverna de Plato,
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para que o outro mundo, o do sensvel, fosse, de fato, conhecido. Esse, portanto, seria visto
como uma espcie de cpia do outro. No podemos esquecer, porm, que, para Plato,
existem a cpia (assim, entre aspas) e a cpia. A que ele combatia era a com aspas,
qual chamava de simulacro, ou seja, a cpia de uma cpia. Na famosa querela com os
poetas, considera que esses, por estarem mais preocupados com a cpia da cpia, deveriam
ser expulsos da Repblica. Nela, o filsofo poderia permanecer, porque ele sim, mesmo
sabendo que todo visvel s cpia do inteligvel, optaria por ficar com a cpia, diria,
verdadeira.
Como se sabe, a briga efetiva de Nietzsche com Plato no tanto por causa da
cpia que ele prega ser atribuda ao
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