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Page 1: Além de compor com segurança e inspiração, e de cantar

ZERO HORA | SEGUNDO CADERNOSEXTA-FEIRA,

26 DE AGOSTO DE 2016

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ZH2ºCADERNO

U m mês e pouco atrás, re-gistrei aqui o disco de es-treia da cantora e compo-sitora gaúcha Carolinne

Caramão, dedicado à música e àreligiosidade afro-brasileiras. Eladaria ainda mais força à coluna dehoje, que por algum desígnio dosorixás reúne os trabalhos de trêsmulheres com foco na mesma te-mática: a catarinense Ana Paula daSilva, a baiana Clécia Queiroz e apaulista SerenaAssumpção.A letra de Raiz forte, música

que dá título ao sexto álbum deAna Paula Silva, poderia resu-mir essa história: “Sou cantadora,canto a dor, canto a terra, canto ohomem, canto a flor/ De vó curan-deira, rezadeira, macumbeira, la-vadeira, filha, neta, Iô Sô/ Venhode longe, do sul e do norte/ Mi-nha terra é forte, sou raiz dessechão/ Batizada no tambor”. Comsamba, ijexá e outros ritmos dedescendência africana, é um tra-balho de pura felicidade musicalfeito por um grupo pequeno maseficientíssimo. Além de comporcom segurança e inspiração, e decantar lindamente, Ana Paula tocaum violão de gente grande, muitorítmico e preciso. Ao lado dela es-tão o lendário Robertinho Silva napercussão e os não menos ótimosDavi Sartori no piano e WillianGoena bateria e percussão.Pela unidade e a respiração per-

feita do roteiro, Raiz forte é umdaqueles discos em que fica difícildestacar-se faixas. As anotaçõesque fiz mencionam, por exemplo,o colorido commatizes quase fol-clóricos de algumasmelodias. Esteé o mais autoral dos trabalhos deAna Paula. Das 14 faixas, apenasquatro não levam as assinaturasdela e parceiros, entre elas o ijexáCoco (Chico Saraiva/Kiko Dinuc-ci) e o clássico Casamiento de ne-gros (Violeta Parra). Em suaCantoda cigarra, ela se define: “Sou dosul, vim sambar, vim pra cantar,sou do negro, do canto de um lu-

Juarez Fonseca

PARALELO 30

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O colunista escreve quinzenalmente no 2º Caderno

RAIZ FORTEDe Ana Paulada SilvaCrioula Brasil/Tratore, R$ 25 edisponível nasplataformasdigitais.

QUINTAISDe Clécia QueirozIndependente,R$ 27, à venda emcleciaqueiroz.com.

ASCENSÃODe Serena AssumpçãoSelo Sesc SP, R$ 20, àvenda nas unidadesdo Sesc e em sescsp.org.br/livraria.

Leia outras colunas emzhora.co/juarezfonseca

VovôVitor emBuenos Aires, papai Ian na estradaNo dia 28 de setembro de 1985, escre-

vi uma nota na coluna em ZH: “Dia 3nasceu o Ian, filho do Vitor Ramil e daAna, Virgem ascendente Virgem. As-sim que o guri crescer mais um pouco,eles vão embora proRio de Janeiro”. DeBuenos Aires, onde está dando início àsgravações do 11º álbum, Vitor acaba deme contar que vai ser avô – Ian e Lauraesperam uma menina para novembro.“Que instrumento ela vai querer to-car?”, adianta-se Vitor entre parênteses.Faz sentido, pois o DNA musical dosRamil parece inesgotável. O nascimen-to deverá mais oumenos coincidir coma conclusão do disco do vô. A menina

ainda não tem nome; o álbum já temum, provisório,Campos neutrais.Em Buenos Aires Vitor está gravan-

do os violões de Carlos Moscardini eas percussões de Santiago Vazquez,parceiros de fé. Tudo o mais será feitoem estúdios de Porto Alegre – por in-crível que pareça, será o primeiro dis-co dele gravado na capital gaúcha. Decerca de 20 canções, ele selecionou 14.Não quer antecipar o espírito do tra-balho, a não ser que terá arranjos paraquinteto de sopros e muita diversida-de, “uma mistura de gente de muitoslados, de línguas e linguagens”. Entreas parcerias estão a poeta pelotense

Angélica Freitas, Zeca Baleiro, ChicoCésar, o poeta paraense Joãozinho Go-mes e o poeta português António Boto.Vitor também fez duas versões, parauma música de Bob Dylan e outra docompositor galego Xoel Lopez.E Ian Ramil, enquanto festeja a fu-

tura paternidade, segue na estradacom a turnê do discoDerivacivilização.No dia de seu aniversário, 3 de setem-bro, vai se apresentar na cidade minei-ra de Milton Nascimento, Três Pontas.Depois fará dois shows em Belo Hori-zonte e dois no Rio de Janeiro, fechan-do esta parte da turnê dia 8 em SãoPaulo, no Teatro do Itaú Cultural.

gar/ Sou Obá, sou filha de Oxalá,meu Orum, minha terra e meular”. Não entendo por que AnaPaula não émais conhecida nacio-nalmente. Hoje e amanhã ela fazem sua cidade, Joinville, o showdegravação do primeiro DVD, mar-cando 20 anos de carreira.Também atriz e dançarina (com

mestrado nos Estados Unidos),Clécia Queiroz é respeitada pes-quisadora do universo afro-baianoe uma das cantoras mais conheci-das de Salvador, mas parece nãose importar muito em fazer dis-cos. Lançou o primeiro em 1997, osegundo 13 anos depois e só agorasai o terceiro,Quintais. Tudo bem,

a gente espera porque vale a pena.Desta vez, partindo das tradiçõesdo Recôncavo Baiano, ela reúneuma seleção de ritmos altamentedançantes com um espírito centralde negritude, festa e religiosidade.A partir do samba, do samba-de-roda, do ijexá, o universo rítmicoavança (ou retrocede) para gê-neros ancestrais como o jongo, omaxixe, a chula, os toques rituaisilú e vissungo. Roque Ferreira, umdos compositores mais identifi-cados com essas tradições, é pre-sença forte no trabalho.Roque já foi gravado por de-

zenas de intérpretes famosos, deBethânia a Zeca Pagodinho, mas

na voz aberta de Clécia fica outracoisa porque ela sabe brincar, co-mo se vê no samba-de-rodaAmu-rê. Tambémdele é a líricaNobreza,raro momento de canção lenta,um quase choro. Mas as palmas eos coros estão presentes em váriosarranjos, passandomesmoa sensa-ção de roda de amigos no quintal.No meio e no fim do álbum, mo-mentos marcantes com o medleyHomenagem a Oxum (que tementre os autores a paranaense Do-na Su de Oyá) e o medley Sambade roda, neste caso com músicasde domínio público. O projeto dodisco é de Clécia e seu sobrinho, omúsico e historiador Vitor Quei-

roz. Na produção musical e nosarranjos, Dudu Reis e SebastianMotini, músico sueco apaixonadopelos ritmos brasileiros.Já a carga de emoção embutida

em Ascensão, primeiro e derradei-ro álbumdeSerenaAssumpção, éindescritível. Ela morreu emmar-ço passado, de câncer, aos 39 anos,antes de ver o disco físico. Filha deItamar Assumpção (1949 – 2003),formada em Letras e Sociologia,dedicada mais a promover a obrado pai do que a própria carreiramusical, Serena deu início ao tra-balho em 2009, quando recebeudo Terreiro Ilê de Pai Dessemi deOdé, que frequentava desde 2003,amissão de registrar cantos de ori-xás. E começou a trabalhar, com aparceria de Gilberto Martins nascomposições e Pipo Pegoraro naprodução, convocando cerca de 50músicos e cantores para compar-tilhar a tarefa, de resultado impac-tante. Trata-se de um trabalho úni-co, destinado a permanecer comoreferência, tanto para o candomblécomopara amúsica brasileira.Os cantos a Exu (que abre o

álbum), Ogum, Oxumaré, Xan-gô, Iansã, Oxum, Iemanjá, Iroko,Nanã, Obaluaiê e Oxalá, se com-pletam com uma reza tradicionaldo Congo (ex-Zaire). Traçandouma história paralela, cada cantoé dedicado a personalidades co-mo João da Baiana, Caymmi, Luzdel Fuego, Nina Simone, MadameSatã, Mãe Menininha do Gantois,Elis Regina, Gandhi, Clementinade Jesus, ClaraNunes, Villa-Lobos.Serena é presença sólida no álbum,embora sua voz não se ouça emtodas as canções. A lista de con-vidados impressiona, de TiganáSantana ao grupo congolês Sour-ce de Vie, passando por KarinaBuhr, Tulipa Ruiz, Tatá Aeroplano,Curumin, Moreno Veloso, JuçaraMarçal, Kiko Dinucci, Tetê Espín-dola, Simone Sou, Mariana Aydar,Filipe Catto, a mana Anelis As-sumpção.Umaherançamagnífica.

CLAUDIO

MEN

EGHETTI,STU

DIO

ME,D

IVULGAÇÃO

MÚSICAAFRO-BRASILEIRAestá no centro dos discos de três artistas

NAD

JAMEISTER,D

IVULGAÇÃO

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UDIAS,D

IVULGAÇÃO

ALEXANDRE

KUMA,D

IVULGAÇÃO

ÁFRICAOBrasil que vemda