Rio de Janeiro | 2014
DAn ChAOn
AGUARDO SUA RESPOSTA
Tradução
Roberto Muggiati
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1
Estamos a caminho do hospital, diz o pai de Ryan.
Ouça, filho:
Você não vai sangrar até morrer.
Ryan ainda consegue ouvir as palavras de seu pai, que penetram
pelas beiradas, como a luz do sol atravessando uma persiana. Seus
olhos estão bem fechados, seu corpo treme e ele tenta segurar seu
braço esquerdo, de modo a mantê-lo soerguido. Estamos a caminho do
hospital, diz seu pai enquanto os dentes de Ryan rangem, ele os aperta
e os afrouxa, e uma série de luzes coloridas oscilantes — verdes,
índigo — passeia pela superfície de suas pálpebras cerradas.
No assento ao seu lado, entre ele e o pai, a mão decepada de Ryan
repousa num leito de gelo dentro de uma caixa de isopor com capa-
cidade para sete litros e meio.
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A mão pesa menos de meio quilo. As unhas estão bem-cortadas
e há calos nas pontas dos dedos, causados por ele tocar violão. A pele
assumiu uma cor azulada.
Isso acontece por volta das três da manhã de uma quinta-feira
de maio na parte rural de Michigan. Ryan não tem a menor ideia
de quão longe possa estar o hospital, mas repete com seu pai estamos
a caminho do hospital estamos a caminho do hospital e deseja com todas as
suas forças acreditar que isso é verdade, e não só mais uma daquelas
coisas que dizemos para acalmar as pessoas. Mas ele não tem
certeza. Olhando fixamente para o lado de fora, tudo o que con-
segue enxergar são as árvores da noite inclinando-se sobre a estrada,
o carro perseguindo a luz dos próprios faróis, e a escuridão —
nenhuma cidade, nenhum prédio à frente; escuridão, estrada, lua.
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Poucos dias depois de se formar no ensino médio, Lucy deixou a
cidade na calada da noite com George Orson. Eles não eram fugi-
tivos — não exatamente —, mas a verdade é que ninguém sabia que
estavam partindo, assim como também era verdade que ninguém
saberia para onde estavam indo.
Haviam concordado que certo grau de discrição, certo grau de
sigilo eram necessários. Só até que colocassem tudo em ordem.
George Orson não era apenas seu namorado, mas também seu ex-
professor de história no colégio, o que complicara as coisas em
Pompey, Ohio.
Não era assim tão errado como pode parecer. Lucy tinha 18
anos, quase 19 — legalmente, uma adulta —, seus pais haviam fale-
cido e ela não tinha nenhum amigo de verdade com quem con-
versar. Vivia na casa dos pais com sua irmã mais velha, Patricia,
mas as duas nunca foram próximas. Tinha também vários tios, tias
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e primos, com os quais dificilmente falava. E George Orson, pelo
que ela sabia, não tinha ligação com qualquer pessoa.
E então: por que não? Seria uma ruptura total. Uma nova vida.
Ainda assim, talvez ela tivesse preferido que fugissem juntos para
outro lugar.
Os dois chegaram a Nebraska depois de alguns dias viajando de
carro. Ela estava dormindo, então não percebeu quando saíram da
interestadual. Ao abrir os olhos, viu que atravessavam um trecho
vazio de estrada e que a mão de George Orson repousava acanha-
damente em sua coxa: um doce costume que ele tinha, descansar a
palma da mão sobre sua perna. Podia ver a si própria no retrovisor,
seus cabelos ondulando e seus óculos escuros refletindo os campos
imóveis de capim verde-líquen da pradaria. Ela se ergueu em sua
poltrona.
— Onde estamos? — perguntou, e George Orson olhou para ela.
Seu olhar era distante e melancólico. Aquilo fez com que Lucy se
lembrasse de como era ser criança: uma criança naquele carro velho
de cidade pequena; as mãos grossas e calejadas de seu pai, como as
de um encanador, segurando o volante; e sua mãe no banco do pas-
sageiro com um cigarro, ainda que fosse enfermeira; uma pequena
parte da janela aberta para que a fumaça saísse; sua irmã adormecida
no banco traseiro, atrás do pai, respirando pela boca; e Lucy também
no banco de trás, abrindo os olhos só um pouquinho, as sombras das
árvores passando por seu rosto, enquanto pensava: Onde estamos?
Ajeitou-se ainda mais no banco, sacudindo para longe aquela
lembrança.
— Estamos quase lá — murmurou George Orson, como se
recordasse algo triste.
• • •
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Quando ela abriu os olhos novamente, ali estava a pousada. Tinham
estacionado bem em frente: a silhueta de uma torre se erguendo sobre
eles.
Demorou um instante até que Lucy percebesse que o lugar deveria
ser um farol. Ou melhor — a frente do local, a fachada, tinha a
forma de um farol. Tratava-se de uma grande estrutura tubular for-
mada por blocos de cimento, talvez com uns dezoito metros, larga
na base, mas que se estreitava à medida que subia, pintada em listras
brancas e vermelhas.
A POUSADA DO FAROL, dizia uma grande placa de néon apagada
— em caracteres náuticos extravagantes, como se feitos de cordas
enlaçadas —, e Lucy continuava sentada no carro, o Maserati de
George Orson, boquiaberta.
À direita dessa estrutura similar a um farol se encontrava um
pátio em formato de “L”, com talvez quinze quartos para hóspedes;
e à esquerda, bem no topo da colina, estava a velha casa na qual
os pais de George Orson tinham vivido. Não se tratava exatamente
de uma mansão, mas ainda assim era formidável em meio àqueles
campos abertos; uma grande morada vitoriana, antiga, de dois
andares e com todas as características de uma casa mal-assombrada:
uma pequena torre e uma varanda circundante, sótãos e chaminés
ornadas, telhado em empenas e telhas recurvadas. Não havia qualquer
outra casa à vista, nem sequer outro sinal de civilização, pratica-
mente nada além do enorme céu de Nebraska se curvando sobre
eles.
Por um instante, Lucy pensou se tratar de uma piada, uma atração
cafona de beira de estrada ou de parque de diversões. Haviam parado
o carro no momento do pôr do sol e ali estavam o farol abandonado
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da pousada e, atrás dele, a silhueta da velha casa, ridiculamente
arrepiante. Lucy imaginou que poderiam também fazer parte
do cenário a lua cheia e uma coruja a piar numa árvore desfolhada.
George Orson soltou um suspiro.
— Então aqui estamos — disse George Orson. Deveria imaginar
como aquilo pareceria a ela.
— É isto? — perguntou Lucy, sem conseguir evitar o ar
de incredulidade em sua voz. — Espere um instante, George.
É aqui que vamos morar?
— Por enquanto — respondeu George Orson. Ele olhou para ela
de modo lamentoso, como se ela o tivesse decepcionado. — Apenas
por enquanto, querida — disse. Ela notou as plantas secas presas nas
cercas numa das laterais do pátio da pousada. Plantas secas, daquelas
que rolam ao vento pelo deserto! Nunca tinha visto nada parecido,
a não ser em filmes sobre cidades-fantasma do Velho Oeste, e era
difícil não entrar em desespero.
— Há quanto tempo este local está fechado? — perguntou. —
Espero que não esteja cheio de ratos ou...
— Não, não — disse George Orson. — Tem uma faxineira que
vem aqui com bastante frequência, então tenho certeza de que não
está tão ruim. Não está abandonado nem nada desse tipo.
Ela sentiu que os olhos dele a seguiam no momento em que saiu
e caminhou para a frente do carro, até a porta vermelha do Farol.
Sobre a porta estava escrito: ESCRITÓRIO. Havia ainda outro tubo de
néon apagado, que dizia:
NÃO HÁ VAGAS.
Tinha sido, certa época, uma hospedaria de razoável populari-
dade. Foi o que George Orson lhe contara enquanto atravessavam
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Indiana ou Iowa ou um daqueles estados. Não era exatamente um
resort, dissera, mas um local de requinte, “nos tempos em que havia
um lago”, comentara ele, e ela não tinha entendido bem o que ele
quisera dizer.
Ela respondera:
— Parece romântico.
Isso foi antes de ver o lugar. Ela imaginara um daqueles bal-
neários litorâneos sobre os quais lemos em romances, aonde alguns
britânicos tímidos costumavam ir e lá se apaixonavam e tinham
epifanias.
— Não, não — disse George Orson. — Não exatamente. Ele
estava tentando alertá-la: — Não o chamaria de romântico. Não
atualmente — falou. Explicou que o lago, que na verdade era um
reservatório, começou a esvaziar por causa da seca. E aqueles fazen-
deiros gananciosos, disse, continuavam a regar e regar suas plan-
tações subsidiadas pelo governo e, antes que qualquer um percebesse,
o nível do lago tinha descido a um décimo do que fora. — E então
todas as atividades turísticas passaram a diminuir também, natural-
mente — disse George Orson. — É complicado pescar, esquiar ou
nadar no leito de um lago seco.
Ele explicara tudo bem o suficiente, mas só quando olhou para
baixo, do topo da colina, foi que ela entendeu.
Ele falava a verdade. O lago não existia mais. Não havia nada além
de uma depressão esvaziada — uma cratera outrora cheia de água.
Uma vereda levava à “praia” e havia um estaleiro de madeira que
se estendia até uma faixa de areia coberta por capim amarelo alto,
inúmeras plantas raquíticas que, segundo sua imaginação, acaba-
riam rolando pelo deserto. Os restos de uma velha boia salva-vidas
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repousavam apoiados no barro carregado pelo vento. Conseguiu
avistar o que uma vez fora o outro lado do lago, a margem oposta
que se erguia a uns oito quilômetros daquela bacia seca.
Lucy virou-se e viu George Orson abrir o porta-malas do carro,
retirando a maior de suas bagagens.
— Lucy? — disse ele, tentando imprimir à sua voz um ar alegre
e solícito. — Vamos lá?
Ela apenas observou, enquanto ele passou pela torre do escri-
tório do Farol e subiu as escadas de cimento que levavam à velha
casa.
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No momento em que o ímpeto inicial de imprudência começou
a esmaecer, Miles já se aproximava do círculo ártico. Àquela altura,
vinha atravessando o Canadá havia dias, tirando sonecas no carro
e acordando pouco tempo depois para seguir em frente, tomando
a direção norte em qualquer estrada que encontrasse, tendo no
banco do passageiro a seu lado uma série de mapas dobrados como
origamis. Os nomes dos locais por onde passava ficavam cada vez
mais excêntricos — Baía da Destruição, o Grande Lago do Escravo,
Ddhaw Ghro, Montanha da Lápide — e, quando finalmente chegou
a Tsiigehtchic, ficou ali, dentro do carro, parado em frente à placa
de boas-vindas da cidade, olhando fixamente para as letras emba-
ralhadas, como se sua visão tivesse algum problema, alguma forma
de dislexia causada pela privação do sono. Mas não. Segundo um
dos mapas que comprara, “Tsiigehtchic” era uma palavra dos
nativos Gwich’in que significava “desembocadura do rio do ferro”.
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De acordo com o livro, ele tinha alcançado então a confluência dos
rios Mackenzie e Vermelho do Ártico.
BEM-VINDO A TSIIGEHTCHIC!
Situada no local de uma tradicional reserva de pesca Gwich’in. Em 1868,
os Padres Oblatas instituíram aqui uma missão. Em 1902, já existia aqui
um posto de comércio. Edgar “Spike” Millen, oficial da Real Polícia Montada
do Canadá, alocado em Tsiigehtchic, foi morto pelo caçador louco Albert
Johnson durante o tiroteio de 30 de janeiro de 1932, na área de Rat River.
Os Gwich’in mantêm laços fortes com a terra ainda hoje. Você poderá observar
a pesca com rede durante todo o ano, além do método tradicional de desidratar
peixe e carne. No inverno, os caçadores trabalham nos arbustos à procura de
animais cujas peles são valiosas.
APROVEITE SUA VISITA À NOSSA COMUNIDADE!
Soletrou cada letra e seus lábios rachados aderiam um ao outro. —
T-s-i-i-g-e-h-t-c-h-i-c — disse em voz baixa, e só então um pensa-
mento gélido começou a se desdobrar em sua mente.
O que estou fazendo?, pensou. Por que estou fazendo isto?
A viagem começara a parecer cada vez mais uma alucinação
àquela altura. Em algum ponto do percurso, o sol deixara de nascer
e de se pôr; a impressão era de que se movia de um lado para o
outro pelo céu, mas ele não tinha certeza. Nessa parte da Rodovia
Dempster, um pó branco-prateado se espalhava sobre a estrada
de terra. Cálcio? O pó parecia brilhar — mas também, sob aquela
estranha luz do sol, tudo parecia fazê-lo: a grama, o céu e até mesmo
a terra tinham uma aparência fosforescente, como se iluminados a
partir do seu interior.
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Estava ali, à beira da estrada, sentado com seu livro aberto
apoiado no volante, uma pilha de roupas no banco de trás e as
caixas de papéis, cadernos, diários e cartas que havia acumulado ao
longo dos anos. Usava óculos escuros e tremia um pouco. Sua barba
falhada tinha uma desgastada coloração castanho-amarelada, como
uma mancha de café. O aparelho de CD do carro estava quebrado,
e o rádio tocava apenas uma mistura lúgubre de estática com vozes
distantes e ininteligíveis. Não havia sinal de telefone celular, obvia-
mente. Um aromatizador em formato de árvore de Natal pendia do
retrovisor, girando ao sopro do desembaçador.
Mais à frente, agora não muito longe dali, ficavam a cidade de
Inuvik e o enorme delta que levava ao oceano Ártico e também —
assim esperava ele — a seu irmão gêmeo, Hayden.
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