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Marcus Vinicius
Personagens:
Prometeu – personagem mais adulto, mais maduro, amante das artes
Narciso – personagem mais jovem, preocupado com o corpo e a coisas cotidianas mais consumista
Cena 1
Prometeu: (Caminhando entre livros, acendendo um charuto, pega papel e lápis, senta em uma escrivaninha, olha porta-retratos e depois escreve. Põe um visor nos olhos, depois ler em voz alta) Recuso-me a abrir os olhos. Há momentos na vida que melhor mesmo é não enxergar, mergulhar no escuro e buscar ver o que há escondido depois das cores e na ausência da luz. Deixar os olhos fechados por minutos seguidos e nem imaginar que o tempo passa, não espera, e se pudesse, agora, também enfiaria meus dedos nos seus olhos e te faria sentir a mesma sensação de vista grossa ou de grosseria no ato de baixar a cabeça, fazer que não viu ou ignorar os olhos que tantas vezes encontraram os seus. Mas eu sei, sei que a soberba é humana: pisca o olho, pinta as unhas e sobe no salto. Quando de cima, não olha para baixo; caso esteja de baixo, anda de nariz empinado. Vive tramando contra, nunca olha para si. Sabe caminhar sobre a corda bamba sem pestanejar. É fiel a sua banalidade e, mesmo quando esquecida, é ávida em criar descasos... A soberba é ardilosa como a atual sociedade. (levanta-se, vai à janela e fecha as cortinas. Passa a tocar o corpo) A lágrima insistente escorre, corre em mim o gosto da nostalgia e mergulhado profundamente no escuro de não ver, crucifico a mim retalhado; sinto saudade do tempo de infância e dos dias de cozinheira de minha mãe. Ela gostava de fazer doce de coco e cocada e era bom porque adoçava a vida nos dias de tristeza. (volta à emoção inicial) Recuso-me a abrir os olhos, enxergar os seus, reconhecer seu rosto, saborear sua imagem desconhecida para mim. (ríspido) A porta está aberta, sai, vá cruzar o céu de sua existência por outros caminhos, vá enxergar sua ignorância depois de outras pontes e deixe-me cá com meus botões. Cada um em uma casa e, no casulo, solidão em que você reside, feche-se para sempre porque em minha vida não há mais espaço para você. Descobri outros mares e agora desbravarei outras terras recheadas de outros sentimentos. A você apenas meus olhos fechados, a recusa em te reconhecer e a vontade que tenho de enfiar dois dedos meus em seus olhos, mas não vale a pena. Quero-te de olhos abertos, bem abertos para comtemplar o meu pleno estado de felicidade. (Música. Tira o visor, espreguiça o corpo, faz cara de sono, simula choro. Caminha até uma pilha de Lps e abre uma cortina)
Narciso: (saindo do banho, de roupão, vai ao espelho, se olha, ver bem o rosto, pega escova e pasta, passa a
escovar os dentes) Acabei de chegar. Não sei por qual motivo, mas uma dor principia tão lentamente que me
causa medo. Já pensou? Eu, logo eu, com medo! Arma de covardes. Logo eu que tenho nas veias a coragem
de Aquiles, a astúcia do guerreiro Hércules e os desejos de liberdade do Íkaro. (pensativo) Vejo velas e não
me interessa acendê-las, não sei o porquê também, acho que talvez por saber que você odiava vela e eu
Amor tece dor
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acendia, muitas vezes, por saber que isso te incomodava e eu adorava provocar reações em você, adorava ver
sua cara de transtorno, cara irritada, fora do sério (risos. enxágua a boca, tira do bolso do roupão a gravata).
Veja, trouxe a gravata que você mais gostava de amarrar minhas mãos. A gente se deitava e você me fazia
cafuné. Chegava de manha e nem via quando já era dia. Aquecia-me do frio, provocava libido, me deixava
denso de vontade de; ao mesmo tempo em que me tornava leve, pluma, brisa. Dizia-me segredos sussurrados
e nem entendia, na verdade, nem sei se raciocinava porque pela sina do seu cheiro me deitava em seu dorso...
A gente na cama, a gente fazia o nosso enredo do romance que só nós dois sabíamos escrever, pois não
existia conflito, apenas clímax. A gente se deitava e você não dizia o que queria, mas eu sabia em seus lábios
dizer o que queríamos, e isso era bom, era muito bom... Como será que você está nesse momento? Saí de casa
tão bruscamente porque odeio despedidas e acho que, sempre no achismo, na mesma merda de achismo de
sempre, logo eu, que sempre gostei de afirmar tudo, que me achava o centro da verdade absoluta, eu e meu
ego centro, meu egocentrismo de achar que tudo está ou tudo é da altura do meu umbigo, eu que..., não
consigo ter certeza de nada nem se o nada é realmente algo (baixa o roupão, passa hidratante no rosto,
cheira as axilas). Acabei de chegar, uma dor imensa agora insiste em me deixar arrependido... Vasculhando
as instantes desse espaço esquisito vejo que não têm os nossos vinis, nossos porta-retratos e seu cheiro
também não tem. Olho-me no espelho e parece que meus olhos não estão sozinhos, são os seus que vejo, que
encontro, e o gosto do seu beijo a lamber-me os dedos dos pés me faz comprimido dentro de mim mesmo; o
amasso do seu corpo comprimindo o meu corpo e nossos corpos tão diferentes e parecidos como se fossem
um único corpo, além das juras e das frases de amor para um futuro duradouro, e, agora, vejo que Felicidade
é semelhante a cócegas nos pés: você, de início, não aguenta, sorri, pede para parar. Segundos depois vai
dando uma sensação de conforto, de gratidão, e quando menos se espera, se sente mergulhado num mar de
quero mais, vai, não para; é um estado de alma que apenas tentamos explicar, embora coisas como essas não
permitam explicação. É se permitir ao estado de simbiose entre corpos desejosos por algo a mais. (põe a
gravata, simula um enforcamento)
Prometeu: (pega um frasco de comprimidos, põe um copo de vinho e toma) Que horas são? Perdi a noção do
tempo e nem o vi passar. Você já se foi, foi? De verdade?(choro) A vela está apagada, deixe-a assim, é desse
jeito que gosto. Escuro, tudo no escuro: Meus olhos, minha boca, minhas mãos. Escuro, já disse: Meu
cérebro, minha alma, meu corpo. Estado de plena inconsciência de caos. Assim posso me sentir na caverna,
dentro da caverna com a finalidade de descobrir o mito ou os mitos que permeiam os sonhos mal vividos, os
instantes não explicados. A caverna que tão bem é confeccionada para nós: as couraças, os silícios, os
silêncios, os destinos, os caminhos traçados e todos os traços de nossa existência – nasceu, é macho, vai
ganhar o nome do pai, quarto azul e logo, logo vai jogar bola, criar marra e na marra pegar uma mulher aqui,
outra acolá. Se sentar, não pode cruzar as pernas nem falar fino. Tem de mastigar carne de boca aberta e
peidar alto, bem alto, se espantar com o fedor, sentir o rabo arder, mas nunca usá-lo para outro prazer porque
são prazeres proibidos, embora todos passem pela fase de dedar o cu do amigo (risos). Droga de sociedade,
maldita civilização! Em qual momento da vida o ser humano é realmente livre, alguém sabe dizer? Por que
em nome dessa maldita sociedade deixamos de ser felizes? (mais vinho. ar de análise) Quando se passa a
viver em sociedade ou na sociedade vêm às sanções estabelecidas: Ei, isso pode, isso não pode! Isso é
pertinente a, aquilo não é possível porque...! Tem de viver dessa forma, pois sempre foi assim e desta forma
se chega a..., entretanto se for por outro caminho, pronto, está às margens, é marginal, é marginalizado por
toda vida. Resolveu ousar, ser livre, experimentar a liberdade, pronto, desde então só rótulos! Não se pode ser
assim, tem de ser assim, mesmo que a vida seja dinâmica e o ser humano esteja em constantes mudanças:
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(dirige-se a pintura da Monalisa, de Da Vinci. Age como se estivesse dialogando com ela) Outrora cabelo
grande era de mulher, quer dizer, era de homem, ou melhor... Calça comprida era de homem, hoje é unissex!
Tirar sobrancelhas, vaidade feminina; tirar bigode, coisa de homem. Depilação era coisa de mulher, agora é...
Depilação faz quem tem coragem de encarar a dor! Dirigir era coisa de homem, vem a lembrança dos
primeiro brinquedos, carrinho era brinquedo de homem porque a velocidade do mundo é de domínio do
macho, enquanto que para a mulher ficava os afazeres domésticos, o cuidado dos filhos, a máxima dita
popularmente ser ela criada para procriar - o ser animalizado, entrar no cio e depois parir. Hoje tudo se
confunde. O modelo criado para o homem e para a mulher, na época das famílias patriarcais, não cabe mais
no mundo contemporâneo. A revolução industrial ditou outras regras de conduta e o ser consumo, vivedor de
grandes centros e adeptos a era tecnológica, teve de mudar, acompanhar os tempos, a partilhar interesses
comuns: quem quiser pode mudar o visual, independente de sexo. Quem quiser pode escolher as peças de
estilo para modular o corpo. Nem toda mulher nasceu para ser mãe, é uma escolha, mas pode dirigir porque a
necessidade cria a ocasião. O dever da limpeza, de cuidar da casa, de estar empregado, independente de sexo.
Mas mesmo assim, o ser humano não experimentou a liberdade porque nunca teve a liberdade de amar de
verdade, de amar pela verdade e dizer, dar nome a esse amor. O ser humano é complexo. Não se aceita nem
aceita o outro porque a liberdade incomoda. Se algo te incomoda, se você tem condição, pode mudar. A
mulher não quer peito pequeno, põe silicone. Se o corpo não representa aquilo que sou, posso mudá-lo. Se o
nome que tenho não me agrada nem me identifica, posso querer outro. Se não se quer sapato baixo, usa-se
alto. Se o macho está no cio, pode saciar-se no corpo que encontrar, mas ter identidade custa outros contos de
rés! Liberdade e identidade caminham juntas. O ser humano experimenta a liberdade quando encontra a sua
identidade, dessa forma vai pensar, sentir e agir por si, contudo é mais fácil camuflar os anseios mais íntimos
e atacar os outros. Esses outros são os calos sociais. Depois de livrar-se dos pais, vêm as amarras das
convivências: Quer indicar as setas, impor limites, ditar as regras, fazer decisões, tomar a direção, dizer o que
pode e o que não pode. Estabelecer conveniências, criar códigos estabelecidos a partir de acordos culturais,
usar a religião como elo de julgamento, condenar, desrespeitar, não deixar que o ser humano encontre-se com
a liberdade. Resultado: preconceito. O ser humano cria o preconceito porque não é capaz de vencer a si. O
outro para este é um incomodo. Se não tenho o que quero ou se não sou do jeito que quero ser, o outro
também não pode ser. Segrega-se os seres em nome de formas abusivas de desrespeitos criados por falta de
compreensão, entendimento, partilha ou comunhão. Ideias que não se batem, se açoitam; ideais fadados em
nome de combater ou tolher a liberdade do outro. Resultado: intolerância. O ser humano é intolerante.
Desaprendeu com a vida a ouvir o grito ou apelo do outro; a necessidade ou os anseios do outro. Tudo deve
estar enquadrado em uma modelagem única, como se os seres fossem únicos, unificados por escolhas
particulares. Açoita-se o outro com solavancos, espancamentos, palavras dolorosas, mutilações... E a
liberdade? Nem através da morte. Quando se morre, se é preso num formato de caixão, deve-se estar
enterrado num cemitério ou ser cremado, quando não abandonado por aí. Deve-se existir como atestado de
óbito e depois da vida? Só indo lá para tentar descobrir... Onde está você agora, onde? Estou morto longe de
você, morto... E mesmo morto tento explicar a vida como se estivesse numa aula de sociologia, ao invés de
dizer: te amo, te amo, te amo e te quero aqui, bem juntinho a mim. (risos – vai até uma chávena, põe café,
vem até o sofá, acende velas, senta de perna cruzada e brinda ao vento).
Narciso: (abre uma latinha de cerveja, põe em um copo, brinda ao ar) Estou aqui! Acabei de chegar e nem as
malas desfiz. Dói a carne, a carne em músculos e a vontade de pegar o telefone e ouvir sua voz mais uma vez
me torna impotente. Onde será que você está neste momento? Onde? Pensa em mim? Ri? Chora? Escuta,
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escuta, escuta... Será que estou ficando maluco (despeja a cerveja sobre o corpo)? Ouço sua voz e para mim
tudo é tão real: a sensação é de diálogo, a sua saudação, o seu carinho por mim, a ligação marcada de todos os
dias, na mesma hora e o tempo que gastávamos a trocar segredinhos nossos. Mas uma vez me olho no
espelho e mais uma visão. Os olhos que me olham, que me veem bem dentro de mim são os seus olhos. Ligo
a torneira e contemplo a água que corre, lavo o rosto, lavo os olhos, torno a lavar e novamente uma língua
que me roça a nuca, uma língua que me percorre o corpo querendo decifrar a cifra tatuada debaixo do meu
braço esquerdo, bem no centro de minha axila, vibra em mim uma vontade tremenda, vibra em mim a sua
presença em dengo, solvendo toda a mágoa que depositamos um no outro (choro. Pega uma garrafa de
vinho, taça, vai ao som, põe música, abre a mala e tira um porta-retratos) Esqueci-me de você, eu sei, nesse
canto que ninguém merece. Esqueci-me, simplesmente, pronto. Não me pergunte o motivo, não sei, não
interessa: Esqueci-me de você, esqueci você, mesmo que ninguém mereça, mas fazer o quê? O tempo passa,
o pensamento desgasta e as coisas já não são como antes. A engrenagem vai enferrujando e algumas bobinas
desgastadas retardam a lembrança funcionando à lenha, madeira queimando ao vento, como fogueira acesa
em noites juninas. Há momentos que o esquecimento é necessário, cômodo, instiga o prazer, a gratidão, a
ansiedade porque a lembrança faz sorrir assim como também faz chorar... Assim é também comigo quando
alguém me esquece. Sinto-me esquecido. Sinto-me largado. Sinto-me imêmore. Sinto-me deslembrando e
nunca morri por isso, nunca morri por mais que o desgosto batesse a porta ou quisesse por insistência ter
entrado pela janela. Corria pelas veias, bombardeava pelo coração, o ato esquisito do esquecimento, firmava-
se nos olhos ressacados e buscava ficar escondido pro detrás de minha esquisitice. Vivo do estado de
miserabilidade emotiva dos outros, compreende? Vivo do estado de desertificação das emoções que se
esvaziam, transformam-se em coisas efêmeras. Cada um na sua, com seus motivos e falta de gratidão. Cada
um, único, e viva a passagem do tempo. A possibilidade é um caminho e deixe de resmungos, há coisas que
não gosto e tem o tempo de se reconhecer a função do outro em nossa vida. Tem o tempo do
reconhecimento. Você é importante, dependo de você, embora isso não seja tudo. Também gosto de saber
que posso independe de qualquer coisa, posso, sei que posso...; Minha boca está seca e tem gosto forte e
amiúde de jornal. Seca, a boca, pela falta de líquido possível na lubrificação da mecânica da fala. Isso não
vem ao caso, agora. A claridade me apavora, evapora em mim a calma e uma ânsia de deus me livre sai pelo
canto do olho; pelo canto do olho, na claridade, vejo a parte do meu rosto que não gosto desenhado na janela
do lado do encosto da cama. Porque, na vida, é sempre assim. Existe sim o lado do rosto que gostamos,
admiramos, pousamos para fotografias e gostamos de ser beijado. O lado do rosto perfeito, digno de afagos,
representativo, o lado nosso, que nos percebemos nítidos... Meu lado fera se revela, enjaulado pela imagem,
melhor ter esquecido você e de visão turva não dou gosto nem espaço às lágrimas, isso não, não sou piegas. A
imagem refletida do lado de dentro da mente e vou desenhando-me aos poucos, detalhadamente, como arte
cubista. Invisto nas peculiaridades e nas cores de dor palpitadas vezes quando o caminho era escuro e eu
insistente que sou não apagava os excessos. Eternizo-me em mim e dou gargalhas de arrepios em nunca ter
conseguido ser a estrela que brilhava no céu de sua boca. Agora a vontade de por a linha na agulha e não sei
onde você está escondido, digo isso porque sem você eu não consigo. Pronto. A necessidade de você. Sua
funcionalidade. Salvo por ela. Pronto. (pega uma calça na mala, percebe que falta fazer o abainhado)
Preciso por linha na agulha, acertar o buraco, dar o nó, fazer a bainha dessa calça curta, ficar bonito, me
preparar. Depois tenho alguns botões, preencher as casas: linha, agulha, buraco, nó, enfiar, amarrar, passar
pelo buraco, enxergar, o buraquinho, lamber a linha, costurar, coser, emendar, remendar, juntar, concatenar,
abocar, tecer, embocar a linha no orifício pequeno da agulha. Cadê você, ande, que sempre fazia isso para
mim, sempre me ajudava a resolver coisas que não sabia? Já, já o dia é finalizado e as coisas complicam-se...
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Esqueci-me, confesso, me perdoa, e de resto, agora, me vejo angustiado porque o quero aqui, agora e não o
tenho. Eu te amo, do meu jeito, mas te amo... Chegue cá, ande... Prometo te colocar debaixo da torneira e
fazer em você um banho delicioso. Colocarei você em meu rosto e assim contarei contigo para enxergar a
vida mais confortável porque sem você, ai ai ai, sem você no auxílio não dar, não dar e de lábios molhados
direi no seu ouvido, dentro, bem dentro: te amo, te amo, te amo, amo muito mesmo...
Prometeu: (apaga as velas) Parece que em sua vida eu era funcional, não é mesmo? Servia apenas para enviar
a linha na agulha e abainhar suas calças ou pregar os botões de suas camisas: linha, agulha, buraco, nó, enfiar,
amarrar, passar pelo buraco, enxergar o buraquinho, lamber a linha, costurar, coser, emendar, remendar,
juntar, concatenar, abocar, tecer, embocar a linha no orifício pequeno da agulha... Tesão, jogo de sedução:
coxas, cunhão, roçada, mamilos, bocas, cacetadas, pernas entrelaçadas... As pessoas não veem você pelo que
é, mas pelo que aparenta ser, embora você seja, não importa, não há tempo, somos aparentes: é preciso ser o
que os outros acham de você, não o que é realmente. Na condição de ser-não-ser ou ser, o que vale é a
invenção de si esboçada pela impressão superficial do outro, logo você se perde de si e passa a ser encontrado
nos outros... Vai entender! Somos a condição do afago, o envolto do abraço, a alegria do sorriso, a lembrança
densa, a dança do acasalamento, a folha leve dispersada da árvore; somos tudo, menos o que os outros acham
da impressão primária. E eu adorava ser o que você inventava de mim, porque assim eu estava sempre ao eu
dispor, subserviente as tuas vontades e necessidades e dependíamos um do outro e assim íamos desenhando o
nosso amor, amortecendo as dores, ou amor tecendo dor... Nojo de fumaça, nojo de lembranças, nojo de mim
e da solidão... (fecha a cortina. Pega a flauta e passa a soprar notas musicais)
Narciso: Você está aqui, está? Diz, diz logo de uma vez, não me deixa mais tão angustiado, você está aqui,
não está? Ouço o som de sua flauta e a canção que você fez para mim. Responde e sai logo do anonimato,
antes que eu me mate e me lance ao vale dos que já se foram, responde, aparece, materializa-se em metade
faltante de mim, completa-me. Responde porra, responde.
Prometeu: Estou sempre no lugar de sempre, porque já sei que sou, e sou alguém além dos mitos ou mentiras
que inventamos de inventar só para não dizer ao outro o nome do nosso real desejo...
Narciso: Eu te necessito e você a mim. Toca meu corpo como antes, como ninguém jamais, jamais tocou,
chama-me de amor e deixa a música do nosso amor invadir esse espaço tão grande para nós dois.
Prometeu: Veja, compus nova música...
Narciso: Deixa a música dizer o próximo passo, o compasso e eu aqui agarrado a toalha imaginando seu
corpo nu e nós dois pelados a dançar por todos os cantos, todos os espaços como fizemos no dia em que nos
conhecemos, lembra-se?
Prometeu: É, não tinha pensado nisso, realmente foi inconsciente, ela fala do dia em que nós nos
conhecemos. Você sempre me surpreende!
Narciso: Cruza seus dedos em meus dedos e conceda-me abraços de braços em laços dados... Eu te necessito
e você distante parece não me querer. Diz para mim, diz o que posso fazer para sentir você de novo, diz o que
posso fazer para que percebas o quanto necessito de você e você a mim.
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Prometeu: Queria tanto, nesse momento ouvir você dizendo novamente: Quem nunca cantou o amor: suas
dores, dissabores seus encantos, desencantos? Esteve em seus braços, apartou e se prendeu e se libertou e o
quis assim como ele quis também...
Narciso: Para que machucar tanto nossas carnes se pertencemos um ao outro como tatuagem, por quê? Por
que tem que ser assim? Por que teve quer ser assim? Por que está sendo ou deve ser assim?(veste as meias e
os sapatos)
Prometeu: Quem nunca sentiu amor quando ouviu uma canção, fez canção de amor em beijos, em suspiros,
em abraços apertados, fez versos e compôs cifras melódicas para extravasar o sentimento que tanto apertava o
peito?
Narciso: Queria tanto você aqui cantando para mim (em gritos, ligando no celular): Quem a esse amor não deu asas e criou asas e voou ganhando o céu e conheceu infernos, fez pousos e se fez de aeroporto para tantos outros pousarem. (choro) Acreditou na eternidade e na infinidade de amar e sentir-se amado. Quem nunca chorou de amor, escreveu cartas e fez promessas. Quebrou as promessas feitas e desiludido entregou-se a solidão.
Prometeu: (larga a flauta. Acende as velas)
Narciso: (vai falando em choro, numa crescente em desespero) Foi feliz e se fez de feliz por amar e ser amado ao menos uma vez. Quem nunca amou e pensou que seria para sempre, diferente de tantos outros momentos já amados e magoados e... Quem não espera por ele toado em versos, anunciado em cifras esse amor em prelúdio de amor, para extravasar o sentimento que tanto apertava o peito? Quem a esse amor não deu asas e criou asas e voou ganhando o céu e conheceu infernos, fez pousos e se fez de aeroporto para tantos outros pousarem. Acreditou na eternidade e na infinidade de amar e sentir-se amado. Quem nunca chorou de amor, escreveu cartas e fez promessas. Quebrou as promessas feitas e desiludido entregou-se a solidão. Foi feliz e se fez de feliz por amar e ser amado ao menos uma vez. Quem nunca amou e pensou que seria para sempre, diferente de tantos outros momentos já amados e magoados e... Quem não espera por ele toado em versos, anunciado em cifras esse amor em prelúdio de amor... (pega o porta retrato, abraça, beija, chora, cai no chão, desespero)
Prometeu: (ríspido) Não gosto da fumaça da vela, não gosto de vê-la queimando. A certeza que chegará ao final causa em mim náuseas, vontade de extenuar tudo que tenho dentro de mim, o que sou na verdade em essência, sem demasia, extravasar. Vontade que dá e que passa: Insegura, incerta, insustentável. A vontade dos grandes artistas, sábios da humanidade hipócrita, tantos legados e a sorte virada para o lado contrário, eu contrario...; poetas do mal do século que se entregaram a vida e morreram de amor, amor, horrendo amor que os fazia sangrar, arder em dor, tuberculosos de amor, pneumáticos de amor, poetas, veneráveis poetas... (declamando) DEVANEIOS: Gosto de quem me roça a nuca,/me invade a orelha em ponta de língua sacana sabe,/palavras: vai, calma, assim, bom, muito bom./De quem me aquece o corpo/em músculos rígidos patenteados;/em mãos que se entrelaçam de desejos,/de quem se lembra de mim e se esquece de si./Debaixo do edredom, gosto de sentir as estrelas/que nunca existiram no céu de sua boca./Feito louco gritar a exaustão:/em tons suaves, em tons nocivos/em tons de loucura, em tons altivos./No emaranhado de corpos suados/gosto da sede do meu corpo pelo seu corpo/do ceder da minha vontade por sua vontade./Atados um no outro, gosto de sentir o peso do desejo somado,/cada centavo, cada gota de suor derramado/suavemente como bebida destilada,/como café coado a vácuo,/como o voo do pássaro/na manhã de sol de verão,/na janela do meu quarto.../Gosto do gosto e gosto do gosto de beijo/de boca a boca de boca na boca/das bocas em beijos depois que a língua lambe/depois que a barba arranha/depois que a saliva alivia o desejo que se alastra./Gosto de quem roça meu cangote/de quem me invade o norte/e depois de saciado não se cansa/não reclama, não se
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separa, colado/pelo enlevo do gozo conjunto/dorme lado a lado na mesma cama./ Ai, ai, como eu gosto... (vai a uma gaveta, pega um março de velas e passa a espalhá-las pela casa, em castiçais)
Narciso: Se ao menos agora pudesse ouvir você declamando, dizendo aquelas coisas difíceis... (no bolso da
calça encontro uma cartão) Não me ofereça o óbvio que não estou na vida de graça. Ofereça-me orgasmo
porque sei pagar na mesma moeda: desfaço os lençóis, desaprumo o rumo do corpo, desequilibro os lábios,
turvo meu desejo por águas mornas e esquento o quengo, aceito o desafio e; Não me ofereça o ópio que não
estou de ida sem volta. Sou roleta arretada, pavio longo e longa estrada percorrida. Tenho carne dura e
enrijeço os músculos no mesmo instante em que de bruços conto os grãos de areia debaixo de mim... Não me
ofereça vinho em caneco de "flande", pois não há gosto e detesto mascar chicletes do dia passado. Ofereça-
me o vinho diluído ao seu suor, por enquanto, por enquanto deixe minha langue fervilhar em seus mamilos,
virilhas, planta dos pés, entre os dedos dos pés, calcanhar! Sou demasiadamente "fervura", num instante abro
uma tesoura e pernas bambas, ambas querendo dengo. Amanso o barro no rolo do macarrão e faço canção de
sussurros abafados no chão da sala, sabe, daquele jeito: nós dois ali, abraçados, faz calor e sentimos frio. Faz
calor e passamos a despir os corpos com a boca, a gente, felinos no tempo duradouro de unhas arranhando a
carne. Na verdade faz frio e os dentes mordem os lábios, caralho, Oh, caralhos... (pega a garrafa do vinho e
passa a lambuzar o corpo com o vinho) Despidas as fantasias, não existe mais pecado do lado de cá da vida.
Ofereça-me labaredas para que eu possa me tornar chamas e nas cinzas do dia, deixe-me à míngua, de língua
de fora, a lamber a rapadura enquanto dura esse pentelho branco, dentro de minha narina esquerda, que não
consigo arrancar. Ofereça-me gratidão e eu te ofereço meu desprezo recheado de faz de conta... Faz de conta
que a sua existência é nada e nesse nada não me ofereça o óbvio porque estou para o balanço da rede debaixo
da castanhola, enrola o discurso, muda o prumo, e não ofereça nada, nem o óbvio porque o óbvio é leviano e
eu só ando de coletivo amargando as dores da solidão... Escrevi isso no seu aniversário, não tive coragem de
mostrar.
Prometeu: Vela, vela que vela a ausência de e eu querendo não pensar, não articular ideia, ficar em perpétua
letargia e meditar ao som do grilo que canta e me estonteia. O grilo debaixo do colchão, atrás da porta, dentro
do armário, o grilo do lado de fora, dentro do lado de dentro da caixa que está dentro da gaveta do criado
mudo, o grilo mudo que não canta; o grilo e o celular que não toca, não toca a valsa que tanto quis que
tocasse nesse momento fúnebre e a gente sendo, a gente, sabe, a gente em pulsos atracados, pulsando sobre a
dor um do outro, como torpes... A vela que enfeita a mesa, a vela que encaminha o defunto para, para, para
momento insano, tonto momento de loucura, tormento (pega chocolate, abre e passa a comê-lo) e essa barata
que tanto voa de um lado para outro, essa barata e nem sei quantas pílulas já tomei, nem sei, nada sei, nada e
eu nadando em devaneio aleatoriamente sem saber discernir o autor da obra pendurada na parede lateral ( O
homem Vitruviano – Da vinci) , e esse teto que não para de rodar, está me deixando zonzo...( efeitos de luz,
vento, vozes) Está bem, está bem, muita calma nesta hora, está bem já disse, já disse que está tudo bem, tudo
muito bem, eu acendo, acendo a vela (música, meio tonto, voz embaçada). Vela acesa, ambiente iluminado,
fumaça, cheiro de fumaça, luz, vela, fumaça, vela luz e minha cabeça a mil. Rodando, rodando sem parar e eu
me vendo rodando sem parar como não para, não para a correnteza do rio, o movimento da Terra, o coração
vivo, meu pulso, minha respiração, agora, ofegante e hoje descobri que quem gira na verdade é a terra ao
redor do sol, formando assim os movimentos de rotação e translação e eu transladado, transpassado de e viva
Galileu e todas as putas sanas queimadas na fogueira da inquisição porque delas é a vitória da sinfonia do
tempo soprado; como não para a angústia de sentir-me só, de está sozinho mesmo cercado de tanta gente,
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gente curiosa, amiga, gente, todas as gentes e ver as pessoas ao meu redor e não sentir-me está ao lado de
ninguém, ninguém... Sentir-se abandonado, abandonado...
Narciso: Estou febril, veja, estou febril, socorro, socorro, socorro, estou com febre e ninguém que me leve à
cama, ninguém que cuide de mim, que me faça dengos. Por onde anda as minhas aspirinas? Estou com febre
e chora por dentro minha alegria porque sem você tudo é vazio, totalmente vazio... Sinto frio e falta dos livros
que aqueciam nossas almas. A gente debaixo do edredom e você a me contar velhas e belas histórias
enquanto me roçava a nuca. Belas artes, famosos artistas, grandes homens e fortes e quentes beijos de língua.
Só nós dois ali, naquele cantinho nosso e você como a própria palavra em movimento, quente, como café
coado a vácuo, como o sol de verão (pega gelo, põe na boca, passa o gelo na axila e nos mamilos. Vai
descendo barriga abaixo. As luzes se apagam, música e fotos, imagens projetadas dos dois). Pensei em pedir
uma pizza. Que você acha? Vestir nossos jeans surrados, sandálias e camisetas básicas, sermos, somente
sermos seres comuns... Não, hoje nada de saladas, estamos muito felizes e isso nos pede uma comemoração à
italiana!!! Massa, vinho, vinho, massa, amassos comemoração e depois um belo passeio de bicicleta pela
cidade, que achas, nada?... Nada é a existência da possibilidade de, lembra? Você me ensinou isso. O
Nada!!! Cada vez que morre a esperança, nasce o nada como possibilidade de algo vir a existir. Como nada
existia no princípio e tudo passou a existir... Estou pensando seriamente em procurar uma cartomante, ou
quem sabe algum baba orixá que me jogue os búzios. E se me disserem o que na verdade não quero ouvir? E
se disserem o que eu quero ouvir e não for o que na verdade é? Preciso pensar, reinventar meu espaço.
Visitarei alguns sebos e gastarei o pouco de economias que tenho para deixar esse espaço parecido com o
nosso espaço de amor. Comprarei obras de arte, cortinas em cores fúnebres e assim, quando resolveres voltar,
reocupar o espaço que é sempre será seu (pega o celular, faz ligação) Espera, por favor, escuta-me ao menos
esta vez.
Prometeu: (adormecido no sofá. Acorda ao som do celular. Desliga-o) Meu mundo é redondo, não cabe
pessoas quadradas! É largo demais, mas não cabe gente expansiva. Não suporta hospedar hóspedes
indesejados, nem trecos; é vanguardista, tendencioso como a própria sorte. Embora esteja sempre colorido,
vez por outra furta-cor diante de pessoas ingratas, por isso só abre a porta para gente seleta; prospecto de mim
mesmo, não tem necessidade de todos, apenas daqueles que a mim possam somar alegrias, multiplicar
oportunidades, dividir preconceitos e subtrair imperfeições (Choro. Música. Pega um moletom no cabide e
passa a dançar ao som de eclipse oculta do Cazuza. Sobe no centro da sala, vai tirando a roupa e falar alto)
Saudade não tem preço, não se descreve, não se mede... Só quem sente sabe: se é doída, se é boa, se faz bem,
se faz chorar, se traz alegria, se renova a esperança... A saudade eterniza a lembrança de dias vividos, de
momentos desfrutados, de uma existência que deu frutos, se multiplicou prosperou e por mais que o tempo
passe, a distância aumente, nada pode apagar o que está dentro, bem dentro do coração. Saudade tem gosto:
pode ser doce, pode ser amarga; pode ser apimentada, pode ser aliviada com vibrações boas, com preces de
amor, com mensagens de gratidão... Brota no coração e abrolha pelo corpo todo: Corre pelo sangue, oxigena
o cérebro, é filtrada pelos rins, faz a digestão, torna-se indigesta. Provoca cólera, acidez, taquicardia,
palpitação... Saudade humaniza a dor, se faz de amiga, conforta, é alimentada, dá vazão ao pensamento, se
instabiliza para depois estabilizar. É inquilina indesejada, ora desejada, para não esquecer, ou lembrar, de
pessoas que se eternizam dentro da gente... Saudade é como dor de dente: é um alerta para dizer que algo não
está como gostaríamos que estivesse [...] (de cueca) Já peguei o fósforo, é o único, não posso errar, minhas
mãos trêmulas... Estou indo, estou indo, calma, não me empurra, puta merda vida de bordoada. Estou indo
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acender a vela, estou indo vê-la queimar e pela janela vejo que a vida continuada lá fora uiva ( veste roupão).
A vida de tantas pessoas, sobreviventes dessa não vida que não nos cabe. ( na janela – imagens vão sendo
projetadas) Olhe, veja lá, lá em baixo atrás daquela lata de lixo, está vendo só, meu Deus!!! Um menino,
inocente ser, veja, de arma na mão... Não, não menino, não faz isso!!! Olhe, está de arma na mão apontando
aquele outro menino que brinca tão livre, veja, está apontando e vai atirar, não, menino, não pode, não faça,
não... (choro, desespero, vai ao chão) E o tédio me consome os ossos dos braços. A ação repetitiva, repetida
tantas vezes, tantas vezes a mesma ação repetida e o movimento insistente, a condição que não existe ou não
se quer explicada e estou febril, meu corpo dói inflamado, febril de saudade e ninguém para verificar minha
pressão, pobre pressão, tonta pressão, torpe pressão que não me deixa racional e esse cheiro de chuva me faz
pensar no cheiro de suas cuecas (tira a cueca, passa a cheirá-la).
Narciso: (aparece vestido de calça de social, sapato, camisa de botão e pondo a gravata. Olha-se a0 espelho
a pentear os cabelos) Saudade dói mais que dor de dente, mais que dor de parto, parte pelo meio ou na
metade o que se sente ou o que não se sente... Porque vai saindo assim sem trilha certa, a certa altura vai
envolvendo o ser acerca de um sentimento nostálgico e por mais que se queira explicar, não se explica,
apenas se sente e se vai assim... É ela austera, prepotente e está no ser com a finalidade de ir ao encontro às
lembranças mornas de outrora; autora de desilusão, ascende ao posto maior, quer estar no topo ao mesmo
instante em que acende uma centelha de humor negro. Por que se sente? Sabe-se lá, talvez porque tenha que
ser assim ou talvez porque, bem o porquê de verdade eu não sei dizer. (...) Bem ou mal, há um motivo, um
acaso, um caso, uma fresta para que ela possa se instalar. Haja uma cessão de saudade para aqueles que
fecham os olhos e se prendem e se compre na seção de esquecimento um frasco pequeno, fechado
embrulhado para presente, como dor de dente, de parto e se parta logo que caia a primeira lágrima... Saudade
vai de encontro à alegria que sinto quando vou à esquina e compro sorvete (...) É olhar nos seus olhos e não
mais encontrar o brilho dos meus... (põe água na boca, boceja) Na noite passada estava fervilhando de ideias:
vez estava no sofá da sala pensando em quantas estrelas havia brilhado naquela noite, vez sentia a vontade de
ir a cozinha catar arroz e pô-lo a ferver na água com sal, sorria, porque logo vinha à música de outro dia
acender em mim saudades e fazia do livro que até então estava lendo de piano e me peguei horas e horas
dedilhando notas nunca antes vistas em lugar nenhum. Passei a declamar versos, os que mais gosto da Adélia
prado, depois passei a folhear Clarice, acabei nos lábios da Elisa Lucinda... Fechei os olhos, tentei abri-los,
ligar o computar, mas a dor de mim me fez prisioneiro e fiquei ali, no sofá, dedilhando versos que poderiam
estar postados, hoje, aqui, mas não. Abri os olhos, sentei o corpo, abri mais um pouco a porta lateral para que
a noite em brisa pudesse entrar mais dentro de casa. Estava quente, passei a tirar a roupa: Tirei a camisa,
passei a mão no corpo, senti o meu corpo em pelos e fui à geladeira. Peguei algumas pedras de gelo e passei
pelo corpo. O contato do gelo nos peitos me provocou riso e eu sorri, sorri alto que o barulho incomodou o
apartamento de frente. Alguém acendeu a luz, fiz careta e tirei a calça. Fiz uso da liberdade de mim, fiz uso
de mim para mim. Fui, aos poucos abrindo o zíper, depois percebi que não existia mais nada depois da calça,
além do meu corpo. Parei porque nesse exato momento o som longínquo estava adentrando o meu coração,
fazia nele precipícios e pulei, pulei, pulei até que gotas de suor escorriam corpo a baixo... Fui ao banheiro,
liguei o chuveiro e passei a banhar-me.
Prometeu: Agora pronto, uma vontade louca de tomar banho, banho de chuva, sabe... Lembro-me do dia que
nos conhecemos. Era quase noite e chovia, eu de carro, parado no meio da estrada, pneu furado e
impossibilitado de ação porque não sabia agir; você caminhado livre, na chuva, caminhando, abraçando a
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liberdade que te fazia ser e nossos olhos encontrados e quando menos nos apercebemos as bocas necessitadas
juntas comungavam um desejo latente, viril e do frio da chuva para o calor das cobertas, aqui, bem aqui neste
apartamento; você escolheu a trilha sonora e nós dançamos coreografando o amor, aquele amor de corpo
dado um ao outro em palavras sussurradas no ouvido. Eu sei que foi assim, eu me lembro de cada movimento
de cada palavra de cada gesto até o momento e enquanto o sol não nascia e a gente tantas vezes de amor
vibrava, eu me lembro de quando em seus braços você pediu as velas e que Da Vinci não me deixe mentir
pelo olho da sua Gioconda que nos assistia... (vai a uma mochila, tira uma calça jeans e vai se vestindo) Eu
odeio as velas. Esse cheiro horrendo, causticante de cera derretida, chorada; odiosas velas que vezes parecem
sorrir por cumprir uma ação determinada. Nessas horas vejo o filósofo descer ralo do banheiro abaixo, com
ele o mundo das ideias... (tira do bolso da calça um papel de chocolate, um guardanapo e uma folha escrita)
Narciso: Não podemos deixar a vida passar sem estes últimos entendimentos. Espera caralho, espera...
Respeito a sua dor e a sua certeza de que sou egoísta e mesquinho, aceito a minha culpa e toda provocação de
ter quebrado um sentimento tão intenso que existia entre nós. Aceito tudo que me for colocado, tudo que me
torna um asco, mas espera, estou pedindo, espera... Assumo a culpa máxima de ter sido medíocre e estúpido,
de não ter tido a sensibilidade de perceber o sacrifício ou o que você teve que sacrificar está sempre ao meu
lado... Sinto tudo isso amargamente e por tudo isso choro copiosamente. Choro como quem chora a própria
morte. Cada lágrima que me escorre dos olhos tem efeito de ácido porque desce rasgando meu rosto e a dor
me aprisiona porque a cada minuto percebo o grande erro que fiz. Parece exagero, mas não é. Essas coisas
todas estão atingindo, além do meu emocional, o meu físico... O que mais me dói é não poder ter uma chance
de provar o contrário, de mostrar que aprendemos as lições da vida, inclusive aquelas que marcam que nos
fere a carne. Como entender que num primeiro grande desentendimento todas as palavras de amor e sonhos
futuros fossem se acabar assim... Como, então, compreender que tudo seria tão efêmero? Isso me dói!!! Se ao
menos pudéssemos tentar, rever a situação, reverter a condição...Neste momento pego o março de velas e
jogo janela a fora, ligo o celular, ligo para você e o sinal está desligado. Liga o celular, vai, precisamos
conversar... O amor se constrói e dói construir amor
Prometeu: Tenho coração de barro, molda-se com facilidade a situações diversas. Não bate mais como dantes
nem tem mais badalo: É ávido, franzino, ressecado, ressentido e cheio de incertezas. Um órgão vital avesso,
estratégico, enrijecido. Tenho um coração composto pela lembrança de ontem, pela esperança de amanhã. É
agreste, rude como o meu semblante. Não se polpa nem quer pompa, tão-somente descobrir como se forma o
arco-íris lá no alto, enquanto cá em baixo a seca assola minha dor. Tenho um coração terra e água, ar e fogo,
um gosto de barata na ponta da língua. Não importa se mordi a mim, não importa se toquei os lábios nos seus,
a incerteza me consome, tenho dúvidas que nunca passaram desde o dia em que mergulhei naquele açude,
prendi o ar querendo matar a mim mesmo, mas fui salvo pela sua insistência. Não sei se dói aqui ou se
invento essa dor, sei que vi o sol e chorei. Aguei a minha face, pude sentir uma estranha sensação por mim...
Chorei quando vi o sol, ele tocou o meu rosto por inteiro, quis olhar para ele, bem para ele, com os olhos
arregalados. Pensei em sorrir, mas o riso não veio. Tentei insistir, mas nada, fiquei um tempo na mesma
posição, e uma eructação presa me fez voltar à realidade. Fechei a janela com os ombros, sentei na rede e pus
a balançar-me. Eu acho que foi bom, é foi sim, porque depois eu pude sentir que meu coração de barro se
moldava, agora não sei o formato exato que ele tem, só sei que é rude, agreste, ressentido e cheio de
incertezas... (amassa a folha, rasga o cartão, queima o papel de chocolate).
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Narciso: Ontem fez sol e meu coração nublado mergulhou em devaneios. Pensei no dia que te encontrei pela
primeira vez. Era tarde, fim de tarde, chovia, seu sorriso adentrava em mim, ocupando um espaço que há
tanto tempo vazio, logo se preencheu. Cumprimentamo-nos e dos apertos das mãos a febre no corpo em
resposta, poucas palavras e tantas coisas a dizer. Dentro do carro a vida passava por nós com seus barulhos,
fumaças, andarilhos de todos os lados e dentro do carro nós dois a quebrar o silêncio, dentro do carro nosso
ego protegido para não trocarmos os termos, não desagradar, não... E mais uma vez seu sorriso
tranquilizando, seu sorriso dentro do carro a conduzir o meu coração e nossas vontades. Andamos,
perambulamos ruas e becos e caminhos e nas esquinas da vida paramos para refrescar nossas bocas. Sentados
frente a frente, trocamos figurinhas, as primeiras e já era escuro e a noite nos dizia a senha, partimos então
para o espaço fechado de sossego de nossos corpos, você me convenceu da possibilidade de amor entre nós...
Ontem um sol horrendo e dentro de mim uma nuvem, o sabor de dias nublados. O vermelho do sangue havia
coagulado e o cinza espeço tomou conta de todos os lados, era nublado dentro de mim e fazia inverno nos
meus olhos. Torrente de águas cristalizadas descia sem explicação e o sabor daquele primeiro encontro ali,
nossos corpos pedintes, suplicantes e o toque que nos aproximou, nos fez únicos com os encontro das bocas
ofegantes, das peles tecidas em colcha de retalhos e naquele momento fecundo era gestado nosso estado de
completude: Dois corpos em corpo único e não havia chuva, nem nuvem, nem era inverno e nem havia
explicação... Fazia um sol tremendo e eu em arrepios de frio congelando aos poucos, olhando as fotos dos
registros de tantos dias, horas e nenhum sinal de remissão. Fazia frio e eu sonolento perdia os movimentos de
reação além de te fazer desenho em fumaça imagética.
Prometeu: Na verdade, não era esse o texto que tinha pensado, afinal de contas, o que conta é a experiência.
Amanhã mesmo não serei mais besta de perder tempo com choro. Sairei, sairei sim e gastarei todas nossas
economias da tão planejada viagem à Itália; Procurarei um bom arquiteto e mudarei esse espaço, darei nova
cara e terei nova cara também. Um novo papel de parede, mais claro, vivo, estampado. Nada mórbido.
Venderei os quadros, deixarei os peixes do aquário morrerem de fome, a míngua, aos poucos e essas serão
minhas pequenas lembranças. A cada coisa que for fazendo diferente, por menor que seja, será a forma
encontrada de também matar você aos pouco de dentro de mim, de minha vida. Também terei nova rotina,
novo designer. Pintarei meu cabelo, tinta e corte que combinem; demarcarei os traços do meu rosto e os olhos
em cores abstratas para que os mais intimistas não possam perceber as personas que vivem por trás da
cortina. Quebrarei todos os vinis e jogarei pela janela os pedaços de fotos. Os livros me aquecerão no
próximo mês junino, farei fogueiras intelectuais para celebrar a data de cada santo. Queimarei junto,
queimarei profundamente como se queima essa vela, maldita vela que me atormenta, me reinventa doentio.
Direi a mim mesmo qual é na verdade a minha verdade e feito acrobata, nortearei o meu equilíbrio, sem
ressentimentos e nossa história será mais uma história como, talvez velhas histórias contadas, inventadas,
reinventadas. Não, não quero aprender, não preciso. Deixa estar que passo bem, pode deixar. Encarrego a
mim mesmo de pregar os botões Despregados de minhas camisas. Com barbeador cego farei com que Cada
fio de minha barba seja aparado. Usarei o aparador para minha urina. Na usina da vida serei professor de mim
mesmo. Odeio piedade, detesto pieguice. Jogar conversa fora? Cai fora encosto, dê espaço para que eu possa
coçar minhas costas na parede. Dê espaço para que eu possa coçar o saco na quina da mesa, é prazeroso. Se a
vida não me quis de braços Talvez já soubesse que eu saberia me virar muito bem. Levaram-me os dedos, as
mãos, os braços, levaram-me o desejo de sorrir, os lábios, a boca, Levaram-me a necessidade de tocar violão,
Porém, não arrancaram de mim eu mesmo, com minha capacidade, só minha, de recomeçar, de aprender e
driblar as coisas dessa vida, mesmo que para isso necessite de me reinventar sempre: A cada dia, A todo o
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momento, de forma urgente... Não, não quero aprender, não preciso, apenas que termine de beber essa água,
saia por aquela porta e vá sem olhar para trás. O seu olhar não tem o calor do sol nem a sedução da lua.
Existe a incerteza e dela quero ficar distante, Bem distante mesmo. Sua estupidez me torna ignorante e nem
tenho vontade de acender a vela, prefiro o escuro e todos os desenhos em nuvem que me aparecem. Masco o
mesmo chiclete desde o terço de hora da tarde, não tem mais gosto como tenho desgosto a subir e descer
dentro de mim como uma brincadeira de gangorra e tudo isso me faz pensar na vontade que tenho de cortar
sua língua com ferro quente. A ingratidão é soberba, ao mesmo tempo em que te faz vitória, também é
derrota, doce e amarga, doce e azeda, doce e ocre como o seu olhar encorujado. Desconfiar assim, desconfiar
da própria sombra e se fazer assombração das encruzilhadas que atravesso no jorro de palavras despejadas
como chuva inesperada (...). (sentado veste as meias e põe sapatos, veste um paletó).
Narciso: Caralho escute, eu preciso dizer, preciso... Era dia e o relógio parado não dizia o tempo exato. O
tempo que ali ficou meu coração mergulhado em devaneios... E outros dias, outros momentos foram sendo
trazidos pelo navio do desejo de te materializar do meu lado. E logo, em um retrato recente, seu sorriso
novamente a me cativar... Sorriso de dengo, sorriso de quem sabe comunicar sem dizer palavra alguma e
quando as palavras calam, os gestos comunicam... E mais uma lembrança da primeira noite que juntinhos
celebramos o nosso primeiro natal. Naquela noite era o nosso nascimento e mesmo sem qualquer manjedoura,
escutamos os sinos e vimos a estrela a brilhar no horizonte dos nossos sentimentos e nos beijamos e juramos
amor eterno... De olhos fechados contemplamos toda a noite passar sem perceber que a tão pouco o sol já
havia nascido. O sol, o mesmo sol de ontem tão forte, enquanto no meu coração era nublado... E o gosto de
chumbo a amargar a boca devota, carente de beijos. Aberta, a garrafa de vinho em taças que cintilavam
sozinhas; o liquido era solvido na busca de outro estado que não fosse real. O estado daqueles que se afogam
em devaneios fósseis, enquanto, na vitrola, uma música solava o que realmente era sentido. E o celular não
toca, a vida não se toca e dentro de uma toca oca, o ser se comprime, se deprime, se reprime em ingratidão.
Perdido em devaneios vou passando a vida a limpo... É difícil se fazer verão quando a lembrança de sua
presença é presente em todos os cômodos e espaços e lugares do meu ser. Se me vejo no espelho, vejo o rosto
que tantas vezes foi acariciando pelas suas mãos, a boca onde tantas vezes depositastes seus lábios e os olhos
que veem a imagem refletida no espelho são os mesmos que por tanto se viram dentro dos seus. Fecho os
olhos, o que vejo são os momentos de ternura, as juras, os balanços nas redes e se abro os olhos nos espaços
da casa, é você que aparece e não se pode ser verão. Tudo é inverno, é nublado, é chuvoso... Ontem fez um
sol quente e dentro de mim nublado, no meu coração, como nublado são todos os dias de ausência sua em
minha vida, mas passando a vida a limpo posso pintar os dias nublados de outras cores, fazer maquiadas as
dores, as angústias, a ingratidão... Fechar uma porta e abrir uma janela ou fechar portas e janelas e abrir um
pergolado; posso redesenhar o projeto de minha vida e ser vida e está na vida para recomeçar. Pois é,
passando a vida a limpo, percebi que enquanto fazia sol, ontem, fez nublado em meu coração, fez, mas como
todos os estados são passageiros, passageiro foi tudo isso em meu coração... Hoje, por ironia, o céu está
nublado, em compensação, dentro de mim faz um sol danado e agora resolvi aproveitar, pois nunca se sabe
quando se é tempo bom ou se já se faz tarde, o bom é aproveitar. Vai que na dobra da esquina um novo
sorriso nos espera e já pensou, se o sol resolve esquentar (tira a calça, os sapatos, as meias, de cueca põe um
avental).
Prometeu: Seu veneno escorre no canto da boca e nem meu canto é capaz de acalmar ou espantar para o lado
de lá essa estupidez toda que me torna ignorante (...). Dá cá esse palito, me deixa coçar bem o meu ouvido
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porque está borbulhando em sujeira, é assim que me chega, é assim que entra em mim a sua prosa, tudo é
sujo, é lixo, é doído, por isso que escarro, devolvo na mesma moeda (...) Espera, espera, antes de partir de
vez... Não, deixa para lá. O que se faz com quebra não há conserto, deixa, deixa, deixa que eu queime
sozinho a minha dor, por que insistir se não podemos mais fazer nada, nada, nada. Porque sei que ei de ficar
velho e gasto: no meu rosto os marcadores temporais serão postos gradativamente como se fossem pinceladas
impressionistas para que a luminosidade do meu semblante possa ser tal as mãos do pintor nos contornos dos
traços e usarei um outro olhar e um outro sorriso para suavizar as tensões. Bordarei a esperança com os fios
dos meus grisalhos cabelos, tendo em vista sê-los companheiros fiéis de todas as etapas por onde passei e
serem elos de experiência. Na minha boca, quando nenhum dente mais restar, passarei a usá-la para degustar
as memórias de outrora, o que vivi e o que poderia ter vivido mais ainda. Não permitirei dor nem sonhos
posto já está velho e gasto (Sai de cena. Narciso desce as escadas, fasta os móveis trocando-os de lugar,
arruma os livros, abre as cortinas. A campainha toca).
Cena 2
Narciso: Os sapatos...
Prometeu: Que quê tem?
Narciso: Deixe-os depois da porta.
Prometeu: Por quê? Por que sempre tem que ficar os sapatos depois da porta?
Narciso: Porque a casa está limpa, eles estão sujos. Casa limpa, sapatos sujos não combinam...
Prometeu: Não concordo. Não quero tirar os sapatos, não vou tirar os sapatos, não vou ficar descalço.
Narciso: Problema seu, faça como quiser.
Prometeu: E vou fazer mesmo. Vou fazer isso que estou dizendo.
Narciso: Você e suas implicâncias. Que quê custa tirar os sapatos já que a casa está limpa?
Prometeu: Para mim custa minha vontade de ficar calçado e não abro mão. Quero ficar calçado e pronto. Não tiro calçado nem...
Narciso: Tudo bem, tudo bem. Seja feita a sua vontade. Deixe as merdas dos sapatos, nas merdas de seus pés. Com certeza devem ser mais limpos, os sapatos que os seus pés. Pronto. Seja feita a sua vontade.
Prometeu: Foi para isso que você me chamou? Foi para isso? Para fazer como sempre seu circo a parte? Bravo, bravo. Quer que aplauda? Quer algo mais? Alguns gritos? Estou cansado, realmente cansado. Não aguento mais essa situação. A gente não se entende...
Narciso: Já ouvi isso várias vezes. Como se fosse disco arranhado: “Estou cansado, realmente cansado. Não aguento mais essa situação. A gente não se entende...”, Isso nós já sabemos... Que mais? É só isso e pronto?
Prometeu: Não sei. Realmente não sei. Não parei ainda para pensar direito. Não quero ser precipitado.
Narciso: Você e seu ego. Sempre você e você e você... E eu? Como fico? Esperando sua vontade?
Prometeu: Não, não é isso que espero de você. Por isso é que espero uma atitude sua. Não precisa esperar que seja minha, a atitude, a ação. Falo por mim porque não sei mesmo. Sinceramente é muito doloroso...
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Narciso: Doloroso? Doloroso é o tempo da espera...
Prometeu: Doloroso é saber que eu amo você, mas mesmo amando nossas diferenças nos impedem de sermos felizes. O espaço que dividimos torna-se pequeno demais e isso acaba nos sufocando.
Narciso: Interessante como as coisas mudam, não é? Há tão pouco tempo o pensamento era outro, a vontade era outra...
Prometeu: Não estamos discutindo o ontem, estamos falando do hoje. O que sentimos, o que queremos, como estamos vivendo. O hoje, isso é importante. Como você me ver?
Narciso: Como?
Prometeu: Isso mesmo, a pergunta é essa. Como você me ver?
Narciso: Ridículo isso...
Prometeu: Para você tudo é ridículo. Eu sou ridículo, minha imagem é ridícula, o que penso, como vivo, o que sinto. Sempre foi assim. Nossos mundos sempre foram anônimos, nossos amigos são anônimos, vivemos em mundos anônimos. Tudo se restringe a esse apartamento.
Narciso: Mas tudo isso foi acertado desde o começo. Tudo foi falado e combinado pelos dois. As condições foram expostas e isso nunca foi empecilho para nossas vidas...
Prometeu: Para você bebê chorão, para você. Nada foi acordado, nada foi acertado. Tudo foi imposto, foi a sua condição e eu apaixonado me deixei levar. Não te culpo, não posso te culpar. É esse amor ensandecido que nos faz pensar com os cotovelos e acabamos trocando os pés pelas mãos...
Narciso: Ei, que é isso agora? Que discurso é esse? Você bebeu mais uma vez? Bebeu, vamos diga. Bebeu. É por isso que está assim, sem saber o que diz. Covarde, covarde, isso é o que você é. Um covarde, um mísero covarde.
Prometeu: Bravo, bravo. Como você conseguiu definir bem quem dorme toda noite ao seu lado, não? É isso mesmo que sou. Um covarde, um mísero covarde porque recusei, porque traí a mim mesmo, o que sempre construí ao longo de uma vida inteira. Covarde, da pior espécie. Covarde, traidor, ordinário. Mereço umas boas bordoadas, não? Umas boas pancadas para ver se crio marra...
Narciso: Isso mesmo que deveria fazer, encher sua cara de porrada para ver se cria marra. Beber para perder o controle. Beber para despejar sobre mim palavras insanas...
Prometeu: Bêbado de dores, essa foi minha bebida. Dores, desalento, solidão. Essa é minha bebida para seu governo. Tentei beber o que estava me matando para ver se digeria mais rápido. Você não sabe de nada, não sabe o que diz. É um pobre ser que só consegue enxergar na altura do seu umbigo. Tudo gira em torno de seu umbigo e nada mais.
Narciso: Durante todos esses anos, nós nunca tivemos uma conversa como esta. Nunca houve um diálogo como este, Prometeu. Por que isso agora?
Prometeu: Porque nunca houve conversa, Narciso, nunca houve diálogo, sempre monólogo. Você dizia e eu aceitava tudo porque sempre tive medo de te perder, medo de que você me deixasse, fosse embora, logo eu, eu, tão mais velho que você, era tão mais seguro...
Narciso: Pare, não quero mais ouvir nada...
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Prometeu: Você nunca quis ouvir, esse é um dos seus males, não sabe ouvir, não gosta de ouvir, não quer ouvi, nunca ouve, nunca. Por isso que digo que nunca houve diálogo entre a gente, sempre monólogo, e eu que sempre disse que não ia dar certo. A sua juventude um dia iria ter necessidade de viver outras realidades e você nunca quis uma relação aberta, dialogada.
Narciso: Mas o que fiz? O que faço para tanto te aborrecer? Sou fiel a nossa relação, sou fiel no que sinto por você, caralho. O problema é que você quer ser o senhor de minha vida, decidir, determinar, controlar tudo e não pode ser assim. Você me ensinou a ser um ser pensante, você me construiu...
Prometeu: Não consigo construir monstros...
Narciso: Como é que é?
Prometeu: Não consigo construir o desconhecido. Você não se mostra verdadeiramente, não sei quem é você. Ora diz uma coisa, ora diz outra. Ora enche-me de beijos, ora esbofeteia-me, dispara uma metralhadora de coisas que não mereço.
Narciso: É, você nunca merece porque sempre foi rodeado de meia dúzia de pessoas que fazem de você o senhor sabe tudo, um bando de mela cueca que não sabem na verdade de nada. Nunca vão contra o senhor razão, o senhor suprassumo da verdade. Merda suas verdades par mim. Ultrapassado modo de pensar.
Prometeu: E demorou quanto tempo para descobrir isso? Por que não disse isso há mais tempo?
Narciso: Porque tudo no seu tempo, não é isso que você diz?
Prometeu: Sempre me querendo pegar pelos pés. Sempre querendo me ver em contradição. É desse jeito que diz que me ama? É desse jeito que sonha uma relação com outro ser ou é por isso que me anula tanto do seu convívio?
Narciso: Não questione os meus sentimentos por você, não tem direito de fazer isso. Você sempre deixou claro que não aceita meus amigos, por que tenho que fazer esforço de juntá-los a você?
Prometeu: Não quero esforço, nem de você, nem de ninguém. Odeio isso. Já me basta o esforço das pessoas que sempre viveram ao meu lado e diziam me aceitar como sou por esforço, por mero esforço e quando me viravam os olhos, pelas coisas, diziam coisas absurdas...
Narciso: O que é isso no seu bolso?
Prometeu: Nada de interessante, não vem ao caso...
Narciso: Como você sabe que não vem ao caso?
Prometeu: Por tudo que foi dito aqui. Não tem sentido, nada tem sentido.
Narciso: Posso ver?
Prometeu: Acho melhor não. Tudo é tão mentiroso entre nós.
Narciso: Por favor, deixe.
Prometeu: Prefiro não, já disse.
Narciso: Faz isso comigo não...
Prometeu: O que está feito, está feito. Tudo está quebrado entre nós.
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Narciso: Vejo que é um embrulho...
Prometeu: É um embrulho...
Narciso: Parece presente.
Prometeu: É um presente...
Narciso: Para mim?
Prometeu: Pare com isso. Você sabe que é. É um presente, é para você. De repente vinha passando e vi em uma loja de cd, achei que ia gostar e...
Narciso: Posso ver?
Prometeu: Não, acho melhor não... É uma cafonice, assim como eu. Nem sei ao certo se você gosta, se vai gostar...
Narciso: Claro que você sabe, você sabe tudo sobre mim...
Prometeu: Não, não sei. Você é um eterno enigma, algo que desconheço a cada dia.
Narciso: Não é verdade e faz de tudo para mim ver assim como estou. Deixe-me ver, mate logo essa curiosidade... (entrega o presente) Nossa, o cd da Cássia Eller cantando o Cazuza, O veneno ante monotonia!!!Precisamos ouvir, venha...
Prometeu: Não, não quero ouvir nada. Você sempre dá um jeito de fugir...
Narciso: Estou fugindo não, veja, tem a música que amamos... "Eu quero a sorte de um amor tranquilo...”.
Prometeu: Hoje eu não quero mais nada.
Narciso: Como? Cara deixa de ser chato.
Prometeu: Chato, mesquinho, egoísta, não é isso?
Narciso: Olhe para mim. Agora não. Agora vamos curtir esse presente que é nosso.
Prometeu: Não, é seu, só seu. Comprei para você.
Narciso: Mas o que é meu, é seu.
Prometeu: Não. O que é seu é só seu. O que é meu é só meu.
Narciso: Por que isso agora?
Prometeu: Por que assim é que deve ser.
Narciso: Está me mandando embora, é isso?
Prometeu: Já disse que não sei, não quero tomar nenhuma providência sem pensar direito. O que sei é que não estou bem.
Narciso: Deite aqui, venha. Vou acender um incenso e vou lhe fazer uma massagem daquelas. Acho que você está tenso, precisa descansar. Venha. Venha. Deite-se, eu sei que você gosta.
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Prometeu: Você e o seu jeito de resolver as coisas. Não gosto disso.
Narciso: Só estou querendo ficar próximo a você um pouco, sentir a quanto bate seu coração, venha, dei-me sua mão. Se quiser eu abro um vinho e podemos beber juntos...
Prometeu: Como se você não bebe?
Narciso: Posso fazer isso por você. Por você eu faço qualquer coisa. Chegue, meu filho, venha de uma vez. Depois podemos tomar banho. Eu dou banho em você, como sempre... Passo minha língua em suas virilhas e te deixo como gosto.
Prometeu: Não é de sexo que preciso, não generalize as coisas.
Narciso: Eu sei que você quer, sempre quer, nunca me rejeitou.
Prometeu: As coisas mudam, tudo muda. É só olhar ao nosso redor. Tudo muda. O ser humano, nossas
vontades, a vida, o tempo. Veja, ontem fazia um frio danado, hoje, quanto calor... É assim.
Narciso: Com as relações não. Com as relações só mudam assim... Não, não pode ser. Quem é, diga, quem é?
Você está amando outra pessoa? Conheceu onde? Diga, quem é? Eu conheço, conheço? Foi na última viagem
que você fez? É de orkut? Bate papo, diga de uma vez.
Prometeu: Quando você quer, consegui realmente baixar o nível. Não transfira para mim suas realidades. Não
coloque para mim os seus costumes. Quem vive de orkut e bate papo é você, você que conhece esses seres
ridículos que ficam se jogando para cima de você, marcando esquema, encontros... Não deixe cair assim a
carapuça, não serve para mim.
Narciso: Não é verdade. Eu te amo e meu amor por você é incondicional, nunca o trai, nunca...
Prometeu: Não? Tem certeza?
Narciso: Tenho, tenho sim. Tenho a máxima certeza que meu amor é só seu. Nunca duvide disso.
Prometeu: Acho melhor dormirmos.
Narciso: E o vinho?
Prometeu: Não quero beber
Narciso: Por quê?
Prometeu: Não tem por quê...
Narciso: Tem sim, sempre tem. Declame-me um texto.
Prometeu: Não tenho inspiração...
Narciso: Por favor...
Prometeu: Não quero!!
Narciso: Por menor que seja.
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Prometeu: Essa sua jovialidade me é tão necessária, o ruim da vida é que nunca podemos demonstrar o que
realmente somos, devemos ser sempre personas de nós mesmos para podermos ser aceito diante da sociedade.
Eu te contemplo, veja, e me vejo no seu olhar, refletido. Fico a pensar como me chega até você, como me vês
e eu a ti. E nesse jogo de reflexo, tenho vontade de prender-te os pulsos e de impulso, roçar a nuca com
minha barba, morder-te as costas e fazer loucura, curar nossas dores em jogo de línguas, sacrossantas línguas
a digladiarem no espaço santo de nossos corpos, e rotos, lassos, deitar um sobre o outro em gozo profundo,
fundir nossas almas e que não haja testemunha, morrer, morrer em seus braços de amor, amor, ah amor maior
que tudo que sinto, maior que eu, maior que nós e todo o universo... E de volta a realidade que nos prende,
somos tão distantes, estamos tão distantes...
Narciso: Não. Não é verdade. Espere, escute. Você sabe que é tudo que eu sempre sonhei, você é diferente de
todas as pessoas que já me apareceram. Sempre te julguei grande demais, inteligente demais, superior demais
as minhas expectativas, você sabe disso. Nunca me achei a sua altura, nunca me achei ideal para você,
sempre soube que você merecia algo mais que eu...
Prometeu: Olhe...
Narciso: Lembra-se de nossa primeira viagem? Nós dois, só nós dois subindo a serra, você morrendo de
medo de dirigir e eu que nunca tinha subido, nunca tinha ido lá. Quantas vezes paramos, lembra? Quantas
vezes nos beijamos e fizemos amor ali mesmo, lembra? Tão gostoso. E na pousada que ficamos? Tão frio e
você não queria que vestíssemos roupa, nem quis acender a lareira. Foi lá que você leu par mim o último
capítulo da trágica história de Romeu e Julieta.
Prometeu: E você adormeceu antes da história acabar.
Narciso: Não, não e não. Agora escute, você tem que me escutar. É esse um dos seus problemas, nunca quer
escutar e depois diz que sempre só existiu monólogo entre nós. Escutar é um exercício de alma, eu aprendi
isso com você. Você é muito inteligente e eu sempre me perdi em suas palavras, mas aos poucos fui entrando
no seu universo, no universo do conhecimento que tens. Com você eu aprendi a admirar grandes coisas que
antes desconhecia e aprendi a compreender com você. E hoje eu sei que te amo além de mim e isso é uma
verdade, é uma realidade... Vamos subir aquelas escadas, agora, deixa eu ninar você.
Prometeu: Não é assim que se resolve, e depois, e depois de tudo. Vai acabar no sexo, na recompensa do
desejo do nosso corpo de estarmos juntos. Depois vem o vazio, o que não se encaixa, as nossas dores
esquecidas. Não pode ser mais assim...
Narciso: Lembro-me agora do dia em que nós nos conhecemos. Éramos outras pessoas. Nossos corpos
molhados, as roupas pregadas nos corpos e você tão preocupado que pudéssemos adoecer. Pegou coberta,
apresentou-me seu quarto, tirou minha roupa e tomamos um banho demorado, um banho quente, lembra?
Descemos as escadas, você colocou música, eu acendi uma vela e nós dançamos ao som de uma música
esquisita, francesa, que eu amei e amo até hoje.
Prometeu: São coisas da memória...
Narciso: Não, não pode ser, é a nossa história, nossa, minha, sua. Não pode ter esse fim, não pode.
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Prometeu: É a lei natural da vida, infelizmente ou felizmente, as coisas têm começo e tem fim.
Narciso: O que você está dizendo? O quê?
Prometeu: Por enquanto nada, apenas refletindo sobre o que você está pensando alto.
Narciso: Não é verdade e não queira me enganar. Não me engane. Já está tudo planejado não é? E hoje, não é,
logo hoje que fiz sua salada preferida. Acenda uma vela vai, logo hoje que saí do trabalho mais cedo para te
fazer uma surpresa, você vem e me apunhala pelas costas. Ai como eu me odeio, como eu me odeio por ser
burro, estúpido, por te amar assim. Eu me odeio, odeio.
Prometeu: Para que tanto ódio? Não somos culpados, apenas amamos e só. Não é motivo de culpa, de
ressentimento, nada disso.
Narciso: Olhe bem nos meus olhos.
Prometeu: Por que isso agora?
Narciso: Estou pedindo, olhe bem nos meus olhos...
Prometeu: Não acho isso necessário...
Narciso: Olhe. Agora diga com toda sinceridade, você deixou de me amar?
Prometeu: Não. Eu amo você a cada dia mais.
Narciso: Sério?
Prometeu: Você sempre duvidou, não foi?
Narciso: Não, você sabe que não.
Prometeu: Pois então?
Narciso: Pois então digo eu, o que será que está acontecendo? Diga de uma vez. Se me ama de verdade, por
que tudo isso? Você está me maltratando.
Prometeu: Só agora? E há quanto tempo venho sofrendo e você nunca percebeu? É justo também? O nosso
amor, a forma que nos amamos causa em mim dor e eu não quero isso para mim. É doloroso. Sonhei com um
amor que fosse só meu, que eu pudesse dividir apenas comigo, eu sou assim. No começo foi assim. Agora
sou eu, seus amigos de boate nas sextas, suas amigas de almoço nos sábados, a turma do trabalho e eu tenho
que aguentar, tenho que conviver com tudo isso sem querer porque você acha que quero te controlar, decidir
sua vida, e não é isso. Não é. Por mais que seja racional, eu me deixei escravizar pelo amor que sinto.
Embriaguei-me de sonhos e agora estou sendo obrigado a colher o que não desejo, não desejo e eu não
mereço isso, não mereço. Não tenho mais idade de aceitar e passar por coisas que não me satisfazem. E isso
não me satisfaz. E eu não quero que você decida por mim. Decida por você. Odeio que me joguem na cara o
que não mereço e eu não mereço isso. Mas eu sabia que iria passar por isso, não sabia? Sabia sim. Você tão
jovem, tão bonito, musculoso, de encher os olhos de quem passa, na flor da idade...
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Narciso: Olhe aqui, me deixe dizer uma coisa, não adianta tentar chantagem emocional que não vou cair. Sou
mais jovem mesmo que você, mas isso não quer dizer que o seu amor por mim é maior pelo meu amor por
você. Não é. Também não vou renunciar meus amigos por causa de nossa relação. Você sabe muito bem
como sou, você me conheceu assim...
Prometeu: Não é verdade, a pessoa que eu conheci era diferente, muito diferente. A rotina que te transformou,
que te mudou.
Narciso: Não, isso eu não posso aceitar...
Prometeu: Você nunca aceita o que eu digo.
Narciso: Você está sendo estúpido.
Prometeu: Eu sempre sou alguma coisa de ruim para você. A pedra no meio do caminho, o inferno de Dante,
o mito da caverna do Platão. Sempre sou e agora sou estúpido. Vai ao inferno antes que eu esqueça. Vá
procurar sua turma, vá ser feliz do seu jeito. Estou cansado. Não precisamos disso, chega. Cada um para o seu
lado. Não era assim que eu queria, mas se é pra ser assim, que seja.
Narciso: Você não está falando sério.
Prometeu: Nunca falei tão sério em toda minha vida.
Narciso: Hoje é nosso aniversário de casamento.
Prometeu: É, eu sei, por isso tinha evitado desde o começo conversar.
Narciso: Comprei-lhe um presente.
Prometeu: Não precisa.
Narciso: São as passagens de nossa tão sonhada viagem para a Itália.
Prometeu: Agora é tarde.
Narciso: Sempre sonhamos conhecer as ruas por onde andou o Da Vinci, esqueceu?
Prometeu: Era sonho meu, não tente me agradar, não complique as coisas, por favor.
Narciso: Conhecer os afrescos da capela Cistina, o Vaticano, andar de Gôndolas, conhecer a torre de Pisa...
Prometeu: Pare com isso...
Narciso: Que horas são?
Prometeu: Quase meia noite.
Narciso: Quase meia noite? Posso esquentar o jantar?
Prometeu: Perdi a fome.
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Narciso: É uma receita nova que eu aprendi, uma salada leve, vai te fazer bem. Também tem uma pizza e tem
refrigerante, por favor, faz isso comigo não. Pode ser o nosso último jantar.
Prometeu: Tudo bem, tudo bem, o que você me pede que não faço?
Narciso: Antes traga uma garrafa de vinho e coloque aquela música, a música da princesa desenganada que
pede ao amante que não vá, não vá... E dance comigo, pela última vez.