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Page 1: ACROPATIA ÚLCERO-MUTILANTE FAMILIAR · Hemossedimentação: 15 mm na pri-meira hora. No sangue: uréia 19 mg%; glicemia 100 mg%; colesterol 160 mg%; fosfatase alcalina 12,96 unidades

ACROPATIA ÚLCERO-MUTILANTE FAMILIAR

CONSIDERAÇÕES A PROPÓSITO D E TRÊS CASOS

WILSON SANVITO *

A acropatia úlcero-mutilante familiar (AUMF) caracteriza-se por um quadro sensitivo-trófico de fundo nitidamente hereditário. É também co­nhecida como doença de Thévenard, na França, e neuropatía sensitiva de Denny-Brown, nos países de língua inglesa.

Justificamos o presente registro por se tratar de doença rara, pela ausência de registro de casos na literatura médica brasileira, pela impor­tância que assume esta doença no diagnóstico diferencial do mal perfu-rante plantar, pela relativa freqüência em nosso meio da neuroleprose, entidade que entra no diagnóstico diferencial da AUMF e, finalmente, pela confusão freqüente entre a AUMF e a siringomielia.

Cumpre ressaltar que dos três casos aqui apresentados, dois foram estudados tanto do ponto de vista clínico como paraclínico, enquanto que do terceiro caso foi feita apenas a observação clínica, pois trata-se de paciente examinada em zona rural. Os três doentes pertencem a uma mesma família.

O B S E R V A Ç Õ E S

CASO 1 — José R. , 39 anos , b r a n c o , b ras i l e i ro , c a s a d o , e x a m i n a d o e m 11-1-1967. I n í c i o da m o l é s t i a h á a p r o x i m a d a m e n t e 20 anos , c o m e d e m a e r u b o r n o h á l u x d i re i to , q u e l o g o se t r a n s f o r m o u e m b o l h a s a n g ü í n e a a c o m p a n h a d a de f eb re ; o p a c i e n t e f o i h o s p i t a l i z a d o e so f reu a m p u t a ç ã o d o h á l u x . A c i c a t r i z a ç ã o da fe r ida c i r ú r g i c a se p r o l o n g o u p o r 4 m e s e s e, an te s de se c o m p l e t a r , j á h a v i a se ins ta­l a d o u m a u l c e r a c ã o v i z i n h a a o d e d o a m p u t a d o . U m a n o e m e i o a p ó s a a m p u ­t a ç ã o d o h á l u x d i re i to su rg iu b o l h a de s a n g u e e n t r e o h á l u x e o s e g u n d o a r t e lho e s q u e r d o , q u e se r o m p e u , d a n d o sa ída a m a t e r i a l s e r o p u r u l e n t o e, a l g u n s t e m p o depo i s , o p r ó p r i o p a c i e n t e r e t i rou f r a g m e n t o ó s s e o d o h á l u x e s q u e r d o . A segui r , s u c e s s i v a m e n t e , t o d o s o s a r t e lhos de a m b o s o s pés s o f r e r a m a m p u t a ç õ e s e s p o n t â ­neas . N u n c a h o u v e r e g r e s s ã o c o m p l e t a das l esões . E m 1953, a p ó s t r a u m a t i s m o , fo i necessá r i a a a m p u t a ç ã o c i r ú r g i c a d o pé d i re i to . N o m o m e n t o ap resen ta ú l c e ­ras tó rp idas nas e x t r e m i d a d e s d is ta is d e a m b o s os m e m b r o s in fe r io res . R e f e r e d o r e s n a s e x t r e m i d a d e s a c o m e t i d a s , a p e n a s n a v i g ê n c i a d e p r o c e s s o s i n f e c c i o s o s . N e g a pares tes ias o u o u t r a s a l t e r a ç õ e s s u b j e t i v a s da sens ib i l idade . Antecedentes pes­soais — N a d a d i g n o de no t a . N ã o f u m a e n ã o b e b e . Antecedentes familiais — N e g a c o n s e g ü i n i d a d e na f amí l i a . A a v ó p a t e r n a e ra p o r t a d o r a de m o l é s t i a s e m e ­l h a n t e à sua e v e i o a f a l e c e r d e d o e n ç a i n t e r c o r r e n t e s e m o s do i s pés . O pa i t a m b é m era p o r t a d o r de m o l é s t i a s eme lhan t e , q u e t e v e in íc io a o s 28 a n o s de

T r a b a l h o da C l ín i ca N e u r o l ó g i c a d o H o s p i t a l d o S e r v i d o r P ú b l i c o d o E s t a d o d e S ã o P a u l o ( D i r e t o r : Dr . R o b e r t o M e l a r a g n o F i l h o ) : * Ass i s t en te .

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i d a d e c o m u l c e r a c õ e s nos d e d o s de a m b o s o s pés, a l é m de dores e r e t r a ç õ e s nas m ã o s e, q u a n d o f a l e c e u a o s 65 anos , t inha t o d o s os d e d o s das m ã o s e d o s pés a m p u t a d o s . Era t a b a g i s t a e e t i l i s ta i n v e t e r a d o . D o s f ami l i a r e s v i v o s , t e m o s n o t i ­c i a de u m s o b r i n h o p o r t a d o r d e m a l p e r f u r a n t e p lan ta r , a l é m de u m f i l ho e de u m a i r m ã c o m a m e s m a d o e n ç a , q u e s e r ão o b j e t o das o u t r a s duas o b s e r v a ç õ e s des te t r a b a l h o . Exame clínico-neuurológico — M u t i l a ç õ e s e x t e n s a s nas e x t r e m i ­dades dis ta is de a m b o s os m e m b r o s in fe r iores , c o m a m p u t a ç ã o d o pé d i re i to , n o qua l o c o t o ap resen ta - se d i s f o r m e e s a l p i c a d o de p e q u e n a s u l c e r a c õ e s c o n t e n d o m a t e r i a l p u r u l e n t o . O p é e s q u e r d o t e m a s p e c t o de pé c ú b i c o , a p r e s e n t a n d o - s e dis­f o r m e , e d e m a c i a d o , c o m r e a b s o r ç ã o de a l g u m a s f a l a n g e s e c o m e n o r m e u l c e r a -ç ã o na f a c e p l a n t a r ( F i g . 1, A e B ) . H i p o t r o f i a m u s c u l a r g l o b a l n o m e m b r o in­fe r io r d i re i to . H ipoes t e s i a tat i l , t é r m i c a e d o l o r o s a a té o t e r ç o m é d i o de a m b a s as pe rnas e a té o t e r ç o in fe r io r dos a n t e b r a ç o s . R e f l e x o a q u i l e o e s q u e r d o a b o ­l i d o ; à d i re i ta pesqu i sa p r e j u d i c a d a . O p a c i e n t e a n d a a p o i a d o e m bas t ão , e m v i r t u d e das m u t i l a ç õ e s , s e n d o o m e m b r o i n f e r io r d i re i to m a i s c u r t o q u e o e sque r ­d o . N ã o há de f i c i t de f o r ç a . N ã o h á e s p e s s a m e n t o de n e r v o s pe r i f é r i cos . O pa ­c i en t e é n o r m o t e n s o e o e x a m e d o a p a r e l h o c a r d i o v a s c u l a r n a d a r e v e l o u de a n o r ­m a l ; os pu l sos pe r i f é r i cos são p e r m e á v e i s e b e m ba t i dos . Exames complementares — Líquido céfalorraquidiano ( p u n ç ã o l o m b a r ) n o r m a l . Hemograma: 4.500.000 er i ­t r o c i t o s p o r m m 3 ; 13,3 g de h e m o g l o b i n a ; 5.950 l e u c o c i t o s p o r m m 3 ( 1 % de n e u -t ró f i l o s bas tone te s , 3 0 % de neu t ró f i l o s s e g m e n t a d o s , 3 7 % de eos inó f i l o s , 3 1 % de l in fóc i tos , 1% de m o n ó c i t o s ) . Hemossedimentação: 26 m m na p r ime i r a h o r a . No

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s a n g u e : u ré i a 20 m g % ; g l i c e m i a 105 m g % ; c o l e s t e r o l 215 m g % ; fos fa t a se a l c a ­l ina 5,4 un idades K i n g - A r m s t r o n g p o r 100 m l de s o r o . Reaçeõs sorológicas para lues, n e g a t i v a s . Eletroforese das proteínas séricas: d i m i n u i ç ã o d e a l b ú m i n a e au ­m e n t o d e g a m a g l o b u l i n a . Provas de função hepática n o r m a i s . Exame parasitoló­gico de fezes: o v o s de a n c i l o s t o m o d u o d e n a l e . Eletromiograma: d i m i n u i ç ã o d a m é ­d i a de d u r a ç ã o d o s p o l i f á s i c o s de a ç ã o d o s m ú s c u l o s dis ta is d o s m e m b r o s in fe ­r iores . Biópsia de músculo e nervo periférico: n e r v o s pe r i f é r i cos c o m d i s c r e to e d e m a in te rs t ic ia l ; a r té r ias in te rs t ic ia i s c o m h iperp las ia da m é d i a e da ín t ima ; m u s c u l a t u r a e s q u e l é t i c a s e m a l t e r a ç õ e s h i s t o l ó g i c a s . Radiografias do esqueleto: l e sões o s t e o l í t i c a s g r a v e s nas e x t r e m i d a d e s dis ta is de a m b o s os m e m b r o s infer iores ( o pé d i re i to so f reu a m p u t a ç ã o c i r ú r g i c a e o pé e s q u e r d o so f reu a m p u t a ç ã o es ­p o n t â n e a de t o d a s as f a l a n g e s ) ; o s t e o p o r o s e a c e n t u a d a nas e x t r e m i d a d e s dis ta is d o s 4 m e m b r o s e p r e sença de a n f r a c t u o s i d a d e s na c o r t i c a l de a m b a s as t íbias , s u g e r i n d o per ios t i t e ( F i g . 1, C e D ) ; na c o l u n a l o m b o s a c r a n a d a fo i n o t a d o de a n o r m a l .

CASO 2 — J o ã o R. , 18 anos , b r a n c o , b ras i l e i ro , so l t e i ro , e x a m i n a d o e m 11-1-1967. I n í c i o da m o l é s t i a h á a p r o x i m a d a m e n t e d o i s a n o s c o m b o l h a de s a n g u e n o h á l u x e s q u e r d o , q u e a p ó s a l g u n s d ias se r o m p e u , d a n d o sa ída a l í q u i d o s a n g u i n o l e n t o e d e i x a n d o e m seu l u g a r u m a u l c e r a ç ã o ; a p ó s a l g u m t e m p o h o u v e e l i m i n a ç ã o e s p o n ­t ânea de f r a g m e n t o ó s seo . C i n c o meses após , h o u v e r e p e t i ç ã o d o f e n ô m e n o no h á l u x d i re i to . H á u m mês , a p a r e c i m e n t o d e b o l h a s a n g ü í n e a na e x t r e m i d a d e dis­tai d o s e g u n d o a r t e l h o d i re i to , a c o m p a n h a d a de e d e m a e e l i m i n a ç ã o da u n h a ; no m o m e n t o o r e fe r ido a r t e l h o ap resen ta u l c e r a ç ã o e l i m i n a n d o m a t e r i a l p u r u l e n t o . N e g a do res . Antecedentes pessoais — Sof reu três f ra turas , d u a s nos m e m b r o s in­fe r io res e u m a n o m e m b r o in fe r io r e s q u e r d o . N ã o f u m a e n ã o b e b e . Antecedentes familiais — Já re fe r idos n o c a s o 1. Exame clinico-neurológico — Ulce ra p ro fun ­da de b o r d o s n í t idos na b a s e d o h á l u x e s q u e r d o e ú l c e r a e m fase de c i c a t r i z a ç ã o na b a s e d o h á l u x d i re i to , a m b a s nas f a c e s p l an t a re s ( F i g . 2, A ) . O s e g u n d o p o d o d a c t i l o d i re i to ap resen ta - se s e m u n h a e e d e m a c i a d o , c o m ú l c e r a rasa n o l e i to u n g u e a l e l i m i n a n d o m a t e r i a l p u r u l e n t o . A s unhas a p r e s e n t a m - s e espessadas e r u g o s a s e m a m b o s o s pés . D i s c r e t a h ipoes t e s i a d o l o r o s a a té q u a s e a a l tu ra de a m b o s os t o r n o z e l o s , d e s e n h a n d o g r o s s e i r a m e n t e a f i gu ra de u m sapa to . R e f l e x o s a q u í l e o s a b o l i d o s b i l a t e r a l m e n t e . O res t an te d o e x a m e n e u r o l ó g i c o é n o r m a l . O p a c i e n t e é n o r m o t e n s o , os pu l sos p e r i f é r i c o s e s t ã o presen tes e s ã o n o r m a i s . Exames complementares — Líquido céfalorraquidiano ( p u n ç ã o l o m b a r ) n o r m a l . Hemogra-ma: 4.280.000 e r i t r oc i t o s p o r m m 3 ; 13,3 g h e m o g l o b i n a ; 7.150 l e u c o c i t o s p o r m m 3

( 3 % de n e u t r ó f i l o s bas tone te s , 4 1 % de n e u t r ó f i l o s s e g m e n t a d o s , 3 4 % de e o s i n ó -f i los , 2 1 % d e l i n fóc i to s , 1% d e m o n ó c i t o s ) . Hemossedimentação: 15 m m na pr i -

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m e i r a h o r a . No sangue: u ré ia 19 m g % ; g l i c e m i a 100 m g % ; c o l e s t e r o l 160 m g % ; fos fa t a se a l c a l i n a 12,96 un idades K i n g - A r m s t r o n g . Reações sorológicas para lues n e g a t i v a s . Eletroforese das proteínas séricas: a u m e n t o das a l f a -2 g l o b u l i n a s . Exa­me parasitológico de fezes: o v o s de a n c i l ó s t o m o d u o d e n a l e . Eletromiograma: a m i o -t ro f ia p a r c i a l n e u r o g ê n i c a n o s m ú s c u l o s d i s ta i s d o s m e m b r o s in fe r iores , s e m s inais d e d e s n e r v a ç ã o n o s m ú s c u l o s d a p l a n t a d o pé d i re i to . Biópsia de nervo periférico: n e r v o s p e r i f é r i c o s c o m d i s c r e t o e d e m a in te r s t i c ia l ; e s p e s s a m e n t o s u b e n d o t e l i a l de p e q u e n a s a r té r ias ; h ipe rp las ia da c a m a d a m é d i a . Radiografias do esqueleto: l e sões o s t eo l í t i c a s na s f a l a n g e s dis ta is de a m b o s os h a l u c e s , p o r é m m a i s e v i d e n t e s n o h á l u x e s q u e r d o ( F i g . 2, B ) ; n o s m e m b r o s supe r io re s e na c o l u n a l o m b o s a c r a n a d a de a n o r m a l fo i o b s e r v a d o . O p a c i e n t e s u b m e t e u - s e a e x a m e s n o D e p a r t a m e n t o de P r o f i l a x i a d a L e p r a , s e n d o c o n s i d e r a d o c a s o n e g a t i v o p a r a o M a l de H a n s e n .

CASO 3 — I . R . , 34 anos , s e x o f e m i n i n o , b r a n c a , bras i le i ra , ca sada , e x a m i n a d a e m o u t u b r o d e 1966. Sua m o l é s t i a t e v e in íc io a o s 24 a n o s de idade , q u a n d o n o t o u u m a c a l o s i d a d e de f o r m a g r o s s e i r a m e n t e c i r c u l a r n o h á l u x d i re i to ; a l g u m a s s e m a ­nas d e p o i s a c a l o s i d a d e se u l c e r o u , s endo neces sá r i a a a m p u t a ç ã o da f a l a n g e d is ta i d o h á l u x . T r ê s a n o s ma i s t a rde h o u v e a p a r e c i m e n t o de n o v a c a l o s i d a d e n o c o t o d o d e d o a m p u t a d o , q u e n o v a m e n t e se u l c e r o u , o b r i g a n d o à a m p u t a ç ã o c i r ú r g i c a d o r e s t an te d o h á l u x . R e f e r e sudo ré se e x a g e r a d a n o pé d i re i to e e d e m a a té a a l tu ra d o j o e l h o d i re i to d u r a n t e as fases de a t i v i d a d e d a m o l é s t i a . N e g a do res . N o m o m e n t o e s t á a s s i n t o m á t i c a . Exame clínico-neurológico — A m p u t a ç ã o to t a l d o p r i m e i r o p o d o d a c t i l o d i re i to , c o m p r e s e n ç a d e c a l o s i d a d e na p o r ç ã o ân te ro - in -t e rna da f a c e p l a n t a r d o pé d i re i to ( F i g . 3 ) . H ipoes t e s i a tat i l , t é r m i c a e d o l o r o s a e m a m b o s os pés ; à d i re i ta de l imi t a g r o s s e i r a m e n t e a f i g u r a d e u m s a p a t o e à e sque rda a de u m c h i n e l o . H ipopa l e s t e s i a e m a m b o s os pés . O r e s t an te d o e x a m e n e u r o l ó g i c o fo i n o r m a l . R e e x a m i n a m o s a p a c i e n t e e m abr i l d e 1967 : a p ó s a l g u n s a n o s de q u i e s c e n c i a a c a l o s i d a d e d o pé d i re i to v o l t o u a se u l ce r a r ; n o m o m e n t o apresen ta , a l é m de m a l pe r fu ran te p lan ta r , e d e m a a té a a l t u r a d o t e r ç o supe r io r da pe rna di re i ta .

C O M E N T A R I O S

Em 1942, Thévenard22, a partir da análise de seus próprios casos e dos casos da literatura, descreveu, do ponto de vista clínico, uma doença que denominou acropatia úlcero-mutilante familiar. Denny-Brown8 em 1951 e Van Bogaert 2 4 em 1953, estudaram a AUMF do ponto de vista anátomo-patológico. Antes da contribuição de Thévenard, a AUMF era mal defi­nida e freqüentemente diagnosticada como siringomielia lombosacra familial. Os estudos anátomopatológicos, confirmando as previsões de Thévenard, vieram infirmar a ocorrência de lesão siringomiélica, o que permitiu classi­ficar a AUMF como entidade clínica autônoma.

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A afecção tem início na adolescência ou nos primordios da idade adulta. Pudemos observar que no sexo feminino o início é mais tardío e o quadro clínico é mais moderado. Duas grandes síndromes dominam o quadro clí­nico da AUMF: a síndrome trófica e a sensitiva, as duas com localização distai eletiva, daí o nome de acropatia. São comprometidos sobretudo os membros inferiores, sendo o acometimento dos membros superiores mais inconstante e mais tardio, como ocorreu em nosso caso 1. A doença se inicia habitualmente pelas alterações tróficas que comprometem, simultâ­nea ou sucessivamente, o tegumento que se ulcera e o osso que se funde por osteólise. Com freqüência, há eliminação de fragmentos ósseos através do tegumento ulcerado, fato que ocorreu em nossos três casos. As altera­ções sensitivas são habitualmente bilaterais e grosseiramente simétricas, seu limite superior pode ser circular e seu território freqüentemente desenha a forma de um sapato, de uma meia ou de uma luva. Do ponto de vista qualitativo a alteração mais comum é a dissociação siringomiélica da sensi-sibilidade, mas também tem sido assinalado o comprometimento global da sensibilidade superficial (casos 1 e 2), sob forma de hipoestesia ou anes­tesia tatil, térmica e dolorosa. A abolição dos reflexos aquíleos, que é freqüente, foi observada nos três casos estudados. Alguns autores 1 3. 2 0 tem registrado comprometimento da motricidade na AUMF, o que constitui a forma paretoamiotrófica da moléstia; em nenhum de nossos casos encontra­mos alteração da motricidade. Também não surpreendemos sinais da série disráfica como tem sido salientado em certos trabalhos 1 6 « 1 7 . 2 2 > 2 3 . Apenas em um caso observamos alteração da sensibilidade profunda, sob a forma de hipopalestesia (caso 3), dado que coincide com outros registros na literatura.

Tivemos a oportunidade de examinar 18 membros da família em estudo e, conseguimos através do exame direto reunir três casos de AUMF, en­quanto que através a investigação dos antecedentes familiais apuramos mais três casos da moléstia, como demonstra a árvore genealógico (Fig. 4).

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O estudo da árvore genealógica permite as seguintes observações: 1) ausência de casamentos consanguíneos; 2) a doença foi encontrada em todas as gerações; 3) a transmissão se faz de mãe a filho, de pai a filho e de pai a filha; 4) comprometimento de 4 indivíduos do sexo masculino e 2 do sexo feminino; 5) por duas vezes a transmissão se fêz por um homem doente e uma vez por uma mulher.

O caráter genético da AUMF é matéria pacífica, apesar de ser ainda imprecisa a modalidade de transmissão hereditária. Talvez várias moda­lidades possam ser equacionadas: 1) Denny-Brown8 reconhece, nos casos por êle estudados, a transmissão do tipo mendeliano dominante, que parece ser a mais freqüente; 2) casos mais raros, que parecem a tradução de homozigotos recessivos, como sugere a consangüinidade dos pais e o com­prometimento de vários membros de uma mesma fratría nascidos de pais indenes. Ortiz de Zarate 1 6, depois de assegurar que a forma de transmis­são é dominante monohíbrida autossômica com 100% aproximadamente de penetrância (embora cite a abundância de formas frustras, sobretudo em mulheres), salienta a preponderância de homens acometidos, fato que não encontra explicação em qualquer das formas cromossômicas ligadas ao sexo até hoje conhecidas. Em seguida, o referido autor alinhava três hipóteses para esta "limitação ao sexo": 1) pode se tratar de uma forma seme­lhante à calvicie precoce, em que são acometidos os homens heterozigotos e só as mulheres homozigotas; 2) a existência de gens limitantes, como ocorre na coréia de Huntington e nas disostoses múltiplas; 3) tratar-se de duas moléstias diferentes, sendo que uma se transmitiria por igual a ambos os sexos e a outra exclusivamente entre os varões. Devemos res­saltar que regra geral as manifestações da AUMF seguem as leis da homo-cronia e da homotipia.

A patogenia da moléstia ainda é obscura e há uma tentativa no sen­tido de aproximá-la das moléstias heredodegenerativas (degenerações espi-nocerebelares, Charcot-Marie, Déjerine-Sottas), em virtude da existência de formas de transição da AUMF com a atrofia de Charcot-Marie. Dentro deste conceito fala-se então de degeneração radicular heredo-familial. Tam­bém tem sido invocada uma base malformativa para explicar a etiopato-genia da AUMF, e a literatura tem registrado casos apresentando elemen­tos da série disráfica 17> 2 2 > 2 3 . Não encontramos em nossos casos qualquer sinal da série disráfica ou qualquer elemento que orientasse para uma forma frustra de moléstia heredodegenerativa. Também tem sido lembra­da, para explicar o mecanismo da AUMF, uma alteração do meu> interno, disproteinemia ou paraproteinemia, sendo a localização distai das manifes­tações determinada pelas displasias16. Os casos 1 e 2 mostram perfis eletroforéticos das proteínas séricas alterados, mas estes dados não podem ser valorizados porque o sgangue foi colhido na vigência de infecção secun­dária nas ulcerações.

Os estudos anatomopatológicos, que permitiram afastar lesão sirinfo-miélica, são baseados nos trabalhos de Denny-Brown8 e Van Bogaert 2 4: as lesões mais importantes interessam de início as raízes posteriores, que apresentam processos degenerativos com rarefação das fibras nervosas; os

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ganglios raquidianos, sobretudo dos segmentos cervicodorsal e lombosacro, comportam uma rarefação de células que podem ser substituídas por cor-pos hialinos e tecidos conjuntivo peri e intraganglionar; os nervos periféri­cos apresentam lesões muito irregulares. O estudo anatomopatológico dos casos 1 e 2 (biópsia de músculo e nervo periférico) é incompleto e incon-clusivo, pois revelou apenas discreto edema intersticial nos nervos peri­féricos e hiperplasia da camada média com espessamento subendotelial nas pequenas artérias. Estas lesões vasculares são provavelmente secundárias ao quadro acraltrófico-nervoso e também foram encontradas no caso (ne-cropsiado) de Wadulla, Krüke e Jughenn16, onde foram surpreendidas ver­dadeiras oclusões nas pequenas artérias. Cabe aqui insistir que nossos casos são normais do ponto de vista clínico-vascular (pulsos periféricos patentes, ausência de acrocianose, temperatura normal nas extremidades distais).

É necessário confrontar a AUMF com outras eventualidades que evo­luem com mal perfurante plantar. Em nosso meio é importante o diagnós­tico diferencial com as formas nervosas da lepra: a noção de história fami­lial, a presença ou não de nervos periféricos espessadas e os exames subsi­diários concorrem para a diferenciação diagnostica. É relativamente fácil o diagnóstico diferencial com as vasculopatias periféricas, diabetes mellitus, tabes, paramiloidose e mielodisplasias, que são algumas das principais cau­sas de mal perfurante plantar. Na França, Bureau e Barriere *• 5 tem in­sistido na acropatia úlcero-mutilante não familial que, de início mais tar­dio, é quase apanágio do sexo masculino e aparece geralmente em etilistas inveterados, com hábitos precários de higiene e subnutridos.

Os exames complementares não contribuem para esclarecer a natureza da moléstia; de alguma importância anotamos apenas a amiotrofina neuro-gênica ao eletromiograma e a osteólise ao estudo radiológico.

A evolução da doença é lenta e se faz por surtos necrosantes sucessivos. O tratamento é meramente sintomático e consta de repouso, higiene rigo­rosa, antibióticos e pomadas cicatrizantes, durante as fases de atividade da moléstia. As amputações, quando se fizerem necessárias, devem ser econômicas.

RESUMO

São apresentados três casos de acropatia úlcero-mutilante familial, tam­bém conhecida como doença de Thévenard e/ou neuropatía radicular sensi­tiva hereditária de Denny-Brown. Após ser salientado o caráter familial da moléstia e analisado o aspecto estereotipado das manifestações sensitivo-¬ tróficas, é apresentada a árvore genealógica da família em estudo. Na pa­togenia da acropatia úlcero-mutilante familial, que é ainda obscura, é res­saltada sua possível identidade com as moléstias heredodegenerativas. Pelos dados da literatura a lesão siringomiélica é afastada pelos estudos anatomo-¬ patológicos. No diagnóstico diferencial é lembrada, principalmente em nosso meio, a neuroleprose, além de outras moléstias nas quais ocorre mal per­furante plantar. Finalmente, é lembrada a evolução da moléstia que se faz por surtos necrosantes sucessivos nas extremidades distais, e o trata­mento, que é meramente sintomático.

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S U M M A R Y

Ulcero-mutilating familial acropathy

Three cases of ulcero-mutilating familial acropathy (also known as Thévenard's disease or heredo-sensitive radicular neuropathy of Denny-¬ Brown) are reported. The familial features of the disease are stressed and a genealogic study of the family is made. The similarity of sensitive-trophic lesions in all cases is noteworthy. The obscure pathogenesis has some features in common with heredodegenerative conditions. According to bi­bliographic references, syringomielia as a cause of the disease may be excluded by histopathologic data. Differential diagnosis must include le­prosy and some other conditions where plantar ulcers are present. The disease is characterized by recurrent episodes of necrosis of the distal ex­tremities. Treatment is only symptomatic.

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Clínica Neurológisa — Hospital do Servidor Público Estadual — Rua Pedro de Toledo 1800 — São Paulo, SP — Brasil.


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